Charles Journet
Na Quinta-feira Santa Jesus dissera a seus discípulos: “Tenho desejado, ansiosamente, comer convosco esta páscoa, antes de sofrer” 1. Como pôde desejar assim a páscoa na qual vão começar sua agonia e Paixão? A resposta secreta está contida numa só realidade: desde a sua entrada no mundo2, Jesus está devorado e consumido pelo desejo de reparar a ofensa infinita feita a Deus pelo pecado, e abrir aos homens as fontes do perdão prometidas pelo profeta3. A aproximação do suplício sangrento da Cruz, pelo qual todas as coisas na terra e nos céus vão-se reconciliar4, traz-Lhe misterioso reconforto.
A sede do desejo que atormenta a Jesus é salientada por Santo Agostinho nos seus comentários sobre os salmos: “Desejaria o Cristo realmente comer quando procurava os frutos da figueira, para apanhá-los se os encontrasse?” 5. Desejaria Ele, realmente, beber, quando dizia à mulher de Samaria: Dai-me de beber? E quando disse, sobre a Cruz: Tenho sede? Do que teria o Cristo fome? Do que teria sede, senão de nossas boas obras?” 6. E ainda: “Que haverá de mais evidente que os homens devem ser atraídos pelo batismo para esse corpo da cidade de Jerusalém, da qual era imagem o povo de Israel... Até o fim, esse corpo estará sedento: caminha e tem sede. Acolhe multidões nele, jamais, porém cessará de ter sede. Daí provém a palavra de Jesus: Tenho sede, mulher, dá-me de beber. A Samaritana junto ao poço compreende que o Senhor está com vontade de beber e é saciada por Aquele que tem sede. Assim compreende a princípio, e Ele, então, a acolhe quando ela crê. E sobre a Cruz, Ele diz: Tenho sede! Não lhe deram, porém, aquilo do que tinha sede. Era deles que tinha sede, e deram-Lhe vinagre...” 7
Santo Tomás insistirá, ao mesmo tempo, sobre os dois sentidos, um carnal, outro espiritual, do Sitio8: “Se Jesus diz: tenho sede! É antes de tudo, porque morre de morte verdadeira, não da morte de um fantasma. Ainda aqui aparece seu desejo ardente da salvação do gênero humano, conforme diz São Paulo: Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade9. Jesus mesmo dissera: O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido10. Ora, a veemência do desejo exprime-se, muitas vezes, pela sede, como diz o salmista11: Minha alma tem sede do Deus vivo”.
Esses aspectos são especialmente preferidos por Santa Catarina de Siena. “É a fome e a sede do ansioso desejo que Jesus tinha de nossa salvação, escreve ela, que o faziam exclamar sobre o madeiro da Santa Cruz: Tenho sede! Como se dissesse: Tenho sede e desejo de vossa salvação, mais do que vos pode demonstrar o suplício corporal da sede. Sim, porque a sede do corpo é limitada, mas a sede do santo desejo não tem limites” 12. Em outra carta, explica que, se Jesus foi saturado de opróbrios no seu corpo, Ele é insaciável no desejo. Desde o momento da Encarnação, tomou sobre si a Cruz do desejo de fazer a vontade do Pai e de salvar o mundo. É uma cruz mais pesada do que qualquer outra dor corporal. E assim, quando se aproxima o Seu fim, na Ceia da quinta-feira santa, exulta em espírito: o sofrimento do sacrifício, desde então iminente, vai afastar o sofrimento do desejo; por ela, o desejo será atendido13.
Como teria a Santa de Siena compreendido tão intensamente a sede de fazer a vontade do Pai e de salvar o mundo, que dilacerava Jesus na Cruz, se algo dessa chama não existisse nela para devorá-la? Sua carta n. XVI dirige-se a um importante prelado. Com a impetuosidade de seu desejo, fala-lhe dos apaixonados de Deus que, vendo a ofensa que Lhe é feita no mundo e a condenação das criaturas, chegam a perder o sentimento da própria vida. Não fogem dos sofrimentos, mas vão a seu encontro. Glorificam-se deles como São Paulo nas suas tribulações. Oh! Segui este Apóstolo, acrescenta Catarina com audácia. Abri os olhos. O lobo infernal atira-se sobre as ovelhas que pastam nos jardins da santa Igreja. Ninguém ousa arrancá-las de suas presas. Os pastores dormem no amor de si mesmos, na cupidez, na impureza. O orgulho embriaga-os a ponto de não verem que a graça os desertou. Amam-se a si mesmos e não a Deus. Fingem não ver o mal: calam-se e deixam-no crescer. “Ó Pai muito querido! Deste amor de vós mesmo, quero que sejais isento! Eu vos conjuro, fazei que a Verdade primeira não tenha que vos repreender um dia, dizendo: Maldito sejas tu, tu que te calaste!”.
De Maria da Encarnação temos o seguinte relato: sendo ainda ursulina no Convento de Tours, foi transportada, soerguida pelo espírito apostólico e viu a indigência das terras em estado de missão que se abriam diante dela e inflamavam-lhe o desejo: “Por uma certeza interior, via os demônios triunfarem sobre aquelas pobres almas que ele arrebatava do domínio de Jesus Cristo, nosso divino Mestre e soberano Senhor, que, entretanto, os havia resgatado com seu precioso Sangue. Diante da certeza do que via, fui tomada de tal zelo que, não me contendo mais, estreitei de encontro ao peito todas aquelas pobres almas, e apresentei-as ao Pai Eterno, dizendo-Lhe que já estava em tempo de fazer justiça em favor de meu Esposo. Lembrei-Lhe que Lhe prometera todas as nações por herança, e que além do mais, Ele satisfizera, pelo seu Sangue, todos os pecados dos homens... Que embora houvesse morrido por todos, nem todos viviam, como, por exemplo, aquelas almas que eu lhe apresentava e trazia sobre mim. Queria-as todas para Jesus Cristo ao qual, de direito, pertenciam” 14.
Santa Teresinha sentia seu ardor de salvar o mundo identificar-se com o da Igreja eterna: “Queria esclarecer as almas como faziam os profetas, os doutores. Gostaria de percorrer a terra, pregar vosso nome, e plantar sobre o solo infiel vossa Cruz gloriosa, ó meu Bem-Amado! Uma única missão, porém, não me bastaria: queria anunciar o Evangelho ao mesmo tempo em todas as partes do mundo e até mesmo nas ilhas mais distantes. Queria ser missionária, não somente durante alguns anos, mas gostaria de tê-lo sido desde a criação do mundo e continuá-lo a ser até a consumação dos séculos” 15.
Assim os santos, à imitação de Cristo, têm sede da salvação do mundo. O sofrimento redentor do Cristo na Cruz, que exteriormente podemos descrever com acerto, não mostra a sua veemência, suas terríveis exigências senão àqueles que, através dos tempos, consentem em perder-se nela, sem nada reservar para si mesmos. É o mistério da co-redenção que lhes abre as portas supremos do mistério da redenção.
Jesus ora pelo mundo inteiro, se por “mundo inteiro” compreendemos todas as criaturas humanas. Entrega-se por todas e cada uma delas. “Filhinhos meus, diz São João, eu vos escrevo estas coisas a fim de que não pequeis, mas se algum de vós pecar, temos por advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” 16. Se Jesus envia seus discípulos por toda parte, é a fim de que o mundo creia que o Pai O enviou17. É para que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” de que Ele é o único mediador entre Deus e os homens, “que se deu a Si mesmo em resgate para todos” 18. Todos aqueles que forem salvos, sê-lo-ão pela única oração redentora que nos foi dada: a oração de Jesus na Cruz.
Entretanto, Jesus não reza pelo mundo, quando “mundo” significa cidade do mal19. Ele roga contra o mundo. Roga por todos os homens, contra o mundo que está neles, para arranca-los do mundo que neles está, e transferi-los integralmente para a cidade de Deus. Todavia, esta oração mesma de Jesus pode ser recusada. Resisto contra ela, fecho-lhe meu coração. O Amor que vem a mim, primeiramente no presépio, depois sobre a Cruz, posso rejeitá-lo. Eis o inferno. Que este possa ser finalmente preferido por muitos, é a suprema causa da indizível agonia do Salvador.
“Pensava em ti na minha agonia; derramei tais gotas de sangue por ti” 20. Teologicamente, essas palavras são verdadeiras. Na essência divina onde mergulhava a sua visão, Jesus abrangia num só olhar todo o desenrolar concreto da história do mundo. Via, em cada minuto da existência, todas as almas imortais pelas quais intercedia. Conhecia cada pecado, cada ofensa infinita feita ao Amor. Nossas infidelidades de hoje e de amanhã O feriram. Desolaram a sua agonia. Foi por elas que — conscientemente — Ele morreu. Uma que fosse..., e essa já reclamaria a redenção infinita. A agonia de Jesus é assim coextensiva a toda a tragédia humana. Toda a duração do tempo, todas as novas faltas e omissões estão contidas nas profundezas do único instante da Paixão redentora. Ora, se Jesus sofreu pelos pecados que ainda serão cometidos, e que virão até o fim do mundo, então, — e esta verdade é tremenda — sou eu que, pecando amanhã, te-lo-ei posto em agonia há dois mil anos. É um dos sentidos de outro pensamento de Pascal: “Jesus estará em agonia até o fim do mundo: não se pode dormir durante esse tempo”.
Referindo-se àqueles que experimentaram o dom de Deus e renegaram-no depois, a Epístola aos Hebreus, usando de uma palavra misteriosa, declara com autoridade “que eles crucificaram em si mesmos o Filho de Deus e O expõem à ignomínia” 21.
Nossos pecados de amanhã contribuíram para a agonia de Jesus. Em compensação, e isso é verdade, nossas fidelidades de amanhã te-lo-ão consolado. Pio XI assim se expressou, na Encíclica Miserentissimus Redemptor22: “Se a previsão de nossas faltas deixava a alma de Cristo triste até a morte, como duvidar que a previsão de nossas reparações futuras não lhe proporcionava, desde aquele instante, alguma doçura? Não nos diz o Evangelho que sua tristeza e angústia puderam ser consoladas pela visita do Anjo? Aquele Coração muito santo, ferido incessantemente, pela ingratidão do pecado, temos que consolá-lo agora, e nós o podemos, de maneira misteriosa, mas verdadeira. Com razão pôde queixar-se o Cristo, na liturgia, pela boca do salmista, de ser abandonado pelos seus amigos: “Tu conheces o meu opróbrio, minha confusão e minha vergonha. A afronta partiu-me o coração. Esperei que alguém se condoesse de mim e não houve ninguém” 23.
(Transcrição parcial da obra “As sete palavras” de Charles Journet).