Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem foi santificada antes de ser animada.
1 - Pois, como se disse, mais graças foram conferidas à Virgem Mãe de Deus, que a qualquer santo. Ora, a certos foi concedido o serem santificados antes da animação. Pois, diz a Escritura: Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe, te conheci; ora, a alma não é infundida antes da formação do corpo. Semelhantemente, diz, de João Batista, Ambrósio: Ainda não tinha o espírito da vida e já nele existia o Espírito da graça. Logo, com muito maior razão, a Santa Virgem podia ser santificada, antes da animação.
2. Demais. — Era conveniente, como diz Anselmo, que a Santa Virgem resplendesse pela maior pureza possível, logo abaixo de Deus. Donde o dizer a Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula. Ora, maior seria a pureza da Santa Virgem se nunca a sua alma tivesse sido inquinada do contágio do pecado original. Logo, foi-lhe concedida a santificação da carne, antes de animada.
3. Demais. — Como se disse, não se celebra festa senão de quem é santo. Ora, certos celebram a festa da Conceição da Santa Virgem. Logo, parece que foi santa na sua concepção mesma. E assim foi santificada antes da animação.
4. Demais. — O Apóstolo diz: Se a raiz é Santa, também os ramos. Ora, a raiz dos filhos são os seus pais. Logo, a Santa Virgem também podia ser santificada nos seus pais antes da animação.
Mas, em contrário, as coisas do Antigo Testamento são as figuras do Novo, conforme aquilo do Apóstolo: Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. Ora, parece que a santificação do tabernáculo, do qual diz a Escritura — santificou o seu tabernáculo o Altíssimo — significa a santificação da Mãe de Deus, chamada também pela Escritura, tabernáculo de Deus, como se lê: No sol pôs o seu tabernáculo. E do tabernáculo foi ainda dito: Depois de acabadas todas estas coisas, cobriu uma nuvem o tabernáculo do testemunho e a glória do Senhor o encheu. Logo, também a Santa Virgem não foi santificada, senão depois de perfeitas todas as suas partes, isto é, o corpo e a alma.
SOLUÇÃO. — Dupla razão podemos dar, da santificação da Santa Virgem, antes de animada. A primeira é que, a santificação, de que tratamos não é mais que a purificação do pecado original; pois, a santidade é a pureza perfeita, como diz Dionísio. Ora, a culpa só pode ser delida pela graça, cujo sujeito só é a criatura racional. E por isso, antes, da infusão da alma racional, a Santa Virgem não foi purificada. — Segundo, porque, sendo susceptível de culpa só a criatura racional, o ser concebido não é contaminado pela culpa senão depois da infusão da alma racional. Assim, de qualquer modo que a Santa Virgem fosse santificada, antes da animação, não teria nunca incorrido na mácula da culpa original; e, portanto, não teria precisado da redenção e da salvação, operada por Cristo, de quem diz o Evangelho: Ele salvará o seu povo dos pecados deles. Ora, é inadmissível que Cristo não seja o Salvador de todos os homens, como diz o Apóstolo. - Donde se conclui, que a santificação da Santa Virgem se deu depois da sua animação.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quando o Senhor diz que conheceu Jeremias, antes de formado no ventre materno, isso se entende, pela ciência de predestinação; mas diz que o santificou, não antes de formado, mas antes de saído do ventre materno. — Quanto ao dizer Ambrósio, que João Batista ainda não tinha o espírito da vida e já tinha o Espírito da graça, não se deve entender como significando o espírito da vida a alma vivificante, mas significando espírito o ar exterior respirado. Ou podemos dizer, que ainda não tinha o espírito da vida, isto é, a alma, nas suas operações manifestas e completas.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O não ter sido nunca a alma da Santa Virgem inquinada do contágio do pecado original, se oporia à dignidade de Cristo, como Salvador universal de todos. Por isso, logo abaixo de Cristo, que não precisava ser salvo, como Salvador universal, a máxima pureza foi a de Santa. Virgem. Pois, Cristo de nenhum modo contraiu o pecado original, mas foi santo desde a sua conceição, segundo aquilo do Evangelho: O santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus. Mas, a Santa Virgem contraiu por certo o pecado original, sendo contudo dele purificada, antes de nascida do ventre materno. E é o que significa a Escritura quando diz, referindo-se à noite do pecado original. Espere a luz, isto é, Cristo, e não a veja – porque nada mais manchado cai nela; nem o nascimento da aurora quando raia, isto é, da Santa Virgem, que, no seu nascimento, foi imune do pecado original.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora não celebre a Igreja Romana a Conceição da Santa Virgem, tolera contudo o costume de certas igrejas celebrarem essa festividade. Por isso, não deve essa celebração ser totalmente reprovada. Nem o fato, porém, de ser celebrada a festa da Conceição, significa que a Virgem foi santa na sua Conceição. Mas sim, que por se lhe ignorar o tempo da santificação, celebram-lhe a festa da santificação, antes que a da conceição, no dia da conceição.
RESPOSTA À QUARTA. — Há duas espécies de santificação. — Uma, de toda a natureza, isto é, enquanto que toda a natureza é liberada totalmente da corrupção da culpa e da pena. O que se dará na ressurreição. — Outra é a santificação pessoal, que não se transmite à prole carnalmente gerada, porque não diz respeito essa santificação à carne, mas, ao espírito. Por onde, se os pais da Santa Virgem foram purificados do pecado original, contudo a Santa Virgem não deixou de contrair o pecado original, por ter sido concebida na concupiscência da carne e pela conjunção do homem e da mulher. Assim, diz Agostinho: Tudo o nascido do concúbito é carne de pecado.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem não foi santificada antes de nascer, no ventre materno.
1 — Pois, diz o Apóstolo: Não primeiro o que é espiritual, senão o que é animal, depois o que é espiritual. Ora, pela graça da santificação o homem nasce espiritualmente filho de Deus, segundo aquilo do Evangelho: Nasceram de Deus. Mas, a natividade, do ventre, é uma natividade corpórea. Logo, a Santa Virgem não foi santificada, antes de nascer do ventre materno.
2 — Demais. Agostinho diz: A santificação, que nos torna templos de Deus, só é a dos renascidos. Ora, ninguém renasce senão depois de nascer. Logo, a Santa Virgem não foi santificada, ante de nascida do ventre materno.
3 — Demais. Todo santificado pela graça é purificado do pecado original e do atual. Se, pois, a Santa Virgem foi santificada antes da natividade no ventre materno, foi então, por consequência purificada do pecado original. Ora, só o pecado original podia impedir-lhe a entrada no reino celeste. Se, portanto, tivesse morrido, então, teria transposto as portas do reino celeste. O que contudo não podia dar-se, antes da paixão de Cristo; pois, como diz o Apóstolo, temos confiança de entrar no santuário, pelo sangue de Cristo. Donde se conclui, portanto, que a Santa Virgem não foi santificada antes de nascida do ventre materno.
4 — Demais. O pecado original é o que vem de origem, assim como o pecado atual, o que pressupõe um ato. Ora, enquanto praticamos o ato de pecar não podemos ser purificados do pecado. Logo, também a Beata Virgem não podia ser purificada do pecado original, enquanto existia original e atualmente no ventre materno.
Mas, em contrário, a Igreja celebra a natividade da Santa Virgem; ora, a Igreja não celebra nenhuma festa senão por algum santo. Logo, a Santa Virgem, na sua natividade mesma, foi santa. Logo, foi santificada no ventre materno.
SOLUÇÃO. — Sobre se a Santa Virgem foi santificada no ventre materno, nada nos ensina a Escritura canônica, a qual também não faz menção da sua atividade. Mas, assim como Agostinho prova com razões que a Virgem foi assunta ao céu em corpo, o que contudo não o diz a Escritura, assim também podemos pensar racionalmente que foi santificada no ventre materno. Pois, é racional crermos, que aquela que gerou o Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade, recebeu maiores privilégios de graça que as demais mulheres. E por isso diz o Evangelho, que o Anjo lhe anunciou: Ave, cheia de graça. Pois, sabemos que a certos foi concedido esse privilégio da santificação no ventre materno; assim, a Jeremias, a quem foi dito – Antes que tu saísses da clausura do ventre materno, te santifiquei. E a João Batista, de quem foi dito. Já desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo. Por onde e racionalmente, cremos que a Santa Virgem foi santificada, antes de nascer, no ventre materno.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Também na Santa Virgem primeiro existiu o corpo e depois, o espírito; pois, foi primeiro concebida carnalmente e depois, santificada no seu espírito.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Agostinho se exprime segundo a lei comum, pela qual ninguém se regenera pelos sacramentos senão depois de ter nascido. Mas Deus não sujeitou o seu poder a essa lei dos sacramentos, que não pudesse conferir a sua graça, por um especial privilégio, a certos, mesmo antes de nascidos do ventre materno.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A Santa Virgem foi purificada, no ventre materno, do pecado original, quanto à mácula pessoal; mas não ficou isenta do reato, a que toda natureza estava sujeita, não podendo por isso entrar no paraíso, senão mediante o sacrifício de Cristo; como também se deu com os santos Patriarcas que existiram antes de Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — O pecado original foi contraído na origem, pois é pela origem que se comunica a natureza humana, a que propriamente respeita o pecado original. O que se dá quando a criatura concebida recebe a alma. E por isso nada impede seja ela purificada, depois de recebida a alma; pois, depois disso, se ainda continua no ventre materno, é para receber, não a natureza humana, mas uma certa perfeição da natureza já recebida.
O segundo discute-se assim. Parece que Cristo, enquanto homem não é o mediador entre Deus e os homens.
1. — Pois, diz Agostinho: Uma só é a pessoa de Cristo, a fim de que não deixe de ser um. Cristo, não uma substância; a fim de afastada a benefício de mediador, não ser considerado Filho ou só de Deus ou só do homem. Ora, enquanto homem, não é Filho de Deus e do homem; mas simultaneamente, enquanto Deus e homem. Logo, não devemos dizer que seja mediador entre Deus e o homem, só enquanto homem.
2. Demais. — Assim como Cristo, enquanto Deus, tem a mesma natureza que o Pai e o Espírito Santo, assim, enquanto homem, tem a mesma natureza que os homens. Ora, por ter, como Deus, a mesma natureza que o Pai e o Espírito Santo, não pode chamar-se mediador. Assim, aquilo do Apóstolo: Ele é mediador entre Deus e os homens, a Glosa: Enquanto Verbo não é mediador, por ser igual a Deus, Deus perante Deus e simultaneamente uno com Deus. Logo, também enquanto homem não pode chamar-se mediador, por ter a mesma natureza que os homens.
3. Demais. — Cristo é chamado mediador, por nos ter reconciliado com Deus, o que realizou, delindo-nos do pecado, que nos separava de Deus. Ora, delir o pecado fá-lo Cristo, não como homem, mas como Deus. Logo, Cristo, enquanto homem, não é mediador, mas, como Deus.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Cristo não é mediador por ser o Verbo; pois, o Verbo, absolutamente imortal e absolutamente feliz, está acima das misérias dos mortais. Mas é mediador enquanto homem.
SOLUÇÃO. — Duas coisas podemos considerar no mediador: primeiro, a natureza de mediador; segundo, o ofício de unir. Ora, da natureza do mediador é distar de um e outro extremo. E quanto a unir, o mediador o faz, transferindo a um dos extremos o que é do outro. Ora, nada disto pode convir a Cristo, enquanto Deus, mas só enquanto homem. Pois, enquanto Deus, não difere do Pai e do Espírito Santo em natureza nem em poder de domínio. Nem o Padre e o Espírito Santo tem nada que não seja do Filho; de modo que pudesse deferir a outros o que é do Pai ou do Espírito Santo, como se de outrem o fosse. Pois, enquanto homem, difere de Deus em natureza; e dos homens, em dignidade e graça. E como homem, cabe-lhe unir os homens com Deus, transmitindo-lhes os preceitos e os dons, e satisfazer e interceder pelos homens, perante Deus. Por isso, verdadeirissimante se chama mediador, enquanto homem.
DONDE A REPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. - Eliminada de Cristo a natureza divina, ser-lhe à por consequência eliminada a singular plenitude das graças, que lhe convém, enquanto unigênito do Pai, como diz o Evangelho. De cuja plenitude lhe resulta o ser constituído superior de todos os homens, e mais próximo de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo, enquanto Deus, é em tudo igual ao Pai. Mas também pela natureza humana excede os outros homens. Por isso, enquanto homem, pode ser mediador; mas não como Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora convenha a Cristo, enquanto Deus, delir o pecado por autoridade própria, contudo, satisfazer pelo pecado do gênero humano só lhe convém; como homem. E, por isso, chama-se mediador entre Deus e os homens.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não é próprio de Cristo ser o medianeiro entre Deus e os homens.
1. — Pois, assim como o sacerdote, assim também o profeta é mediador entre Deus e os homens, segundo a Escritura: Eu fui o que intervim como mediador entre o Senhor e vós, naquele tempo. Ora, ser sacerdote e profeta não convém a Cristo. Logo, nem ser medianeiro.
2. Demais. — O que convém aos anjos bons e maus não pode ser considerado próprio de Cristo. Ora, ser medianeiro entre Deus e os homens convém aos anjos bons, como diz Dionísio. E convém também aos anjos maus, isto é, aos demônios, que tem certa comunidade com Deus, pela sua imortalidade; e certa outra com os homens, a saber, um espírito passível e, por consequência, sujeito à dor, como está claro em Agostinho. Logo, ser o medianeiro entre Deus e os homens não é próprio de Cristo.
3. Demais. — Ao ofício do medianeiro pertence aproximar aqueles entre os quais se interpõe. Ora, o Espírito Santo, no dizer do Apóstolo, intercede por nós a Deus com gemidos inexplicáveis. Logo, o Espírito Santo é o medianeiro entre Deus e os homens. O que, portanto, não é próprio de Cristo.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Só há um mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem.
SOLUÇÃO. — É ofício próprio do mediador unir aqueles entre os quais se interpôs; pois os extremos se unem no meio. Ora, unir os homens a Deus, de modo perfeito, convém a Cristo, por meio de quem os homens se reconciliaram com Deus, segundo o Apóstolo: Deus estava em Cristo reconciliando o mundo consigo. Logo, só Cristo é o perfeito medianeiro entre Deus e os homens, por ter reconciliado o gênero humano com Deus, pela sua morte. E por isso, depois de o Apóstolo ter dito – Mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem – acrescenta: Que se deu a si mesmo para redenção de todos. Mas nada impede certos outros serem, de algum modo, considerados mediadores entre Deus e os homens; isto é, se cooperam para a união dos homens com Deus, por via de preparação ou de ministério.
DONDE A REPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os profetas e os sacerdotes da lei antiga foram chamados mediadores entre Deus e os homens, por via de preparação e de ministério; isto é, enquanto prenunciavam e prefiguravam o verdadeiro e perfeito mediador entre Deus e os homens. Ao passo que os sacerdotes do Novo Testamento podem chamar-se mediadores entre Deus e os homens, enquanto ministros do verdadeiro mediador, ministrando aos homens, em nome dele, os sacramentos da salvação.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os anjos bons, como diz Agostinho, não podem chamar-se com propriedade mediadores entre Deus e os homens. Pois, tendo de comum com Deus a beatitude e a imortalidade, mas não as tendo em comum com os homens miseráveis e mortais, como não hão de antes, estar afastados dos homens e unidos com Deus, do que serem constituídos medianeiros entre ambos? E Dionísio também diz que são medianeiros, porque, segundo o grau da natureza, foram constituídos inferiores a Deus e superiores aos homens, E exercem o ofício de mediador, não principal e perfeitamente, mas ministerial e dispositivamente. Por isso, o Evangelho diz, que chegaram os anjos e o serviam isto é, a Cristo. — Quanto aos demônios, eles tem de comum com Deus a imortalidade e, com os homens, a miséria. E entre um ser imortal e outro sujeito a misérias, o demônio se interpõe como mediador, a fim de impedir o homem de chegar à imortalidade feliz, fazendo cair na miséria imortal. Por isso, é um mau medianeiro, que separa os amigos. Quanto a Cristo, ele tinha de comum com Deus a beatitude, e com os homens, a mortalidade. Por isso, interpôs-se como mediador para que, depois de passada a sua mortalidade, os fizesse, de mortos, imortais, o que demonstrou pela sua ressurreição; e para que, de miseráveis, os tornasse felizes, nunca deixou de ter a felicidade. Donde o ser ele o bom mediador, que reconcilia os inimigos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O Espírito Santo, sendo em tudo igual a Deus, não pode chamar-se mediador entre Deus e os homens; mas só Cristo, que, embora pela divindade seja igual ao Pai, contudo, pela humanidade é menor que o Pai, como se disse. Por isso, àquilo do Apóstolo — Cristo é mediador — diz a Glosa: Não o Pai nem o Espírito Santo. Mas dizemos que o Espírito Santo intercede por nós, por nos fazer orar.
Em seguida devemos tratar da anunciação da Santa Virgem.
E nesta questão discutem-se quatro artigos:
O quinto discute-se assim. — Parece que era conveniente que Deus se tivesse encarnado desde o princípio do gênero humano.
1. — Pois, a obra da Encarnação procede da imensidade da caridade divina, segundo aquilo do Apóstolo (Ef 2, 4): Deus que é rico em misericórdia, pela sua extrema caridade com que nos amou, ainda quando estavam os mortos pelos pecados nos deu vida juntamente em Cristo. Ora, a caridade não tarda em socorrer ao amigo que padece necessidade, segundo a Escritura (Pr 3, 28): Não digas ao teu amigo: Vai e torna, amanhã te darei, quando tu lhe podes dar logo. Portanto Deus não devia ter diferido a obra da Encarnação, mas, imediatamente, desde o princípio, devia ter socorrido o gênero humano pela sua encarnação.
2. Demais. — O Apóstolo diz (1Tim 1, 15): Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores. Ora, os salvos teriam sido em maior número se desde o princípio do gênero humano Deus se tivesse encarnado; pois, muitos, ignorando Deus, pereceram no seu pecado, em diversos séculos. Logo, era mais conveniente que Deus se tivesse encarnado desde o princípio do gênero humano.
3. Demais. — A obra de graça não é menos ordenada que a da natureza. Ora, a natureza começa pelo perfeito, como diz Boécio. Logo, a obra da graça devia ter sido perfeita desde o começo. Ora, na obra da Encarnação consideramos a perfeição da graça, segundo o Evangelho (Jo 1, 14): O Verbo se fez carne; e depois acrescenta: Cheio de graça e de verdade. Logo, Cristo devia ter-se encarnado desde o princípio do gênero humano.
Mas, em contrário, o Apóstolo (Gl 4, 4): Mas quando veio o cumprimento do tempo, enviou Deus a seu Filho, feito de mulher, feito sujeito à lei — ao que diz a Glosa, que a plenitude do tempo foi a predeterminada por Deus Padre para quando houvesse de mandar o seu Filho. Ora, Deus determina tudo pela sua sabedoria. Logo, Deus encarnou-se no tempo convenientíssimo. E, assim, não era conveniente que Deus se tivesse encarnado desde o princípio do gênero humano.
SOLUÇÃO. — Sendo a obra da Encarnação principalmente ordenada à reparação da natureza humana pela abolição do pecado, é manifesto que não foi conveniente, desde o princípio do gênero humano, antes do pecado, que Deus se tivesse encarnado. Pois, remédio não se dá senão aos doentes. Donde o dizer o próprio Senhor (Mt 9, 12): Os sãos não têm necessidade de médico, mas sim os enfermos; eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.
Mas, nem ainda imediatamente, depois do pecado, era conveniente que Deus se tivesse encarnado. — Primeiro, por causa da condição do pecado humano, que proviera da soberba; por onde, o homem devia ser libertado de modo que, humilhado, se reconhecesse necessitado de um libertador. Por isso, àquilo do Apóstolo (Gl 3, 19): Ordenada por anjos na mão de um mediador, diz a Glosa: Foi obra de um grande conselho o não ter sido o Filho de Deus enviado imediatamente depois da queda do homem. Pois, Deus primeiro abandonou o homem à liberdade do arbítrio, na lei natural, para que assim reconhecesse as forças da sua natureza. E então, quando essa se tornou deficiente, recebeu a lei. Dada ela, o morbo se fortificou, não por vício da lei, mas, da natureza; de modo que, reconhecendo assim a sua fraqueza, chamasse pelo médico e buscasse o auxílio da graça. — Segundo por causa da ordem da promoção no bem, pela qual do imperfeito se chega ao perfeito. Donde o dizer o Apóstolo (1Cor 15, 46): Não primeiro o que é espiritual, senão o que é animal, depois o que é espiritual. O primeiro homem formado da terra é terreno, o segundo homem, do céu, celestial. — Terceiro, por causa da dignidade do próprio Verbo encarnado. Pois, àquilo do Apóstolo (Gl 4, 4): Mas quanto veio o cumprimento do tempo, diz a Glosa: Quanto maior era o juiz que vinha, tanto mais longa devia ser a série dos arautos que o precedessem — Quarto, a fim de não se entibiar, pela longura do tempo, o fervor da fé e a caridade de muitos. Donde o dizer o Evangelho (Lc 18, 8): Quando vier o Filho do homem, julgais vós que achará ele alguma fé na terra?
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A caridade não tarda em socorrer ao amigo, salva contudo a oportunidade do seu ato e a condição da pessoa. Se, pois, um médico, logo desde o princípio da doença, desse o remédio ao doente, o remédio lhe aproveitaria menos ou até mesmo faria mal em lugar de curar. Por isso também o Senhor não deu desde logo ao gênero humano o remédio da Encarnação, a fim de que ele por soberba não o desprezasse sem ter antes reconhecido a
sua enfermidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — À objeção Agostinho responde do modo seguinte: Cristo quis aparecer aos homens e pregar-lhes a sua doutrina quando e onde sabia que haveria quem acreditasse nele. Pois, nesses tempos e nesses lugares, em que o seu Evangelho não foi pregado, previa que as gentes haveriam de ser todas, relativamente à sua pregação, tais quais eram, senão todos, a maior parte dos que lhe viam a presença corporal, que nele não quiseram crer, mesmo depois de ressuscitado dos mortos. Mas, reprovando essa resposta diz o mesmo Agostinho: Porventura podemos dizer que os Sírios e os Sidônios não queriam crer nos prodígios que presenciassem, ou não houvessem de crer se eles se fizessem, pois que o próprio Deus atestava que haveriam de fazer penitência com grande humildade, se na presença deles se tivessem operados aqueles prodígios do poder divino? — Donde, ele próprio solvendo a dificuldade, acrescenta: Como diz o Apóstolo, isto não depende do que quer nem do que corre, mas de usar Deus da sua misericórdia; o qual, de um lado, quis socorrer aqueles que previa haveriam de acreditar nos seus milagres, se entre eles tivessem sido feitos; de outro lado, não socorreu aqueles que julgou de maneira diferente, ocultamente, é certo, mas justamente, na sua predestinação. Por onde, acreditamos, sem duvidar, na sua misericórdia, em relação aos que são salvos, e na sua verdade, em relação aos que são punidos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O perfeito é anterior ao imperfeito em seres diversos pelo tempo e pela natureza; pois, há de necessariamente ser o perfeito que leve os seres imperfeitos à perfeição, mas, relativamente a um mesmo ser, o imperfeito tem anterioridade no tempo, embora seja posterior por natureza. Assim, pois, a perfeição eterna de Deus precede, na duração, a imperfeição da natureza humana; mas é posterior a ela a perfeição consumada na união com Deus.
Em seguida devemos tratar do poder judiciário de Cristo. Da execução do juízo final trataremos mais desenvolvidamente quanto examinarmos o concernente ao fim do mundo. Por agora basta tratarmos só do que respeita à dignidade de Cristo.
E nesta questão discutem-se seis artigos:
Em seguida devemos tratar de Cristo enquanto sentado à direita do Pai.
E nesta questão discutem-se quatro artigos:
Em seguida devemos tratar da ascensão de Cristo.
E nesta questão discutem-se seis artigos:
Em seguida devemos tratar da causalidade da ressurreição de Cristo. E nesta questão discutem-se dois artigos: