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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 2 — Se entre Maria e José houve verdadeiro matrimônio.

 O segundo discute-se assim. — Parece que entre Maria e José não houve verdadeiro matrimônio.

 
1. — Pois, diz Jerônimo, que José foi guarda de Maria, antes que seu marido. Ora, se entre eles tivesse havido verdadeiro matrimônio, José teria sido verdadeiramente seu marido. Logo, parece que não houve verdadeiro matrimônio entre Maria e José.
 
2. Demais. — Aquilo do Evangelho – Jacó gerou a José, esposo de Maria – diz Jerônimo: Quando ouvires o nome de esposo, não vás logo pensar que se trate de núpcias; mas lembra-te que as Escrituras costumam chamar aos noivos, esposos e as noivas, esposas. Ora, o verdadeiro matrimônio não são os esponsais, mas as núpcias. Logo, não houve verdadeiro matrimônio entre a Santa Virgem e José.
 
3. Demais. — O Evangelho diz: José seu esposo, como era justo, não queria infamá-la, isto é, levá-la para sua casa para com ela coabitar habitualmente; mas resolveu deixá-la secretamente, isto é, transferir o tempo das núpcias, como expõe Remígio. Logo, parece que, antes de celebradas as núpcias, ainda não havia verdadeiro casamento; sobretudo porque, depois de contraído o matrimônio, a ninguém é lícito abandonar a mulher.
 
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não devemos crer que, segundo o Evangelista, José tivesse recusado receber Maria em casamento, a pretexto que ela teria, como virgem, dado à luz Cristo, sem o seu concurso. Mas esse exemplo prova claramente aos fiéis casados, que podem ser verdadeiros esposos e merecer tal nome, ao mesmo tempo que guardam a promessa de recíproca continência, sem ter comércio conjugal.
 
SOLUÇÃO. — Chama-se verdadeiro matrimônio ou casamento o que realiza a sua perfeição. Ora, dupla pode ser a perfeição de uma coisa: primária e secundária. A perfeição primária de uma coisa consiste na sua forma, donde tira a sua espécie. A perfeição secundária consiste na sua operação, pela qual de certo modo atinge o seu fim. Ora, a forma do matrimônio consiste numa certa e indivisível conjunção das almas, pela qual cada cônjuge está obrigado a conservar uma fé íntegra para com o outro. Quanto ao fim do matrimônio, é a geração e a educação da prole; e esse é atingido, primeiramente, pelo concúbito conjugal; e, secundariamente, pela cooperação do homem e da mulher, que mutuamente se ajudam, para a manutenção dos filhos.
 
Assim, pois, devemos dizer, quanto à primeira perfeição, que houve matrimônio absolutamente verdadeiro entre a Virgem Mãe de Deus e José. Pois, ambos consentiram na convivência conjugal; mas não expressamente, na cópula carnal, senão sob a condição, se isso aprouvesse a Deus, por isso, o Anjo chama a Maria esposa de José, quando lhe disse a este: Não temas receber a Maria, tua mulher. Expondo o que, diz Agostinho: Chama-lhe esposa, pela fé primeira dos desposórios, aquela que jamais conhecera nem nunca haveria de conhecer pelo concúbito Quanto porém à segunda perfeição, pelo ato do matrimônio, se a referirmos ao concúbito carnal, gerador dos filhos, então não se consumou o matrimônio entre José e Maria. Donde o dizer de Ambrósio: Não te perturbes com o chamar frequentemente a Escritura a Maria de esposa; pois, a celebração do casamento não implica em perda da virgindade, sendo apenas a testificação das núpcias. - Contudo, o matrimônio em questão foi também perfeito quanto à educação da prole. Por isso diz Agostinho: Os pais de Cristo tiveram o bem completo das núpcias – a prole, a fé e o sacramento. Pela prole, significamos o próprio Senhor Jesus; pela fé, a ausência de todo adultério; pelo sacramento, a não existência do divórcio. Só não houve o concúbito nupcial.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Jerônimo, no lugar citado, se refere ao marido, quanto ao ato da consumação do matrimônio.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Jerônimo chama às núpcias concúbito nupcial.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Crisóstomo, a Santa Virgem quando desposou a José já lhe habitava a casa. Pois, se a concepção de uma mulher, na casa de seu marido, é considerada regular, é suspeita a da que concebeu fora de casa. Por isso, não teria sido suficientemente acautelada a reputação da Santa Virgem só pelo fato de ter casado, sem que estivesse habitando no domicílio conjugal. Por onde, a expressão  não queria levá-la para casa  entende-se melhor como significando que não queria difamá-la em público, do que como significativa do ato de levá-la para a casa. Por isso o Evangelista acrescenta, que resolveu deixá-la secretamente. Embora porém estivesse habitando a casa de José, pela fé primeira dos desposórios, antes ainda de celebradas solenemente as núpcias; por causa do que, também ainda não tinha tido comércio carnal. Por isso, como ensina Crisóstomo, o Evangelista não disse – Antes de ter sido levada para a casa do esposo — pois já lhe habitava a casa. Porque era costume entre os antigos que a noiva habitasse a casa do noivo. Donde o ter também dito o Anjo: Não temas receber a Maria tua mulher, isto é, não temas celebrar núpcias solenes com ela. - Embora outros digam, que ainda não habitava a casa de José, mas era somente noiva. Mas, a anterior explicação melhor concorda com o Evangelho.

Art. 1 — Se Cristo devia nascer de uma virgem esposada.

 O primeiro discute-se assim. — Parece que Cristo não devia nascer de uma virgem esposada.

 
1. — Pois, os desposórios se ordenam a cópula carnal. Ora, a Mãe de Deus não queria jamais usar da cópula carnal, que iria contra a virgindade do seu coração. Logo, não devia ser esposada.
 
2. Demais. — Que Cristo nascesse de uma virgem foi milagre. Donde o dizer Agostinho: Foi ao poder mesmo de Deus que aprouve a fazer saírem. os membros de uma criança através do seio virginal de sua Mãe inviolada, como lhe aprouverá mais tarde fazer entrar os membros de um homem feito através de portas fechadas. Se se procura aqui uma razão, desvanece-se o milagre; se se pede um exemplo, nada mais tem de singular. Ora, os milagres feitos para confirmar a fé devem ser manifestos. Logo, como os desposórios obumbraram esse milagre, parece não foi conveniente que Cristo nascesse de uma desposada.
 
3. Demais. — Inácio Mártir, como refere Jerônimo, assinalou como causa aos desposórios da Mãe de Deus, que o seu parto fosse oculto ao demônio, de modo a ficar este pensando que ele foi gerado, não por uma virgem, mas de uma casada. Quer porque o diabo com a perspicácia dos seus sentidos conhece o que se realiza materialmente. Quer também porque, depois, por muitos sinais evidentes, os demônios de certo modo conheceram a Cristo. Donde o dizer o Evangelho, que um homem possesso do espírito imundo gritava dizendo: Que tens tu conosco, Jesus Nazareno? Vieste a perder-nos? Bem sei quem és: que és o Santo de Deus. Logo, parece não foi conveniente que a Mãe de Deus fosse desposada.
 
4. Demais. — Jerônimo assinala outra razão: a fim de que a Mãe de Deus não fosse lapidada pelos Judeus como adúltera. Ora, essa razão nada vale; pois, se não fosse desposada não podia ser condenada como adúltera. Logo, parece não era racional que Cristo tivesse nascido de uma desposada.
 
Mas, em contrário, o Evangelho: Estando já Maria, sua mãe, desposada com José. E noutro lugar: Foi enviado o anjo Gabriel à Virgem Maria desposada com um varão que se chamava José.
 
SOLUÇÃO. — Era conveniente que Cristo nascesse de uma virgem casada: quer por causa dele próprio, quer por causa da mãe, quer também por causa de nós.
 
Por causa do próprio Cristo, por quatro razões.  Primeiro, para que não fosse rejeitado dos infiéis, como ilegítimo de nascimento. Donde o dizer Ambrósio: Que se poderia censurar aos Judeus e a Herodes se tivessem perseguido a quem nasceu de um adultério?  Segundo, para que, ao modo acostumado, fosse descrita a sua genealogia pela linha paterna. Por isso diz Ambrósio: Quem veio ao século deve ser descrito ao modo do século. Pois, no Senado e nas outras assembleias, procura-se um varão a quem caibam as honras devidas a sua família. E o mesmo costume testemunham as Escrituras, que sempre buscam a origem viril. — Terceiro, em defesa do menino nascido: para o diabo não suscitar mais violentas ciladas contra ele. Por isso diz Inácio, que a Virgem foi desposada para que o seu parto ficasse oculto ao diabo.  Quarto, para que fosse se educado por José. Por isso este foi chamado seu pai, quase o educador.
 
Foi também conveniente relativamente à Virgem.  Primeiro, porque assim ficou imune da pena, isto é, para que não fosse lapidada pelos Judeus, como adúltera.  Segundo, para que assim ficasse livre da infâmia. Donde o dizer Ambrósio: Foi desposada para não ser marcada com a infâmia de uma virgindade profanada, quando a gravidez pudesse ser sinal da corrupção.  Terceiro, para que José lhe prestasse o seu ministério, como diz Jerônimo.
 
Também foi conveniente relativamente a nós.  Primeiro, porque pelo testemunho de José ficou comprovado o nascimento de Cristo, de uma virgem.  Donde o dizer Ambrósio: O testemunho do marido é o melhor testemunho do pudor da mulher; pois se não tivesse conhecido o mistério, o marido é quem teria maior direito a se afligir com a injúria e vingar o opróbrio.  Segundo, porque as palavras mesmas da Virgem se tornavam mais dignas de crédito quando afirmava a sua virgindade. Por isso diz Ambrósio: A fé nas palavras de Maria é mais firme, que remove as causas de mentira. Se tivesse ficado grávida, sem ser casada, parecia querer, mentirosamente, esconder a sua culpa. Ao passo que casada, nenhum motivo tinha para mentir, pois, o prêmio do casamento e a glória das núpcias é, para as mulheres, o parto. E essas duas razões concernem à firmeza da nossa fé.  Terceiro, para que não tivessem desculpa as virgens que, por incautela, não evitam a infâmia. Por isso, diz Ambrósio: Não convinha deixar às virgens, que vivem com má reputação, pudessem velar-se com a escusa de também a Mãe do Senhor ter tido uma semelhante reputação.  Quarto, porque os desposórios da Virgem são o símbolo da Igreja universal, que, sendo virgem, desposou contudo um esposo, o Cristo, como diz Agostinho.  Pode-se ainda aduzir uma quinta razão, a saber, que a Mãe do Senhor foi casada e virgem, porque na sua pessoa, é honrada tanto a virgindade como o matrimônio, contra os heréticos que detramem aquela e este.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  Devemos crer que foi por uma familiar inspiração do Espírito Santo que a Santa Virgem. Mãe de Deus quis ser desposada. Confiando no divino auxílio, que nunca haveria de usar da cópula carnal; contudo, cometeu essa matéria ao divino arbítrio. Por isso, nenhum detrimento sofreu na sua virgindade.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Ambrósio, o Senhor preferiu que certos duvidassem antes da sua origem que do pudor de sua mãe. Pois, sabia quão delicado é o pudor de uma virgem e de quanto resguardo precisa a sua reputação; nem pensava que a fé na sua origem precisasse defender-se em detrimento de sua mãe. — Devemos porém saber que em certos milagres de Deus devemos ter fé, como. o milagre do parto virginal, da ressurreição do Senhor e também o do Sacramento do Altar. Por isso o Senhor quis que esses mistérios fossem mais ocultos, para que fosse mais meritória a fé neles.  Mas, outros milagres servem para comprovação da fé. E esses devem ser mais manifestos.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o diabo pode muitas coisas em virtude da sua natureza, que contudo o poder divino lhe impede. E, assim, podemos dizer que em virtude da sua natureza, o diabo podia saber que a Mãe de Deus não tinha se corrompido, mas era virgem; mas Deus lhe proibiu conhecer o modo do parto divino.  Nem obsta que depois o diabo de certo modo conhecesse, que esse parto fora o do Filho de Deus; porque já era o tempo de Cristo manifestar o seu poder contra ele e sofrer a perseguição por ele concitada. Mas, durante a infância, era preciso impedir a malícia do diabo; a fim de que não o perseguisse mais cruelmente, numa idade em que Cristo não determinara que houvesse de sofrer nem de manifestar o seu poder, mas em que se mostrava semelhante a todas as mais crianças. Por isso o Papa Leão diz: Os Magos viram a Jesus pequeno de corpo, necessitado do socorro alheio, incapaz de falar e em nada diferente do comum à infância humana. - Ambrósio porém parece ter em conta sobretudo os adeptos do diabo. Pois, depois de ter proposto a razão, do engano do príncipe do mundo, acrescenta: Contudo, esse mistério enganou sobretudo os príncipes deste mundo. Pois, embora a malícia dos demônios também facilmente depreenda as coisas ocultas, contudo as que se ocupam com as vaidades da século não podem saber as coisas divinas.
 
RESPOSTA À QUARTA. — Pela condenação de adultério eram lapidadas não só as já desposadas ou casadas, mas também as que eram conservadas como virgens na casa paterna para casarem um dia. Por isso diz Escritura: Se a moça não se achou virgem, os habitantes da cidade a apedrejarão e morrerá; porque cometeu um crime detestável em Israel, tenda caído em fornicação em casa de seu pai.  Ou podemos dizer, segundo certos, que a Santa Virgem era da estirpe ou da parentela de Aarão, sendo por isso cognata de Isabel, como diz o Evangelho. Ora, uma virgem de raça sacerdotal se cometia estupro era condenada à morte, como se lê na Escritura: Se a filha de um sacerdote apanhada em estupro e desonrar o nome de seu pai, será entregue às chamas. - Mas certos referem as palavras de Jerônimo ao apedrejamento por infâmia.

Art. 4 — Se a Mãe de Deus fez voto de virgindade.

 O quarto discute-se assim. — Parece que a Mãe de Deus não fez voto de virgindade. 

1. — Pois, diz a Escritura: Não haverá em ti estéril nem de um nem de outro sexo. Ora, a esterilidade é consequente à virgindade Logo, a conservação da virgindade era contra o preceito da lei antiga. Ora, a lei antiga ainda vigorava quando Cristo nasceu. Logo, nesse tempo, a Santa Virgem não podia licitamente fazer voto de virgindade.
 
2. Demais. — O Apóstolo diz: Quanto porém às virgens, não tenho mandamento do Senhor, mas dou conselho. Ora, a perfeição do conselho devia começar com Cristo, que é o fim da lei, como diz o Apóstolo. Logo, não foi conveniente que a Virgem fizesse voto de virgindade.
 
3. Demais. — A Glosa de Jerônimo diz: Aos que fizeram voto de castidade é condenável não só casar, mas querer casar. Ora, a Mãe de Cristo não cometeu nenhum pecado condenável, como se estabeleceu. Logo, como foi desposada, parece que não fez voto de virgindade.
 
Mas, em contrário, Agostinho: Ao anjo que lhe anunciava, Maria respondeu: Como se fará isso, pois eu não conheço varão? O que certamente não diria, se antes não tivesse feito voto da sua virgindade a Deus.
 
SOLUÇÃO. — Como estabelecemos na Segunda Parte, as obras de perfeição mais louváveis são quando celebradas com voto. Ora, a Virgindade devia por excelência resplender na Virgem Mãe, pelas razões já aduzidas. Por isso foi conveniente consagrasse por voto a sua virgindade a Deus. Ora, no tempo da lei, tanto as mulheres como os varões deviam gerar, porque a propagação do culto de Deus dependia de uma nação rica em homens, antes de Deus ter nascido desse povo. Por onde, não se crê que a Mãe de Deus tivesse, absolutamente falando, feito voto de virgindade, antes de desposar José; mas, embora tivesse o desejo de o fazer, cometeu, contudo, a sua vontade ao arbítrio divino. Mas depois que recebeu esposo, como o exigiam os costumes do tempo, simultaneamente fez voto de virgindade.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como era proibido pela lei o não se esforçar um por deixar descendência na terra, por isso a Mãe de Deus não fez voto de virgindade, absolutamente, mas, condicionalmente, isto é, se agradasse a Deus. Mas depois de ter conhecido que Deus assim o aceitara, fez voto absoluto de virgindade, antes de receber o anúncio do anjo.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como Cristo teve a plenitude da graça perfeitamente, e contudo certas graças preexistiram incoativamente em sua mãe, assim também a observância dos conselhos, que se realiza pela graça de Deus, começou, certo, perfeitamente em Cristo, mas de algum modo teve início em sua mãe.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — As palavras citadas do Apóstolo devem entender-se como aplicáveis aos que fazem voto absoluto de castidade, o que a Mãe de Deus não fez antes de ter desposado José. Mas, depois de tê-lo desposado, de vontade própria juntamente com seu esposo, existiu o voto de virgindade.

Art. 3 — Se a mãe de Cristo permaneceu Virgem depois do parto.

O terceiro discute-se assim. — Parece que a mãe de Cristo não permaneceu Virgem depois do parto. 

1. — Pois, diz o Evangelho: Antes de coabitarem José e Maria, se achou ela ter concebido por obra do Espírito Santo. Ora, o Evangelista não teria dito – antes de coabitarem – se não fosse certo que haveriam de coabitar; assim não diremos, que não vai comer, quem não ia comer. Logo, parece que a Santa Virgem chegou a ter conjunção carnal com José. E portanto não permaneceu virgem depois do parto.
 
2. Demais. — No mesmo lugar, o Evangelho refere as palavras do anjo a José: Não temas receber a Maria, tua mulher. Ora, o casamento se consuma pela cópula carnal. Logo, parece que houve cópula carnal entre Maria e José. Donde, pois, resulta que não permaneceu virgem depois do parto.
 
3. Demais. — Logo a seguir, acrescenta o Evangelho: E recebeu a sua mulher; e ele não na conheceu, enquanto ela não pariu o seu primogênito. Ora, a expressão adverbial – até que – costuma significar um tempo determinado; completo o qual, se faz o que até então não se fez. E quanto ao verbo conhecer – ele significa o coito; assim, como quando a Escritura diz: Adão conheceu a sua mulher. Logo, parece que depois do parto a Santa Virgem foi conhecida de José. E portanto, parece que não permaneceu virgem depois do parto.
 
4. Demais. — Primogênito não pode chamar-se senão quem teve outros irmãos mais moços. Por isso, diz o Apóstolo: Os que ele conheceu na sua presciência, também os predestinou para serem conforme a imagem Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. Ora, o Evangelista chama a Cristo primogênito da sua mãe. Logo, teve ela outros filhos além de Cristo. E assim, parece que a mãe de Cristo não permaneceu virgem depois do parto.
 
5. Demais — O Evangelho diz: Depois disto vieram para Cafarnaum, ele, isto é, Cristo, e sua mãe e seus irmãos. Ora, chamam-se irmãos os que tem os mesmos pais. Logo, parece que a santa Virgem teve outros filhos, além de Cristo.
 
6. Demais. — O Evangelho diz: Achavam-se também ali, isto é, ao pé da cruz de Cristo, vindo de longe, muitas mulheres, que desde Galileia tinham seguido a Jesus, subministrando-lhe o necessário; entre as quais estavam Maria Madalena e Maria, Mãe de Tiago e de José, e a Mãe dos filhos de Zebedeu. Ora, essa era Maria, chamada aí mãe de Tiago e de José, é também a mãe de Cristo; pois, como diz o Evangelho, estava em pé junto à cruz de Jesus, sua mãe. Logo, parece que a mãe de Cristo não permaneceu virgem depois do parto.
 
Mas, em contrário, a Escritura: Esta porta estará fechada; ela não se abrir e nenhum homem passará por ela, porque o Senhor Deus de Israel entrou por esta porta. Expondo o que, diz Agostinho: Que significa a porta fechada na casa do Senhor, senão que Maria sempre será intacta? E que significa a expressão – nenhum homem passará por ela – senão que José não a conhecerá? E só o Senhor entrará e sairá por ela – que quer dizer, senão que o Espírito Santo a fecundará e dela nascerá o Senhor dos anjos? E que significa – estará eternamente fechada – senão que Maria será virgem antes, durante e depois do parto?
 
SOLUÇÃO. — Sem nenhuma dúvida devemos detestar o erro de Celvídio, que pretendia ter sido a mãe de Cristo, depois do parto, conhecida de José e ter gerado outros filhos. - Pois, isto, primeiro, vai contra a perfeição de Cristo, que, assim como, pela sua natureza divina, é o Unigênito do Pai, como o seu Filho em tudo perfeito, assim também convinha que fosse o unigênito da mãe, como o perfeitíssimo gerado dela. - Segundo, esse erro faz injúria ao Espirito Santo, cujo sacrário foi o ventre virginal, no qual formou a carne de Cristo; por isso não convinha, que a seguir fosse violado pela conjunção marital. - Terceiro, vai contra a dignidade e a santidade da Mãe de Deus, que seria ingratíssima se não se tivesse contentado com um tão grande Filho; se a virgindade, nela conservada milagrosamente, quisesse espontaneamente perdê-la pelo concúbito carnal. - Quarto, seria também uma pretensão soberanamente imputável a José, tentar poluir aquela que, por uma revelação do Anjo, sabia que concebeu do Espírito Santo. - Donde devemos absolutamente concluir que a Mãe de Deus, assim como concebeu virgem e virgem deu à luz, assim também permaneceu sempre virgem depois do parto.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Jerônimo, devemos entender a palavra – antes – como indicativa, às vezes, somente do que foi anteriormente pensado, embora de ordinário indique uma consequência. Nem é necessário o realizar-se do que foi pensado, pois, às vezes um obstáculo interveniente impede essa realização. Assim, o dizer alguém – antes de ter comido, no porto, naveguei – não significa que comeu no porto, depois de ter navegado; mas, que pensava haver de comer, no porto. Semelhantemente, o evangelista diz – Antes de coabitarem, se achou ela ter concebido por obra tio Espírito Santo; não que depois coabitassem: concepção pelo Espírito Santo e, pois não realizaram o concúbito.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, a Mãe de Deus é chamada esposa, pela fé primeira dos desposórios, ela que nem conheceu nem havia de conhecer o concúbito. Pois, no dizer de Ambrósio, a celebração das núpcias não declara a perda da virgindade, mas a testificação do casamento.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Certos disseram que esse lugar do Evangelho não deve entender-se do conhecimento carnal, mas do conhecimento informativo. Assim, diz Crisóstomo, que José não lhe conhecia a dignidade, antes de ela ter dado à luz; mas, depois do parto, então o soube. Pois, concebendo um tal filho, tornou-se maior e mais digna que todo o mundo; por ter, só ela, recebido no augusto âmbito do seu ventre, aquele a quem todo o mundo não podia conter.  Mas outros referem o lugar em questão ao conhecimento de visão. Pois, assim como o rosto de Moisés, quando falava com Deus, se lhe glorificou de modo que não podiam fitá-lo os filhos de Israel, assim Maria, obumbrada pelo esplendor da virtude do Altíssimo, não podia ser reconhecida por José, antes do parto. Mas, depois do parto, José reconheceu-lhe a feição das faces, sem nenhum contato corpóreo.  Mas Jerônimo, que concede devamos entender a expressão evangélica, do conhecimento carnal, diz que até (usque) ou até que (donec), na Escritura, pode ser entendido de dois modos. Assim, às vezes designa o tempo, conforme aquilo do Apóstolo: Por causa das transgressões foi posta a lei, até que viesse a semente, a quem havia feito a promessa. Outras vezes, porém, significa o tempo infinito, segundo aquilo: Os nossos olhos estão fitos no Senhor nosso Deus, até que tenha misericórdia de nós; o que não se deve entender como significando que, depois de pedida a misericórdia, os nossos olhos se afastam de Deus. E, segundo este modo de falar, são-nos expressas as coisas de que poderíamos duvidar, se não estivessem escritas; quanto as demais, são confiadas à nossa inteligência. E, assim, o Evangelista diz que a Mãe de Deus não foi conhecida por nenhum homem, até o parto, para entendermos que, com maior razão, não o foi depois do parto.
 
RESPOSTA À QUARTA. — É costume das divinas Escrituras chamar primogênito não só aquele que teve outros irmãos, como o que nasceu em primeiro lugar. Do contrário se não fosse primogênito senão quem teve irmãos, os direitos de primogenitura não seriam, pela lei, devidos enquanto não sobreviessem mais irmãos. O que é claramente falso, pois, a lei mandava que, dentro de um mês, fossem os primogênitos resgatados.
 
RESPOSTA À QUINTA. — Certos, como refere Jerônimo, pensam que os referidos irmãos do Senhor José os teve de outra mulher. Mas nós pensamos que os irmãos do Senhor não eram filhos de José, mas primos do Salvador, filhos de uma outra Maria, tia dele. Pois, na Escritura, há quatro espécies de irmão: por natureza, pela raça, pela cognação e pelo afeto. Donde o serem chamados irmãos do Senhor, não por natureza, como se fossem nascidos da mesma mãe; mas, por cognação, quase como sendo os seus consanguíneos. José, porém, como diz Jerônimo, devemos antes crer que permaneceu virgem, pois, de um lado, dele não diz a Escritura que tivesse outra mulher e, de outro, não se pode atribuir a fornicação a um varão santo.
 
RESPOSTA À SEXTA. — A Maria chamada Mãe de Tiago e de José não se entende que fosse a mãe do Senhor, a que não se refere o Evangelho senão atribuindo-lhe a sua dignidade de Mãe de Jesus. Ora, essa Maria se entende que era a mulher de Alfeu, cujo filho era Tiago menor, chamado irmão do Senhor.

 

 

Art. 2 — Se a mãe de Cristo foi virgem no parto.

 O segundo discute-se assim. — Parece que a mãe de Cristo não foi virgem no parto. 

1. — Pois, diz Ambrósio: Quem santificou o ventre de uma mulher para que dela nascesse um profeta, esse foi o mesmo que abriu o ventre de sua mãe, para sair dele imaculado. Ora, tal fato exclui a virgindade. Logo, a mãe de Cristo não foi virgem no parto.
 
2. Demais. — No mistério de Cristo nada devia haver, que nos levasse a lhe considerar o corpo como imaginária. Ora, não convém a um corpo verdadeiro, mas só a um fantástico, poder atravessar o que está fechado; porque dois corpos não podem ocupar simultaneamente o mesmo lugar. Logo, não devia o corpo de Cristo sair do ventre materno, sem ele romper-se. Portanto, a virgem não pôde ser virgem no parto.
 
3. Demais. — Como diz Gregório, quando, depois da ressurreição, o Senhor passou através de portas fechadas e entrou a ter com os discípulos, mostrou ser o seu corpo da mesma natureza, mas revestido de uma outra glória. E assim, é próprio do corpo glorioso atravessar portas fechadas. Ora, o corpo de Cristo, na sua concepção, não foi glorioso, mas passível, tendo a Semelhança da carne do pecado, no dizer do Apóstolo. Logo, não saiu do ventre materno, sem que ele se abrisse.
 
Mas, em contrário, diz o concílio Efesino: A natureza destrói, com o parto, a virgindade. Mas a graça uniu o parto e a maternidade com a virgindade. Logo, a mãe de Cristo foi Virgem, mesmo no parto.
 
SOLUÇÃO. — Sem nenhuma dúvida devemos afirmar que a mãe de Cristo foi Virgem, mesmo no parto. Pois, o Profeta não só disse  Eis que uma Virgem conceberá, mas acrescentou  e parirá um filho. E isto se funda numa tríplice conveniência.  Primeiro, por convir à propriedade do que ia nascer, Que era o Verbo de Deus. Pois, o Verbo não somente é concebido no coração, sem nenhum detrimento, mas também sem nenhuma corrupção dele procede. E por Isso, para mostrar que esse era o corpo mesmo do Verbo de Deus, foi conveniente nascesse do ventre incorrupto da virgem. Por isso, lemos no concílio Efesino: A que gera uma carne puramente humana perde a sua virgindade. Mas o Verbo de Deus, nascendo na carne, conserva a virgindade da Mãe, mostrando assim ser lealmente o Verbo. Pois também o nosso verbo, quando gerado, não corrompe a mente; nem o Verbo substancial, que é Deus,havia de destruir a virgindade, quando nasceu. — Segundo, tal foi conveniente quanto ao efeito da Encarnação de Cristo. Pois, veio para tirar a nossa corrupção. E por isso não convinha que, ao nascer, destruísse a virgindade materna. Donde o dizer Agostinho, que não era justo que quem veio sanar a corrupção violasse, com o seu advento, a integridade virginal. — Terceiro, isso foi conveniente a fim de que quem mandou honrarmos os pais não viesse, com o seu nascimento, diminuir a honra materna.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Ambrósio assim o diz, quando expõe as palavras da lei citadas pelo evangelista. Todo filho macho que for primogênito será consagrado ao Senhor. O que, como diz o Venerável Beda, é um modo habitual de se referir à natividade, sem querer significar devamos crer que o Senhor desvirginou, ao nascer, o ventre que lhe serviu de asilo e que santificou. Donde, o abrir, a que se refere Ambrósio, não significa a ruptura do claustro do pudor virginal, mas só o nascer do filho, do ventre materno.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo quis mostrar que tinha verdadeiramente corpo, mas de modo que também manifestasse a sua divindade. Por isso ajuntou causas miraculosas com coisas humildes. Assim, para mostrar que tinha um verdadeiro corpo, nasce de uma mulher; e para mostrar a sua divindade, nasce de uma virgem, pois, tal é o parto que convém a Deus, como diz Jerônimo.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Certos disseram que Cristo, na sua natividade, assumiu o dote da subtileza; assim, quando andou, sem molhar os pés, sobre o mar, dizem que assumiu o dote da agilidade. - Mas, isto não concorda com o que foi determinado antes. Pois, tais dotes do corpo glorioso provêm da redundância da glória da alma para o corpo, como diremos quando tratarmos dos corpos gloriosos. Ora, segundo dissemos, Cristo, antes da sua paixão permitia ao seu corpo fazer e sofrer o que lhe é próprio; nem havia tal redundância da glória, da alma para o corpo. Por onde, devemos concluir serem miraculosos todos esses fatos supra referidos, por virtude divina. Por isso diz Agostinho: Um corpo tal unido à divindade, não era impedido por nenhum obstáculo. Pois, aquele podia entrar, sem que portas lhe fossem abertas, que veio ao mundo sem que sua mãe perdesse a virgindade. E Dionísio diz que Cristo realizava as obras próprias do homem, de um modo superior; e isso o demonstra a conceição sobrenatural da virgem, e o lhe ser o peso material dos pés suportado pela superfície móvel das águas.

Art. 1 — Se a Mãe de Deus foi virgem quando concebeu a Cristo.

 O primeiro discute-se assim. — Parece que a Mãe de Deus não foi virgem quando concebeu a Cristo.

1. — Pois, nenhum filho de pai e mãe é concebido de mãe virgem. Ora, o Evangelho não somente diz que Cristo teve mãe, mas também pai. Assim, no lugar: Seu pai e sua mãe estavam admirados daquelas coisas que dele se diziam. E mais adiante: Sabe que teu pai e eu te andávamos buscando cheios de aflição. Logo, Cristo não foi concebido de mãe virgem.
 
2. Demais. — O Evangelho prova que Cristo foi filho de Abraão e de Davi, pelo fato de ser José descendente de Davi; prova essa que seria nula se José não fosse o pai de Cristo. Donde se conclui que a mãe de Cristo concebeu-o do sêmen de José. E portanto, não foi virgem na sua conceição.
 
3. Demais. — O Apóstolo diz: Enviou Deus a seu filho, feito de mulher. Ora, no modo habitual de falar, chama-se mulher a que tem marido. Logo, Cristo não foi concebido de mãe virgem.
 
4. Demais. — Seres da mesma espécie são gerados do mesmo modo; pois, a geração, como todo movimento, se específica pelo seu termo. Ora, Cristo era da mesma espécie que os outros homens, segundo aquilo do Apóstolo: Fazendo-se semelhante aos homens e sendo reconhecido na condição, como homem. E, como os outros homens nasceu da união do homem com a mulher, resulte que Cristo foi também gerado do mesmo homem. Portanto, não foi concebido de mãe virgem.
 
5. Demais. — Toda forma natural corresponde a uma determinada matéria, separada da qual não pode existir. Ora, a matéria da forma humana é o sêmen do homem e o da mulher. Se, pois, o corpo de Cristo não foi concebido do sêmen do homem e da mulher, não foi verdadeiramente um corpo humano, o que é admissível. Logo, parece que não foi concebido de mãe virgem.
 
Mas, em contrário, a Escritura: Eis que uma virgem conceberá.
 
SOLUÇÃO. — Devemos confessar, absolutamente, que a Mãe de Cristo concebeu virgem. O contrário constituiu a heresia dos Elionitas e de Cerinto, que consideravam Cristo como puro homem e o tinham como nascido da união dos dois sexos. Ora, o ser Cristo concebido de uma virgem foi conveniente por quatro razões. — Primeiro, para conservar a dignidade do Pai, que o enviou. Pois, sendo Cristo, natural e verdadeiramente, Filho de Deus, não era conveniente tivesse outro pai, que Deus, a fim de não se transferir para outro a dignidade de Deus. — Segundo, tal convinha à propriedade do Filho mesmo, que é enviado. O qual é o Verbo de Deus. Ora, o Verbo é concebido sem nenhuma corrupção da mente; ao contrário, a corrupção da mente não se compadece com a concepção do verbo perfeito. Sendo, pois, a carne assumida pelo Verbo de Deus para ser a sua carne, era conveniente fosse também ela concebida sem a corrupção da mãe. — Em terceiro lugar tal convinha à dignidade humana de Cristo, na qual não devia haver lugar para o pecado, pois devia tirar o pecado do mundo, segundo aquilo do Evangelho: Eis o Cordeiro de Deus, isto é, o inocente, que tira o pecado do mundo. Ora, na natureza já corrupta pelo concúbito, a carne não podia deixar de ficar contaminada pelo pecado original. Por isso, diz Agostinho: No matrimônio de Maria e de José não houve o concúbito nupcial; pois, na carne do pecado este não pode ter lugar sem a concupiscência resultante do pecado; ora, Deus quis que fosse concebido sem ela aquele que devia ser sem pecado. - Quarto, por causa do fim mesmo da encarnação de Cristo. que foi fazer os homens renascerem filhos de Deus, não da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus, isto é, pelo poder de Deus. E exemplar disso devia ser a concepção mesma de Cristo. Por isso diz Agostinho: Devia o nosso chefe, por um insigne milagre, nascer, segundo o corpo, de uma virgem, para significar que os seus membros deviam nascer, segundo o espírito, da Igreja virgem.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  Diz Beda: O pai do Salvador foi chamado José, não por ter este sido, realmente, o seu pai, como ensinam os Focinianos; mas, para conservar-se a pureza de Maria, os homens o consideraram como pai. Por isso o Evangelho diz: Filho, como se julgava, de José. — Ou, como diz Agostinho, José é chamado pai de Cristo, do mesmo modo porque é considerado esposo de Maria: sem conjunção carnal, só por uma união conjugal espiritual; o que o une mais estreitamente a Cristo do que o faria uma simples adoção. Mas nem por isso, pelo não ter gerado carnalmente, devia José ser menos considerado pai de Cristo; pois, poderá ser pai mesmo se tivesse adotado quem não tivesse sido nascido de sua esposa.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Jerônimo, embora José não seja o pai do Salvador e Senhor, contudo a ordem da sua geração se estende até José, primeiro, por não ser costume das Escrituras incluir as mulheres na ordem das gerações.  Segundo, porque José e Maria eram da mesma tribo. E por isso está obrigado pela lei a recebê-la, como parenta.  E, como diz Agostinho, a ordem das gerações devia ser conduzida até José, para que não houvesse, nesse casamento, injúria ao sexo, em definitivo, mais nobre; sem nenhum detrimento para a verdade, porque tanto José como Maria eram da raça de Deus.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz a Glosa, o Apóstolo usou da palavra mulher, em vez de feminina, ao modo de falar dos Hebreus. Pois, no uso comum da língua hebraica, mulher significa toda pessoa do sexo feminino, e não a que perdeu a virgindade.
 
RESPOSTA À QUARTA. — O fato aduzido na objeção não se dá senão com os seres procedentes por via da natureza; porque a natureza, assim como é determinada a um só efeito, assim também o é a um só modo de produzi-lo. Mas o poder sobrenatural divino, sendo infinito, assim como não é determinado a um só efeito, assim também não o é ao modo de produzir qualquer efeito. Por onde, assim como o poder divino foi capaz de formar o primeiro homem do limo da terra, assim também o foi, de formar o corpo de Cristo, de uma virgem, sem cooperação masculina.
 
RESPOSTA À QUINTA. — Segundo o Filósofo, o sêmen masculino não exerce a função de matéria na concepção carnal, mas só a de agente; pois, é a fêmea que subministra a matéria para a concepção. Por onde, não tendo havido o sêmen masculino na concepção do corpo de Cristo, daí não se segue que lhe tivesse faltado a matéria devida.  Se porém o sêmen masculino fosse a matéria do feto animal concebido, é manifesto que não é matéria sempre dotada da mesma forma, mas, transmutada. E como a virtude natural não transmuda para uma certa forma senão uma determinada matéria, contudo o poder divino, que é infinito, pode dar a toda matéria qualquer forma. Por onde, assim como transformou o limo da terra no corpo de Adão, assim também pode transmutar no corpo de Cristo a matéria ministrada pela mãe, mesmo se essa não fosse matéria suficiente para a concepção natural.

Art. 6 — Se ser santificada no ventre materno foi, depois de Cristo, próprio à Santa Virgem.

 O sexto discute-se assim. — Parece que ser santificada no ventre materno foi, depois de Cristo, próprio à Santa Virgem.

1. — Pois, corno se disse, a Santa Virgem foi santificada no ventre materno para tornar-se, assim, idônea a ser Mãe de Deus. Ora, isto lhe foi próprio a ela. Logo, só ela foi santificada no ventre materno.
 
2. Demais. — Certos foram mais próximos de Cristo, que Jeremias e João Batista, dos quais refere a Escritura, que foram santificados no ventre materno. Pois, Cristo é especialmente chamado filho de Davi e de Abraão, por causa da promessa a eles especialmente feita, a respeito de Cristo. E também Isaías mui expressamente profetou sobre Cristo. Os Apóstolos, por seu lado, conviveram com o próprio Cristo. E contudo de nenhum desses se lê que fosse santificado no ventre materno. Logo, nem Jeremias nem João Batista poderiam tê-lo sido.
 
3. Demais. — Jó diz de si: Desde a minha infância cresceu comigo a comiseração, e do ventre de minha mãe saía comigo. Nem por isso, contudo, dizemos que foi santificado no ventre materno. Logo, também não somos forçados a admitir que João Batista e Jeremias foram santificados no ventre materno.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura, de Jeremias: Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe, te santifiquei. E, de João Batista: Já desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo.
 
SOLUÇÃO. — Agostinho manifesta alguma dúvida quanto à santificação das duas referidas personagens, no ventre materno. Pois, diz, o saltor de João no ventre materno podia significar que esse tão grande acontecimento, a saber, que a mulher seria a Mãe de Deus, deveria ser conhecido pelos pais da criança concebida, e não por ela. Por isso, o Evangelho não diz – O menino creu, no ventre, mas  deu saltos. Ora, saltos nós os vemos darem não só as crianças, mas também os animais. Mas, os de que tratamos foram insólitos, por terem sido no ventre materno. E assim, como soem se fazerem os milagres, esses saltos o menino os deu por ação divina e não por suas próprias e humanas forças. Embora também pudéssemos admitir que, nesse menino, o uso da razão e da vontade foi de tal modo precoce que, ainda nas vísceras maternas, já pudesse conhecer, crer, consentir, o que só em idade mais avançada o podem as outras crianças; e isso penso dever ser atribuído a milagre do poder divino.
 
Mas, como o Evangelho diz expressamente de João, que já desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo; e também expressamente, de Jeremias: Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe te santifiquei, devemos admitir, que foram santificados no ventre materno, embora não tivessem o uso do livre arbítrio, que é questão levantada por Agostinho; assim como também as crianças santificadas pelo batismo não tem desde então o uso do livre arbítrio. Nem devemos crer que quaisquer outros fossem santificados no ventre materno, dos quais nenhuma menção faz a Escritura; pois, tais privilégios da graça, conferidos a certos fora da lei geral, ordenam-se ao privilégio dos outros, segundo o Apóstolo: A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito. Ora, essa utilidade seria nula se a Igreja não soubesse quem fosse santificado no ventre materno. E embora não possamos par razão dos juízos de Deus e porque foi esse dom da graça conferido a um, de preferência a outro, foi contudo conveniente que João Batista e Jeremias fossem santificados no ventre materno, para prefigurarem a santificação que havia de ser operada por Cristo. Primeiro, pela sua paixão, conforme aquilo do Apóstolo: Também Jesus, para que santificasse ao povo pelo seu sangue, padeceu fora da porta. Cuja paixão, Jeremias mui claramente anunciou, com palavras e com mistérios, e pelos seus sofrimentos muito expressamente prefigurou. Segundo, pelo batismo, como o diz o Apóstolo: Mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados. Para cujo batismo João preparou os homens, pelo seu batismo.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  A Santa Virgem, escolhida por Deus como mãe, recebeu mais ampla graça de santificação que João Batista e Jeremias, que foram eleitos com especiais prefigurantes da santificação de Cristo. E a prova é que à Santa Virgem foi concedido que, no futuro, não pecasse, nem mortal nem venialmente; ao passo que aos outros santificados cremos lhes foi concedido que, no futuro não pecassem, por proteção da graça divina.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Por outros lados podiam os santos estar mais unidos a Cristo, que Jeremias e João Batista; os quais, contudo mais unidos estavam com ele, como figuras expressivas que eram, da santificação dele, como se disse.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — A comiseração a que se refere Jó não significa a virtude infusa, mas uma certa inclinação natural para o ato.

Art. 5 — Se a Santa Virgem, pela santificação no ventre materno, obteve a plenitude ou a perfeição da graça.

 O quinto discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem, pela santificação no ventre materno, não obteve a plenitude ou a perfeição da graça. 

1. — Pois, isso constitui privilégio de Cristo, segundo o Evangelho: Nós vimos a sua glória de Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. Ora. o próprio de Cristo a ninguém mais deve ser atribuído. Logo, a Santa Virgem, não recebeu, na santificação, a plenitude das graças.
 
2. Demais. — Ao que tem a plenitude e a perfeição nada se lhe pode acrescentar, pois, perfeito é o ao que nada falta, segundo Aristóteles. Ora, a Santa Virgem recebeu, depois da sua santificação. um aumento de graça, quando concebeu a Cristo; pois, diz o Evangelho: O Espírito Santo descerá sobre ti. E ainda, quando foi da sua assunção para a glória. Logo, parece que não teve, na sua primeira santificação, a plenitude das graças.
 
3. Demais. — Deus nada faz em vão, como diz Aristóteles. Ora, a Santa Virgem teria tido em vão certas graças, cujo uso nunca exerceu; pois, o Evangelho não nos diz que ela tivesse ensinado, o que seria o exercício da sabedoria; nem que tivesse feito milagres, exercício da graça gratuita. Logo, não teve a plenitude das graças.
 
Mas, em contrário, o Anjo lhe disse: Ave cheia de graça. O que Jerônimo assim explica: Na verdade, cheia de graça; pois, ao passo que os outros as recebem por partes, em Maria se lhe infundiu total e simultaneamente a plenitude das graças.
 
SOLUÇÃO. Quanto mais uma coisa se aproxima do princípio, num determinado gênero, tanto mais participa do efeito desse princípio; por isto diz Dionísio, que os anjos, mais próximos de Deus, mais, participam da bondade divina, que os homens. Ora, Cristo é o princípio da graça; pela divindade, como autor dela; pela humanidade, como instrumento. Donde o dizer o Evangelho: A graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Ora, a Santa Virgem Maria foi a mais próxima de Cristo pela humanidade, pois dela recebeu ele a natureza humana. Por isso, mais que ninguém, devia receber de Cristo a plenitude da graça.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A cada um Deus dá a graça conforme o para que é escolhido. E como Cristo, enquanto homem foi predestinado e escolhido para que fosse, no dizer do Apóstolo, predestinado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santificação, era-lhe próprio ter uma plenitude de graça tal que redundasse para os outros, conforme aquilo do Evangelho: Todos nós participamos da sua plenitude. A Santa Virgem Maria, porém, obteve a plenitude de modo a ser a mais chegada ao autor da graça; de maneira que recebesse em si o que é a plenitude de todas as graças e, dando-o a luz, a graça em algum sentido derivasse para todos.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Na ordem natural, o que primeiro existe é a perfeição da disposição, por exemplo, a perfeição da matéria para receber a forma. Depois vem a perfeição da forma superior; assim, mais perfeito é o calor em si, proveniente da forma do fogo, que o que dispôs para a forma ígnea. Em terceiro lugar, vem a perfeição do fim: assim, o fogo tem as suas qualidades no grau mais perfeito, quando chegado ao seu lugar.
 
Semelhantemente, tríplice perfeição houve na Santa Virgem.  A primeira, e como dispositiva, que a tornava idônea para ser Mãe de Cristo. É essa foi a perfeição da santificação.  A segunda perfeição da graça foi na Santa Virgem, a presença do Filho de Deus incarnado no seu ventre.  A terceira foi a perfeição do fim, que desfruta na glória.
 
Ora, que a segunda perfeição é superior à primeira e à terceira, que a segunda, é claro, de um modo, pela liberação do mal. Pois, primeiro, pela sua santificação foi liberta da culpa original; depois, na conceição do Filho de Deus, foi totalmente purifica da da concupiscência; enfim, em terceiro lugar pela sua glorificação, foi libertada também de todas as misérias da vida.  De segundo modo, pela ordenação para o bem. Assim, primeiro, na sua santificação, alcançou a graça, que inclina para o bem; depois, na concepção do Filho de Deus, consumou-se-lhe a graça, tendo sido confirmada no bem; e enfim na sua glorificação, consumou-se-lhe a graça, que lhe deu a fruição perfeita de todos os bens.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — Não podemos duvidar que recebesse a Santa Virgem, e excelentemente, o dom da sabedoria e a graça das virtudes e também a graça da profecia, como a teve Cristo. Não as recebeu, porém, de modo a ter o uso de todas essas graças e de outras semelhantes, como o teve Cristo; mas só na medida em que lhe convinha à sua condição.  Assim, teve o uso da sabedoria, na contemplação, segundo o Evangelho: Maria conservava todas essas palavras, conferindo lá no fundo do seu coração umas com as outras. Mas, não teve o uso da sabedoria, porque ensinasse, pois isso não convinha ao sexo feminino, segundo aquilo do Apóstolo: Eu não permito à mulher que ensine.  Quanto à realizar milagre, não lhe convinha durante a vida, porque, nesse tempo a doutrina devia confirmar-se pelos milagres de Cristo; por isso só a Cristo e aos seus discípulos, portadores da doutrina de Cristo, convinha fazer milagres. Por isso, mesmo de João Batista diz o Evangelho, que não fez nenhum milagre; e isso para que todos buscassem a Cristo.  E enfim, o uso da profecia ela o teve, como o declara o Cântico que fez: A minha alma magnifica o Senhor.

Art. 4 — Se pela santificação no ventre materno a Santa Virgem foi preservada de todo pecado atual.

 O quarto discute-se assim. — Parece que, pela santificação no ventre materno, a Santa Virgem não foi preservada de todo pecado atual.

1. — Pois, como se disse, depois da primeira purificação, permaneceu na Virgem a inclinação para o pecado. Ora, o movimento da concupiscência, mesmo se prevenir a razão, é pecado venial, embora levíssimo, como diz Agostinho. Logo, na Santa Virgem houve algum pecado venial.
 
2. Demais. — Aquilo do Evangelho  Uma espada transpassará a tua mesma alma  diz Agostinho, que a Santa Virgem, na morte do Senhor, duvidou por causa da sua dor imensa. Ora, duvidar da fé é pecado. Logo, não foi preservada imune de todo pecado.
 
3. Demais. — Crisóstomo, expondo aquilo do Evangelho  Olha que tua mãe e teus irmãos estão ali fora e te buscam  diz: É manifesto que só por vanglória o faziam. E aquele outro lugar do Evangelho  não tem vinho  diz o mesmo Crisóstomo, que ela queria assim fazer-lhes uma graça e tornar-se mais ilustre, pelo seu Filho; e talvez resolvia algo de humano em seu coração, como os seus irmãos que diziam  manifesta-te a ti mesmo ao mundo. E logo depois acrescenta: Ainda não tinha dele a opinião que devia ter. O que tudo constitui pecado. Logo, a Santa Virgem não foi preservada imune de todo pecado.
 
Mas, em contrário, Agostinho: Quando se trata da Santa Virgem, de nenhum modo admito que se fale em pecado, por causa da honra de Cristo. Não podemos duvidar tivesse ela recebido uma graça excepcional para vencer inteiramente o pecado, pois mereceu conceber e dar a luz àquele que sabemos foi absolutamente isento de pecado.
 
SOLUÇÃO. — Aqueles que Deus escolhe para algum fim, ele os prepara e dispõe, para serem idôneos ao fim para que foram escolhidos, segundo aquilo do Apóstolo: O qual nos fez idôneos ministros do Novo Testamento. Ora, a Santa Virgem foi divinamente escolhida para ser a Mãe de Deus. E por isso não devemos duvidar não a tenha Deus tornado idônea para tal, pela sua graça, segundo o anjo lhe anunciou: Achaste graça diante de Deus – eis conceberás, etc. Ora, não teria sido idônea para Mãe de Deus, se algum pecado tivesse cometido.  Quer porque a honra dos pais redunda para os filhos, segundo a Escritura: A glória dos filhos são os pais deles; e, por oposição, a ignomínia da mãe redundaria para o Filho.  Quer também porque tinha uma singular afinidade com Cristo, que dela recebeu a carne. Donde o dizer o Apóstolo: Que concórdia entre Cristo e Belial? - Quer ainda porque de um modo singular o Filho de Deus, que é a sabedoria de Deus, nela habitou; não só na alma, mas também no ventre. Assim, diz a Escritura: na alma maligna não entrará a sabedoria, nem habitará no corpo sujeito a pecados. - E por isso devemos pura e simplesmente confessar que a Santa Virgem não cometeu nenhum pecado atual, nem mortal e nem venial, de modo que nela se cumpriu o lugar da Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula, etc.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Na Santa Virgem, depois de santificada no ventre, permaneceu por certo a inclinação para o pecado, mas sem produzir efeitos, não podendo por isso prorromper em nenhum movimento desordenado, que prevenisse a razão. E embora para isso contribuísse a graça da santificação, contudo para tal não bastava; do contrário, em virtude dessa graça, lhe teria sido concedido não existir nenhum movimento nos seus sentidos que não fosse prevenido pela razão; e então, nenhuma concupiscência teria, o que vai contra o já estabelecido. Donde devemos concluir, que o complemento a essa paralisação da concupiscência proveio da divina providência, que não permitia brotar nenhum movimento desordenado, da concupiscência.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — Às referidas palavras de Simeão Orígenes, certos outros doutores as aplicam a dor sofrida por Cristo na paixão. - Quanto a Ambrósio, pela espada entende significar a prudência de Maria, não ignorante do mistério celeste. Pois, vivo é o verbo de Deus, válido e mais agudo que toda espada de dois gumes. - Outros, porém, entendem por isso a espada da dúvida não devendo, porém, entender-se se por esta a dúvida da infidelidade, mas a da admiração e da discussão. Assim, diz Basílio, que a Santa Virgem, aos pés da cruz e presenciando tudo o que se passou, depois mesmo do testemunho de Gabriel, depois do inefável conhecimento da divina concepção, depois da ingente realização dos milagres, flutuava na sua alma, vendo, de um lado, as humilhações que sofria seu Filho e, de outro, as maravilhas que realizava.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — As palavras citadas de Crisóstomo são exageradas. Podem, porém, ser interpretadas de modo a significar que o Senhor coibiu, não o movimento desordenado da vanglória, em si mesma, mas em relação à opinião que podiam ter os outros.

Art. 3 — Se a Santa Virgem foi purificada do contágio do gérmen da concupiscência.

 O terceiro discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem não foi purificada do contágio do gérmen da concupiscência.

1. Pois, assim como a pena do pecado original é a concupiscência, consistente na rebelião das potências inferiores contra a razão, assim também a pena do pecado original é a morte e as demais penalidades corpóreas. Ora, a Santa Virgem foi sujeita a essas penalidades. Logo, também não foi totalmente isenta da concupiscência.
 
2. Demais. — O Apóstolo diz: A virtude se aperfeiçoa na enfermidade, referindo-se à enfermidade da concupiscência, por causa da qual sofria o estímulo da carne. Ora, a Santa Virgem não foi privada de nada do que exige a perfeição da virtude. Logo, não foi de todo isenta da concupiscência.
 
3. Demais. — Damasceno diz, que o Espírito Santo sobrevém à Santa Virgem, purificando-a antes da concepção do Filho de Deus. O que não pode entender-se senão da purificação da concupiscência, pois, nenhum pecado cometeu, como diz Agostinho. Logo, pela santificação no ventre materno não foi de todo isenta da concupiscência.
 
Mas, em contrário, a Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula. Ora, a concupiscência é mácula, pelo menos da carne. Logo, na Santa Virgem não houve concupiscência.
 
SOLUÇÃO. — Nesta matéria divergem as opiniões.  Assim, uns disseram que a Santa Virgem, pela sua santificação mesma, operada no ventre materno, ficou totalmente isenta da concupiscência.  Mas outros dizem que lhe permaneceu a concupiscência, enquanto causa de dificuldade na prática do bem; ficou porém dela isenta, enquanto inclinação para o mal.  Outros, ainda, disseram que ficou isenta da concupiscência, no atinente à corrupção da pessoa, enquanto impede para o mal e dificulta o bem; mas não o ficou, quanto à corrupção da natureza, isto é, enquanto a concupiscência é a causa da transmissão do pecado original aos filhos.  Outros, enfim, dizem que, a primeira santificação não eliminou a concupiscência, mas a deixou travada nos seus efeitos; sendo porém totalmente eliminada na concepção mesma do Filho de Deus.
 
Mas, para bem compreendermos, neste assunto, devemos notar que contágio do pecado nada mais é que uma concupiscência desordenada do apetite sensível; mas, habitual, porque a concupiscência atual é o movimento do pecado. Diremos porém que a concupiscência da sensualidade é desordenada, porque repugna à razão; o que se dá, por inclinar para o mal ou opor dificuldades ao bem. Por onde, é da natureza mesma da concupiscência inclinar para o mal, ou dificultar a prática do bem. Por isso, dizer que a concupiscência existiu na Santa Virgem, sem a inclinar para o mal, é querer que coexistam duas coisas opostas. - Semelhantemente, também implica oposição o permanecer da concupiscência enquanto corrupção da natureza e não enquanto corrupção da pessoa. Pois, segundo Agostinho, é a concupiscência que transmite para a prole o pecado original. Ora, essa é uma concupiscência desordenada e não totalmente sujeita à razão. Se, pois, a concupiscência tivesse sido totalmente eliminada, enquanto corrupção da pessoa, não poderia permanecer enquanto corrupção da natureza.
 
Resta, pois, admitirmos ou que a primeira santificação a isentou totalmente da concupiscência ou que, se esta subsistiu, ficou travada nos seus efeitos. Pois, poder-se-ia entender que a concupiscência ficou totalmente eliminada, na Santa Virgem, por lhe ter sido concedida, pela abundância da graça que lhe foi conferida, uma tal disposição das potências da alma, que as inferiores nunca se movessem sem o assentimento da razão. Tal o que dissemos ter passado com Cristo, de quem sabemos que não teve inclinação para o pecado, e com Adão, antes do pecado, pela justiça original. De modo que, assim, nesta matéria, a graça da santificação teve para a Virgem a virtude da justiça original. Mas, embora esta opinião venha salvar a dignidade da Virgem Mãe, contraria de algum modo à dignidade de Cristo, sem cuja virtude ninguém pode livrar-se da condenação primitiva. E embora pela fé de Cristo, e, antes da sua Encarnação, certos fossem espiritualmente livres dessa condenação, contudo ninguém poderia livrar-se dela, quanto à carne, senão depois da Encarnação, pela qual devia primariamente manifestar-se a imunidade dessa condenação. Por onde, assim como antes da imortalidade da carne de Cristo ressurrecto, ninguém alcançou a imortalidade da carne, assim é inconveniente admitirmos que, antes da carne de Cristo, que não teve nenhum pecado, a carne da Virgem sua Mãe, ou de quem quer que seja, fosse isenta da concupiscência, chamada lei da carne ou dos membros.
 
Por isso parece melhor pensarmos que, a santificação no ventre materno não isentou a Santa Virgem da concupiscência, na sua essência, mas os seus efeitos ficaram paralisados. Não por ato da sua razão, como se deu com os varões santos; pois, não teve o uso do livre arbítrio logo que começou a existir no ventre materno – privilégio especial de Cristo; mas, a abundância da graça, recebida na santificação, e ainda mais perfeitamente por ação da divina providência, paralisou-lhe todo movimento desordenado dos sentidos. Mas, depois, na concepção mesma da carne de Cristo, quando primeiramente devia refulgir a imunidade do pecado, devemos crer que do filho redundou ela para a mãe, ficando então totalmente eliminada a inclinação para o pecado. E já isso estava figurado na Escritura, quando diz: Eis que entrava a glória do Deus de Israel pela banda do oriente, isto é, por meio da Santa Virgem; e a terra estava resplandecente pela presença da sua majestade, isto é de Cristo.
 
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A morte e outras penalidades semelhantes por si mesmas não inclinam ao pecado. E por isso Cristo, embora assumisse a elas, não se sujeitou à concupiscência. E por isso também na Santa Virgem, para conformar-se ao Filho, de cuja plenitude recebeu a graça - primeiro, a concupiscência ficou impedida nos seus efeitos e, depois, foi eliminada; mas não ficou livre da morte e de outras penalidades semelhantes.
 
RESPOSTA À SEGUNDA. — A fraqueza da carne constituída pela sua inclinação ao pecado, é certo, para os varões santos uma ocasião de virtude perfeita; mas não a causa sem a qual não possa a perfeição ser alcançada. Basta, pois, atribuir à Santa Virgem a virtude perfeita pela abundância da graça; nem lhe é preciso atribuir toda ocasião possível de perfeição.
 
RESPOSTA À TERCEIRA. — O Espírito Santo operou na Santa Virgem uma dupla purificação. - Uma, quase preparatória à conceição de Cristo, que veio, não purificá-la de qualquer impureza da culpa ou da concupiscência, mas imprimir mais profundamente na sua alma o caráter de unidade e elevá-la acima da multidão. Assim, também dizemos que são purificados os anjos, nos quais não há nenhuma impureza, como diz Dionísio. - A outra purificação o Espírito Santo operou na Santa Virgem, mediante a concepção de Cristo, obra do mesmo Espírito. E, por ela, podemos dizer que a purificou totalmente da concupiscência.
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