Category: Santo Tomás de Aquino
O sexto discute-se assim. — Parece que uma parte determinada do corpo de Cristo existiu em Adão e nos outros patriarcas.
1. — Pois, diz Agostinho, que a carne de Cristo existiu em Adão e em Abraão, pela sua substância corpórea. Ora, a substância corpórea é algo de determinado. Logo, a carne de Cristo existiu em Adão e em Abraão e nos demais patriarcas segundo uma parte determinada.
2. Demais. — O Apóstolo diz, que Cristo foi feito do sêmen de Davi segundo a carne. Ora, o sêmen de Davi era algo de determinado nele existente. Logo, Cristo existiu em Davi segundo algo de determinado e, pela mesma razão, nos outros patriarcas.
3. Demais. — Cristo tem afinidade com o gênero humano, pois, assumiu a carne do gênero humano. Ora, se essa carne de nenhum modo existiu determinadamente em Adão, parece que nenhuma afinidade tem com o gênero humano, derivado de Adão; mas antes, com os demais seres de que foi tirada a matéria da sua carne. Logo, parece que a carne de Cristo existiu em Adão e nos outros patriarcas de uma determinada maneira.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Do medo pelo qual Cristo existiu em Adão e em Abraão e nos outros patriarcas, desse mesmo os outros homens neles existiram; mas não inversamente. Ora, os outros homens não existiram em Adão nem em Abraão por nenhuma determinada matéria, mas só pela origem, como se estabeleceu na Primeira Parte. Logo, nem Cristo existiu em Adão e em Abraão de nenhuma determinada maneira; e, pela mesma razão, nem nos outros patriarcas.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, a matéria do corpo de Cristo. não foi a carne nem os ossos da Santa Virgem, nem nenhuma parte atual do corpo dela, mas o sangue, que é carne em potência. Ora, tudo o que a Santa Virgem recebeu de seus pais existia atualmente como parte do seu corpo. Logo, o que a Santa Virgem recebeu dos pais não foi matéria do corpo de Cristo. Donde devemos concluir, que o corpo de Cristo não existiu em Adão e nos outros patriarcas de nenhuma determinada maneira, de modo que alguma parte do corpo de Adão ou de algum outro pudesse ser designada determinadamente, a ponto de dizer-se que determinadamente dessa matéria seria formado o corpo de Cristo; mas aí existiu só pela origem, como o corpo dos outros homens. Pois, o corpo de Cristo se relaciona com o de Adão e dos outros patriarcas mediante o corpo de sua mãe. Por onde, de nenhum outro modo existiu nos patriarcas o corpo de Cristo, senão do que pelo qual ai existiu o corpo de sua mãe; e esse não existiu nos patriarcas com nenhuma determinada matéria. como assim não existiram, os corpos dos outros homens, segundo se demonstrou na Primeira Parte.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A expressão – Cristo existiu em Adão pela sua substância corpórea — não significa que o corpo de Cristo fosse em Adão uma substância corpórea, mas que a substância corpórea do corpo de Cristo. isto é, a matéria que recebeu da virgem, existiu em Adão como no seu princípio ativo, e não como um principio material. Porque a virtude geratriz de Adão e dos demais patriarcas descendentes de Adão, até a Santa Virgem, torna apta a referida matéria para a concepção do corpo de Cristo. Mas essa matéria não foi formada no corpo de Cristo por uma virtude derivada do sêmen de Adão. Por isso se diz, que Cristo existiu em Adão originalmente, pela sua substância corpórea, mas não por via seminal.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora o corpo de Cristo não tivesse existido em Adão e nos outros patriarcas por via seminal, contudo o corpo da Santa Virgem, concebido do sêmen masculino, existiu por via seminal em Adão e nos outros patriarcas. Por isso, mediante a Santa Virgem, Cristo é considerado, quanto à sua carne, descendente originariamente da raça de Davi.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo tem afinidade com o gênero humano por semelhança específica. Ora, a semelhança específica não se tunda na matéria remota, mas na matéria próxima e num principio ativo, que gera o seu semelhante específico. Assim, pois, a afinidade de Cristo com o gênero humano fica suficientemente salva por ter sido o corpo de Cristo formado do sangue da Virgem derivado originalmente de Adão e dos demais patriarcas. Nem importa a essa afinidade a matéria de que tal sangue foi formado, como não o importa à geração dos outros homens, como se disse na Primeira Parte.
O quinto discute-se assim. — Parece que a carne de Cristo não foi concebida do sangue mais puro da Virgem.
1. — Pois, diz a coleta (da festa da anunciação da Santa Virgem Maria), que Deus quis que o seu Verbo assumisse a carne,de uma Virgem. Ora, carne não é o mesmo que sangue. Logo, o corpo de Cristo não foi assumido do sangue da Virgem.
2. Demais. — Assim como a mulher foi milagrosamente formada do varão, assim o corpo de Cristo foi milagrosamente formado da Virgem. Ora, não se diz que a mulher foi formada do sangue do varão, mas antes, da sua carne e dos seus ossos. segundo aquilo da Escritura: Eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne de minha carne. Logo, parece que também o corpo de Cristo não devia ser formado do sangue da Virgem, mas das suas carnes e dos seus ossos.
3. Demais. — O corpo de Cristo era da mesma espécie que o corpo dos outros homens. Ora, o corpo dos outros homens não é formado do sangue mais puro, mas do sêmen e do sangue menstrual. Logo, parece que também o corpo de Cristo não foi concebido do sangue mais puro da Virgem.
Mas, em contrário, Damasceno diz, que o Filho de Deus formou para si, do mais casto e mais puro sangue da Virgem, o seu corpo animado da alma racional.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, na concepção de Cristo o ter ele nascido de uma mulher foi condição da natureza; mais ultrapassou a condição da natureza o ter nascido de uma virgem. Ora, a condição natural da geração animal. é que a fêmea ministre a matéria, sendo o macho o princípio ativo da geração, como o prova o filósofo. Por onde, a mulher que concebe de um homem não pode ser virgem. Por onde, o modo sobrenatural da geração de Cristo esteve no principio ativo dela ter sido um poder sobrenatural divino. E o modo natural da mesma esteve na matéria de que o seu corpo foi concebido ter sido a mesma que as outras mulheres subministram na concepção dos filhos. E essa matéria, segundo o Filósofo, é o sangue da mulher, não qualquer, mas tendo já sofrido uma transformação maior pela virtude geratriz da mãe, de modo a tornar-se matéria apta à concepção. E assim, dessa matéria é que foi concebido o corpo de Cristo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como a Santa Virgem era da mesma natureza que as outras mulheres, havia consequentemente de ter carne e ossos dessa mesma natureza. Ora, nas outras mulheres, as carnes e os ossos são lhes partes atuais do corpo, dos quais consta a integridade dele; e por isso não podem dele separar-se sem lhe causar a destruição ou um detrimento. Mas Cristo, que veio reparar a corrupção do pecado, não podia ser causa de nenhuma corrupção ou detrimento da integridade de sua mãe. Por isso, o corpo de Cristo não devia ser formado da carne nem dos ossos da Virgem; mas do sangue, que ainda não é parte atual, mas é o todo só potencialmente, como diz Aristóteles. Por isso quando se diz, que assumiu a carne da Virgem, não significa isso que a matéria do seu corpo fosse carne atualmente, mas sangue, que é carne em potência.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como se disse na Primeira Parte, Adão que foi instituído como o principio da natureza humana, tinha no seu corpo carne e ossos que não lhe faziam parte da integridade pessoal, mas só enquanto era principio da natureza humana. E dessa carne foi formada a mulher, sem detrimento do homem. Mas nada de tal existiu no corpo da Virgem, de que pudesse formar-se o corpo de Cristo sem corrupção do corpo materno.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O sêmen da mulher não é capaz de geração, mas é um gênero imperfeito do sêmen, que não podia chegar à perfeição da natureza seminal, por causa da imperfeição da virtude feminina. Por isso, um tal sêmen não é matéria necessária para a concepção, como o ensina o Filósofo. Donde, o não ter existido na concepção do corpo de Cristo; sobretudo porque, apesar de um gênero imperfeito de sêmen, é emitido com uma certa concupiscência, como o sêmen masculino. Ora, na conceição virginal de Cristo não podia haver nenhum lugar para a concupiscência. Por isso, Damasceno diz, que o corpo de Cristo não foi concebido seminalmente.
Quanto ao sangue menstrual, que as mulheres emitem cada mês, ele traz consigo uma certa impureza e corrupção natural. como as outras superfluidades, que a natureza expele, por não precisar delas. E desse menstruo corrupto, que a natureza expulsa, não se forma o ser concebido; mas constitui uma como purificação daquele sangue puro, preparado para a concepção depoisde mais elaborado, e sendo um sangue como mais puro e mais perfeito que qualquer outro. É acompanhado porém da impureza da concupiscência, na concepção dos outros homens, pois pela: conjunção do macho e da fêmea é que esse sangue é levado ao local apto para a geração. Ora, tal não teve lugar na concepção de Cristo, porque por obra do Espírito Santo é que esse sangue se acumulou no ventre virginal e formou o corpo de Cristo. Por isso é que se diz que o corpo de Cristo foi formado de sangue mais casto e mais puro da Virgem.
O quarto discute-se assim. — Parece que a matéria do corpo de Cristo não devia ter sido tomada de nenhuma mulher.
1. — Pois, o sexo masculino é mais nobre que o feminino. Ora, convinha sobretudo que Cristo assumisse e que a natureza humana tem de mais perfeito. Logo, parece que não devia assumir a carne, nascendo de uma mulher, mas antes assumir a carne de um homem, assim como Eva foi formada da costela de Adão.
2. Demais. — Todo o concebido de mulher ficou-lhe algum tempo incluído no ventre. Ora, a Deus, que enche o céu e a terra, não lhe convinha o ter sido encerrado no ventre materno. Logo, parece que não devia ser concebido de nenhuma mulher.
3. Demais. — Os concebidos de mulher contraem de algum modo uma impureza. Donde o dizer a Escritura: Acaso pode justificar-se o homem comparado com Deus? Ou aparecer puro o que nasceu de mulher? Ora, em Cristo não devia haver nenhuma impureza, pois, ele é a sabedoria de Deus, da qual diz a Escritura: Nada manchado cabe nela. Logo, parece que não devia tomar a carne, de uma mulher.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Enviou Deus a seu filho, feito de mulher.
SOLUÇÃO. — Embora o Filho pudesse assumir a carne humana, de qualquer matéria que quisesse, convenientíssimo era contudo que recebesse a carne, de uma mulher. - Primeiro, porque assim nobilitou toda a natureza humana. Donde o dizer Agostinho: O perdão concedido à humanidade devia manifestar-se em ambos os sexos. O sexo masculino, sendo o mais nobre, o Cristo devia tomar-lhe a natureza; e, pois que nascia de uma mulher, poder-se-ia concluir consequentemente, que também o sexo feminino participava do perdão. - Segundo, porque vinha reforçar a verdade da Encarnação. Por isso diz Ambrósio: Descobrirás em Cristo muitas coisas conformes à natureza e muitas outras superiores a ela. Assim, era sujeitar-se à condição da natureza existir no ventre, isto é de um corpo feminino; mas, o que é superior à natureza, é uma virgem tê-lo concebido e gerado. Para acreditares que era Deus o introdutor dessa novidade na natureza e que era homem quem ia, segundo a natureza, nascer do homem. E Agostinho diz: Se o Deus Todo-poderoso tivesse criado um homem, formando-o sem recorrer ao ventre materno e apresentando-o repentinamente aos olhos humanos, não teria confirmado o sentimento do erro? E que de nenhum modo assumiu verdadeiramente a natureza humana? E ele, que produz tudo de maneira maravilhosa, teria destruído o que fez com misericórdia? Ao contrário, mediador entre Deus e o homem, reunindo na unidade da sua pessoa uma e outra natureza, quis sublimar o habitual pelo insólito e temperar o insólito pelo habitual. - Terceiro, porque desse modo, completa as diversas maneiras por que foi produzido o homem. Pois, primeiro, o homem foi produzido do limo da terra, sem homem e sem mulher; depois, Eva foi produzida do homem, sem mulher; e enfim, os outros homens foram produzidos do homem e da mulher. E esse como quarto modo foi deixado como o próprio de Cristo, para que fosse produzido da mulher, sem o homem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Por ser o sexo masculino mais nobre que o feminino, é que Cristo assumiu a natureza humana, nesse sexo. Mas para que não ficasse desprezado o sexo feminino, foi congruente que assumisse a carne, de uma mulher. Donde o dizer Agostinho: Não queirais vos desprezar uns aos outros, homens, pois o Filho de Deus quis ser homem. Não vos desprezeis a vós mesmas, mulheres, pois, o Filho de Deus nasceu de uma mulher.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Respondendo a essa objeção, Agostinho diz: Sem dúvida a fé católica crê que Cristo, Filho de Deus, nasceu de uma virgem, segundo a carne; mas de nenhum modo nos ensina que o Filho de Deus tivesse ficado encerrado no ventre de uma mulher, de sorte que não mais existisse fora dele e que tivesse abandonado o governo do céu e da terra, como que separado do seu Pai. Sois vós, ó Maniqueus, quem de nenhum modo compreende tais coisas, com um coração incapaz de conceber senão imagens corpóreas. E em outro lugar: Tal o sentimento de homens incapazes de pensar senão na matéria, a qual não pode estar toda em toda parte, por ter necessariamente o seu ser dividido em partes inumeráveis, ocupando cada uma um ponto diferente. Ora, a natureza da nossa alma é muito diferente da natureza corpórea. Quanto mais não o é a de Deus, Criador da alma e do corpo! Deus sabe que está todo em toda parte, sem que nenhum lugar o contenha; sabe que vai a um lugar sem se afastar de onde estava; sabe que o seu afastar-se não implica em sair donde viera.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Na obra de conceber a mulher, de um homem, nada há de impuro, porque foi instituída por Deus. Donde o dizer o Apóstolo: Ao que Deus purificou não chames tu comum, isto é, impuro. Há aí porém uma certa impureza proveniente do pecado, pois, a concepção, resultante da conjunção do homem e da mulher, é acompanhada de concupiscência. O que, porém, não existiu em Cristo, como demonstramos. - Mas mesmo que houvesse no referido ato qualquer impureza, dela não teria sido inquinado o Verbo de Deus, que de nenhum modo é mutável. Donde o dizer Agostinho: Pergunta Deus, o Criador do homem. - que te move, na minha natividade? Não fui concebido no desejo da concupiscência. Fiz eu a mãe de quem havia de nascer. Se o raio do sol pode secar a imundície das cloacas, sem se contaminar, muito mais capaz é o Esplendor da luz eterna de purificar o que irradia, sem se deixar com isso macular.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a genealogia de Cristo não foi bem discriminada pelos Evangelistas.
1. — Pois, diz a Escritura, de Cristo: Quem contará a sua geração? Logo, não se devia contar a geração de Cristo.
2. Demais. — É impossível um mesmo homem ter dois pais. Ora, Mateus diz, que Jacó gerou a José, esposo de Maria; e Lucas, por seu lado, que José era filho de Heli. Logo, escreveu um o contrário do outro.
3. Demais. — Mateus e Lucas fazem relações diversas. Assim, Mateus, no princípio do livro, começando de Abraão e descendo até José, enumera quarenta e duas gerações. Lucas, por seu lado, depois do batismo de Cristo, refere a geração de Cristo, começando por ele e, levando o número das gerações até Deus, conta setenta e sete gerações, computando os extremos. Logo, parece que discriminam mal a geração de Cristo.
4. Demais. — Na Escritura se lê, que Jorão gerou Ocosias: a quem sucedeu o filho Joás; a este, o seu filho Amásias; depois, reinou o filho deste, Azarias; chamado Osias: a quem sucedeu Joatan, seu filho. Mateus, porém, diz que Jorão gerou Osias. Logo, parece mal discriminada uma geração de Cristo, que omite , no meio, três reis.
5. Demais. — Todos os assolados na geração de Cristo tiveram pais e mães; e muitos deles, também irmãos. Ora, Mateus, na geração de Cristo, enumera só três mães, a saber, Tamar, Rut e a esposa de Urias. Como irmãos designa Judas e Jeconias, e além deles, Fares e Zarâo. Ora, nenhum desses Lucas menciona. Logo, parece que os Evangelistas discriminaram mal a genealogia de Cristo.
Mas, em contrário, a autoridade da Escritura.
SOLUÇÃO. — Como diz o Apóstolo, toda a Escritura é divinamente inspirada. Ora, as coisas divinas se realizam de maneira ordenadíssima, segundo ainda o Apóstolo: As causas de Deus são ordenadas. Por onde, a genealogia de Cristo foi bem discriminada pelos Evangelistas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como ensina Jerônimo, Isaías se refere à geração da divindade de Cristo. Ao passo que Mateus narra a geração de Cristo segundo a humanidade; não, certo, explicando o modo da Encarnação, que é inefável também; mas, enumerando os pais de que Cristo procedeu segundo a carne.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa objeção, suscitada por Juliano o Apóstata, recebeu soluções diversas. Assim, certos, como Gregório Nazianzeno opinam, que ambos os Evangelistas enumeram o mesmo personagem, Jacó e Heli, mas com dois nomes diferentes. - O que não é admissível, porque Mateus enumera Salomão um dos filhos de Davi; ao passo que Lucas enumera outro, que é Natan, os quais consta terem sido irmãos, segundo a Escritura.
Por isso, outros disseram, que Mateus nos dá a verdadeira genealogia de Cristo; ao passo que a de Lucas é putativa, e o começar assim – Jesus era, como se julgava, filho de José. Pois, havia certo judeus, que por causa dos pecados dos reis de Judá, criam que Cristo nasceria de Davi, não mediante os reis, mas por uma linhagem privada. Outros, porém, disseram que Mateus numerou os pais carnais; ao passo que Lucas, os espirituais, isto é, os varões justos, denominados pais pela honestidade da sua vida.
Segundo outra opinião, responde-se que não devemos pensar que Lucas chama a José filho de Heli, mas sim, que diz terem sido Heli e José pais de Cristo, descendente diversamente de Davi. Por isso diz que Cristo em, como se julgava, Filho de José, e que também o próprio Cristo foi filho de Reli; quase como se dissesse que Cristo pela mesma razão por que é chamado filho de José pode ser também cognominado filho de Heli e de todos os reis descendentes da raça de Davi. Assim, diz o Apóstolo: de quem, isto é, dos judeus, descende também segundo a carne.
Mas Agostinho, resolve essa dificuldade de três modos, dizendo: Há três vias seguidas singularmente pelos Evangelistas. — Ou então um Evangelista designa o pai que realmente gerou a José, ao passo que o outro designou-lhe o avô materno ou um dos seus mais próximos parentes. Ou um era o pai natural de José e o outro o pai adotivo. — Ou, segundo o costume dos Judeus, quando um homem morria sem deixar filhos, um dos seus próximos tomava-lhe a mulher, sendo o filho que ele: engendrasse imputado ao morto. O que também constitui um certo gênero de adoção legal, como o próprio Agostinho o afirma. E esta última via é a mais verdadeira, que também Jerônimo apresenta; e Eusébio Cesariense refere. o historiador Júlio Africano e preconiza. Assim, dizem que Matan e Melqui procriaram em tempos diversos, da mesma esposa, chamada Esta, um filho chamado Jacó. Porque Matan, descendente de Salomão, foi quem primeiro a tomou por mulher e morreu deixando um filho chamado Jacó. Mas depois da morte de Matan, como a lei não proibia a viúva casar com outro homem, Melqui, também da mesma tribo, por Matan, embora não da mesma família, tomou como esposa a viúva de Matan, da qual também houve um filho chamado Reli. Donde vem que, nascidos de pais diferentes, Jacó e Heli eram irmãos uterinos. Desses, um, Jacó, tendo casado, por disposição da lei, com a viúva de seu irmão Heli, morto sem filhos, gerou a José, na verdade e naturalmente filho seu, tornado porém, pelo preceito da lei, filho de Heli. Por isso diz Mateus que Jacó gerou a José; enquanto que Lucas, descrevendo a geração legal, não usa, na sua genealogia, o verbo gerar. Embora, porém, Damasceno diga que a Santa Virgem Maria era parente de José, por descender este de Heli, considerado como seu pai, e isto porque ele a faz descender de Heli, devemos contudo. crer que ela também descendia de Salomão de algum modo, mediante os antepassados da enumeração de Mateus. que narra a geração carnal de Cristo; sobretudo que Ambrósio diz ter Cristo. descendido da raça de Jeconias.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o desígnio de Mateus era fazer conhecer a pessoa real de Cristo, ao passo que Lucas, a sua pessoa sacerdotal. Por isso, a genealogia de Mateus indica que N. S. J. Cristo assumiu os nossos pecados, tendo assumido a semelhança da carne do pecado, pela sua origem carnal. Ao passo que a genealogia de Lucas significa que os nossos pecados foram delidos pelo sacrifício de Cristo. Por isso a genealogia de Mateus enumera os descendentes, e a de Lucas, os ascendentes. - Também por isso é que Mateus desce de David, passando por Salomão, em cuja mãe Davi pecou; ao passo que Lucas sobe até Davi, por Matan, porque foi por um profeta desse nome que Deus perdoou o pecado de Davi. - Donde vem ainda que, querendo Mateus significar que Cristo desceu até a nossa mortalidade, mencionou, desde o início, no seu Evangelho, as gerações desde Abraão, até José, em ordem descendente, até a natividade de Cristo. Ao passo que Lucas começa a enumerar as gerações, não do início, mas do batismo de Cristo, e não em ordem descendente, mas ascendente, querendo assim frisar que Cristo foi o sacerdote da expiação dos pecados e por isso invocou o testemunho de João, quando este disse: Eis o que tira os pecados do mundo. E, na ordem ascendente, Lucas passou por Abraão e chegou a Deus com o qual fomos reconciliados depois de purificados e expiados. - E com razão também, na sua genealogia, Lucas indicou a ordem de adoção, pois, esta nos torna filhos de Deus; ao passo que pela geração carnal o Filho de Deus foi feito filho do homem. E suficientemente demonstrou que, quando disse ser José filho de Heli, não quis com isso considerá-lo como gerado por Heli, mas, como adotado por este; pois, também disse que Adão foi filho de Deus, embora fosse feito por Deus.
Quanto ao número quadragenário, refere-se ao tempo da vida presente, por causa das quatro partes do mundo, onde transcorre a nossa vida mortal, guiados por Cristo nosso rei. Pois, quarenta contém quatro vezes dez; e este último número, por sua vez, resulta da adição dos números que vão de um a quatro. Mas também o número denário podia referir-se ao Decálogo; e o quaternário, à vida presente, ou ainda aos quatro Evangelhos, pelos quais Cristo reina em nós. Por isso Mateus, a fim de louvar a pessoa real de Cristo, enumerou quarenta personagens, excetuando a Cristo mesmo. Mas isto deve entender-se assim, se o Jeconias enumerado no fim do segundo quaternário e no princípio do terceiro é o mesmo personagem. Conforme Santo Agostinho, essa dupla menção de Jeconias significa que por ele, quando do cativeiro de Babilônia, fez-se um êxodo para as nações estrangeiras; o que também prefigurava Cristo, que passou dos povos circuncisos para os incircuncisos. Mas Jerônimo diz, que houve dois Joaquina, isto é, Jeconias, a saber, o pai e o filho; ambos os quais foram incluídos na geração de Cristo, para que constasse a distinção das gerações, que o Evangelista divide em três séries de quatorze. O que sobe a quarenta e duas pessoas. Número esse que também se adapta à santa Igreja. Pois, quarenta e dois é formado de seis, que significa o labor da vida quotidiana, e do número sete, que significa o repouso da vida futura; pois, seis vezes sete são quarenta e dois. E também o número quatorze, resultante da soma de dez e de quatro, é susceptível do mesmo simbolismo atribuído ao número quarenta, cujo total é o produto da multiplicação dos mesmos números quatro e dez.
Quanto ao número, de que se serve Lucas, das gerações até Cristo, ele representa a totalidade dos pecados. Pois, o número dez, como o número da Justiça, manifesta-se nos dez preceitos da lei. Ora, o pecado é a transgressão da lei. E o número que vai além de dez ou o transgride é o número onze. Quanto ao número sete, ele significa a totalidade, porque o tempo consumou-se totalmente com o número dos sete dias. Ora, como sete vezes onze são setenta e sete, esse total significa a universalidade dos pecados, que Cristo deline.
RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Jerônimo, por ter-se o rei Jorão aliado à família da impíssima Jesabel, por isso a sua memória foi suprimida até a terceira geração, a fim de que ela não aparecesse na genealogia sagrada da natividade. E assim, como diz Crisóstomo, tão grande foi a bênção derramada sobre Jehu, por ter exercido vingança sobre a casa de Acab e de Jesabel, como foi grande a maldição sobre a casa de Jorão, por causa da filha do iníquo Acab e Jesabel; e seus filhos foram eliminados do número dos reis até a quarta geração, como se lê na Escritura: Vingarei a inquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração. E ainda devemos atender a que também os outros reis, enumerados na genealogia de Cristo, foram pecadores; mas a impiedade deles não foi continuada. Assim, como diz um autor, Salomão foi mantido como rei, pelos méritos de seu pai; Roboão, pelos méritos de Osa, filho de Abias e seu neto. Pelo contrário, a impiedade dos três reis em questão perdurou até o fim.
RESPOSTA À QUINTA. — Como diz Jerônimo, a genealogia do Salvador não enumera nenhuma das santas mulheres, mas só as censuradas na Escritura; porque aquele que veio por causa dos pecadores devia, nascendo de pecadoras, delir os pecados de todos. Por isso é mencionada Tamar, censurada por causa das suas relações com o cunhado; e Raab, que foi meretriz; e Rut, que era alienígena; e Bersabé, mulher de Urias, que foi adúltera. A qual, porém, não é designada com o seu nome próprio, mas com o nome de seu marido. Quer por causa do seu pecado, pois praticou consciamente o adultério e o homicídio; quer também para, com a nomeação do marido, fazer memória do pecado de Davi. - E como Lucas visava designar a Cristo como expiador dos pecados, não faz menção dessas mulheres. - Faz menção porém dos irmãos de Judas, para mostrar que pertenciam ao povo de Deus, embora Ismael, irmão de Isaac, e Esaú, irmão de Jacó, fossem separados do povo de Deus, e por isso não se faz menção deles na genealogia de Cristo. E também para excluir o orgulho da nobreza. Pois, muitos dos irmãos de Judas. nasceram de escravos; mas todos foram a um tempo Patriarcas e chefes de tribos. - Quanto a Fares e a Zarão, foram simultaneamente nomeados, como diz Ambrósio, como símbolos das duas vidas que vivem os povos – uma, segundo a lei, significa da por Zarão; outra, segundo a fé, significada por Fares. - Quanto aos irmãos de Jeconias, são mencionados porque todos reinaram em tempos diversos; o que não se deu com os outros reis. Ou porque foi semelhante a iniquidade e a miséria deles.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não tomou a sua carne da raça de Davi.
1. — Pois, quando Mateus descrimina genealogia de Cristo ele a conduz até José. Ora, José não foi pai de Cristo, como se disse. Logo, parece que Cristo não descendia da raça de Davi.
2. Demais. — Arão foi da tribo de Levi. Ora, Maria, Mãe de Cristo, é chamada prima de Isabel, descendente de Adão. Como, pois, Davi era da tribo de Judá, parece que Cristo não descendia da raça de Davi.
3. Demais. — O profeta Jeremias diz, de Jeconias: Escreve que este homem será estéril, pois não sairá de sua linhagem varão que se assente sobre o trono de Davi. Ora, de Cristo diz a Escritura: Assentar-se à sobre o trono de Davi. Logo, Cristo não era da raça de Jeconias. E por consequência, nem da raça de Davi, pois, Mateus conduz a série das gerações partindo de Davi e passando por Jeconias.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Que foi feito da linhagem de Davi segundo a carne.
SOLUÇÃO. — Como se lê no Evangelho, Cristo era especialmente considerado filho dos dois antigos Patriarcas, Abraão e Davi. E isso por muitas razões. - Primeiro, porque a eles foi especialmente feita a promessa, da descendência de Cristo. Assim, foi dito a Abraão: Todas as gentes da terra serão benditas naquele que há de proceder de ti. O que o Apóstolo aplica a Cristo, quando diz: As promessas foram feitas a Abraão e à sua semente. Não diz – e às sementes, como de muitos; senão como de um – e à tua semente, que é Cristo. E a Davi foi dito: Do fruto do teu ventre porei sobre o teu trono. Por isso, o povo dos Judeus, ao receber honoríncamente o seu rei, clamava: Hosana ao filho de Davi. - Segundo, porque Cristo havia de ser rei, profeta e sacerdote. Pois, Abraão foi sacerdote, como se conclui das palavras que o Senhor lhe disse: Toma-me uma vaca de três anos, etc. Foi também profeta, segundo aquele outro lugar: ele é profeta e rogará por ti. Ora, Davi foi rei e profeta. - Terceiro. porque com Abraão teve início a circuncisão; e em Davi manifestou-se sobretudo a eleição de Deus, segundo o dito da Escritura: O Senhor buscou para si um homem conforme ao seu coração. Por isso, Cristo é especialissimamente chamado filho de um e de outro, para mostrar que veio trazer a salvação aos Judeus circuncisos e aos pagãos eleitos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essa objeção foi feita por Fausto Maniqueu, que pretendia provar não ser Cristo filho de Davi, por não ter sido concebido de José, até quem Mateus conduz a série das gerações. Mas Agostinho assim lhe responde: Como o mesmo Evangelista diz que José era o esposo de Maria e Cristo era da raça de Davi, que resta senão crermos que Maria não era estranha ao parentesco com Davi? Que não foi em vão chamada a esposa de José, em razão da união das suas almas e não de seus corpos? E que a série das gerações foi conduzida até José, antes por causa da dignidade inerente à descendência masculina? Assim, pois, cremos que Maria era do parentesco de Davi, por crermos na Escritura. E esta diz, tanto que Cristo era da raça de Davi segundo a carne, como que sua Mãe Maria não teve nenhum comércio com o esposo, mas permaneceu virgem. Pois, como diz Jerônimo, José e Maria eram da mesma tribo; donde o estar ele obrigado pela lei a recebê-la, como parenta. Por isso figuravam juntos no censo, em Belém, como gerados de um mesmo tronco.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Gregório Nazianzeno responde a essa objeção quando diz, que foi por vontade divina que uma raça real se uniu à uma família sacerdotal, a fim de que Cristo, ao mesmo tempo rei e sacerdote, nascesse de ambos, segundo a carne. Por isso, Arão, o primeiro sacerdote da lei, casou com Isabel, da tribo de Judá, e filha de Anínadab. E assim foi também possível que o pai de Isabel tivesse uma esposa da estirpe de Davi, em razão do que a Santa Virgem Maria. pertencente à raça de Davi, foi prima de Isabel. Ou antes e inversamente, que o Pai da Santa Maria, sendo da estirpe de Davi, casou na estirpe de Arão. - Ou, como diz Agostinho, se Joaquim, pai de Maria, foi da estirpe de Arão, como o herético Fausto afirmava, fundado em certas escrituras apócrifas, devemos crer que a mãe de Joaquim foi da estirpe de Davi, ou também a sua mulher; e assim, de algum modo, podemos dizer que Maria era da raça de Davi.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A citada autoridade profética, como diz Ambrósio, não nega que nenhuma descendência houvesse de nascer da raça de Jeconias. Por isso Cristo fez parte da sua estirpe. E o ter Cristo reinado não vai contra a profecia. Pois, o seu reino não era temporal; e ele próprio o confessou quando disse: O meu reino não é deste mundo.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a carne de Cristo não foi tomada de Adão.
1. — Pois, diz o Apóstolo: O primeiro homem, formado da terra, é terreno; o segundo homem, do céu, celestial. Ora, o primeiro homem foi Adão; o segundo é Cristo. Logo, Cristo não descende de Adão, mas teve uma origem distinta dele.
2. Demais. — A concepção de Cristo devia ser miraculosa por excelência. Ora, maior milagre foi formar o corpo do homem do limo da terra, do que de uma humana matéria, tirada de Adão. Logo, parece que não era conveniente Cristo tirar a sua carne, de Adão. Portanto, parece que o corpo de Cristo não devia ser formado da massa do gênero humano derivada de Adão, mas de uma outra matéria.
3. Demais. — O pecado entrou neste mundo por um homem, isto é, por Adão, porque todas as gentes nele pecaram originalmente, como está claro no Apóstolo. Mas, se o corpo de Cristo tivesse sido tomado de Adão, também ele teria estado originalmente em Adão, quando este pecou. Logo, teria contraído o pecado original. O que não condizia com a pureza de Cristo. Logo, o corpo de Cristo não foi formado da matéria tirada de Adão.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo: Ele, isto é, o Filho de Deus, em nenhum lugar tomou os anjos, mas tomou a descendência de Abraão. Ora, a descendência de Abraão foi originada em Adão. Logo, o corpo de Cristo foi formado de matéria tomada de Adão.
SOLUÇÃO. — Cristo assumiu a natureza humana para purificá-la da sua corrupção. Ora, a natureza humana não precisava de purificação senão porque estava contaminada pela origem viciada da sua descendência de Adão. Por isso foi conveniente que tomasse Cristo uma carne derivada de Adão, de modo que a natureza mesma fosse curada por essa assunção.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz-se que o segundo homem, isto é, Cristo procedia do céu, não quanto à matéria do seu corpo, mas, ou quanto à virtude formativa dele, ou também quanto à sua própria divindade. Pois, quanto à matéria, o corpo de Cristo era terreno, como o foi o de Adão.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como dissemos, o mistério da Encarnação de Cristo é um fato milagroso, não como ordenado à confirmação da fé, mas como um artigo de fé. Por isso, esse mistério não precisa de ser contado entre os maiores milagres, como o hão de ser os milagres feitos para a confirmação da fé. Mas, devemos descobrir nele uma conveniência maior com a divina sabedoria e mais expediente à salvação humana, o que é necessário a tudo o que é objeto de fé. Já podemos dizer que no mistério da Encarnação não consideramos o milagre relativamente à matéria da concepção, mas sobretudo quanto ao modo da concepção e do parto, isto é, por ter sido uma virgem a que concebe e deu a luz a Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como se disse, o corpo de Cristo existiu em Adão pela sua origem material, isto é, porque a matéria mesma do corpo de Cristo foi derivada de Adão. Mas nele não existiu pela origem seminal, pois não foi gerado do sêmen humano. Por isso não contraiu o pecado original, como os outros homens, derivados de Adão por via de origem seminal.
O quarto discute-se assim. — Parece que a anunciação não se cumpriu em perfeita ordem.
1. — Pois, a dignidade de Mãe de Deus depende da prole concebida. Ora, a causa deve manifestar-se antes do efeito. Logo, o Anjo devia ter anunciado à Virgem a conceição do filho antes de a ter saudado com a proclamação da sua dignidade.
2. Demais. — Não podemos exigir prova em matéria onde não pode haver dúvida nem em matéria que pode ser sujeita a dúvidas. Ora, parece que o Anjo anunciou, primeiro, o de que a Virgem duvidava e, por duvidar, perguntou. Como se fará isso? E só depois acrescentou a prova tirada tanto do exemplo de Isabel, como da omnipotência de Deus. Logo, a anunciação do anjo se realizou numa ordem inconveniente.
3. Demais. — O mais não pode ser suficientemente provado pelo menos. Ora, mais admirável foi dar à luz uma virgem, que se o fizesse uma velha. Logo, não foi prova suficiente a do Anjo, provando a conceição virginal pela conceição de uma velha.
Mas, em contrário, o Apóstolo: Tudo o proveniente de Deus é ordenado. Ora, o Anjo foi enviado por Deus para anunciar à Virgem, como diz o Evangelho. Logo, a anunciação pelo Anjo se cumpriu de maneira mui ordenada.
SOLUÇÃO. — A anunciação se cumpriu pelo Anjo na ordem conveniente. Pois, o Anjo tinha tríplice desígnio em relação à Virgem. — Primeiro, tornar-lhe o coração atento à consideração de um tão grande acontecimento. O que fez, saudando-a com uma nova e insólita saudação. Por isso diz Orígenes, que se a Virgem, que conhecia a lei judaica, soubesse que uma saudação semelhante tivesse algum dia sido feita a alguém, não teria ficado amedrontada do seu caráter estranho. E nessa saudação o Anjo anunciou-lhe em primeiro lugar a sua idoneidade para a concepção, quando disse — Cheia de graça; depois, anunciou a conceição, ao declarar-lhe — O Senhor é contigo; e enfim prenunciou-lhe a honra consequente, com as palavras – Bendita tu entre as mulheres. - O segundo desígnio do anjo era instruí-la no mistério da Encarnação, que nela devia cumprir-se. E isso o fez, prenunciando-lhe a conceição e o parto, quando disse – Eis, conceberás no teu ventre, etc.; e lhe mostrou a dignidade do filho concebido, dizendo — Este será grande, etc. E também quando lhe revelou o modo da conceição, com as palavras — O Espírito Santo descerá sobre ti. — O terceiro desígnio ao Anjo era induzir-lhe o ânimo ao consentimento. O que fez com o exemplo de Isabel e pela razão deduzida da omnipotência divina.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Para uma alma humilde nada causa maior admiração que ouvir falar da sua própria excelência. Pois, a admiração desperta soberanamente a atenção da alma. Por isso o Anjo, querendo tornar atenta a mente da Virgem, para ouvir a revelação de um tão grande mistério, começou por elogiá-la.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Ambrósio diz expressamente que a Santa Virgem não duvidou das palavras do Anjo. São palavras suas: Mais comedida é a resposta de Maria que as palavras do sacerdote. Esta pergunta: Como se fará isto? Aquele responde: Por onde conhecerei eu a verdade dessas coisas? Recusa assim a sua fé, negando conhecer tais coisas. A Virgem, porém, não duvida, no momento em que pergunta como se fará, da sua realização. — Agostinho, porém, parece dizer que a Virgem deixou-se invadir da dúvida, quando afirmou: A Maria que hesita sobre a concepção, o anjo afirma a sua possibilidade. Mas, essa dúvida foi, antes, de admiração que de incredulidade. Por isso, o anjo aduz a sua prova, não para adquirir a confiança da Virgem, mas antes para lhe remover a admiração.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Ambrósio, se muitas mulheres estéreis conceberam, foi para que se acreditasse no parto da Virgem. Por isso foi aduzido o exemplo da estéril Isabel; não como um argumento suficiente, mas como um exemplo figurado. Por isso, para confirmação desse exemplo, acrescenta o argumento peremptório da omnipotência de Deus.
O terceiro discute-se assim. — Parece que o anjo anunciante não devia aparecer à Virgem em forma corpórea.
1. — Pois, ver em espírito é mais nobre que ver materialmente, como diz Agostinho; e sobretudo é mais conveniente ao anjo, porque pela visão do espírito o anjo é visto na sua substância e, pela material, é visto na figura corpórea que assumiu. Ora, assim como o anunciar da concepção divina era conveniente fosse feito por um núncio supremo, assim também parece que lhe competia o sumo gênero de visão. Logo, parece que o anjo anunciante apareceu à Virgem em visão espiritual.
2. Demais. — Parece que a visão imaginária também é mais nobre que a visão corpórea, tanto quanto a imaginação é mais elevada potência que os sentidos. Ora, o anjo apareceu a José durante o sono, em visão imaginária, como se lê no Evangelho. Logo, parece que também devia aparecer à Santa Virgem em visão imaginária e não em visão material.
3. Demais. — A visão corpórea de uma substância espiritual perturba quem a vê; por isso a Igreja canta, da Virgem — e a Virgem pasmou à vista da luz. Ora, melhor teria sido que a sua alma tivesse sido preservada de tal perturbação. Logo, não foi conveniente que a referida anunciação se fizesse por uma visão corpórea.
Mas, em contrário, Agostinho põe na boca da Santa Virgem as palavras seguintes: Veio a mim o Arcanjo Gabriel com as faces rútilas, com vestes coruscantes, de aspecto admirável. Ora, isso só pode pertencer a uma visão corpórea. Logo, o anjo que anunciou à Santa Virgem lhe apareceu em forma corpórea.
SOLUÇÃO. — O anjo anunciante apareceu à Mãe de Deus em forma corpórea. E isto era conveniente. — Primeiro, quanto ao anunciado. Pois, o anjo vinha anunciar a Encarnação do Deus invisível. Portanto, era conveniente que, para anunciar esse acontecimento, uma criatura invisível assumisse uma forma que lhe permitisse aparecer visivelmente. Porque, além disso, todas as aparições do Antigo Testamento se ordenem à aparição pela qual o Filho de Deus se manifestou encarnado. — Segundo, era conveniente à dignidade da Mãe de Deus, que havia de receber o Filho de Deus não somente na sua alma, mas também corporalmente, no seu ventre. Por isso, não somente a sua alma, mas também os sentidos do seu corpo deviam ser favorecidos com a visão angélica: — Terceiro, era isso conveniente à certeza do que foi anunciado. Pois, o que é visto com os olhos nós o apreendemos mais certamente do que aquilo que imaginamos. Donde o dizer Crisóstomo, que o Anjo se apresentou real e visivelmente à Virgem e não em sonhos. Pois, devendo receber do anjo uma comunicação de tão alta importância, ela tinha necessidade de uma aparição solene, núncia de um acontecimento tão relevante.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A visão intelectual é superior à visão imaginária ou corporal, se for só. Mas, o próprio Agostinho diz ser mais excelente a profecia acompanhada simultaneamente da visão intelectual e da imaginária, que a que o é só de uma delas. Ora, a Santa Virgem não somente percebeu uma manifestação espiritual. Por isso, essa aparição foi mais nobre. Mas teria sido ainda mais, se tivesse visto o próprio anjo, na sua substância, por uma visão Intelectual. Mas o estado de um mortal não se compadecia com ver um anjo em essência.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A imaginação é certamente uma potência mais alta que os sentidos exteriores. Como porém a base do conhecimento humano são os sentidos, o conhecimento sensível é o dotado da máxima certeza, pois, os princípios do conhecimento hão de sempre ter maior certeza. Por isso José, a quem o anjo apareceu durante o sono, não viu uma aparição tão excelente com o que viu a Santa Virgem.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Ambrósio, ficamos perturbados e alheiados dos sentidos quando surpreendidos pela ação inesperada de uma força superior. E isto se dá não só em se tratando de uma visão real como também imaginária. Donde o dizer a Escritura, que ao pôr do sol veio um profundo sono sobre Abraão e um horror grande e temeroso o acometeu. Mas, essa perturbação não pode ser nociva ao homem ao ponto de dever ficar ele privado de uma aparição angélica. — Primeiro, porque o fato mesmo de ser o homem elevado acima de si mesmo, como o requer a sua dignidade, enfraquece a parte inferior da sua natureza, donde procede a perturbação referida, assim como a concentração do calor natural no interior do corpo faz tremerem os membros exteriores. — Segundo porque, como diz Orígenes, o anjo que apareceu, conhecedor da natureza humana, começou por acalmar a perturbação. Por isso, tanto a Zacarias como a Maria, vendo-os: perturbados, disse-lhes: Não temas. Razão pela qual, como se lê na vida de Antão, não é difícil discernirmos os espíritos bem-aventurados, dos maus. Se, pois, ao temor suceder a alegria, saibamos que o auxílio vem de Deus, porque a segurança da alma é sinal da presença da majestade. Se, ao contrário, o temor incutido permanecer, é inimigo o que vemos. — E, além disso, a perturbação mesma da Virgem era própria do pudor virginal. Pois, como diz Ambrósio, tremer é próprio dos virgens, bem como o temerem com a aproximação de qualquer homem e se amedrontarem quando algum lhes dirige a palavra. — Mas certos dizem, que como a Santa Virgem estava acostumada a ver os anjos, não ficou perturbada com a aparição angélica; mas, tomada de espanto com o que o anjo lhe dizia por não se julgar digna de coisas tão sublimes. Por isso o Evangelista não diz que ficou perturbada com a visão, mas sim, com as palavras do anjo.
O segundo discute-se assim. — Parece que à Santa Virgem a anunciação não devia ter sido feita por um anjo.
1. — Pois, aos anjos supremos a revelação se faz imediatamente por Deus, como diz Dionísio. Ora, a Mãe de Deus foi exaltada acima de todos os anjos. Logo, parece que o mistério da Encarnação devia ter-lhe sido feito imediatamente por Deus e não, por um anjo.
2. Demais. — Se nesta matéria era necessário observar a ordem comum, pela qual as coisas divinas são reveladas aos homens pelos anjos, semelhantemente devem tais coisas ser reveladas a uma mulher, por um homem; donde o dizer o Apóstolo: As mulheres estejam caladas nas igrejas, e se querem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa aos seus maridos. Logo, parece que à Santa Virgem devia ter sido anunciado o mistério da Encarnação por algum homem, sobretudo que José, seu marido, foi nesse assunto instruído pelo Anjo, como se lê no Evangelho.
3. Demais. — Ninguém pode anunciar convenientemente o que ignora. Ora, mesmo os anjos supremos não conheceram plenamente o mistério da Encarnação; por isso Dionísio diz que da pessoa deles se deve entender a pergunta da Escritura – Quem é este que vem de Edom? Logo, parece que por nenhum anjo podia ser convenientemente anunciada a realização da Encarnação.
4. Demais. — Coisas maiores devem ser anunciadas por maiores embaixadores. Ora, o mistério da Encarnação é o máximo, dos anunciados aos homens, pelos anjos. Logo, parece que se por algum anjo devia ser anunciado, este deveria ser um dos da ordem suprema. Ora, Gabriel não é da ordem suprema, mas da ordem dos arcanjos, que é a penúltima. Por isso a Igreja canta: Sabemos que, mandado por Deus, Gabriel Arcanjo te anunciou. Logo, essa anunciação não foi convenientemente feita, por meio de Gabriel Arcanjo.
Mas, em contrário, o Evangelho: Foi enviado por Deus o anjo Gabriel, etc.
SOLUÇÃO. — Foi conveniente que o mistério da Encarnação fosse anunciado à Mãe de Deus, por meio de um anjo, por três razões. — Primeiro, para que, assim, se observasse a ordem divina, pela qual as coisas divinas são transmitidas aos homens, mediante os anjos. Donde o dizer Dionísio, que do mistério divino do amor de Jesus foram primeiro instruídos os anjos; depois, por meio deles a graça desse conhecimento chegou até nós. Assim, pois, o diviníssimo Gabriel anunciou a Zacarias que dele havia de nascer um profeta: e a Maria, como nela se cumpriria o mistério Trierárquico da inefável formação de Deus. — Segundo, porque era conveniente a restauração do gênero humano, que Cristo havia de realizar. E por isso diz Beda: Convinha à restauração da humanidade, que um anjo fosse enviado por Deus à Virgem. que devia consagrar o parto de um Deus. Pois, a causa primeira da perdição da humanidade foi o diabo, quando mandou a serpente ir ter com a mulher a fim de enganá-la com o espírito de soberba. — Terceiro, porque convinha à virgindade da Mãe de Deus. E por isso diz Jerônimo: Foi bem o anjo ter sido enviado à Virgem, pois, a virgindade é cognata da natureza angélica. Pois, na verdade, viver na carne, como se esta não existisse, não é vida terrena, mas celeste.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A Mãe de Deus era superior aos anjos quanto à dignidade, para que Deus a elegeu. Mas, quanto ao estado da vida presente, era inferior aos anjos; pois, o próprio Cristo, em razão da sua vida passível, por um pouco foi feito menor que os anjos, na frase do Apóstolo. Contudo, como Cristo foi ao mesmo tempo mortal e bem-aventurado, não precisava ser instruído pelos anjos, quanto ao conhecimento das coisas divinas. Mas, a Mãe de Deus ainda não se achava no estado de bem-aventurança. Por isso, precisava ser instruída pelos anjos, quanto à sua divina conceição.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, a Santa Virgem escapa a certas leis gerais humanas. Pois, nem teve muitas concepções, nem viveu sob poder de um homem, isto é, de um marido, ela que, conservando a sua virgindade íntegra, concebeu Cristo, do Espírito Santo. Por isso não lhe devia ser instruída no mistério da Encarnação, por nenhum homem, mas pelo anjo. E por isso também foi ela instruída nele, antes de José; pois, ao passo que o foi antes da sua concepção, José só depois dela o foi.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como é claro pela autoridade citada de Dionísio, os anjos conheceram o mistério da Encarnação; contudo interrogavam, desejando saber, de Cristo, mais perfeitamente, as razões desse mistério, que são incompreensíveis a todo intelecto criado. Por isso Máximo diz, que não podemos duvidar se os anjos conheceram a Encarnação futura. Mas escapou-lhes a investigável concepção do Senhor, e o modo pelo qual o Filho, todo inteiro no Pai que o engendrou, podia também ficar inteiramente em todos, e mesmo num seio virginal.
RESPOSTA À QUARTA. — Certos afirmam que Gabriel era da suprema ordem dos anjos, fundados no dito de Gregório: Era digno de ter vindo o anjo supremo a anunciar o sumo dos mistérios. Mas, daí não se conclui que fosse ele o supremo de todas as ordens, mas só quanto aos anjos; pois era da ordem dos arcanjos. Por isso, a Igreja lhe dá o nome de arcanjo e o próprio Gregório diz que se chamam arcanjos os que anunciam as coisas mais elevadas. É bastante crível, pois, que foi ele o primeiro na ordem dos arcanjos. E, como diz Gregório, esse nome lhe quadra ao ofício, pois, Gabriel significa força de Deus. E assim, onde, pela força de Deus devia ser anunciado aquele que, Senhor das virtudes e poderoso no combate, vinha para vencer os poderes do ar.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não era necessário fosse anunciado à Santa Virgem o que nela haveria de cumprir-se.
1. — Pois, parece que a anunciação só era necessária para obter o consentimento da Virgem. Ora, parece que não era necessário o seu consentimento; pois, a conceição da Virgem foi prenunciada pela profecia da predestinação, que se cumpre sem a cooperação do nosso arbítrio, como diz uma certa glosa. Logo, não era necessário que tal anunciação se fizesse.
2. Demais. — A Santa Virgem tinha fé na Encarnação, sem a qual ninguém podia trilhar a via da salvação; pois, como diz o Apóstolo, a justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus Cristo em todos. Ora, quem crê com certeza não precisa ser instruído ulteriormente. Logo, à Santa Virgem não lhe era necessário fosse anunciada a encarnação do Filho de Deus.
3. Demais. — Assim como a Santa Virgem concebeu corporalmente a Cristo, assim também qualquer alma santa o concebe espiritualmente. Donde o dizer o Apóstolo: Filhinhos meus, por quem eu de novo sinto as dores do parto, até que Jesus Cristo se forme em vós. Ora, aos que devem conceber espiritualmente a Cristo, essa conceição não lhes é anunciada. Logo, também não devia ser anunciado à Santa Virgem, que conceberia no seu ventre ao Filho de Deus.
Mas, em contrário, está no Evangelho que o Anjo lhe disse: Eis conceberás no teu ventre e parirás um filho.
SOLUÇÃO. — Era conveniente fosse anunciado à Santa Virgem que havia de conceber a Cristo. — Primeiro, para que se observasse a ordem devida da união do Filho de Deus com a Virgem; isto é, para que, antes da sua carne concebê-lo, a sua alma tivesse disso conhecimento. Donde o dizer Agostinho: Maria foi mais feliz percebendo a fidelidade de Cristo que lhe concebendo a carne. E depois acrescenta: A proximidade de seu Filho em nada teria sido útil a Maria, se não tivesse com maior felicidade trazido a Cristo no seu coração, que na sua carne. — Segundo, para que pudesse ser mais certa testemunha desse sacramento, quando nele fosse instruída por Deus. — Terceiro, para que oferecesse a Deus o voluntário dom da sua submissão, ao que prontamente se ofereceu quando disse: Eis a escrava do Senhor. — Quarto, para que se mostrasse haver um como matrimônio espiritual entre o Filho de Deus e a natureza humana. Por isso, pela anunciação foi pedido o consentimento da Virgem, como representante de toda a natureza humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A profecia da predestinação se cumpre sem a cooperação causal do nosso arbítrio; não porém sem o consentimento dele.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A Santa Virgem tinha fé expressa na Encarnação futura; mas, humilde como era, não se julgava digna de tão altas coisas. Por isso, necessitava de ser instruída nessa matéria.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A concepção espiritual de Cristo, mediante a fé, precede a anunciação, realizada pela fé da pregação, segundo o dito do Apóstolo, que a fé é pelo ouvido. Mas nem por isso sabe ninguém com certeza que tem a graça; conhece, porém, como verdadeira a fé que recebeu.