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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 6 — Se em Cristo houve o dom do temor.

O sexto discute-se assim. — Parece que em Cristo não houve o dom do temor.

1. — Pois, a esperança parece mais principal que o temor, porque sendo o objeto dela o bem, o dele é o mal, como na Segunda Parte se estabeleceu. Ora, em Cristo não havia a virtude da esperança, conforme se demonstrou. Logo, também não havia nele o dom do temor.

2. Demais. — Pelo dom do temor tememos a separação de Deus, o que constitui o temor casto; ou o sermos punidos por ele, o que constitui o temor servil, como diz Agostinho. Ora, Cristo não temia ser separado de Deus, pelo pecado; nem ser punido por ele. por culpa; pois, era-lhe impossível pecar, como depois se dirá. Ora, não há temor do impossível. Logo, em Cristo não houve o dom do temor.

3. Demais. — A Escritura diz: A caridade perfeita lança fora o temor. Ora, Cristo tinha a caridade perfeitíssima, segundo o Apóstolo: A caridade de Cristo que excede todo entendimento. Logo. em Cristo não havia o dom do temor.

Mas, em contrário, a Escritura: E enche-lo-á o Espírito do temor do Senhor.

SOLUÇÃO. — Como dissemos na Segunda Parte, o temor respeita dois objetos: um é o mal que atemoriza; o outro, quem tem o poder de fazer o mal e assim teme-se o rei porque tem o poder de matar. Ora, não temeríamos quem tem o poder se este não fosse de uma eminência tal que não lhe pudéssemos facilmente resistir; pois, não tememos o que podemos prontamente repelir. Por onde, é claro que não tememos a outrem senão por causa da sua eminência. E portanto, devemos concluir que em Cristo houve o temor de Deus, não enquanto respeita o mal da separação de Deus pela culpa nem enquanto respeita o mal da punição por causa da culpa; mas enquanto respeita a própria eminência divina. Isto é, enquanto que a alma de Cristo eleva-se para Deus por um certo afeto de reverência, levada do Espírito Santo. Donde o dizer o Apóstolo, que em tudo foi atendido pela sua reverência. Ora, esse afeto de reverência para com Deus, Cristo, enquanto homem, teve-o em maior plenitude que os demais. Por isso, a Escritura lhe atribui a plenitude do dom do temor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os hábitos das virtudes e dos dons própria e essencialmente respeitam o bem; e o mal, por consequência. Pois, é da essência da virtude tornar a obra boa, como diz Aristóteles. Por onde, não é da essência do dom do temor aquele mal a que se refere o temor; mas,a eminência daquele bem, isto é, divino, por cujo poder um mal pode ser infligido. Ora, a esperança, enquanto virtude, respeita não só o autor do bem, mas o próprio bem, enquanto não possuído. Por onde, a Cristo, que já tinha o bem perfeito da beatitude, não se lhe atribui a virtude da esperança, mas, o dom do temor.

RESPOSTA À SEGUNDA.  A objeção colhe, do temor enquanto respeita ao objeto, que é o mal.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A caridade perfeita expulsa o temor servil, que respeita principalmente à pena. Ora, nesse sentido, não houve temor em Cristo.

Art. 5 — Se em Cristo existiam os dons.

O quinto discute-se assim. — Parece que em Cristo não existiam os dons.

1 Pois, como geralmente se diz, os dons são conferidos como ajutórios das virtudes. Ora, o em si mesmo perfeito não precisa de auxílio externo. Logo, como Cristo tinha a perfeição das virtudes, nele não existiram os dons.

2. Demais. — Não pode a mesma pessoa conferir e receber os dons; pois, dá quem tem e recebe quem não tem. Ora, Cristo podia conferir dons, segundo a Escritura: Tornaste dons para. os distribuíres aos homens. Logo, não podia receber os dons do Espírito Santo.

3. Demais. — São quatro os dons próprios da vida contemplativa, a saber: a sabedoria, a ciência, o intelecto e o conselho; o que pertence à prudência, enumerando por isso o Filósofo esses dons entre as virtudes intelectuais. Ora, Cristo tinha a contemplação do céu. Logo, não tinha os referidos dons.

Mas, em contrário, a Escritura: Lançaram mão de um só homem sete mulheres. Ao que diz a Glosa: Isto é, os sete dons do Espírito Santo, Cristo.

SOLUÇÃO. — Como dissemos na Segunda Parte, os dons são propriamente umas certas perfeições das potências da alma, que lhes torna natural o serem movidas pelo Espírito Santo. Ora, como é manifesto, a alma de Cristo era perfeitissimamente movida pelo Espírito Santo, segundo o Evangelho: Cheio, pois, do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto. Por onde, é manifesto que em Cristo existiam excelentissimamente os dons.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O perfeito na ordem da sua natureza necessita ser ajudado pelo que é de natureza superior; assim o homem, por mais perfeito que seja precisa de ser ajudado por Deus. E deste modo as virtudes precisam ser fortificadas pelos dons, que aperfeiçoam as potências de alma, enquanto movidas pelo Espírito Santo.

RESPOSTA À SEGUNDA. Cristo não recebe e confere os dons do Espírito Santo, aos mesmos respeitos; mas, ele os confere como Deus, e os recebe como homem. Donde o dizer Gregório: O Espírito Santo não abandonou nunca a humanidade de Cristo, de cuja divindade procede.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Em Cristo não somente havia o conhecimento da pátria, mas também o da via, como a seguir se dirá. E contudo, mesmo na pátria, existem de certo modo os dons do Espírito Santo, como na Segunda Parte se estabeleceu.

Art. 4 — Se em Cristo existia a esperança.

O quarto discute-se assim. — Parece que em Cristo existia a esperança.

1. — Pois, diz a Escritura, da pessoa de Cristo, segundo a Glosa: Em ti, Senhor, esperei. Ora, a virtude da esperança é a pela qual esperamos em Deus. Logo, Cristo teve a virtude da esperança.

2. Demais. — A esperança é a expectação da beatitude futura, como demonstramos na Segunda Parte. Ora, Cristo esperava algo de pertinente à beatitude, a saber, a glória do corpo. Logo, parece que nele houve a esperança.

3. Demais. — Cada qual pode esperar o que lhe condisser com a perfeição, se for futuro. Ora, havia algo de futuro, pertinente à perfeição de Cristo, segundo o Apóstolo: Para a consumação dos santos em ordem à obra do ministério, para edificar o corpo de Cristo. Logo, parece que cabia a Cristo ter esperança.

Mas, em contrário, o Apóstolo: O que qualquer vê como o espera? Por onde é claro que, como a fé tem por objeto o que não vemos, assim, também a esperança. Ora, não havia fé em Cristo, como se disse. Logo, nem esperança.

SOLUÇÃO. — Assim como é da essência da fé o assentirmos no que não vemos, assim, é da essência da esperança termos a expectação do que ainda não possuímos. E assim como a fé, enquanto virtude teologal, não tem por objeto qualquer ser não visto, mas só Deus, assim também a esperança, enquanto virtude teologal tem por objeto a fruição mesma de Deus, o que principalmente temos em vista pela virtude da esperança. Mas, por consequência, quem possui a virtude da esperança pode também esperar o auxílio divino em outras matérias; assim como quem tem a virtude da fé não somente crê a Deus, em se tratando das coisas divinas, mas de tudo o mais que lhe tenha sido divinamente revelado. Ora, Cristo, desde o momento da sua concepção, teve a plena fruição divina, como a seguir demonstraremos. E portanto, não teve a virtude da esperança. Mas tinha a esperança relativamente a certas coisas que ainda não havia alcançado, embora não tivesse a fé relativamente a coisas quaisquer. Pois, embora conhecesse todas as coisas, o que dele totalmente excluía a fé, contudo, ainda não tinha plenamente tudo o que lhe pertencia à perfeição, por exemplo a imortalidade e a glória do corpo, que podia esperar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O lugar aduzido não se aplica a Cristo, quanto à esperança, como virtude teologal; mas porque esperava certas coisas que ainda não tinha, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A glória do corpo não pertence à beatitude como o em que ela principalmente consiste; mas, por uma certa redundância da glória da alma, como se disse na Segunda Parte. Por onde, a esperança, enquanto virtude teologal, não respeita à beatitude do corpo, mas à da alma, que consiste na fruição divina.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A edificação da Igreja, pela conversão dos fiéis, não pertence à perfeição de Cristo, enquanto perfeito em si mesmo; mas enquanto leva os outros a participar da sua perfeição. E como a esperança propriamente é dita em relação aquilo que quem espera está na expectativa de possuir, não se pode propriamente dizer que a virtude da esperança conviesse a Cristo, pela razão aduzida.

Art. 3 — Se em Cristo existiu a fé.

O terceiro discute-se assim. — Parece que em Cristo existiu a fé.

1. — Pois, a fé é uma virtude mais nobre que as virtudes morais como a temperança e a liberalidade. Ora, estas virtudes existiram em Cristo, como se disse. Logo, com maior razão nele existiu a fé.

2. Demais. — Cristo não ensinou virtudes que não tinha, segundo aquilo da Escritura: Começou a jazer e a ensinar. Ora, de Cristo também diz o Apóstolo: Autor e consumador da fé. Logo, nele existiu por excelência a fé.

3. Demais. — Dos bem-aventurados se exclui toda imperfeição. Ora, os bem-aventurados tem a fé; pois, àquilo do Apóstolo - A justiça de Deus se descobre nele de fé em fé - diz a Ciosa: A fé nas palavras e nos bens que esperamos torna-se a jé nas coisas mesmas e a visão clara. Logo, parece que também Cristo teve a fé, pois que nenhuma imperfeição nele existe.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo: A fé é um argumento das coisas que não aparecem. Ora, para Cristo nada houve de não aparente, conforme lho disse Pedro: Tu conheces tudo, Logo, em Cristo não havia fé.

SOLUÇÃO. — Como demonstramos na Segunda Parte, o objeto da fé é a realidade divina não vista. Ora, o hábito da virtude, como qualquer outro, se especifica pelo seu objeto. E portanto suprimida essa condição  que a realidade divina não é vista, excluída fica na sua essência a fé. Ora, Cristo, desde o primeiro instante da sua concepção, viu plenamente a Deus em essência, como a seguir se verá. Logo, nele não podia existir a fé.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A fé é uma virtude mais nobre que as virtudes morais porque versa sobre matéria mais nobre; contudo implica uma certa deficiência relativamente a essa matéria, deficiência que em Cristo não existiu. Logo, não podia nele existir a fé, embora tivesse ele as virtudes morais, que por essência não implicam essa deficiência relativamente às suas matérias.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O mérito da fé consiste em assentirmos, por obediência a Deus, no que não vemos, segundo aquilo do Apóstolo: Para que se obedeça à fé em todas as gentes pelo seu nome. Ora, Cristo praticou plenissimamente a obediência para com Deus, segundo o Apóstolo: Feito obediente até à morte. E assim nada ensinou que fosse uma fonte de mérito que não o praticasse ele próprio de maneira mais excelente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz a Glosa no mesmo lugar, pela fé cremos propriamente no que não vemos. E impropriamente se chama fé a que tem por objeto o que vemos, e só por certa semelhança, quanto à certeza ou a firmeza da adesão.

Art. 2 — Se em Cristo havia virtudes.

O segundo discute-se assim. — Parece que em Cristo não havia virtudes.

1 Pois, Cristo tinha a abundância da graça. Ora, a graça basta para agirmos sempre retamente, segundo o Apóstolo: Basta-te a minha graça. Logo, em Cristo não havia virtudes.

2. Demais. — Segundo o Filósofo, a virtude se divide, por oposição, de um certo hábito heroico ou divino, atribuído aos homens divinos. Ora, isso convém sobremaneira a Cristo. Logo, Cristo não tinha virtudes, mas algo mais elevado que a virtude.

Demais. — Como na Segunda Parte se demonstrou, todas as virtudes são possuídas simultaneamente. Ora, a Cristo não convinha ter simultaneamente todas as virtudes; como é o caso da liberalidade e da magnificência, cujos atos recaem sobre as riquezas, que Cristo desprezava, segundo o Evangelho: O Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. E também a temperança e a continência, que reprimem as concupiscências depravadas, que em Cristo não existiam. Logo, Cristo não tinha as virtudes.

Mas, em contrário, àquilo da Escritura - A sua vontade está posta na lei do Senhor - diz a Glosa: Isto mostra que Cristo era rico de todos os bens. Ora, a virtude é uma boa qualidade da alma. Logo, Cristo teve a plenitude de todas as virtudes.

SOLUÇÃO. — Como estabelecemos na Segunda Parte, assim como a graça respeita à essência da alma, assim a virtude lhe respeita a potência. Por onde e necessariamente,. assim: como a potências da alma lhe derivam da essência. assim as virtudes são umas derivações da graça. Ora, quanto mais perfeito é um princípio tanto mais imprime os seus efeitos. Por onde, tendo sido perfeitíssima a graça de Cristo, consequentemente dela procederam virtudes para aperfeiçoarem cada uma das potências da sua alma, quanto a todos os atos desta. É portanto Cristo teve todas as virtudes. 

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A graça basta ao homem em relação a todas aquelas coisas pelas quais se ordena à beatitude. Mas certas delas a graça as aperfeiçoa imediatamente por si mesma como o torná-lo agradável a Deus e outras semelhantes; e certas outras. mediante as virtudes procedentes da graça.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Esse hábito heroico ou divino não difere da virtude em geral, senão pelo seu modo mais perfeito; isto é, quando alguém tem uma disposição para o bem, de um certo modo mais alto, quero que geralmente os homens tem. Por onde, isso não demonstra que Cristo não tivesse as. virtudes, mas que as tinha perfeitíssima e superiormente ao modo comum. Assim também Plotino admite um certo e sublime modo das virtudes, que dizia serem as da alma purificada.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A liberdade e a magnificiência se exercem sobre as riquezas, porque quem é dotado dessas virtudes não aprecia as riquezas a ponto de querer conservá-las omitindo o que com elas devia fazer. Mas de nenhum. modo aprecia as riquezas quem as despreza de todo e as rejeita, pela perfeição do amor. Por onde, por isso mesmo que Cristo desprezou todas as riquezas mostrou possuir em sumo grau a liberalidade e a magnificiência. Embora também exercesse atos de liberalidade, enquanto isso lhe era congruente, fazendo distribuir aos pobres os donativos que recebia. E assim, quando o Senhor disse a Judas O que fazes, faze-o depressa entenderam os discípulos que lhe mandou desse alguma coisa aos pobres. Quanto às baixas concupiscências, Cristo de nenhum modo as teve, como a seguir demonstraremos. Mas isso não o impedia o exercício da temperança, tanto mais perfeita no homem quanto mais ele carece dessas concupiscências depravadas. Por isso diz o Filósofo, que o temperado difere do continente, por não existirem naquele as concupiscências depravadas, cujo jugo este sofre. E portanto, entendendo assim a continência, como a entende o Filósofo, por isso mesmo que Cristo teve todas as virtudes não teve a continência que não é uma virtude mas algo menos que uma virtude.

Art. 1 — Se na alma assumida pelo Verbo havia a graça habitual.

O primeiro discute-se assim. — Parece que na alma assumida pelo Verbo não havia a graça habitual.

1. — Pois, a graça é uma certa participação da divindade na criatura racional, segundo a Escritura: Pelo qual nos comunicou as mui grandes e preciosas graças que tinha prometido, para que sejamos feitos participantes da natureza divina. Ora, Cristo é Deus, não participativa, mas verdadeiramente. Logo, nele não houve graça habitual.

2. Demais. — A graça é necessária ao homem para proceder bem, segundo o Apóstolo: Tenho trabalhado mais copiosamente que todos eles; não eu contudo, mas a graça de Deus comigo. E também para alcançar a vida eterna, segundo ainda o Apóstolo: A graça de Deus é a Vida perdurável. Ora, a Cristo, só pelo fato de ser naturalmente o Filho de Deus, era-lhe devida a herança da vida eterna; e também por ser o Verbo, pelo qual todas as coisas foram feitas, tinha a faculdade de proceder bem em todas as coisas. Logo, não precisava, em virtude da sua natureza humana, de outra graça, senão da união com o Verbo.

3. Demais. — O que opera a modo de instrumento não precisa de nenhum hábito para as suas operações próprias; porque o hábito se funda no agente principal. Ora, a natureza humana, em Cristo, era como o instrumento da divindade, no dizer de Damasceno. Logo, não devia de haver, em Cristo, nenhuma graça habitual.

Mas, em contrário, a Escritura: Descansará sobre ele o Espírito do Senhor, do qual se diz que está no homem pela graça habitual, como se demonstrou na Primeira Parte. Logo, em Cristo havia a graça habitual.

SOLUÇÃO. — Devemos admitir em Cristo a graça habitual, por três razões. Primeiro, por causa da união da sua alma com o Verbo de Deus. Pois, quanto mais próximo está um ser da causa que influi sobre ele, tanto mais participa da sua influência. Ora, o influxo da graça vem de Deus, segundo a Escritura: O Senhor dará a graça e a glória. Por isso era conveniente em máximo grau que a sua alma recebesse o influxo da graça divina. Segundo, por causa da nobreza da sua alma, cujas operações deviam tocar a Deus de muito perto pelo conhecimento e pelo amor; e para isso é preciso a natureza humana ser elevada pela graça. Terceiro, por causa das relações de Cristo com o gênero humano. Pois, Cristo enquanto homem é o mediador entre Deus e os homens, no dizer do Apóstolo. Por isso deveria ter uma graça capaz de redundar nos outros, conforme o Evangelho: Todos nós participamos de sua plenitude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo é verdadeiramente Deus pela pessoa e pela natureza divina. Mas, como com a unidade de pessoa subsiste a distinção das naturezas, conforme do sobredito se colige, a alma de Cristo não é por sua essência divina. Por onde, havia de se tornar divina por participação, que é segundo a graça.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A Cristo, enquanto por natureza filho de Deus, é devida a herança eterna, que é a própria beatitude incriada, pelo ato incriado do conhecimento e do amor de Deus, ato que é o mesmo pelo qual o Pai se conhece e ama a si mesmo. E desse ato a alma não era capaz por causa da diferença de natureza. Por isso, era necessário que se alçasse a Deus por um ato criado de fruição. O que não pode ser senão pela graça. Semelhantemente, enquanto Verbo de Deus, tinha a faculdade de proceder bem em tudo, por operação divina. Mas, como além da operação divina, devemos admitir nele a operação humana, conforme a seguir se demonstrará, era mister que tivesse a graça habitual, que torna perfeita a sua referida operação.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A humanidade de Cristo é o instrumento da divindade; não, certo, como um instrumento inanimado, que de nenhum modo, age, mas é manejado por outro; mas como um instrumento animado pela alma racional, que é manejado por outro mas de modo que também age. E portanto, para a sua ação própria era necessário tivesse a graça habitual.

Art. 6 — Se o Filho de Deus assumiu a natureza humana mediante a graça.

O sexto discute-se assim. — Parece que o Filho de Deus assumiu a natureza humana mediante a graça.

1 Pois, pela graça é que nos unimos a Deus, Ora, em Cristo a natureza humana; estava por excelência unida a Deus. Logo, essa união se fez mediante a graça.

2. Demais. — Assim como o corpo vive pela alma, que lhe dá a ele a perfeição, assim a alma, pela graça. Ora, a natureza humana se torna apta para a assunção, por meio da alma. Logo, o Filho de Deus assumiu a alma mediante a graça.

3. Demais. — Agostinho diz, que o Verbo Encarnado é como o nosso verbo, quando falamos. Ora, o nosso verbo se une à palavra mediante o espírito. Logo, o Verbo de Deus se une à carne mediante o Espírito Santo; e portanto, mediante a graça, que é atribuída ao Espírito Santo, segundo o Apóstolo. Há repartição de graças, mas um mesmo é o Espírito.

Mas, em contrário, a graça é um acidente da alma, como na Segunda Parte se demonstrou. Ora, a união do Verbo com a natureza humana se fez por subsistência e não por acidente, como do sobredito se colhe. Logo, a natureza humana não foi assumida mediante a graça.

SOLUÇÃO. — Em Cristo há a graça de união e a graça habitual. Logo, a graça pode ser entendida como meio, na assunção da natureza humana, quer tratemos da graça de união, quer da habitual. Pois, a graça de união é o ser pessoal mesmo, dado gratuitamente à natureza humana, por Deus, na pessoa do Verbo, o qual é o termo da assunção. E a graça habitual, pertencente à santidade pessoal do Homem-Deus, é um efeito consequente à união, conforme o Evangelho: Vimos a sua glória, como de Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade, pelo que dá a entender que do facto mesmo de ser o Homem Cristo o Unigênito do Pai o que lhe advinha da união tem a plenitude da graça e da verdade. Se porém, entendermos a graça como a vontade de Deus, que faz ou dá alguma coisa gratuitamente, nesse caso a união se fez pela graça, não como um meio, mas como pela causa eficiente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A nossa união com Deus é mediante uma operação, isto é, enquanto o conhecemos e amamos. Por onde, essa união se dá pela graça habitual enquanto que a operação perfeita procede do hábito. Mas a união da natureza humana com o Verbo de Deus é segundo o ser pessoal, são dependente de nenhum hábito, mas imediatamente da natureza mesma.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A alma é a perfeição substancial do corpo; ao passo que a graça é uma perfeição acidental da alma. Por isso, a graça não pode ordenar a alma para a união pessoal, que não é acidental, como a alma e o corpo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O nosso verbo se une à palavra, mediante o espírito; não, certo, como por um meio formal, mas como por um meio movente; pois, do verbo interiormente concebido procede o espírito, de que, se forma a palavra. E semelhantemente, do Verbo eterno procede o Espírito Santo, que formou o corpo de Cristo, como a seguir se dirá. Mas daí não se segue que a graça do Espírito Santo seja um meio formal, na referida união.

Art. 5 — Se o Filho de Deus assumiu toda a natureza humana mediante as suas partes.

O quinto discute-se assim. — Parece que o Filho de Deus assumiu toda a natureza humana mediante as suas partes.

1 Pois, diz Agostinho. que a invisível e incomuntável Verdade assumiu, pelo espírito, a alma; pela alma, o corpo e assim todo o homem. Ora, o espírito, a alma e o corpo são partes de todo o homem. Logo, assumiu todo o homem mediante as suas partes.

2. Demais. — O Filho de Deus assumiu a carne mediante a alma, por ser mais semelhante a Deus a alma do que o corpo. Ora. as partes da natureza humana, sendo mais simples, parece que são mais semelhantes ao ser simplicissimo, que o todo. Logo, assumiu o todo mediante as partes.

Demais. — O todo resulta da união das partes. Ora, a união é entendida como o termo da assunção; ao passo que as partes se preinteligem à assunção. Logo, assumiu o todo, pelas partes.

Mas, em contrário, diz Damasceno: Em nosso Senhor Jesus Cristo não consideramos partes de partes, mas o que concorre proximamente à união, a saber, a divindade e a humanidade. Ora, a humanidade é um determinado todo, composto de alma e de corpo como de partes. Logo, o Filho de Deus assumiu as partes mediante o todo.

SOLUÇÃO. — Quando nos referimos a um meio, na assunção da Encarnação, não designamos uma ordem temporal, porque foi simultânea a assunção do todo e das partes todas. Pois, como demonstramos, a alma e o corpo simultaneamente uniram-se uma ao outro para constituir a natureza humana no Verbo. E o que aí se designa é a ordem da natureza. Por onde, pelo que tem prioridade de natureza, é assumido o que vem em segundo lugar. Ora, a prioridade de natureza pode ser considerada a dupla luz relativamente ao agente e relativamente à matéria; pois, essas duas coisas preexistem à realidade. Assim, relativamente ao agente é primeiro, em sentido absoluto, o que lhe constitui a intenção primária; e, em sentido relativo, aquilo por onde lhe principia a ação. Quanto à matéria, é primeiro àquilo que primeiramente existe na transmutação dela. Ora, a ordem a que sobretudo devemos atender, na Encarnação, é a relativa ao agente; porque, como diz Agostinho, nessa matéria a razão total da obra é o poder do agente. Ora, como é manifesto, o completo vem antes do incompleto, na intenção do agente; e, por consequência, vem o todo antes das partes. Donde devemos concluir, que o Verbo de Deus assumiu as partes da natureza humana mediante o todo, Pois, assim como assumiu o corpo pela ordem que mantém para com a alma racional, assim, assumiu o corpo e a alma, pela ordem que mantêm para com a natureza humana.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As palavras citadas nada mais dão a entender senão que o Verbo, assumindo as partes da natureza humana, assumiu toda a natureza humana. E assim, a assunção das partes tem prioridade, na ordem da operação, logicamente, mas não temporalmente. Mas a assunção da natureza tem prioridade na ordem da assunção; o que é ter prioridade absoluta, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus é simples que também é perfeitíssimo. Por onde. o  todo é mais semelhante a Deus que ser mais perfeito.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Na união pessoal é que se termina a assunção; mas não, na união da natureza, que resulta da união das partes.

Art. 4 — Se a carne de Cristo foi primeiro assumida pelo Verbo que unida à alma.

O quarto discute-se assim. — Parece que a carne de Cristo foi primeiro assumida pelo Verbo que unida à alma.

1. — Pois, diz Agostinho: Crê firmissimamente e de nenhum modo duvides, que a carne de Cristo não foi concebida, sem a divindade, no ventre da Virgem, primeiro que fosse assumida pelo Verbo. Ora, parece que a carne de Cristo foi primeiro concebida que unida à alma racional; porque a disposição material é anterior na via da geração que a forma completiva. Logo, primeiro foi a carne de Cristo assumida que unida à alma.

2. Demais. — Assim como a alma faz parte da natureza humana, assim também o corpo. Ora, a alma humana não teve outro princípio do seu ser em Cristo, que nos outros homens, como resulta da autoridade de Leão Papa supra aduzida. Logo, parece que também, o corpo de Cristo não teve outro princípio de existir diferente do que tem em nós. Ora, em nós primeiro é concebido o corpo, que se lhe una a alma racional. Logo, assim também o foi em Cristo. Então, a carne foi primeiro assumida pelo Verbo, que unida à alma.

3. Demais. — Diz um autor que a causa primeira mais influi no causado e mais lhe está unida, que a causa segunda. Ora, a alma de Cristo está para o Verbo como a causa segunda para a primeira. Portanto, primeiro o Verbo uniu-se à carne, que a alma.

Mas, em contrário, diz Damasceno: A carne do Verbo de Deus é simultaneamente carne, carne animada, racional e intelectual. Logo, a união do Verbo com a carne não lhe precedeu a união com a alma.

SOLUÇÃO. — A carne humana pode ser assumida pelo Verbo, conforme a relação que tem com a alma racional como com a sua forma própria. Ora, essa relação não existe antes de se lhe unir a alma racional. Pois, quando uma certa matéria se torna própria de uma determinada forma, simultaneamente recebe essa forma; por onde não se termina a alteração no mesmo instante em que é introduzida a forma substancial. Por isso a carne não devia ser assumida antes de ser carne humana; o que se deu quando se lhe uniu a alma racional. Assim como, pois, a alma não foi primeiro assumida, que a carne, por ser contra a natureza da alma o existir antes de unida ao corpo; assim também a carne não devia primeiro ser assumida, que a alma, por não ser carne humana antes de ter uma alma racional.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.  A carne humana existe por meio da alma. Logo, ano antes da união com a alma, não é carne humana; mas, pode ser uma disposição para a carne humana. Mas, na concepção de Cristo, o Espírito Santo que é um agente de virtude infinita, simultaneamente dispôs a matéria e a conduziu ao seu termo perfeito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A forma especifica atualizando; mas a matéria é essencialmente potencial em relação à espécie. Por onde, seria contra a essência da forma o preexistir à natureza da espécie, cuja perfeição se consuma pela sua união com a matéria; mas não é contra a natureza da matéria o preexistir à natureza da espécie. Por onde, a dissemelhança entre a nossa origem e a de Cristo, consistente em ser a nossa carne concebida antes de ser animada, e em o não ser a carne de Cristo, se funda no que precede o complemento da natureza; assim como também a diferença de sermos nós concebidos do sêmen do homem, mas não Cristo. Mas, a diferença que houvesse quanto à origem da alma redundaria em diversidade de natureza.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Entende-se que o Verbo de Deus primeiro uniu-se à carne que a alma, pelo modo comum das outras criaturas  pela essência, pela potência e pela presença; digo porém  primeiro  não temporalmente, mas segundo a natureza. Pois, primeiro inteligimos a carne como um certo ser. que tem do Verbo, do que como animada, o que lhe advém da alma. Mas, pela união pessoal é mister que primeiro segundo o intelecto, a carne se una à alma que ao Verbo; porque a união com a alma a torna capaz de união com o Verbo em pessoa: sobretudo porque a pessoa só existe na natureza racional.

Art. 3 — Se a alma de Cristo foi assumida pelo Verbo, antes da carne.

O terceiro discute-se assim. Parece que a alma de Cristo foi assumida pelo Verbo, antes da carne.

1 Pois, o Filho de Deus assumiu a carne mediante a alma, como se disse. Ora, chegamos ao meio antes de chegarmos ao fim. Logo, o Filho de Deus primeiro assumiu a alma que o corpo.

2. Demais. — A alma de Cristo é mais digo na que os anjos, conforme a Escritura: Adorei ao Senhor, todos os seus anjos. Ora, os anjos foram criados desde o princípio, como se estabeleceu na Primeira Parte. Logo, também a alma de Cristo, que não foi primeiro criada que assumida; pois, como diz Damasceno, nunca a alma nem o corpo de Cristo tiveram nenhuma hipóstase própria além da hipóstase do Verbo. Logo, parece que a alma foi primeiro assumida que a carne, a qual foi concebida no ventre da Virgem.

Demais. — O Evangelho diz: E nós o vimos cheio de graça e de verdade. E depois acrescenta: Todos nós participamos da sua plenitude, isto é, todos os fiéis em qualquer tempo, como Crisóstomo expõe. Ora, isso não seria, se Cristo não tivesse tido a plenitude da graça e da verdade, antes de todos os santos que existiram desde o princípio do mundo; porque a causa não pode ser posterior ao causado. Tendo, pois, a plenitude da graça e da verdade existido na alma de Cristo, pela união com o Verbo, segundo aquilo da Escritura Nós vimos a sua glória como de Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade  resulta que desde o princípio do mundo a alma de Cristo foi assumida pelo Verbo de Deus.

Mas, em contrário, Damasceno diz: Antes da encarnação no ventre da Virgem, o intelecto não se uniu ao Deus Verbo, para então ser chamado Cristo, como pensam muitos, erradamente.

SOLUÇÃO. — Origines ensinava que todas as almas foram criadas desde o princípio; e entre elas também punha a alma de Cristo, como criada. Mas isto é inadmissível, entendendo-se que foi então criada mas não unida imediatamente ao Verbo; pois daí resultaria que essa alma teve, durante um certo tempo, uma subsistência própria, sem o Verbo. E assim, quando foi assumida pelo Verbo, ou a união não teria sido feita segundo a subsistência, ou teria desaparecido a subsistência preexistente da alma. Também semelhantemente, é inadmissível dizer que essa alma foi, a princípio, unida ao Verbo e, depois, incarnou-se no ventre da Virgem. Porque então a sua alma não teria sido da mesma natureza que a nossa, que é simultaneamente criada e infundida no corpo. Donde o dizer o Papa Leão: A carne de Cristo não era de outra natureza que a nossa; nem lhe foi  inspirada, a princípio, uma alma diferente da dos outros homens.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Como se disse. a alma de Cristo é considerada um meio, na união da carne com o Verbo, na ordem da natureza. Mas isso não implica em que tivesse sido meio na ordem do tempo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Papa Leão, a alma de Cristo é excelente não pela diversidade genérica, mas pela sublimidade da virtude. Pois, é do mesmo gênero que as nossas almas, mas sobrepuja também os anjos, pela plenitude da graça e da verdade. Pois, o modo da Encarnação corresponde à alma segundo a propriedade do seu gênero; donde vem que, sendo a forma do corpo, é criada simultaneamente com a sua infusão no corpo e a sua união com ele. O que não con­vém aos anjos, que são substâncias completamente separadas de corpos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Da plenitude de Cristo todos os homens participam, pela fé que nele têm. Pois, diz o Apóstolo: A Justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus Cristo em todos e sobre todos os que nele crêem. Pois, assim como nós cremos nele, como encarnado, assim os antigos nele creram como nascituro: Tendo um mesmo espírito de fé, cremos. Ora. a fé em Cristo tem a virtude de justificar por decreto da graça de Deus, segundo o Apóstolo: Ao que não crê e crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é imputada à justiça, segundo o decreto, da graça de Deus. Por onde, sendo esse decreto eterno, nada impede certos se justificarem pela fé de Jesus Cristo, antes ainda de ter a sua alma cheia de graça e de verdade.

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