XVII
O idealismo alemão Kant, Fichte, Hegel
Enquanto a Política de Aristóteles ou a de Comte são fáceis de se expor, sem excessos de tecnicidade filosófica, o mesmo não se dá com os filósofos alemães do fim do séc. XVIII até meados do XIX: o vocabulário e o caráter sistemático, até mesmo escolar, do tipo de exposição, impede dissociar os dois elementos. Eis porque seremos forçados a fazer um esquema, ainda que isso não seja um curso de filosofia propriamente dito.
KANT (1724-1804)
Para sua filosofia propriamente dita, poderemos ver o livro de Thonnard (Hist. Philo. Desclée et Cie). O relativismo que nos nega todo conhecimento do absoluto é a essência de sua doutrina.
O relativismo, que na “Crítica da Razão Pura” admite ainda uma “coisa em si” distinta do pensamento, vem a ser, no “opus postumum”, idealismo puro em que o espírito humano cria a totalidade do universo.
A obra de Kant orienta-se sobretudo à moral, mas também aos problemas do direito e da política. Por exemplo vejamos a “doutrina do Direito”.
Ela tange à legislação externa de nossos atos, diferente da doutrina da virtude, que versa dos aspectos internos. Kant opera rigorosa dissociação entre direito e moral. Tudo que pertence à interioridade e à subjetividade é da moral; é do direito tudo que concerne ao foro externo, e por conseguinte, à repressão1. Para ele a coação é a essência do Direito, e não tão-somente uma propriedade ou simples garantia extrínseca. Sem dúvida opõe-se a Rousseau, gabando sem parar a idéia de liberdade. Infelizmente, como sabemos, ambas asserções podem coexistir em certas doutrinas (cf. Rousseau a propósito do recalcitrante do “pacto social”: “Forçá-lo-emos a ser livre’”). Essa dissociação está repleta de perigos, justificando na seqüência o pangermanismo, a identificação do direito com a força, a concepção amoralista do Direito em Kelsen etc., o que já àquela época notava o cardeal Mercier numa carta ao general Von Laucken, quando da destruição da Universidade de Louvain durante a guerra de 1914-1918.
A filosofia política de Kant era uma espécie de síntese (ou mistura) de Montesquieu e Rousseau.
Existe um contrato social, e aqui a essência das idéias kantianas confunde-se com as perspectivas de Rousseau. Mais explícito que o filósofo francês, Kant define muito bem que não enxerga o pacto como uma realidade histórica, mas como idéia pela qual podemos pensar o Estado. Diferente de Rousseau, Kant crê que a passagem ao estado social é um bem.
Existe a separação de poderes, mas não no que tange ao governo propriamente dito em sua “forma imperii” (monarquia, aristocracia ou democracia), mas à “forma regiminis”, que concerne, se podemos assim dizer, ao caráter da soberania (“republicana”, com ser humana, nuançada, ou “despótica”. Nesse ponto de vista, a monarquia pode ser republicana “e a democracia, despótica”. Notar a diferença em face do vocabulário de Montesquieu). Para Kant o melhor governo é aquele em que um só homem comanda o executivo e o povo faz a lei através dos representantes. Kant não gosta da democracia, que arrisca causar atrito entre os poderes (de fato, v. o jacobinismo), encarnando à perfeição a burguesia liberal, meio conservadora, meio progressista2.
Isso revela-se particularmente na concepção do direito de insurreição, o qual rejeita de todo como bárbaro retorno ao estado de natureza: a obediência à autoridade legítima (de fato, à estabelecida...) é um imperativo categórico. No máximo podemos opor uma resistência negativa (mera non cooperatio) às leis injustas.
FICHTE (1762-1814)
Começou como discípulo de Kant. Professor em Iena e em Berlim. Lembrar-se de “Filosofia do Direito”; “Discurso à Nação Alemã”. Filosofia totalmente idealista, onipotência da consciência. Deus é o pensamento humano divinizado e considerado como inteiramente livre e criador. O Direito é a condição de realização do indivíduo dentro da prática. A representação da liberdade de outrem limita nossa própria liberdade, mas como desconhecemos esta, uma força repressiva se faz necessária – o Estado.
O Estado possui extensos poderes sobre a educação, a propriedade, as questões familiares (espírito jacobino, mas por outro lado Fichte mostra-se bem individualista). O intelectual tem um papel fundamental: por ser o verdadeiro criador dos valores, conduz os povos em direção ao futuro (v. “Discurso sobre a Nação Alemã”, em que a Alemanha é considerada a raça pura, a humanidade-tipo, no sentido etimológico do termo).
N.B. – Não vamos falar sobre Schelling, cuja obra pertence, mais que a de Fichte, à filosofia pura, não tendo grande ressonância ao plano político, salvo por sua ligação com o ambiente romântico alemão iludido pela miragem do Santo Império, que era no fim das contas contra-revolucionário e tradicionalista.
HEGEL (1770-1831)
Para a sua filosofia propriamente dita e a discussão dos temas essenciais, seria de bom tom remeter à nosso artigo “Pour ou contre Hegel?”, publicado na Revue de Sciences politiques de l’Université de Toulouse, nouvelle série no1, março de 19604.
- Hegel transcreve (na medida do possível), na “Fenomenologia do Espírito”, os acontecimentos históricos que conhecera muito claramente: a Revolução Francesa, as guerras imperiais etc.. Mas para encontrar as idéias que nos interessam, convém procurar em outras obras, sobretudo as que versam da filosofia do Direito.
Uma nação pressupõe, ao mesmo tempo, tanto elementos ideológicos quanto fatores materiais (estes, para o idealismo hegeliano, são também aspectos da Idéia). O poder pode ser despótico ou democrático, seja de forma integral, seja sob a forma de república aristocrática5. Para ele a monarquia é a síntese das duas [formas de poder] precedentes. (Ademais não acredita na separação dos poderes). Em relação ao sufrágio universal Hegel declara sem rodeios que “o povo que se encontrasse em tal condição seria um povo delirante, um povo em que dominariam a imoralidade, a injustiça, a força cega e selvagem...”.
A idéia realiza-se na “História”, revelando-se mais claramente nos países temperados. No Oriente dá origem ao despotismo (China, as Índias, Pérsia, Egito); na Grécia ela é democrática. Em Roma fora republicana e aristocrática. Mas de fato é na Alemanha, sobretudo na Prússia, que atinge o apogeu. Com a filosofia de Hegel, ela logra a perfeição. A guerra é processo indispensável ao progresso da História, e ainda que Hegel tenha um grande sentido de realidade, engendrou Marx e justificou o militarismo conservador e pangermanista de “direito hegeliano”...
Não nos esqueçamos que para Hegel os grandes homens são apenas espécies de títeres movidos pelas correntes profundas da História...