XII
Montesquieu
Importantíssimo autor, mais honesto que Voltaire, mais ponderado que Rousseau. Para biografia e detalhes da obra, ver manuais de história da filosofia ou da literatura.
A partir de “Lettres persanes”, conseguimos vislumbrar a orientação do autor: espírito extremamente anti-católico, tom acerbo em face da monarquia tradicional, simpatia pela Inglaterra etc.. Em “Causes de la grandeur et la décadence des Romains” Montesquieu empreende trabalho comparável aos Discursos de Maquiavel sobre Tito Lívio, com mais história e menos política. Nele encontramos a persistente idéia de que o estado monárquico tende naturalmente ao despotismo, enquanto a aristocracia poder-se-ia tornar popular. Eis aí de novo a anglomania. Simpático aos partidos, sinal e penhor da liberdade...
“L’Esprit des Lois” não se apega à clássica concepção do direito natural (ainda que lhe conserve algo) nem ao empirismo jurídico. Montesquieu admite intercorrências da justiça divina, mas insiste no encadeamento de causas e efeitos (solidariedade entre formas de governo, educação, penalidade, crenças, política exterior etc.). Papel do clima, da densidade populacional, do regime de vida. (Recordemo-nos aqui que a origem da “teoria dos climas”, que atribuem a Montesquieu, encontra-se na “Política” de Aristóteles e entre os doutores medievais...). Apesar de insistir no determinismo natural, Montesquieu não é fatalista, crê na liberdade humana. A finalidade da obra é sobretudo prática: guiar a ação política. A exposição é indutiva, histórica (Antiguidade, História Moderna, Oriente). Montesquieu não crê no estado de natureza, mas como Aristóteles na sociabilidade natural do homem. A estrutura é em grande parte dedutiva. Idéia fixa (como em Voltaire) sobre o nórdico, liberal, e sobre o meridional, escravo romanizado (as fórmulas usadas por ambos autores nesse tema chegam a ser mesmo violentas e injuriosas). Reencontramos tais idéias em Madame de Staël e, no século XIX, no grande clã revolucionário (Michelet, Hugo etc.) e entre alguns precursores do racismo (Gobineau), mas sob outra forma.
Teoria dos princípios e da natureza dos governos.
Convém distinguir a República, que pode ser democrática ou aristocrática, e a Monarquia (o despotismo não é tipo de regime distinto, mas deformação, que atinge acima de tudo a Monarquia). Cada regime tem um princípio inspirador (virtude, honra). Montesquieu não crê na democracia, regime antigo e ultrapassado. Detesta a Monarquia, devido à fobia que prova em face de qualquer domínio pessoal. De fato suas preferências se inclinam para a concepção de uma aristocracia liberal, dentro do espírito de partidos parlamentares, hostis à ação real (v. discussão mais adiante).
Cada regime corrompe-se quando o princípio se deteriora. No despotismo o que manda é o medo. Montesquieu não acredita em pactos e convenções sociais (aqui, opõe-se a Locke).
A teoria da separação dos poderes é conhecidíssima dos juristas, por eles tratada em detalhe. Em parte corresponde àquela de Locke (v. lição supra). Não se pode de modo algum confundi-la com a teoria do “regime misto” em Aristóteles e São Tomás (v. lição supra), pois uma independe da outra. Pode haver um regime que seja misto de democracia, aristocracia e monarquia, sem separação de poderes, ou um regime politicamente puro, com separação de poderes.
Enfim Montesquieu combate a escravidão e particularmente o tráfico negreiro de modo enérgico. Luta contra a crueldade no judiciário (tortura). Beccaria inspira-se nele em “Dos Delitos e das Penas”, que se opõe não apenas à tortura, mas à pena de morte.
Discussão:
Devido à influência profunda do liberalismo de Montesquieu sobre a primeira fase da Revolução (89) e sobre o próprio pensamento burguês do século XIX, convém tecer alguns julgamentos de valor e apreciações críticas.
1o O método é ambíguo. Autores não contemplados por nós, como Léon Brunschsvicg, destacam que o emprego da palavra “lei” por Montesquieu é equívoco, designando tanto as leis da natureza, ou o que o valha, quanto os elementos normativos e éticos. O vai-e-vem de uma a outra significação não colabora para a exegese do pensamento de Montesquieu...
2o A classificação dos regimes é discutível. Que há realmente em comum entre a aristocracia e a democracia, afora o fato de não ser o governo de um só (critério puramente negativo)? Também não admitiríamos sem contestação que o governo aristocrático, “gótico” ou feudal, é “a melhor espécie de governo que os homens puderam imaginar”. Cá estamos nós em meio aos delírios de Boulainvilliers (v. lição XI).
O ódio que tem da Monarquia tradicional (“absoluta” em sentido etimológico, mas limitada pelo fenômeno dos “corpos naturais” – v. lição sobre Bossuet, e mais a frente, as sobre Bonald e Maurras) é a de um “intrigante” de Parlamentos, daquela raça política que põe por terra – em nome do ódio à Monarquia – todas as tentativas de reforma, particularmente a de Maupéou.
3o A obra de Montesquieu deixa muito a desejar no aspecto social. De fato, para falar como um marxista, ele sacrifica tudo à “liberdade formal”, à abstração que representa o ideal (e a vontade de poder!) da nobreza parlamentar e da burguesia ascendente. Da Inglaterra só divisa o princípio liberal, mas como Voltaire passa em branco pelas iniqüidades sociais de então, muitos mais chocantes que as que havia em França. Se há pobres, diz Montesquieu, é porque não trabalham (o batido refrão!... ainda por cima, elogia o sinistro Henrique VII por ter arruinado numerosas casas assistenciais sustentadas por ordens religiosas antes da Reforma, de “onde o populacho tirava a subsistência”)1. Dessa forma se favorecia o industrialismo e o desenvolvimento econômico... Contudo basta uma rápida olhada para o que dizem os historiadores estudiosos da Inglaterra para se constatar que a população urbana, sobretudo (muito mais importante que em França, v. lição sobre os utópicos, em Tomás Morus), estava em decadência generalizada, submetendo-se a um terrível modo de vida: as crianças começavam a trabalhar com quatro anos (quatro anos!) nas manufaturas de algodão, e a partir de oito anos, nas minas. Entre elas a mortalidade era enorme. A punição, mesmo para com as crianças, era de uma crueldade inaudita (um historiador contemporâneo fala da “severidade inaudita do direito penal inglês defronte as pobres crianças”...). Por outro lado, os manufatureiros liberais, apologistas do capitalismo selvagem ao século XIX, poderão crer de boa-fé que são defensores dos Direitos do Homem, visto que se opõem à Igreja e à Monarquia...
4o A separação dos poderes:
a) O mais espantoso é que Montesquieu não entendeu nada do funcionamento concreto das instituições inglesas que tinha sob os olhos. Os ingleses assim o atestam; desde Macaulay até aos historiadores de Cambridge e de Oxford – como G. M. Trevelyan, em sua “História da Inglaterra” – sublinham o fato, com mistura de humor e impaciência.
b) Demais a teoria clássica da separação dos poderes não é tão óbvia: não é uma evidência ofuscante, contém graves problemas. Isso se deve ao fato de ela encontrar desde cedo ferrenha oposição, seja por parte do monarquismo clássico, seja por parte dos autores mais revolucionários:
Em 1766 Luís XV chega de improviso ao Parlamento e declara: “a autoridade soberana reside na minha só pessoa; é de mim apenas que meus súditos tiram a justiça e a autoridade; a plenitude da autoridade, que só em meu nome exercem, está em mim, e seu uso nunca pode virar-se contra mim; é a mim somente que pertence o poder legislativo, sem dependência ou partilha...” ...Ainda que Mercier de Larivière distinga o judiciário dos dois outros poderes, em contrapartida funde o legislativo ao executivo. (Outros vão questionar, maliciosamente, qual será a solução de um conflito entre poderes distintos, afora o recurso à força, à insurreição ou ao golpe de estado...). Rousseau, no “Contrat social”, compara Montesquieu ao prestidigitador que finge cortar uma criança em pedaços, lança-os ao alto e, no chão, retoma a criança perfeitamente íntegra. Os jacobinos na mesma toada hostilizarão a separação [de cunho] liberal, que lhes parece sacrificar o interesse nacional e a capacidade de o Estado transformar a sociedade.
De nossa parte, nós que reclamamos de certos filósofos e juristas católicos, desejaríamos que se não confundissem distinção e separação: sem dúvida há real distinção de poderes (logicamente falando), dois elementos distintos são tão-somente dois elementos em que um não é o outro, por ex., a cor e a extensão da folha de papel não são uma só e mesma propriedade desta folha, mas a separação radical arrisca tornar o Estado atáxico, neutralizar a coordenação dos negócios públicos, fragmentar o que deveria convergir. Mesmo refusando em definitivo o Estado totalitário, seja “de direita” ou “de esquerda”, (dentro dos limites em que essas palavras têm sentido...), também não aceitamos o estado liberal, cuja impotência histórica contra os abusos do capitalismo, contra a arremetida marxista e contra a barbárie nazista desperdiçou inúmeras ocasiões que teve de ser manifestar2.