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XIII. Rousseau

XIII

Rousseau

Vamos confrontar aqui uma doutrina cuja influência fora enorme e que ainda hoje é relevante. Juntamente com o marxismo, é a que domina o cenário político atual.

- Para vida e obra, v. os manuais, assim como foi para Montesquieu.

A fim de que enxerguemos um pouco mais sua relevante obra e, mais das vezes, enigmática, distingamos primeiramente a doutrina dos “Discours” e a do “Contrat”.

I. “LES DISCOURS”

1o “Discours sur les sciences et les arts”. Em resposta à questão feita pela academia de Dijon, Rousseau repete o mote cínico (nesse ponto, oposição total a Voltaire): ele é contrário à difusão das “Luzes”. O vício é o preço que o homem paga ao desejar “sair da ignorância em que a sabedoria eterna nos pusera”.

2o “Discours sur l’inégalité”. Nas “Confessions”, Rousseau admite que se trata de uma exageração polêmica. Contudo recomenda-a sinceramente. Finalidade: distinguir “o original do artificial” (comparar com “Confessions”: “o homem humanizado em face do homem natural”). O homem primitivo era naturalmente bom (ou antes inocente, para aquém de nossa atual distinção entre bem e mal). Bebendo das fontes, alimentando-se das plantas, saciando as necessidades sem falseá-las, preservava-se das enfermidades, das doenças e dos vícios. Era feliz...

Perguntamo-nos se Rousseau realmente acreditou na existência do estado de natureza. Ele faz uma pergunta ruim e, de improviso, dá uma resposta pior ainda. Segundo alguns para Rousseau era apenas lucubração, visto que não lhe dava prova histórica concreta. Outros crêem refutá-lo de todo mostrando que, quão longe remontemos, o homem sempre vivera em sociedade. De fato Rousseau:

  1. a)  acreditava realmente no estado de natureza como origem do homem, mas;

  2. b)  não pretende estabelecê-lo ao plano histórico.

    Para ele, trata-se de uma teoria ou de um princípio, análoga àquelas da Física de Newton, que racionalmente nos fazemos para tornar inteligível o dado empírico. Em suma, de acordo com a hipótese não podemos abarcar as contradições da sociedade humana, o que basta para justificar suas opiniões.

    A perda da inocência original (espécie de caricatura ou sucedâneo da concepção cristã da Queda) dá nascimento ao estado de selvageria, que não é mais o estado de natureza e também não é ainda o estado social propriamente dito (bandos de caçadores, medo, vingança etc.). Descoberta do fogo, nascimento da propriedade e da desigualdade (o pior dos males, segundo Rousseau). No fundo o “Discours” é panfleto individualista, até mesmo libertário, anarquista.

Rousseau mitiga um pouco suas opiniões na “Reponse au Roi Stanislas” e no “Préface de Narcise”. Devemos respeitar a cultura adquirida e a civilização, pois se as destruímos tornamo-nos ignaros, sem daí recuperar a inocência original, o que nos faria perder dos dois lados.

II. “LE CONTRAT SOCIAL”

O problema levantado é o seguinte: porque o estado social, sendo em essência antinatural, torna-se inevitável, como racionalizar uma sociedade? (comparar com o “Émile”: substituir a má educação pela boa).

O texto do “Contrat” originou-se de laboriosos remanejamentos, apresentando-se no gênero racionalista e dedutivo, por vezes quase espinosista. Nem por isso é perfeitamente claro (cf. Rousseau: “Os que se gabam de compreender o “Contrat” por inteiro são mais hábeis que eu”1). A obra é dominada pelo tema ou idéia da vontade geral, idéia que em parte vem de opiniões emprestadas de Diderot (sem falar das fontes mais antigas, de Althusius a Jurieu, v. lições precedentes, sobre juristas e sobre Bossuet). [A vontade geral] está sempre às direitas e nunca se engana, por mais que tentem (cômoda escapatória para disfarçar os fatos incômodos). Ela opõe-se às “vontades particulares”; com isso, Rousseau não quer significar os desejos dos indivíduos, mas a intervenção dos “corpos naturais” ou “intermediários” do Antigo Regime (províncias, corporações, Igrejas etc.). Os cidadãos dão o poder à coletividade. Esta em bloco escolhe o governo. O livro I critica Hobbes e Grotius, sobretudo a respeito da escravidão, e nisso podemos dizer que acerta em cheio. Mas é nos livros II e seguintes que sua filosofia política verdadeiramente mostra tudo o que tem de mistificadora...

O soberano e os súditos fazem um só corpo de cidadãos, considerado sob dois aspectos: enquanto legislador (quando em assembléia) e enquanto indivíduos (quando isolados). Não ao parlamentarismo, regime corrompido e corruptor (poderíamos emprestar de Rousseau um florilégio de textos antiparlamentaristas...), mas sim à consulta direta à população (referendo), daí a hostilidade aos estados muito grandes, onde Rousseau cria tal coisa irrealizável.

Rousseau detesta a monarquia; ao lê-lo parece-nos que ele fez uma brincadeira, já que utiliza contra ela argumentos que são como o negativo daqueles que os autores monarquistas empregam para justificá-la. Contrária ao regime republicano, a monarquia é regime instável, falto de continuidade (?!) Que a “multidão”, tal como dizem os autores clássicos, seja para Rousseau a fonte da soberania, tudo bem; mas também ela é o critério para a distinção entre o bem e o mal? Alguns autores – simpáticos a Rousseau – dizem que não, que ele não põe o consentimento popular acima dos valores imutáveis e absolutos. Outros como Maritain em “Trois Réformateurs” (Pion, éditeur. Poucas são as palavras para expressar quão bem recomendamos a obra) pensam o contrário.

Como dissemos anteriormente (lição XII), Rousseau rejeita a separação de poderes. A soberania é unitária.

- No que tange à religião, há-de se despir o indivíduo de tudo quanto poderia armá-lo contra o Estado (comparar com Platão, lição II). Rousseau é deveras hostil defronte o catolicismo, não apenas por razões filosóficas, mas pela seguinte razão política: o católico não é nunca cidadão “para valer”. Também não é dos protestantes, apesar das simpatias aos desdobramentos revolucionários da Reforma (v. lição sobre esta). Tolera um vago cristianismo “moralista”, retórico, humanitário, sem dogmas definidos – de si é teísta: há-de se crer em Deus e em sua ação no mundo, na vida futura, na santidade da lei civil. Rousseau agarra-se de tal modo a esse Credo mínimo (tanto aqui como em muitos outros pontos fundamentais, Robespierre será seu fidelíssimo interprete) que se o ateu insistir em sê-lo, será aprisionado, quiçá eliminado por completo (Contrat, I.IV, cap. VIII).

Discussão:

O pensamento de Rousseau – ao menos nos parece – é sofístico e extremamente nocivo.

1o Se ressaltarmos o livre consentimento do indivíduo, para sermos coerentes, diríamos que cada qual tem o poder de a qualquer hora romper com pacto social. Chegamos pois à interpretação anarquista, que corrobora com a doutrina dos “Discours”, com todos os inconvenientes que o individualismo liberal e o puro anarquismo contêm (v. lição sobre Maurras, e artigo “Rousseau” que esse escrevera em “Dictionaire politique et critique”). É uma concepção essencialmente negativa e destrutiva dos valores sociais.

2o Se ressaltarmos a vontade geral considerada em bloco, espécie de abstração coisificada, chegamos a conclusões espantosas e a nosso ver ainda inaceitáveis:

A. Em princípio, a vontade geral é a da unanimidade do corpo social. Mas ela é de fato irrealizável, e Rousseau sabe muito bem disso. Daí então será a maioria numérica a suposta representante da vontade geral. Temos aí duas dificuldades:

  1. a)  Quem nos garante (além da “fé” democrática, que remove montanhas...) que a maioria realmente encarna mais o bom senso e o reto julgamento que a minoria – sobretudo quando não se é adepto do otimismo radical a propósito da lucidez e da bondade humanas;

  2. b)  Que deverá fazer a minoria? Rousseau não vacila: em foro público, deverá inclinar-se diante do veredicto, mas em foro íntimo, deverá amoldar-se a tal deliberação, aceitá-la ficta e absolutamente como boa. Deverá fazer autocrítica e, caso haja nova votação, votar como indicado pela maioria. E se há resistência? é Rousseau que nos diz que o recalcitrante será “forçado a ser livre”...

    RESULTADO: teremos o totalitarismo político.

    Rousseau foi a causa lógica de Saint-Just e Robespierre, quando declara: “o governo da República é o despotismo da liberdade (sic) contra o da tirania”. Podemos afirmar que Rousseau é uma das fontes inequívocas dos modernos poderes totalitários, de Napoleão aos ditadores atuais. Por intermédio de Fichte, a idéia de Rousseau sobre o “povo” e... daquele que o encarna contribuiu para o nascimento e desenvolvimento do pangermanismo (Constatação bem a propósito, mas que sem dúvida aborrecerá os incondicionais admiradores dos “grandes precursores” e dos “imortais princípios”...).

B. Não estamos ao final das dores. Os teóricos e os homens políticos da democracia temem sobremaneira que nunca se alcance realmente a maioria nos sufrágios. De fato têm razão (consideremos a proporção – aritmeticamente ridícula – dos franceses que eram partidários da Convenção e que votaram por ela!...). Assim no plano jurídico os prosélitos de Rousseau chegaram a tal conclusão, ao despojarem-se de todo o artifício.

Um dentre os republicanos históricos do último século, Arthur Ranc, voltado à direita da assembléia, exclamava com muita ingenuidade: “Se sois ínfima minoria, nós vos desprezaremos2; se sois forte minoria, nós vos anularemos; se sois maioria, tomaremos do fuzil e desceremos às ruas”3. Mais catedrático, o eminente jurista da célebre “Ligue des Droits de l’Homme” escreve: “A vontade da maioria não é categoria absoluta... em numerosos casos, as ‘deliberações do povo’ não têm valor para a consciência jurídica da democracia. O fato majoritário não é componente decisivo à ética democrática. Ao contrário a falta de maioria aritmética não elimina o caráter democrático da França da Convenção... Representa a Convenção Nacional a maioria dos eleitores franceses de 1792? Claro que não... os cidadãos ‘pensantes e ativos’ eram só ínfima minoria. Se um país vota livremente (a palavra é sublinhada pelo autor do artigo) contra a liberdade, ao plano moral e institucional é ilegal.” (Mirkine-Guetzévitch, “Revue philosophique”, julho-setembro de 1952, pp. 448-449). Qualquer comentário parecer-nos-ia supérfluo...

Conclusão: é por se inspirar politicamente em Rousseau que a França oscila, desde a Revolução, entre a anarquia e o despotismo cesarista.

No plano religioso a ideologia de Rousseau e seu herdeiro, o jacobinismo, são tão opostos ao cristianismo quanto o materialismo marxista4. Contra a cegueira de alguns cristãos que se não contentam em defender só a democracia (o que ao plano institucional é de seu direito), mas que nos repisam – apesar de todas as encíclicas – “a natureza evangélica da Revolução Francesa”, haver-se-ia de confeccionar quadro sinótico, detalhando o significado cristão das palavras “liberdade, igualdade, fraternidade” e o sentido que possuíam para o pensamento revolucionário dos sécs. XVIII e XIX: logo perceberiam o contraste. Isso também é enxergado com perfeita lucidez por incréus tais como Albert Camus (Leremos sobretudo o texto intitulado “Les Régicides”, em “L’homme révolté”, pp. 143-168) e André Malraux, que mais de uma vez sustentou que se a Revolução se não pode conceber sem o cristianismo, é porque ela é exatamente sua contrapartida, um como negativo metafísico.

 

  1. 1. De tempos em tempos, Rousseau tem desses rompantes de encantadora ingenuidade. Quando um fidalgote provinciano apresentou-lhe o filho “educado conforme os princípios de ‘l’Émile’”, Jean-Jacques Rousseau ralhou: “Pouco me importa isso, Senhor, e pouco me importa vosso filho!”...
  2. 2. Notaremos sempre o desprezo da pessoa e das idéias do adversário, desde que não represente a massa em sentido mecânico...
  3. 3. De fato, nenhuma de nossas repúblicas originaram-se de um pacto pacífico, mas sempre da revolta e da insurreição armada...
  4. 4. Seria interessante (fizemo-lo em outra ocasião) comparar em detalhe o jacobinismo e o marxismo. A diferença entre ambos é que o jacobinismo vindo de Rousseau é racionalismo abstrato, estático, formal, diferente da dialética evolutiva e materialista do marxismo. Afora a metódica utilização da violência para eliminar qualquer oposição, as semelhanças são profundas, trate-se da oposição empedernida, irredutível, ao catolicismo em ambos os casos (rejeição ao sagrado, à transcendência etc...) ou ainda do coletivismo. Alfim Rousseau estima ser o Estado juiz do que podemos possuir; a Revolução Francesa conhecera forte impulso coletivista (v. Gaxotte “La Révolution française.” Cap. XII).
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