XVI Augusto Comte
Nascido a Montpellier (1798), secretário de Saint-Simon após cursar o politécnico. Ruptura (1824). Fracassa na carreira universitária. Vive às expensas de amigos e admiradores. Dissabores amorosos (Clotilde de Vaux). Morre em 18571.
Obras importantes: opúsculos variados (1819-1820). Cours de philosophie positive. Discours sur l’esprit positif. Discours sur l’ensemble du positivisme. Système de politique positive. Catéchisme positiviste. Syntèse subjective.
Contrariamente ao que se nos afigura amiúde, Comte toma para si sobretudo um papel de reformador social e político. Encontra-se em face da antítese entre a Revolução e a Contra-Revolução, ou como diz, frente à idéia anárquica de progresso (Condorcet) e à idéia retrógrada de ordem (Bonald-Maistre). Deseja fazer-lhes a síntese, ou antes superar o antagonismo. (De fato, como veremos, está mais próximo do segundo que do primeiro). Admira os “períodos orgânicos”, i. é, os fortemente estruturados e dominados por uma sólida síntese, destaque dado ao apogeu da Idade Média (séc. XIII), desejando fazer algo parecido, mas desapegado da supremacia da Teologia, a qual seria substituída pela Sociologia.
Remeteremos às exposições dos manuais de filosofia e história em vistas à filosofia teórica de Comte (Bréhier etc). Lembremo-nos por alto da famosa “lei dos três estados” que é – bem pela rama – tudo de que se lembram da classificação das ciências2.
Comte é daqueles que consideram a sociedade como dado a constatar, antes que ideal a se construir de todo (realismo político, v. lição I).
Não é organicista, i. é, não abusa das comparações com corpos vivos, células etc., sabendo que os indivíduos, quão estreitos sejam seus laços ao plano social, são em verdade seres biologicamente distintos. Constata que o indivíduo recebe da sociedade todo o patrimônio civilizacional, e que, cortado este, cai mui facilmente no subjetivismo egocêntrico. Como para Aristóteles, existe uma natureza social no homem – não obstante a pobre metafísica comtiana. A humanidade (a despeito do flagrante absurdo) não é a soma aritmética dos homens passados e futuros, mas o conjunto daqueles que, quão modesta fosse sua posição social, hajam contribuído com algo, sendo os demais para ele senão uma espécie de húmus, ou terra inculta.
- Como dizíamos, a sociologia será a ciência suprema, a chave-mestra do edifício intelectual. Comte realmente a fundou? A questão nos parece mal formulada e, nesse mister, ele tece elogios a Montesquieu e a De Bonald. Quanto a dizer que ele fora o primeiro a fazer da sociologia “verdadeira ciência”, é de se supor que tal disciplina seja de fato ciência natural, o que muitos autores não admitem3. De resto, sem embargo das pretensões cientificistas, a sociologia de Comte é mormente filosofia política e filosofia da história, em que a dedução tem peso considerável.
- Comte não fala muito da moral e de suas relações com a política, primeiro porque propusera desde o início dar à moral um lugar distinto em sua síntese, e depois porque seu natural altruísmo fá-lo considerar como pressuposto as noções éticas fundamentais que os demais filósofos trataram esforçosamente por justificar. De todo modo, Comte é anti-maquivélico, e tem uma concepção honesta e moral das atividades político-sociais.
- Cremos que, para o conteúdo de suas idéias, faz-se preciso distinguir dois aspectos: um, essencial, que revela as intenções fundamentais e a inclinação espiritual inata a Comte; o outro, secundário, sente à utopia e é cheio de esquisitices.
I. A INSPIRAÇÃO PROFUNDA DE COMTE
Egresso de família realista e católica do sul. Aprendera – para sempre, como dizia – “o amor ao nobre jugo do passado” e a superioridade da obediência à revolta. Desta feita prefere a cooptação à eleição, o poder espiritual ao temporal puro, e deseja em princípio que o intelectual seja simples conselheiro do governo, e não o governo mesmo.
- Fundamentalmente é anti-individualista e anti-protestante (posto que incréu), pois vê na rebelião de Lutero contra Roma o princípio da “sedição do indivíduo contra a espécie” (a fórmula é-lhe típica). Não confia na consciência individual deixada à própria sorte. Nada era mais anti-kantiano que o espírito desse mediterrâneo, que de extasiado que era pela religião tradicional chegara a propor aos jesuítas (que então eram importante força contra-revolucionária) uma aliança prática contra a subversão.
- Anti-individualista, Comte também é anti-liberal, em sentido rigorosamente doutrinal: se há doutrina verdadeira, então todas as doutrinas não se valem, e se não se valem, em princípio não poderiam ter direitos iguais (o que não exclui na prática a tolerância e a compreensão). Faz crítica acerba à noção de liberdade de pensamento, de livre-pensamento, que em último caso é sinônimo de pensamento vaporoso e indeterminado, próximo à idéia exposta mais tarde pelo escritor inglês Chesterton (Chesterton diz “A livre ausência de pensamento...”). Toda sua demonstração é censurável, visto ser ela curiosa transposição, em vocabulário cientificista, do que diz a teologia tradicional nesse ponto; o sociólogo protestante Gaston Richard dirá, de forma ácida, que Comte possuía espírito de grande inquisidor...
- Anti-liberal, Comte também é anti-parlamentar. Para ele, os chefes revolucionários são “pretensiosos ignaros”. O parlamentarismo é “sofisma constitucional” por excelência. É “regime de intrigas e corrupção, em que a tirania está em toda parte e a responsabilidade em lugar nenhum”. Apregoada por Rousseau e pelos jacobinos, a soberania popular é “mistificação opressiva e mentira ignóbil”, “o deplorável exercício do sufrágio universal depravou profundamente a razão popular”.
- Ao ler seus textos (Deus sabe quantos os há desse tipo na obra de Comte)4 perguntamo-nos o que o separa de De Bonald e Maistre. Ainda que critique reiteradamente a monarquia tradicional, faz o elogio de Luís XI, de Henrique IV, de Luís XIV, a quem chama de “ditadores”, e escreve: “o governo da legítima monarquia, aquela em que o comando se transmite de modo idêntico à propriedade, poderá ser chamado novamente à vida como último recurso de salvação”, não se turbando em defender Luís XVIII e até mesmo Villèle5...
- Compreendemos agora como Charles Maurras (v. lição sobre este) pôde se valer tão amiúde de Comte. Vemos também como é ridículo considerar Comte “o precursor de Durkhem” já que, como bem disse Gilson, Comte é típico mediterrâneo e até mesmo helênico6, enquanto Durkhem é profundamente judaico (posto que incréu, guarda a concepção legalista da moral herdada do Código de Moisés7; não toma de Comte as idéias sobre a sociedade, mas da escola alemã da “psicologia dos povos”8; além disso, suas posições políticas são as do socialismo moderado, mas francamente orientado pelo viés ideológico da Revolução Francesa).
II. COMTE UTÓPICO: UM APANHADO DE SUA POLÍTICA
Em princípio a idéia de hierarquia regrada de forma precisa e ordenada: povo, fabricantes, comerciantes, banqueiros, e depois poetas, artistas, cientistas e filósofos (de fato, sociólogos). Cada dirigente designa seu sucessor (Comte tem horror, aliás exagerado, a todo tipo de eleição: “a escolha dos superiores pelos inferiores é pura anarquia”). Chega mesmo a oferecer-se candidamente como um dos principais responsáveis à instauração do futuro regime... Trata-se em verdade de republiquetas de produtores, suprimindo as injustiças do liberalismo econômico, celebrando a concórdia entre as camadas sociais, o que não deixa de parecer com certas opiniões socialistas, mormente as de Proudhon. Até os filósofos têm sua hierarquia (aspirantes, vicários etc.). Eles não tem a função de exercer o poder, mas sim a de formular os princípios gerais que emprestarão aos dirigentes temporais, para que estes os apliquem de maneiras variadas, de acordo com as circunstâncias. Tudo é regrado, inclusive censuras e excomunhões. Isso porque há uma religião da Humanidade. A Humanidade é o grande Ser; a Terra, o grande Asserá; o Espaço, o grande Meio; há um calendário de vultos e cerimônias verdadeiramente litúrgicas. As pessoas de bem viverão pela eternidade... na memória da Humanidade (“imortalidade subjetiva”). Os estipêndios, os móveis, o número de filhos, tudo se libra pelos poderes públicos (parece que estamos lendo Tomás Morus ou Campanella). Não existirá mais jornais (Comte os detesta a todos). O ensino será monopólio do poder etc... O conjunto é sem dúvida peculiar, mas nos parece que não raro fazem de Comte um espantalho, o que não nos deve mascarar o que há de são e justo no “sistema político positivo”. Assim, não vamos mais insistir nisso.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Comte é consideradiode diversas maneiras. Em particular os marxistas lhe são severos: vêem-no como um pequeno burguês paternalista e idealista (Comte dá a primazia causal em face da História às doutrinas, não tanto aos fatores econômicos, sobretudo em relação à Revolução Francesa). Comte não leu Marx; Marx só tardiamente leu Comte, pondo-o abaixo do rés-do- chão, tal como faria com Hegel, já que Comte tem o defeito de não conhecer a dialética, de crer na natureza humana (como outrora Aristóteles, e mais tarde Camus), de admitir o princípio (senão o abuso) da propriedade privada e de respeitar (sendo incréu) o catolicismo, que para Marx é alienação a destruir. Certamente ao plano da eficácia não se pode comparar as duas doutrinas, visto que Comte, depois de tentar convencer Louis- Phillipe sem sucesso, aplaudira o 2 de dezembro, tendo algumas esperanças em Napoleão III, antes de decepcionar-se como os demais. Não obstante o Imperador interditara a difusão das idéias positivistas...
- Do lado católico é interessante notar que os pensadores que acreditam em um “sentido da História’ (chegando quase a batizá-lo) são mais severos com Comte que com Hegel e Marx. Assim, o pe. de Lubac curiosamente escreveu: “ele era totalmente desprovido daquele sentido de transcendência que, por sua vez, fora tão agudo (ainda que pervertido ao extremo) em Nietzsche, e do qual encontramos o análogo ou sucedâneo (sic) em Marx”9 . Esbarramos com a mesma severidade em Maritain10. Convém-nos aqui apresentar algumas questões: para alguns autores, a ódio contra Comte não viria do fato de ele ter dado origem a Maurras, e não de sua incredulidade religiosa (já que perdoam sem pejos a de Marx e Hegel)? Para outros, não viria dohelenismo, da crença na “natureza das coisas, na essência estável da natureza humana, que opõe-se ao mobilismo hegeliano- marxista ou existencialista, defronte ao qual inclinam-se com simpatias? Em todo caso, de nossa parte, ainda que repudiemos a tola condenação positivista da Teologia e da Metafísica, somos como que compelidos a constatar que a oposição entre a concepção comtista e a católica à ordem da sociedade e do pensamento é menor que a entre o catolicismo e o hegelianismo, ou a entre o catolicismo e o marxismo (cf. o princípio comtista: “A ordem por base, o progresso por fim”, comparando-o, por exemplo, com o “Vetera novis augere et perficere” de Leão XIII, contra o conhecido mote “Façamos do passado tábula rasa”, caro aos progressistas de todos os matizes). Terminaremos com a opinião de Etienne Gilson, de quem não se duvida do apego à democracia: “A doutrina de Comte é hoje em dia negligenciada, já que rema contra a torrente que nos carrega. Há uma moda em filosofia. Em todo caso, pelo menos há uma em França”; Comte estigmatiza “o temível jargão neohegeliano que se deve falar para ser levado a sério”, (e diríamos nós: ser levado a sério em alguns ambientes clericais?); Gilson louva a linguagem um tanto quanto enfática, sem dúvida, mas em que “tudo, até os advérbios, se propõem a dar ao pensamento um sentido preciso e com isso, um realismo sólido e denso até tornar-se espesso” (Le Monde, 4 de setembro de 1957).