Category: Crônicas
A título de descanso, ou de desintoxicação, prometi aos leitores reflexões sobre os vários ofícios do homem, e, se não me falha a memória, prometi para hoje histórias de barbeiro. Devo de início confessar que, na minha vida maior que a do século, embora seja eu fiel e constante por natureza, fui inconstante em barbeiros, ao sabor das inconstâncias da vida. Recuando até os tempos em que fui engenheiro da Radiobrás, surge-me na memória o João Saraiva, português, sentencioso e profundo.
Para lembrar as desconcertantes surpresas da vida, diz o rifão que não há nada como um dia depois do outro. E é verdade. Não há. Na semana passada, como talvez algum leitor ainda se recorde, tornei pública a alegria, e até não ocultei o proveito que tirei de uma barba feita em clima de contravenção. Ora, logo no dia seguinte, fui severamente punido. Foi assim: depois de duas aulas cansativas, e para ser pontual num encontro marcado no Centro Dom Vital, deixei meu carro ali entre o Ministério do Trabalho e o da Educação, onde, aliás, já estavam instalados outros caros maiores do que o meu. É verdade que nas redondezas havia diversos sinais e letreiros. Num deles, em torno de um P vermelho, via-se um texto longamente minucioso e enigmático. P, terças, quintas e sábados, das dezessete e trinta até tantas horas, e de tantas horas até quantas outras. Mais adiante, em torno de um P azul, anunciava-se que aquele pedaço de rua era capitania dos serventuários de não sei mais qual secretaria de não sei qual ministério. Apesar de conhecer razoavelmente a língua dos PP, nunca consegui entender o dialeto usado pela Inspetoria do Tráfego, e como ainda não pude dispor de três meses de férias para a aquisição dessa ciência, continuo afetado pela mesma incapacidade. Por isso, não dispondo, no momento, de uma equipe de assessores que me ajudassem a discernir meus direitos naquela trama complexa de proibições e privilégios, e tendo hora marcada, resolvi deixar ali mesmo o carro entregue à sorte.
Hoje, para variar e para descansar o leitor, vamos falar da lagartixa. Antes disso, devo dizer que, nas meias horas de descanso depois das refeições receitadas pelo Dr. Stans Murad, costumo esticar-me num sofá, perdão, num sofanete, para ser mais exato, e então, sem saber como e quando começou, costumo deixar correr a lembrança dos dias idos e vividos ou das pessoas idas e mortas. Entrego a memória a seus caprichos e ponho-me de camarote a assistir às avessas, e de surpresa, às cenas desse teatro de amadores mal ensaiados que se chama vida. É o meu luxo, é o último regalo que os ferozes deveres de estado me concedem. Desta maneira, misturando à água da memória o vinho da ficção, invento a vida que não tive, viajo, vejo terras e mares que não vi, revivo amores que não vivi
Many and many years ago,
In a kingdom by the sea...
Meu Caro,
Não lhe respondi há mais tempo por causa do meu olho esquerdo. Deu-lhe para arder e purgar, faz uma semana, obrigando-me a uma prolongada piscadela que tem muito menos malícia do que melancolia. Não consigo ler nem escrever. Se insisto, fechando o esquerdo, doe-me o direito pelo descostume de andar sozinho.
A Carlos Drummond de Andrade
O moço que se matou, dizendo por escrito que era um “desajustado social”, na verdade matou-se porque se deixou convencer de que não existe na vida e no mundo lugar para a dor. Matou-se porque lhe disseram, com aquele vocábulo, e com a filosofia maldita que por trás dele se esconde, que o mundo não concede matrícula aos que choram. Insinuaram-lhe que tudo se reajusta, e acrescentaram que só depois dessa reajustagem pode uma alma se inserir. Ora, o moço viu que a primeira parte da história era falsa, porque nem tudo se reajusta, mas continuou a crer na segunda; e então, suicidou-se. Suicidou-se porque era um desajustado. Suicidou-se porque era uma excrescência na criação. Uma verruga no universo.
Estas reflexões começaram no hall do Municipal onde me achei numa noite de bailado russo. Antes de mais nada, porém, devo dizer, para tornar mais compreensível o que se segue, que costumo passar muito tempo, anos às vezes, sem encontrar certos fenômenos da chamada vida social. Por isso, nessas circunstâncias gozo de uma vantajosa inexperiência e ainda consigo ver certas coisas de chofre, com a surpresa das crianças ou dos idiotas. Ambos esses pontos de vista são indubitavelmente superiores àquele do homem informado, do incurável adulto de visão plastronada, do homem que se habituou, que sabe como se fazem as coisas, como se entra num teatro ou se serve um chá numa tarde de irreparável elegância.
Um amigo que se julga ateu ou não-católico telefonou-me outro dia, e logo me atirou pelos fios esta pergunta aflita: "Meu caro C. me diga uma coisa: a Igreja antigamente era ou não era uma coisa muito inteligente?"
O mundo freqüentemente pretende nos insinuar como boa, até como excelente, a filosofia do fato consumado, pela qual, graças à ação dissolvente ou lubrificante do hábito e da repetição, passamos a considerar com naturalidade aquela mesma coisa que nos provocaria gritos de repulsa ou de susto se não fosse apresentada de repente, nua e crua. Vejam, por exemplo, o comunismo. Querem que o aceitemos, pela simples razão de estar aí, diante de nós, os cronistas e pensadores bem inseridos no artigo do dia que a História lhes inculca, uma ausência de sensibilidade, uma ausência de reação, sob pena de sermos apontados como reacionários. O sr. Foster Dulles era um reacionário porque continuava a ver no comunismo um mal, e não um simples fato histórico.
Tivemos quarta-feira passada na PERMANÊNCIA, numa sala repleta, que quiséramos mais ampla e mais repleta, uma conferência de Ariano Suassuna sobre o Romanceiro Popular do Nordeste. Depois de uma sábia apresentação de Gladstone Chaves de Melo que esboçou um resumo da vida já bem vivida do mais jovem membro do Conselho Federal de Cultura, e uma interpretação de seu último grande livro, “A PEDRA DO REINO’ (Ed.
Os artigos que andei escrevendo ultimamente sobre alguns pontos da teoria de Albert Einstein trouxeram-me à memória o nome e a figura de um outro judeu, pobre e obscuro, de que talvez nenhum de meus leitores ouviu falar, e que morreu de repente, na força da idade, sem deixar a obra que sonhava escrever. Para mim, entretanto, Nathan Neugroschel foi uma das mais curiosas e ricas personalidades que jamais encontrei. Foi, sem sombra de dúvida, um dos melhores homens que até hoje conheci.