A título de descanso, ou de desintoxicação, prometi aos leitores reflexões sobre os vários ofícios do homem, e, se não me falha a memória, prometi para hoje histórias de barbeiro. Devo de início confessar que, na minha vida maior que a do século, embora seja eu fiel e constante por natureza, fui inconstante em barbeiros, ao sabor das inconstâncias da vida. Recuando até os tempos em que fui engenheiro da Radiobrás, surge-me na memória o João Saraiva, português, sentencioso e profundo.
Devo, aliás, fazer uma reparação à injustiça com que costumamos contar histórias de português, como se eles fossem mais parvos do que nossos parvos. Descobri há algum tempo que a insensatez lusitana tem algo de estapafúrdio e não-euclidiano, mas nesse mesmo absurdo com que se adorna, ele roça pelo gênio. Há, por exemplo, no melhor Fernando Pessoa, coisas que são autênticas histórias de português.
Ultimamente saio pouco, e cada vez mais diminuo o raio de meu pequeno mundo, como se diminuísse com ele minha peau de chagrin, por isso tive de remexer papéis velhos para encontrar alguma crônica amarelada. O João Saraiva ficará para outra oportunidade porque a história que achei nos meus papéis velhos é de 1957 e podia intitular-se “A barba clandestina”.
Descobri um lugar onde posso achar quem me faça a barba nas manhãs de segunda-feira, coisa que é proibida, não sei se pelo Ministério do Trabalho, pelo governo municipal, ou pelo Ministro da Guerra, e que por diversos motivos, a começar por essa proibição, me assegurará doravante uma pequena e estimulante alegria nos umbrais das hebdomadárias aflições. Não digo onde é, perdoe-me o leitor esse egoísmo, porque pode acontecer que pela primeira vez, em vinte anos de jornalismo, as autoridades dêem alguma atenção ao que escrevo. Calo o número e a rua, mas sou forçado, por imperativos de meu ofício, a descrever, convenientemente camuflado, o cenário onde sinto o gosto da barba feita em atmosfera de contravenção.
É num fundo de loja. Você atravessa o salão deserto com passo cauteloso, dobra à direita, depois à esquerda, e chega a um pátio onde já se acham diversos oficiais e os fregueses iniciados no arcano. Há sorrisos de conivência e cicios de conspiração; há até quem leve o gosto da irregularidade até o corte de cabelo. A gente tem a impressão de estar tramando a volta de um rei, ou cumprindo o rito de um culto perseguido. Mas a catacumba dos barbeiros é alegre. Dá para um cortiço onde há mulheres batendo roupa no tanque e passarinhos chilreando em gaiolas de bambu. O oficial explicou-me o motivo daquela inconfidência de navalhas: a semana inglesa dos barbeiros tem a pausa da lei nas segundas-feiras em vez de tê-la aos sábados como a inglesa dos outros ofícios. Será uma semana portuguesa, disse ele piscando o olho e apontando para o patrão.
Perguntei-lhe se eram obrigados a trabalhar às segundas-feiras. Não. Não eram. Vinham por gosto e por interesse próprio. O patrão concorda porque também tem lucro nessas horas extraordinárias. Os fregueses também gostam.
— Mas então, perguntei eu, por que existe tal proibição se todos querem barbear e ser barbeados?
O oficial respondeu com um sorriso triste de cidadão que já desistiu de decifrar o enigma das leis e das posturas. Indaguei a respeito da multa e do perigo de ter minha barba interrompida num hemisfério do rosto. O oficial tranqüilizou-me com um sorriso de outra espécie, e explicou-me que o fiscal também está interessado nas barbas clandestinas.
— Mas então, tornei eu, por que esse esconderijo? Por que não fazer a barba no salão com mais conforto?
O oficial esboçou um terceiro sorriso, mais fino que os anteriores, e parecendo penalizado com minha ingenuidade dignou-se ensinar-me que havia as aparências a respeitar.
Uma luz inundou-me o intelecto e revelou-me as coisas que o barbeiro sabia e outras que talvez ignore. E um hino de louvor brotou-me do coração. Sábias leis! Sábios e profundos decretos são esses, raríssimos no gênero e na espécie, que conseguem contentar todo mundo, e que, contentando, lá deixam nos passes da cerimônia um frêmito de aventura.
Instalei-me na cadeira proibida e assegurada. Distendi os nervos, deixando uns poucos deles esticados para os pizzicati das surpresas. Dividi-me entre os ruídos municipais que pela direita traziam-me o arquejar da rua cheia de veículos e fiscais, e o chilrear dos pássaros que, pela esquerda, me davam a impressão de estar fazendo abluções num despertar de floresta. Fechei os olhos e fui inteiramente feliz. Feliz por estar na rotina e ao mesmo tempo fora dela; por ter uma espécie de sábado mais fresco na segunda-feira, por sentir fiscais à direita e canários à esquerda. Não pode haver felicidade sem paz, mas também, ao menos neste mundo sublunar, sem algum receio de perdê-la. Fui feliz por todos esses motivos que explico e publico, e por tantos outros que estavam presos e que, libertados, me inundaram de sossego e de romance. Não digo quais são por não saber eu mesmo e por medo de perdê-los. Os sonhos não têm vida fora do sonhador.
Na hora de pagar o moço explicou-me que era mais cinco cruzeiros por ser segunda-feira. Mais fosse, amigo, mais fosse! Quem não pagaria cinco cruzeiros por barba escanhoada entre os murmúrios de uma floresta wagneriana, ou no silêncio de catacumba romana? Além disso, sejamos justos, há o fiscal. E também — sejamos sinceros — há o saldo do que me pagam por estas linhas, que não seriam tão fáceis sem a segunda-feira, sem os passarinhos e sem a contravenção.
Conversa em Sol Menor, Agir 1980.