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Detalhes da Ressurreição

Meu Caro,
 
Não lhe respondi há mais tempo por causa do meu olho esquerdo. Deu-lhe para arder e purgar, faz uma semana, obrigando-me a uma prolongada piscadela que tem muito menos malícia do que melancolia. Não consigo ler nem escrever. Se insisto, fechando o esquerdo, doe-me o direito pelo descostume de andar sozinho.

Vencendo a repugnância pela medicina fui afinal ao oculista. Recebeu-me com a benevolente afabilidade do indivíduo que já viu muita desgraça começar num grão de cisco e que, por isso, resolveu adotar até o termo de seus dias uma bondosa indiferença diante das córneas injetadas. Sentou-me numa cadeira metálica, dentro de uma sala escura, muniu-se de microscópicas lanternas, e pôs-se a viajar na bola do meu olho, sabiamente, de polo a polo.
 
Ao cabo de alguns minutos deu-se por satisfeito e recomendou-me a imediata extração dos dentes suspeitos, insistindo que era urgente. Fui dali ao raio X; do raio à farmácia; da farmácia ao dentista. E cá estou eu sem os dentes, não me parecendo que o olho tenha melhorado.
 
Agora, mais dolorido do que nunca, fico a pensar na tirania da medicina moderna. A ela se aplica perfeitamente a palavra de um inglês, dizendo que cada dia o médico conhece "more and more about less and less". O especialista é o homem que conhece bem uma pequenina região desse todo que é tudo; mas, em compensação, investe-se de imensa autoridade sobre as vastas regiões ignotas. Para salvar um olho, o oculista manda arrancar meia dúzia de dentes. Haverá casos, suponho, em que se deva arrancar o olho para salvar os dentes. Nas situações mais complexas (continuo a supor) competirá ao doente a escolha do que prefere poupar, não se devendo pensar ingenuamente que entre o olho e o dente não haja margem para hesitações. São grandezas heterogêneas, e portanto de difícil comparação.
 
É verdade que o dente faz menos falta para ler, escrever, andar e ganhar o pão de cada dia. Para comer o pão faz falta; mas lá o cirurgião ficou de me arranjar uma máquina de mastigar. Com o tempo a gente se habitua, mesmo porque a mastigação é uma das operações mais mecânicas do corpo, não havendo muito o que variar no modo de triturar, em que tanto valem os autênticos como os falsos dentes. Concedo; mas quem me arranjará uma máquina de sorrir?
 
Alías, essa questão da escolha entre um e outro fica prejudicada porque é possível, em muitos casos, que o sujeito fique sem os dentes e sem o olho. Disse-me o especialista, o do olho, que o número de cegos é hoje muito menor do que no tempo de nossos avós. Certamente. Estão aí as estatísticas. Não duvido. Mas, em compensação, os cegos de hoje, até chegarem à cegueira, já sofreram uma série de mutilações. Em lugar do ceguinho dos tempos românticos, lépido e inteiro, subsistirá apenas um ser informe, aparado, um tronco vagamente liso e oval, que as pessoas da família carregarão com cuidado para aconchegar ao canto de um sofá.
 
* * *
 
Estava eu neste ponto de minhas amargas divagações sobre a desintegração do corpo humano, essa espécie de lepra organizada em nome da ciência, quando me acudiu à mente uma idéia divertida. Meu caro, nós cremos na ressurreição da carne. Ora, este artigo de fé, que eu sempre tomara em grosso, e vagamente, aparece-me agora na nitidez dos detalhes.
 
Na verdade, meu caro, nós raramente sabemos opor à ciência dos especialistas, robusta pelos detalhes, uma Fé que também desça às minúcias das coisas concretas. Parece-nos muitas vezes que o melhor modo de crer seja o reticente. Pairamos, não digo no mistério que é denso de detalhes mas na névoa das generalidades. Cultivamos uma fé sem curiosidades, no firmamento das essências, além e mais alto do que o céu das existências. Ora, o que existe é o detalhe. O que existe é um dente arrancado; é um olho cansado de piscar em tão prolongada quão descabida malícia. Valha-nos pois a Fé onde o especialista mal nos vale.
 
Nós cremos na ressurreição. Por isso, quando me lembro de meus pobres incisivos, sangrentos em cima da mesa de vidro do dentista, tão feios e tão ridículos; e quando me vejo agora ao espelho um olho injetado e torto; eu digo de mim para mim, e de mim para Deus, que esses pedaços de mim mesmo debalde se espalharão pelos quatro cantos do mundo; que meus dentes poderão descer nas enxurradas do lixo às profundezas do mar; que a maior das bombas poderá pulverizar o menor dos meus ossos. No dia da ressurreição o Senhor dos Exércitos saberá mui exatamente qual é o meu dente e qual é o meu olho, pois nesse dia a sua misericórdia tomará a si a palavra dura de sua justiça: olho por olho, dente por dente.
 
(A Ordem, Maio de 1947)

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