Angeli eorum in Caelis semper vidents faciem Patris mei (Matth. 18)
I
Se aos Anjos festejam neste dia os homens, não sei eu melhor modo de os festejar do que aspirando os homens a ser Anjos. Não pareça temerária a pretensão; por quanto o que não pode a natureza, pode a graça. E para que os fundamentos desta verdade se entendam, ouçam a seguinte história, que se bem no modo de referir-se parecerá nova, na substância é a mais antiga que há no mundo.
No princípio criou Deus o Céu, e a terra: fez a luz dividindo-a das trevas: criou aos Anjos, e formou aos brutos animais. Chegou o sexto dia, e disse em sua mente: Agora hei de fazer uma criatura, que seja um resumo das mais, e um mundo abreviado: Formavit igitur Dominus Deus hominem de limo terrae, et in spiravit in faciem spiraculum vitae (Gen. 2, 7). Esta criatura pois foi o homem, composto de corpo e alma, corpo que lhe formou do limo, alma que saiu da boca de Deus. E ficou o homem quanto ao corpo sendo terra, e quanto à alma Céu: por aquela parte sendo trevas, e por estoutra luz: pela primeira semelhante a bruto, e pela segunda semelhante a Anjo. E havendo Deus de sinalar-lhe habitação, quis que fosse aquele lugar onde o Céu e a luz confinam com a terra, e trevas que é a superfície da terra; e dando-lhe estatura reta, disse: Com a parte ínfima de teu corpo, que são os pés, pisarás a terra; e com a parte suprema, que é a cabeça, olharás para o Céu, e buscarás com o discurso: se obrares racionavelmente como Anjo, tua alma levantará consigo o corpo ao Céu: se obrares irracionavelmente como bruto, o teu corpo abaterá consigo a alma ao inferno.
Invejoso o diabo desta meia semelhança que o homem tinha com os Anjos, disse: Estas duas partes de que o homem consta, estão entre si unidas. Pois eu farei com que a terra puxe pelo corpo, e o corpo pela alma, e ficará o homem todo bruto. Assim o fez. Tomou por atrativo um pomo, fruto enfim da terra, e pegado a ela por meio das raízes da sua árvore; e com este lhe prendeu os sentidos, com os sentidos veio a alma; consentiu esta, pecou o homem, e ficou semelhante aos brutos: Comparatus est jumentis insipientibus, et similis factus est illis (Ps. 48, 13). Acode Deus, como autor, pela sua obra; e diz: Meu inimigo quis fazer o homem todo bruto; pois agora o farei eu todo Anjo. Pelos merecimentos de outro Adão, que é meu Filho feito homem, derramarei em todos tanta graça, que se quiseram aproveitar-se dela, o corpo fique rendido à alma, e seguindo a sua condição; e possam os homens viver como Anjos em carne. Executando este conselho, saiu tão certo, que a terra produziu, e vai produzindo tantos Anjos humanos, que constituem outros nove coros, e não basta o círculo do ano para festejar a Igreja todos.
Consta logo (ó Católicos) desta narração como o homem, mediante a graça de Deus, pode em certo modo ser Anjo, imitando suas virtudes; assim como poder ser bruto, seguindo os seus vícios. Em dia pois que a Igreja soleniza a festa dos Anjos, e do Príncipe deles S. Miguel, seja o assunto persuadir duas virtudes, que especialmente fazem o homem semelhante a Anjo: uma que respeita a pureza do corpo: é a Castidade; outra a pureza da alma, e é o Amor de Deus; e ambas se insinuam no nosso tema: Angeli eorum in Caelis semper vident faciem Patris mei.
II
Quanto à primeira que é a Castidade, esta parece tocou o nosso texto naquelas palavras: Angeli eorum semper vident faciem Patris mei. Os Anjos, diz Cristo, sempre estão vendo a face de meu Pai. Porque não disse a face de Deus, senão a face de meu Pai; quando o que beatifica os Anjos, não é a vista da face de Deus só enquanto Pai, e primeira pessoa, senão a face de Deus enquanto Deus, e todas três? Assim é; mas um dos deleites que os Anjos recebem na face de Deus, é ver como sendo Pai, é juntamente Virgem: e à sua imitação para encarnar seu Filho lhe escolheu uma Mãe também Virgem. Por onde dizer Cristo verdadeiro Deus, e homem: a face de meu Pai: faciem Patris mei; foi tocar nestas duas gerações as mais castas, que pode haver: uma eterna, segundo a qual é filho da Virgem, sem pai porque, ainda que Pai e Mãe geraram a Cristo perfeitamente, foi com pureza castíssima. E esta maravilha estão os Anjos vendo com excessivo deleite na face de Deus Padre: Angeli eorum semper vident faciem Patris mei.
Muito deleita aos Anjos a Castidade, e na face de uma alma pura se estão revendo, como em espelho onde se acham a sua semalhança. Porque um homem casto parece Anjo; e um Anjo se encarnara, fora em corpo casto. Um homem casto parece Anjo; porque lhe falta uma prova de ter corpo, e parece puro espírito.
Palpate et videte, quia spiritus carnem et ossa non habet (Luc. 14, 39). Entrando Cristo depois de ressuscitado a falar com seus discípulos, desconfiavam estes de que fosse corpo verdadeiro, e suspeitavam ser espírito. Disse-lhes o Senhor: Palpai, porque o espírito não tem carne, nem ossos. Logo, se um casto, no modo com que vive, mostra não ter carne, sangue, e ossos como os outros homens; bem podemos suspeitar que são espíritos, que são Anjos. Para o Senhor provar que tinha corpo, remetia-se à experiência do tato: Palpate; um casto negou-se ao sentido do tato: Logo um casto falta-lhe uma prova de ter corpo, e por conseguinte tem uma prova de ser Anjo; ou menos fica em dúvida, se tem ou não tem corpo: e dele pode dizer-se aquilo de São Paulo: Scio hominem [...], sive in corpore, sive extra corpus, nescio (2 Cor. 12, 3). Eu sei de um homem, que tem espírito; mas se está unido ao corpo, ou fora dele, não o sei. Logo se a semelhança é causa do amor, eo amor do deleite; que muito que os Anjos se deleitem com a Castidade, quando a Castidade faz um homem semelhante a Anjo?
E um Anjo se encarnara, fora em corpo casto. É para reparar que em muitos lugares da Escritura se introduzem aparecendo os Anjos vestidos de branco. Seja exemplo aquele texto de S. João: Vidit duos Angelos in albis (Joan. 20, 12). Que a Madalena olhando para dentro do sepulcro viu a dois Anjos com vestiduras brancas, pois porque razão amam os Anjos mais esta cor, que outra qualquer? Notem. O corpo é um como vestido da alma; e a brancura um símbolo da castidade. E assim aparecem os Anjos com vestiduras brancas, é mostrar que se tormaram corpo, havia de ser casto. O corpo é um como vestido da alma? Sim; que por isso o encarnar o Verbo, chamou S. Paulo, vestir-se de carne humana: Habitu inventus ut homo. E no mesmo sentido canta a Igreja: Atque ventre virginali carne amictus prodiit: que Deus saíra do ventre virginal de MARIA Santíssima vestido da nossa carne. E esta é a frase por onde também falam S. Ambrósio, São Bernardo, e outros padres. Outrossim, a brancura do vestido representa a pureza da castidade? Sim, que por isso lemos no Apocalipse: Habes pauca nomina in Sardis, qui non inquinaverunt vestimenta sua, et ambulabunt mecum in albis, quia digni sun (Apoc. 3, 4)t. Que os que não mancharam os seus vestidos, isto é, não pecaram contra seu corpo, andaram com Cristo adornados de vestiduras brancas. Logo quando os Anjos hão de aparecer visivelmente, que é uma semelhança de encarnarem, há de ser com vestiduras brancas, que é uma semelhança da castidade. Para que se veja que se um Anjo encarnara, havia de ser em corpo casto.
É com efeito homem houve já no mundo que em razão de sua castidade julgaram ser Anjo encarnado: Ecce ego mitto angelum meum, et preparabit viam ante faciem meam (Malach. 3, 1). Eu (diz Deus pelo Profeta Malaquias) mandarei o meu anjo, que há de preparar o meu caminho antes de eu entrar no mundo. Este lugar é de fé que se entende de S. João Baptista, porque dele o interpretou o mesmo Cristo: Hic est, de quo scriptum est: Ecce mitto Angelum meum (Luc. 7, 27). Pois se o Baptista era homem, como se chama Anjo? Responde Orógenes, seguindo a opinião dos Hebreus, que refere Eusébio, que era Anjo, e mais homem; porque era Anjo encarnado. Eu não defendo o dito, porque é erro, mas desculpo o erro, porque tem sua aparência. Não era o Baptista mais que homem; mas era homem casto, e um homem casto parece Anjo encarnado. O A Lapide: Quia purissimus et castissimus fuit, virgoque perpetuus instar Angeli. Foi o Baptista tão angélico na castidade, que como outros Santos foram mártires pela fé de Cristo; ele o foi pela fé da castidade conjugal; e Santo que chegou a defender com a vida própria até a castidade alheia, bem é para com Deus tenha o título de Anjo absolutamente, e para com os homens a opinião de Anjo ao menos encarnado: Ecce ego mitto Angelum meum.
III
Sendo logo a castidade virtude que faz aos homens semelhantes a Anjos; qual é a razão porque seguem o contrário vício que os faz semelhantes a brutos? Oh grande lástima; que podendo qualquer de nós ser homem com semelhança de Anjo, se faça bruto só com aparência de homem! Verdadeiramente um homem que não ama a castidade, só no exterior é homem: porque a alma se lhe faz como material, grossa e escura, de modo que já parece que não pertence às cadeiras dos Anjos, e à luz do Céu, senão às masmorras tenebrosas do inferno. E assim como na Escritura, os castos tem nome de Anjos, assim os luxuriosas tem nome de animais. Disse-o o Apóstolo São Tadeu, onde falando destes tais, diz: Quaecumque autem naturaliter, tanquam muta animalia, norunt, in bis corrumpuntur (Jud. 5, 11). E a causa diti tinha apontado o mesmo Apóstolo dizendo: Dei nostri gratiam transferentes in luxuriam: Que os tais trocavam a graça de Deus pelo seu apetite; e se a graça de Deus, como ao princípio dizíamos, é a que transfere o homem em Anjo; que havia de fazer quem desprezou a graça pelo seu apetite, senão transformar-se em bruto: tanquam muta animalia.
Mas já eu não estou tão mal com os que caem por sua própria miséria, como com os que fazem cair pelo escândalo que dão. Que lhe não baste ao homem pecar, senão que também há de fazer pecar aos outros? Que se não contente um ímpio com ser filho da perdição, e discípulo da maldade, se também não for pai e mestre dela? Miséria é esta digna do sentimento e gemidos do mesmo Deus: Vae mundo à scandalis: Ai do mundo, assolado com escândalos, exclama Cristo no Evangelho de hoje. E se bem todas as virtudes padecem escândalos no mundo, esta da caridade como mais mimosa, e delicada os padece muito mais. É o mundo um campo, como lhe chama S. Ambrósio. São os escândalos espinhos, como os compara S. Jerônimo: e é a castidade açucena, como disse São Bernardo. E mal pode neste campo, entre tantos espinhos, deixar de magoar-se esta açucena. Nec enim (diz o mesmo São Bernardo) vel levissimam spinae sustinet ullatenus punctionem floris teneritudo. Os trajos pouco honestos, que estão peitando os olhos para que atendam, e fazendo à alma vendável o seu pecado: eis aí um espinho que lastima a flor da castidade. Os livros obscenos e vãos, que não sei como no princípio trazem licença para se imprimir, e mais se imprimem na alma para a escurecer, do que na oficina para saírem à luz: eis aí outro espinho, e outro escândalo. As pinturas indecentes, que estão com vozes mudas e permanentes, pregando mundo e carne e liberdade em lugar de penitência, e seus artífices lhe hão de pagar o preço do inferno: eis aí outro escândalo. As comédias, escolas de esgrima onde se joga a espada preta do pecado, para que depois saibam julgar a branca: mais outro escândalo. As palavras torpes e licenciosas, que agora se usam em lugar das orações e canções pias da cartilha que se ouviam pelas ruas em tempo do Padre Mestre Ignácio Martins; e são jaculatórias do diabo com que atira pelas janelas dentro: Ascendit mors per fenestras: mais outro escândalo. Os maus conselhos e companhias dos chamados amigos, mas na verdade inimigos, pois são confederados do demônio para perverter as almas: mais outro escândalo; aí da açucena da castidade tão cercada de espinhos: Vae mundo à scandalis.
Alerta almas: vede onde assentais o pé, não vos firais; e já que é força andarmos por este campo do mundo, vamos ao menos armados com os defensivos contrários. São estes (atendamos e executemos): Oração todos os dias, e em especial na ocasião da tentação; porque Deus defende aos que fogem para seu amparo. Freqüência dos Sacramentos, porque a graça que ali se dá reprime os brios da natureza. Jejum e penitência, que é o freio e vara com que se amansa este bruto indômito. Lição de livros espirituais, que deixam na alma estampadas imagens de cousas pias, que destróem as cousas profanas. Ocupação contínua em trabalho honesto, porque a terra folgada leva urtigas, e a livra de bons frutos. Retiro de más companhias e ocasiões perigosas: que nesta guerra, como dizia nosso Patriarca São Felipe Neri, vence quem foge. E humildade diante dos olhos de Deus: porque a quem confia de si, permite Deus que caia para que se conheça. Se estas regras observarmos, seremos castos: e sendo castos, seremos semelhantes a Anjos, e poderemos em sua companhia chegar a ver a face de Deus, fonte de toda a pureza: Angeli eorum in Caelis semper vident faciem Patris mei.
IV
A outra virtude que faz os homens semelhantes a Anjos, é o amor de Deus exercitado por freqüentes atos de presença sua. Angeli eorum semper vident faciem Patris mei. Os Anjos (diz Cristo) sempre estão vendo a face de Deus. Se sempre estão vendo, sempre estão amando; porque da vista da fermosura infinita, necessariamente procede o seu amor. E assim como o Sol no mesmo ponto em que difunde a luz, imprime o calor; assim aquele Sol incriado, no mesmo ponto em que ilustra os entendimentos, abrasa as vontades.
Mas se os homens não vemos a Deus, como vêem os Anjos, como os podemos imitar no exercício do amor? Não vemos cara a cara, mas vemos por fé, que também é luz, ainda que mais escassa. Excitando em nós esta fé, também excitaremos o amor; e destes atos de fé e amor continuados, consta o exercício que chamamos da presença de Deus: o qual bem freqüentado, de um homem faz um Anjo; porque no seu tanto faz o que os Anjos fazem; que é ver e amar a Deus: Angeli eorum semper vident faciem Patris mei.
Entrou uma vez o Capitão Aquis a falar a El Rei Davi, e entre outras cousas que lhe disse, foi esta: Bonus es tu in oculis meis, sicut Angelus Dei (1 Reg. 19, 9): Vendo-vos, me parece que estou vendo um Anjo de Deus. Entrou outra vez à presença do mesmo Rei a mulher Tecuitis, e disse: Sicut enim Agelus Dei, sic est dominus meus Rex (1 Reg. 14, 17): Não acho com que comparar a meu Rei e Senhor, senão um Anjo de Deus. Já Davi tem duas testemunhas conformes, que o canonizam por Anjo. Mas porque não falte total prova que pede aquele texto: In ore duorum, vel trium testium stat omne verbum (Matth. 18, 16): Pelo testemunho de dois ou três consta toda a verdade; venha a terceira testemunha. Entra Mefibosete diante do mesmo Davi. E que disse? Tu autem Domine ini Rex, sicut Angelus Dei es (1 Reg. 19, 27): Vós meu Rei e Senhor, sois como um Anjo de Deus. Oh tantas vezes o mesmo repetido! Aqui parece haver misterio. Não nos direis santo Davi que fizestes, que vos trocou de homem em Anjo? Sim dirá. E já que as testemunhas foram três, todas afirmando o mesmo; as suas respostas serão outras três, todas apontando a mesma causa: Providebam Dominum in conspectu meo semper. Omnes viae meae in conspectu tuo. Oculi mei semper ad Dominum (Ps. 15, 8; Ps 116, 168; Ps 14, 15). Eu (diz Davi) sempre trazia a Deus diante de meus olhos: meus passos sempre os dei em presença sua. Sempre tenho aplicada a este Senhor a vista interior de minha alma. Em fim que Davi era dado ao exercício da presença de Deus, vendo a Deus por fé, e gozando-o por amor. Pois eis aí a causa porque é Anjo: porque ver a Deus por fé, e amá-lo freqüentemente, faz os homens parecerem Anjos. Que diferença achamos nós entre o modo com que no Evangelho fala Cristo dos Anjos, e o modo com que nos Salmos fala Davi de si? Cristo diz: Angeli eorum semper vident faciem Patris: Os Anjos sempre vêem a Deus. Davi diz:Oculi mei semper ad Dominum: Meus olhos sempre estão fitos em Deus. Não é o mesmo? Pois se Davi e os Anjos têm o mesmo exercício, tenham o mesmo nome: Sicut enim Angelus Dei, sic est Dominus meus Rex. Davi é Anjo, e em tanto o será, enquanto pelo pecado se não afastar da presença de Deus, que por isso depois o Profeta Natan lhe chamou só homem: Tu es ille vir (2 Reg. 11, 7). E ele a si mesmo se chamou bruto: Ut jumentum factus sum (Ps. 72, 23). Pecou Davi, e apartou-se de Deus e seu amor, e logo se viu o que assim como o amor de Deus, de homens faz Anjos, assim o apartar-se dele pelo pecado, de Anjos torna a fazer homens, e (não parando aqui) de homens os faz brutos.
Da sobredita doutrina se colhe a razão porque Tertuliano chamou aos que andam neste exercício da presença de Deus, Aeternitatis candidati:pretendentes da eternidade. E S. Boaventura, Bem-aventurados já nesta vida. E S. Ambrósio, verdadeiros Israelitas. São pretendentes da eternidade, porque o que os Anjos fazem pela participação da eternidade de Deus, que é vê-lo, e amá-lo, isso começam eles a fazer já em tempo, conforme aquela sentença de Cristo quando disse a Madalena, que escolhera a parte que se lhe não havia de tirar, mas continuar no Céu para sempre: Maria optimam partem elegit, quae non auferetur ab ea (Luc. 10, 12). Porque o que a Madalena fazia aos pés do Senhor era vê-lo, e amá-lo; e ver, e amar a Deus, é exercício qie se começa aqui no tempo, para depois continuar-se no Céu eternamente. E assim os que seguem esta parte, são pretendentes da eternidade, Aeternitatis candidati.
São também em certo modo bem-aventurados nesta vida, porque assim como na vista de Deus clara consiste a bem-aventurança perfeita, assim na vista de Deus escura, isto é, por fé, consiste uma bem-aventurança começada. A fé viva e amor de Deus acompanha a sua graça, e conforme dizem os Teólogos, a graça é uma glória começada, assim como a glória é uma graça consumada. Por isso Cristo, tanto que Pedro creu, e amou, lhe chamou bem-aventurado: Tu es Christus Filius Dei vivi. Beatus es Simon.
São finalmente verdadeiros Israelitas, porque Israel que dizer: Videns Deum. O que vê a Deus. E os que andam em presença sua por fé, de algum modo o vêem. Por isso aquele Anjo que falou disfarçado com Tobias; perguntando-lhe este quem era, respondeu que era dos filhos de Israel: At ille respondit: Ex filiis Israel (Tob. 5, 7). Se era Anjo, como era Israelita? Mentiu acaso? Não mentiu, por isso mesmo que era Israelita que vê a Deus, porque era Anjo; e os Anjos sempre vêem a Deus: Semper vident faciem Patris. Logo os que por fé vêem a Deus são verdadeiros Israelitas, como dizia S. Ambrósio, e até o nome tem comum com os Anjos; pois fazem o que eles fazem, que é ver e amar a Deus: Semper vident faciem Patris.
V
Mas reparará alguém naquela palavra Semper: Sempre. Como pode um homem frágil andar sempre na presença de Deus? Respondo que assim como há Anjos de mais ou menos alta jerarquia, assim há homens que participam mais ou menos a semelhança dos Anjos. As jerarquias dos Anjos puros espíritos distinguem-se por estar mais ou menos perto de Deus. E as dos anjos humanos distinguem-se por andar mais ou menos tempo, com mais ou menos fervor em sua presença. Quem andar sempre, será Serafim, porque anda, porque anda mui perto. Quem não puder ser Serafim, seja de outra ordem inferior. Mas estejamos certos que o uso facilita muito este exercício, e a graça de Deus muito mais. O Padre Carlos Condren, Prepósito Geral da Congregação do Oratório em França, ainda quando antes de ser Sacerdote andava ocupado com negócios do século, não perdeu em muitos anos a presença de Deus mais que oito, nove vezes por intervalo brevíssimo, como consta da sua confissão geral manuscrita. E veio a ser Serafim tão abrasado no amor divino, que se lhe quebraram as costelas pela mesma causa que a meu Patriarca São Felipe Neri. A Venerável Madre Maria Victória, fundadora das Freiras da Anunciada, que chamam as Celestes, de tal modo tinha o ânimo pregado na presença de Deus, que a não divertiam as ocupações, nem colóquios com outras pessoas. E se se distraía um pouco, só com esta palavra Amor de Deus, como com fogo chegado à pólvora, se acendia novamente. O servo de Deus Gregório Lopes, por muitos anos contínuos, quantas vezes respirou, tantas disse falando com Deus: Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. Estas e outras semelhantes maravilhas facilitou o uso continuado e os auxílios da graça de Deus bem aproveitados. E por isso estas pessoas saíram na pureza de vida verdadeiramente Anjos.
Oh se quisesse Deus que para sua maior glória tomássemos desde hoje a peitos este angélico, (pouco disse) este divino exercício! Como reluziria logo o proveito em nossos procedimentos! Como fugiriam as sombras do pecado que causa em nís a presença e amor deste século! Quão diferentes seriam nossas palavras, nossos cuidados, e nossos movimentos! Com que fineza e igualdade iria tecida a teia da nossa vida; e que tesouro de merecimentos acharíamos junto ao cortá-la a morte! Eia, cobremos ânimo, ó Católicos, e já que temos o dom da fé concedido por Deus graciosamente, avivemos esta fé, e procuremos com ela acender em nossos corações o divino amor. É certo que andamos todos cercados e penetrados de Deus, pois realmente está em toda a parte, e dentro dele temos o ser, a vida e o movimento, que ele mesmo nos deu, e conserva. Já que tão perto de nós está todo o nosso bem, aspiremos a lograr outro melhor ser, outra nova vida, e outro mais nobre movimento, que é o de seu amor contínuo e fervoroso. Já que pelo pecado fomos brutos, e pela natureza somos homens, pelo amor sejamos Anjos, que sempre vêem e mam a Deos: Angeli eorum semper vident faciem Patris mei.
E vós ó soberano Príncipe, General da milícia do Senhor dos exércitos, e grande da cada do Rei dos reis, glorioso Arcanjo São Miguel: imortais graças vos sejam dadas em o mesmo Senhor pelo sagrado ardor com que zelastes a honra de Deus, e o Império de Cristo cabeça de todos os homens e Anjos; fulminando desde as alturas seus e nossos adversários, só com vibrar a lança daquela poderosa palavra que tomastes por nome: Michael, Quis sicut Deus? Miguel: Quem como Deus? Nós outros os filhos da Igreja universal, cujo patrocínio por comissão do Altíssimo, desde o princípio do mundo exercitastes, fugimos para vosso amparo, solicitando afetuosamente vossa intercessão diante do Senhor, para que nos conceda copiosa graça, com que inteiramente guardemos a lei, que por vossas mãos deu no monte Sinai escrita em tábuas, e os preceitos Evangélicos, que o segundo e melhor Moisés Cristo JESUS escreveu nos corações, com que imitando os homens a pureza dos Anjos sejamos, por vosso meio introduzidos (como introduzistes a Josué) na verdadeira terra de promissão. Onde alternando a natureza humana com a angélica o coro dos divinos louvores, eternamente magnifiquemos aquele Trino e Uno Deus, cuja figura, aparecendo vós a Abraão em companhia de outros dous Anjos, misticamente representastes. Ao qual seja dada toda a glória por séculos de séculos. Ámen.