Category: Santo Tomás de Aquino
O quinto discute-se assim. — Parece que a vontade humana de Cristo não quis coisas diferentes das que Deus quer.
1. — Pois, diz a Escritura: Para fazer a tua vontade, Deus meu, eu o quis. Ora, quem quer fazer a vontade de outrem quer o que este quer. Logo, parece que a vontade humana de Cristo não queria senão o que a sua vontade divina queria.
2. Demais. — A alma de Cristo tinha uma caridade perfeitíssima, excelente mesmo à compreensão da nossa ciência, segundo aquilo do Apóstolo: A caridade de Cristo, que excede todo entendimento. Ora, a caridade faz querermos o que Deus quer; donde o dizer o Filósofo, que uma das características dos amigos é querer e escolher as mesmas coisas. Logo, a vontade humana de Cristo nada mais queria do que queria a sua vontade divina.
3. Demais. — Cristo gozava realmente da visão beatifica, Ora, os santos que gozam da visão beatifica no céu, não querem senão o que Deus quer. Do contrário, não seriam santos, por não terem tudo quanto quisessem; pois, como diz Agostinho, bem-aventurado é quem tem tudo o que quer e nada quer de mau. Logo, Cristo nada mais quis, pela sua vontade humana, senão o que a vontade divina queria.
Mas, em contrário, Agostinho diz: Quando Cristo disse — não o que eu quero, mas o que tu queres — mostrou querer cousa diferente que a querida pelo Pai. E isso só o podia pela sua vontade humana, pois, transfigurou a nossa fraqueza no seu desejo, não divino, mas humano.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, a natureza humana de Cristo encerra dupla vontade, a sensitiva, chamada vontade por participação, e a racional, considerada quer como natureza, quer como razão. Ora, como dissemos, o Filho de Deus, por uma certa dispensa e antes da sua paixão, permitia à carne fazer e sofrer como carne. E semelhantemente, permitia a todas as suas faculdades agir como lhes era próprio. Ora, é manifesto que a vontade sensitiva evita naturalmente as dores sensíveis e os sofrimentos do corpo. Semelhantemente, a vontade como natureza evita o que lhe é contrário e o mal em si mesmo, como a morte e males semelhantes. Ora, tais coisas a vontade, como razão, pode às vezes eleger, em dependência do fim, assim como a sensualidade, e mesmo a vontade, absolutamente considerada, de um homem tal, enquanto tal, evita uma queimadura, que contudo a vontade racional elege, em vista da saúde a adquirir. Ora, a vontade de Deus era, que Cristo padecesse dores, sofrimentos e a morte, não pelos querer Deus como tais; mas em ordem ao fim da salvação humana. Por onde é claro, que Cristo, pela vontade da sensualidade, e pela vontade racional, considerada como natureza, podia querer coisas diversas das queridas por Deus. Mas, pela vontade racional queria sempre o mesmo que Deus. Isso resulta das palavras mesmas de Cristo: Não se faça a minha vontade, mas sim a tua. Pois, queria, pela vontade racional, cumprir a vontade divina, embora diga que quer coisa diversa, pela sua outra vontade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo queria que a vontade do Pai se cumprisse; não porém pela vontade sensitiva, cujo movimento não se alça até a vontade de Deus; nem pela vontade considerada como natureza, que busca um objeto absolutamente considerado, e não em ordem à vontade divina.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A conformidade da vontade humana com a divina se funda na vontade racional, pela qual também concordam as vontades dos amigos, enquanto a razão considera a coisa querida, relativamente à vontade do amigo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo ao mesmo tempo que vivia esta vida, contemplava a essência divina, enquanto que a sua alma gozava de Deus, e tinha uma carne passível. E por isso, pela sua carne passível, podia padecer certos sofrimentos repugnantes à sua vontade natural e mesmo ao apetite sensitivo.
O quarto discute-se assim. — Parece que em Cristo não havia livre arbítrio.
1. — Pois, diz Damasceno: Se quisermos falar com propriedade, a gnome (isto é, o juízo, o pensamento ou o raciocínio) e a proairesis (isto é, a eleição) não podemos atribuí-las a Deus. Ora, sobretudo em matéria de fé, devemos falar com propriedade de expressão. Logo, em Cristo não houve eleição. E por consequência, nem livre arbítrio, do qual a eleição é ato.
2. Demais. — Como diz o Filósofo, a eleição é o desejo do que já foi deliberado. Ora, parece que em Cristo não houve conselho, pois, não deliberamos sobre aquilo de que estamos certos; ora, Cristo tinha certeza de tudo. Logo, em Cristo não houve eleição. E portanto, nem livre arbítrio.
3. Demais. — O livre arbítrio não é determinado. Ora, a vontade de Cristo queria determinadamente o bem, pois, não podia pecar, como dissemos. Logo, em Cristo não houve livre arbítrio.
Mas, em contrário, a Escritura: Ele comerá manteiga e mel até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem, o que é um ato de livre arbítrio. Logo, em Cristo houve livre arbítrio.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, havia em Cristo duplo ato de vontade. Um pelo qual a sua vontade era levada para um objeto como querido em si mesmo, e que tem a natureza de fim; outro, pelo qual a sua vontade queria um objeto conducente a outro, o que tem a natureza de meio. Ora, como diz o Filósofo, a eleição difere da vontade em que a vontade, propriamente falando, busca o fruir, ao passo que a eleição tem por objeto os meios. E assim, em sentido absoluto, a vontade é o mesmo que a vontade como natureza; ao passo que a eleição é o mesmo que a vontade como razão e é o próprio ato do livre arbítrio, como dissemos na Primeira Parte. Ora, como atribuindo a Cristo a vontade, enquanto razão, havemos necessariamente de admitir nele a eleição; e por consequência o livre arbítrio, do qual a eleição é um ato, conforme estabelecemos na Primeira Parte.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Damasceno exclui de Cristo a eleição, por entender que a denominação de eleição inclui a ideia de dúvida. Contudo, a dúvida não é de necessidade, à eleição; pois, também Deus pode eleger, como se lê na Escritura: Elegeu-nos nele mesmo antes do estabelecimento do mundo, embora em Deus não haja nenhuma dúvida. Mas, a eleição inclui a dúvida, quando quem elege é por natureza sujeito à ignorância. E o mesmo devemos dizer do mais a que se refere a referida autoridade.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A eleição pressupõe o conselho; mas, não resulta do conselho, senão quando já determinado pelo juízo; pois, o que julgamos devemos praticar, depois da perquisição do conselho, isso escolhemos, como diz Aristóteles. Por onde, se julgamos que revemos praticar um ato, sem ter precedido nenhuma dúvida e nenhuma perquisição, isso basta para a eleição. Por onde é claro, que a dúvida ou a perquisição não se incluem, como tais, na eleição, mas só quando se trata de quem por natureza está sujeito à ignorância.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A vontade de Cristo, embora determinada para o bem, não está contudo determinada a um ou outro bem particular. E por isso, era próprio de Cristo eleger pelo livre arbítrio confirmado no bem, como se dá com os bem-aventurados.
O terceiro discute-se assim. — Parece que Cristo tinha duas vontades racionais.
1. — Pois, como diz Damasceno, há duas vontades no homem a natural, chamada e a racional, chamada. Ora, Cristo na sua natureza humana tinha tudo o concernente à perfeição da natureza humana. Ora, ambas as referidas vontades existiam em Cristo.
2. Demais. — A potência apetitiva se diversifica no homem conforme as diversidades da potência apreensiva; e portanto, da diferença entre o sentido e o intelecto deriva para o homem a diferença entre o sensitivo e o intelectivo. Ora, semelhantemente, quanto à apreensão no homem, há diferença entre a razão e o intelecto, que ambos existiram em Cristo. Logo, houve nele dupla vontade — uma intelectual e outra, racional.
3. Demais. — Certos atribuem a Cristo uma vontade de piedade que só pode pertencer à parte racional. Logo, em Cristo há várias vontades racionais.
Mas, em contrário, em toda ordem há um primeiro motor. Ora, a vontade é primeiro motor na ordem dos atos humanos. Logo, cada homem não tem senão uma vontade propriamente dita, e é a racional. Ora, Cristo é homem. Logo, em Cristo só há a vontade humana.
SOLUÇÃO. — Como se disse, a vontade é umas vezes, tomada pela potência e outras, pelo ato. Se, pois, a vontade é tomada pelo ato, então, devemos atribuir a Cristo duas vontades racionais, isto é, duas espécies de atos de vontade. Pois, a vontade, como se disse, na Segunda Parte, tanto tem por objeto o fim, como os meios para consegui-lo; e num outro sentido, é levada para ambos.
Pois, o fim ela o quer simples e absolutamente falando, como o bem essencial; e os meios ela os quer com uma certa dependência, enquanto tiram a sua bondade do fim a que se ordenam. Por onde, o ato da vontade tem uma natureza quando é levada a querer o que é em si mesmo digno de ser querido, como a saúde, e a essa Damasceno chama, isto é, simples vontade, ao que os Mestres lhe dão o nome de vontade como natureza. É porém de outra natureza, quando é levada a querer um objeto como meio para conseguir um fim, como quando tomamos um remédio; a cuja vontade Damasceno chama, isto é, vontade conciliativa, e os Mestres lhe dão o nome de vontade como razão. Mas, essa diversidade de atos não constitui diversidade de potências, pois uns e outros se fundam num objeto da mesma natureza, que é o bem. Por onde, devemos dizer, que se falamos da potência da vontade, há em Cristo uma só vontade humana essencialmente dita e não participativamente. Mas se nos referimos à vontade como ato, então distinguimos em Cristo uma vontade como natureza, chamada e uma vontade como razão, chamada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essas duas vontades não constituem potências diversas, mas só se diferenciam pelos seus atos, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Mesmo o intelecto e a razão não constituem potências diversas, como dissemos na Primeira Parte.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A vontade de piedade não difere da vontade considerada como natureza, pois, ela evita o mal alheio, absolutamente considerado.
O segundo discute-se assim. — Parece que em Cristo não havia uma vontade sensitiva além da vontade racional.
1. — Pois, diz o Filósofo, que a vontade está na razão; ao passo que no apetite sensitivo tem sua sede o irascível e o concupiscível. Ora, a sensibilidade significa o apetite sensitivo. Logo, em. Cristo não havia nenhuma vontade sensitiva.
2. Demais. — Segundo Agostinho, a sensualidade é significada pela serpente. Ora, nada de serpentino houve em Cristo; pois, teve a semelhança do animal venenoso, sem veneno, no dizer de Agostinho, comentando aquilo da Escritura. - Como Moisés no deserto levantou a serpente. Logo, em Cristo não havia nenhuma vontade sensitiva.
3. Demais. — A vontade resulta da natureza, como se disse. Ora, Cristo não teve senão uma natureza, além da divina. Logo, em Cristo não houve senão uma vontade humana.
Mas, em contrário, diz Ambrósio: É minha a vontade a que chama sua, porque, como homem, assumiu a minha tristeza. E isso significa que a tristeza respeita à vontade humana de Cristo. Ora, a tristeza diz respeito à sensibilidade, como se estabeleceu na Segunda Parte. Logo, parece que houve em Cristo uma vontade sensitiva, além da racional.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, o Filho de Deus assumiu — natureza humana com todas as perfeições que ela encerra., Ora, a natureza humana implica também a animal, como na especie se inclui o gênero. Por onde e necessariamente, o Filho de Deus assumiu, com a natureza humana, também o pertencente à perfeição da natureza animal. O que inclui o apetite sensitivo, chamado sensualidade. Donde devemos concluir, que houve em Cristo o apetite sensitivo ou sensualidade. Devemos porém saber que a sensualidade ou o apetite sensível, enquanto por natureza obedece à razão, chama-se racional por participação, como está claro no Filósofo. E, estando a vontade na razão, como se disse, pelo mesmo motivo devemos dizer, que a sensualidade é vontade por participação.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colhe, quanto à vontade essencialmente dita que só existe na parte intelectiva. Ora, a vontade, como participação, pode residir na parte sensitiva, enquanto esta obedece à razão.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A sensualidade é significada pela serpente, não quanto à natureza da sensualidade, que Cristo assumiu; mas, quanto à corrupção da concupiscência, que não existiu em Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Aquilo que existe por causa de outra coisa com esta se identifica; assim a superfície, visível pela cor, faz com esta um só visível. Semelhantemente, porque a sensualidade não se chama vontade senão por participar da razão, assim como Cristo só tem uma natureza humana, assim também lhe atribuímos uma só vontade humana.
O primeiro discute-se assim. — Parece que Cristo não tem duas vontades – uma divina e outra humana.
1. — Pois, a vontade é o motor primeiro e o primeiro imperante em todo sujeito dela dotado. Ora, em Cristo o primeiro motor e o primeiro imperante era a vontade divina; porque tudo o humano em Cristo era movido pela vontade divina. Logo, parece que em Cristo só havia uma vontade – a divina.
2. Demais. — Um instrumento não se move por vontade própria, mas pela vontade do movente. Ora, a natureza humana era em Cristo instrumento da sua divindade, Logo, a natureza humana de Cristo não se movia por vontade própria, mas pela divina.
3. Demais. — Em Cristo só há multiplicidade no atinente à natureza. Ora, a vontade não pertence à natureza, pois, ao passo que o natural é necessário, o voluntário não o é. Logo, Cristo tinha uma só vontade.
4. Demais. — Damasceno diz, que querer de certo modo não é próprio da natureza, mas da nossa inteligência, isto é, pessoal. Ora, toda vontade é uma determinada vontade, porque não pertence a um gênero o que não pertence a nenhuma espécie dele. Logo, toda vontade pertence à pessoa. Ora, em Cristo houve e há uma só pessoa. Logo, Cristo tem uma só vontade.
Mas, em contrário, o Evangelho: Pai, se é do teu agrado, transfere de mim este cálix não se faça contudo a minha vontade, senão a tua. O que Ambrósio comenta: Assim como assumiu a minha vontade, assumiu a minha tristeza. E noutro lugar: Refere ao homem a sua vontade e ao Pai a divindade. Pois, a vontade do homem é temporal e a vontade divina, eterna.
SOLUÇÃO. — Certos disseram que Cristo tem uma só vontade. Mas, para o afirmarem foram levados por diversas razões. — Assim; Apolinário não admitia que Cristo tivesse uma alma racional; mas, que o Verbo estava em lugar da alma, ou ainda, do intelecto. Ora, como a sede da vontade é a razão, no dizer do Filósofo, resultava não ter Cristo uma vontade humana. E portanto, só tinha uma vontade. — E semelhantemente Eutiques e todos os que admitiam como composta a natureza de Cristo eram forçados a lhe atribuir uma só vontade. — Também Nestório, que ensinava ser a união de Deus e do homem feita só pelo afeto e pela vontade, admitia só uma vontade em Cristo. — Depois, porém, Macário, o patriarca Antioqueno, Ciro Alexandrino, Sérgio Constantinopolitano e certos sequazes deles atribuíam a Cristo uma só vontade, embora lhe atribuíssem duas naturezas unidas na hipóstase. Porque diziam que a natureza humana de Cristo não tinha nunca nenhum movimento próprio, mas que só era movida pela divindade, como se lê na Epístola Sinódica do Papa Ágato. — Por isso, no Sexto Sínodo, celebrado. em Constantinopla, foi determinado que se devem admitir em Cristo duas vontades. Assim, nele se lê: De acordo com o que os Profetas outrora disseram de Cristo, e com o que ele próprio nos ensinou, e nos transmitiu o símbolo dos santos Padres, confessamos haver nele duas vontades naturais e dois modos naturais de agir.
E era necessário dizer assim. Pois é manifesto que o Filho de Deus assumiu a natureza humana perfeita, como demonstramos. Ora, a natureza humana completa supõe a vontade, faculdade natural dela como o intelecto, segundo resulta do dito na Primeira Parte. Donde forçosamente devemos concluir que o Filho de Deus assumiu a vontade humana ao mesmo tempo que a natureza humana. Ora, pela assunção da natureza humana a natureza divina do Filho de Deus não sofreu nenhum detrimento; deve portanto ter vontade, como demonstramos na Primeira Parte. Donde necessariamente concluímos, que em Cristo há duas vontades, a divina e a humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Tudo o existente em a natureza humana de Cristo estava sujeito ao nuto da vontade divina; mas daí se não segue que em Cristo não houvesse movimentos da vontade próprios à natureza humana. Pois, também os pios atos de vontade dos outros santos obedecem à vontade de Deus, que obra neles o querer e o perfazer, como diz o Apóstolo. Embora, pois, a vontade não possa ser interiormente movida por nenhuma criatura, é porem, interiormente movida por Deus, como dissemos na Primeira Parte. E assim também a vontade humana de Cristo obedecia à vontade divina, segundo aquilo da Escritura: Para fazer a tua vontade, Deus meu, eu o quis. Daí o dizer Agostinho: Quando o Filho disse ao Pai — não o que eu quero, mas o que tu queres — de que te serve ajuntares as palavras seguintes e dizeres — mostrou verdadeiramente ter a vontade sujeita ao seu Pai — como se nós negássemos que a vontade do homem deve estar sujeita à vontade de Deus?
RESPOSTA À SEGUNDA. — O instrumento é propriamente movido pelo agente principal; mas de modos diversos conforme a propriedade da natureza dele, Pois o instrumento inanimado como o machado ou a serra é movido pelo artífice pelo só movimento corpóreo; ao passo que o instrumento animado pela alma sensível é movido pelo apetite sensitivo como o cavalo pelo cavaleiro; e enfim o instrumento animado pela alma racional é movido pela vontade dela como pelo império do senhor é movido o escravo a praticar um ato, cujo escravo é como um instrumento animado, no dizer do Filósofo. Assim, pois, a natureza humana em Cristo foi o instrumento da divindade, para que fosse movido pela vontade própria.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O poder mesmo da vontade é natural e resulta necessariamente da natureza. Mas, o movimento ou o ato mesmo dessa potência, também chamado vontade, é às vezes natural e necessário, por exemplo, em respeito à felicidade; outras vezes provém do livre arbítrio da razão e não é necessário nem natural, como resulta do dito na Segunda Parte. E contudo, também a razão em si mesma, princípio desse movimento, é natural. E portanto, além da vontade divina é mister admitirmos em Cristo a vontade humana não só enquanto potência natural, ou como movimento natural, mas também como um movimento da razão.
RESPOSTA À QUARTA. — A expressão — querer de certo modo — designa um modo determinado de querer. Ora, um modo determinado pertence à coisa mesma de que é modo. Ora, a vontade, pertencendo à natureza, o princípio do querer de certo modo também pertence à natureza, não absolutamente considerada mas enquanto existente numa determinada hipóstase. Por onde, também a vontade humana de Cristo teve um certo modo determinado por ter existido na hipóstase divina, de modo que se movia sempre ao nuto da divina vontade.
O segundo discute-se assim. — Parece que em Cristo não há um só ser, mas dois.
1. — Pois, diz Damasceno, as coisas resultantes da natureza se duplicam, em Cristo. Ora, o ser resulta da natureza, pois, vem da forma. Logo, em Cristo há dois seres.
2. Demais. — O ser do Filho de Deus é a natureza divina mesma, e é eterno. Ora, o ser do homem Cristo não é a natureza divina, mas um ser temporal. Logo, em Cristo não há só um ser.
3. Demais. — Na Trindade, embora sejam três as pessoas, há contudo um só ser, por causa da unidade da natureza. Ora, em Cristo há duas naturezas, embora haja uma só pessoa. Logo, em Cristo não há só um ser, mas dois.
4. Demais. — Em Cristo, a alma dá um certo ser ao corpo, por ser a forma dele. Ora, não lhe dá o ser divino, pois, é incriado. Logo, em Cristo há outro ser além do divino. E assim, em Cristo, não há só um ser.
Mas, em contrário. — Um ente é ser na medida em que é um, pois, unidade e ser se convertem. Se, pois, em Cristo houvesse dois seres e não um só, haveria em Cristo dualidade e não, unidade.
SOLUÇÃO. — Havendo em Cristo duas naturezas e uma hipóstase, há de necessariamente haver dualidade no que pertence à natureza, e unidade no que só respeita à hipóstase. Ora, o ser diz respeito tanto à natureza como à hipóstase: à hipóstase, como ao que tem o ser; à natureza, como ao pelo que um ente existe. Pois, a natureza é significada a modo de forma, chamada ser por ser o princípio da existência dos entes; assim a brancura é a que torna um ser branco e a humanidade, homem. Ora, devemos considerar que, havendo uma forma ou natureza, não pertinente ao ser pessoal da hipóstase subsistente, esse ser não se considera como próprio dessa pessoa, em sentido absoluto, mas sim relativamente; assim, ser branco é próprio a Sócrates, não enquanto Sócrates, mas enquanto branco. E nada impede um tal ser multiplicar-se numa hipóstase ou pessoa; pois, um é o ser pelo qual Sócrates é branco, e outro o pelo qual é músico. Mas aquele ser próprio à hipóstase mesma ou à pessoa em si mesma, é impossível multiplicar-se numa hipóstase ou numa pessoa; pois, é impossível não seja um só o ser de uma coisa.
Se, pois, a natureza humana o Filho de Deus a tivesse, não hipostaticamente ou pessoalmente,mas acidentalmente, como certos ensinaram. seria forçoso admitir em Cristo duas existências: uma enquanto Deus e outra, enquanto homem. Como Sócrates tem um ser enquanto branco, e outro, enquanto homem; porque, ser branco não pertence ao ser mesmo pessoal de Sócrates; ao passo que ter cabeça, corpo e alma, tudo pertence à pessoa mesma de Sócrates; e assim, tudo isso não faz de Sócrates senão um único ser. E se se desse, que depois da constituição da pessoa de Sócrates, é que ele viesse, a ter mãos, pés, ou olhos — como acontece com um cego nato — tudo isso não enriqueceria o ser de Sócrates, mas só constituiria uma relação com tais coisas. Pois, então, lhe atribuíamos o ser, não só pelo que já antes tinha, mas também pelo que depois se lhe acrescentou. Assim, pois, como a natureza humana está unida ao Filho de Deus hipostática ou pessoalmente, como dissemos, e não acidentalmente, resulta por consequência que, com a natureza humana, não adquiriu Cristo nenhum ser pessoal, mas só uma nova relação do ser pessoal preexistente com a natureza humana; de modo que a sua pessoa já a devíamos considerar como subsistente, não só segundo a natureza divina, mas também, segundo a humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O ser resulta da natureza, não pelo ter ela, mas por ser o princípio dele; ao passo que resulta da pessoa ou da hipóstase, que o têm. Por isso, Cristo tem, antes, a unidade hipostática do que a dualidade resultante da natureza.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O ser eterno do Filho de Deus, que é a natureza divina, torna-se o ser do homem, por ser a natureza humana assumida pelo Filho de Deus na unidade de pessoa.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Como dissemos na Primeira Parte, por ser a pessoa divina idêntica à natureza, não há nas pessoas divinas outro ser além do ser da natureza; e por isso, as três pessoas não tem senão um ser. Ora, teriam um ser tríplice, se fosse nelas uma coisa o ser da pessoa e outro, o da natureza.
RESPOSTA À QUARTA. — A alma de Cristo lhe dá o ser ao corpo, pelo tornar atualmente animado; o que é dar-lhe o complemento da natureza e da espécie. Mas se entendemos o corpo como perfeito pela alma, sem a hipóstase que os contém a um e a outra, esse todo composto da alma e de corpo, enquanto significado pelo nome de humanidade, não o é como um: ser, mas, como o princípio de um ser, E por isso é o ser mesmo da pessoa subsistente, enquanto tem relação com tal natureza; e dessa relação a causa é a alma, enquanto aperfeiçoa a natureza humana, informando o corpo.
O primeiro discute-se assim. — Parece que em Cristo não há unidade, mas dualidade.
1 — Pois, diz Agostinho: A forma de Deus assumiu a forma de servo; ambos Deus, por causa do Deus assumente; ambos homem, por causa do homem assumido. Ora, ambas essas afirmações não se podem fazer senão por serem dois. Logo, em Cristo há dualidade.
2. Demais. — Onde quer que haja uma coisa e outra coisa, aí há duas coisas. Ora, Cristo é uma coisa e outra coisa, conforme o diz Agostinho: Sendo a forma de Deus, tomou a forma de servo, essas duas coisas reduzidas à unidade; mas é uma coisa por causa do Verbo e outra, por causa do homem. Logo, em Cristo há duas coisas.
3. Demais. — Cristo não é só homem, porque se fosse um puro homem não seria Deus. Logo, é ainda algo mais, além de homem. E assim há em Cristo uma coisa e outra coisa. Logo, em Cristo há dualidade.
4. Demais. — Cristo é algo, que é o Pai, e algo, que não é o Pai. Logo, Cristo é uma coisa e outra coisa. Logo, em Cristo há dualidade.
5. Demais. — Assim como no mistério da Trindade há três pessoas numa só natureza, assim no mistério da Encarnação há duas naturezas numa só pessoa. Ora, por causa da unidade da natureza, não obstante a distinção da pessoa, o Pai e o Filho são um só, segundo aquilo do Evangelho: Eu e o pai somos uma mesma coisa. Logo, não obstante a unidade de pessoa, por causa da dualidade das naturezas, em Cristo há dualidade,
6. Demais. — O Filósofo diz, que unidade e dualidade são predicações denominativas. Ora, Cristo tem dualidade de naturezas. Logo, em Cristo há dualidade.
7. Demais. — Assim como a forma acidental é causa da alteridade, assim a forma substancial, da aliedade, como diz Porfírio. Ora, em Cristo há duas naturezas substanciais — a humana e a divina. Logo, Cristo é uma coisa e outra coisa e portanto há nele dualidade.
Mas, em contrário, Boécio diz: Tudo o que é, enquanto é, é um. Ora, nós confessamos ser Cristo uno. Logo, é Cristo uno.
SOLUÇÃO. — A natureza, em si mesma considerada, em significação abstrata, não pode ser verdadeiramente predicada do suposto ou pessoa, a não ser de Deus em quem não difere a existência (quod est) e a essência (quo est), como demonstramos na Primeira Parte. Mas, havendo em Cristo duas naturezas, a divina e a humana, uma delas, a divina, pode ser predicada de Deus em abstrato e em concreto. Assim, dizemos que o Filho de Deus, suposto em o nome de Cristo, é a natureza divina e é Deus. A natureza humana, porém, não pode ser, em si mesma, predicada de Cristo, em abstrato, mas só em concreto, isto é, enquanto significada no suposto. Pois, não podemos verdadeiramente dizer que Cristo é a natureza humana, por não ser próprio da natureza humana predicar-se do seu suposto. Mas dizemos que Cristo é homem, assim como — Cristo é Deus. Ora, Deus significa quem tem a divindade e homem, quem tem a humanidade. Mas, uma coisa é ter a humanidade, expressa pela palavra homem; e outra, o tê-la, significada pelos vocábulos Jesus ou Pedro. Pois, a palavra homem significa ter a humanidade indistintamente, assim como o nome de Deus implica em ter indistintamente a divindade. Ao passo que o nome de Pedro ou o de Jesus implica em ter a humanidade distintamente, isto é, com certas propriedades individuais; assim como o nome de Filho de Deus importa em ter a divindade com uma determinada propriedade pessoal.
Ora, a dualidade numérica existe em Cristo em relação às naturezas mesmas. Por onde, se ambas as naturezas fossem predicadas de Cristo em abstrato, resultaria a existência de dois Cristos. Mas, como as duas naturezas não se predicam de Cristo, senão enquanto significa das no suposto, é forçoso dizer- se, em razão do suposto, que em Cristo há unidade ou dualidade. — Ora, certos atribuíram a Cristo dois supostos, mas uma só peso soa, a qual, na opinião deles, desempenha o papel de suposto completo, perfeitamente completo. Por onde, os que introduziram em Cristo dois supostos atribuíam- lhe a dualidade, em sentido neutro; mas como lhe atribuíam uma só pessoa, admitiam nele a unidade em sentido masculino. Porque o gênero neutro designa uma realidade informe e imperfeita; ao passo que o gênero masculino designa um ser formado e perfeito. - Os Nestorianos, por seu lado, atribuindo a Cristo duas pessoas, diziam que Cristo encerra uma dualidade, não só em sentido neutro, mas ainda masculino. — Nós, porém, que admitimos em Cristo uma só pessoa e um suposto, como do sobredito se colige, temos também que admitir a unidade de Cristo, não só em sentido masculino, mas ainda em sentido neutro.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nas palavras citadas de Agostinho a expressão ambos não deve ser entendida como aplicada ao predicado e quase significando que Cristo é ambos, mas, como aplicada ao sujeito. E então o vocábulo ambos é tomado, não quase significando os dois supostos, mas sim, os dois nomes expressivos das duas naturezas em concreto. E também podemos dizer que ambos, isto é, Deus e homem, são Deus, por causa do Deus assumente; e ambos, isto é, Deus e homem, são homem, por causa do homem assumido.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Quando se diz — Cristo é uma causa e outra causa — devemos tomar essa expressão como significando que tem uma e outra natureza. Tal é a exposição de Agostinho quando, depois de ter dito — no mediador entre Deus e os homens, uma causa é o Filho de Deus e outra, o Filho do homem — acrescenta: Digo uma coisa — para distinguir as substâncias; não digo outro – por causa da unidade de pessoa. Donde o dizer Gregório Nazianzeno: Se devemos nos exprimir compendiosamente, o Salvador é uma coisa e outra coisa quanto às duas substâncias de que é composto; entendendo-se que não quero identificar o invisível com o visível, e o atemporal com o temporal. Mas longe de mim o querer ver nele um ser e outro ser; pois, ambos não fazer mais que um.
RESPOSTA À TERCEIRA. — É falsa a proposição — Cristo é somente homem — porque não exclui outro suposto, mas, a outra natureza; pois, os termos postos no predicado são tomados formalmente. Mas, um acréscimo, que os fizesse aplicar ao suposto; tornaria verdadeira a proposição — Cristo é somente aquilo que é o homem. Donde porém não se segue seja algo outro que o homem, porque sendo – outro – um relativo, que exprime a diversidade de substância, refere-se propriamente ao suposto, como todos os relativos expressivos de uma relação pessoal. Mas a consequência é: Logo, tem outra natureza.
RESPOSTA À QUARTA. — Quando dizemos — Cristo é algo, que é o Pai — algo é aí tomado pela natureza divina, que mesmo em abstrato se predica do Pai e do Filho. Mas, quando dizemos — Cristo é algo que não o Pai — algo é tomado, não pela natureza humana mesmo enquanto significada em abstrato, mas enquanto significada em concreto. Não, certo, segundo um suposto distinto, mas segundo um suposto indistinto; isto é, segundo sub-está à natureza e não, às propriedades individuantes. E por isso, daí não se segue que Cristo seja uma e outra coisa, ou que seja dois; pois, o suposto da natureza humana em Cristo, que é a pessoa do Filho de Deus, não faz número com a natureza divina, predicada do Pai e do Filho.
RESPOSTA À QUINTA. — No mistério da divina Trindade, a natureza divina é predicada, mesmo em abstrato, das três Pessoas; e por isso podemos dizer, absolutamente falando, que as três Pessoas são uma só realidade. Mas, no mistério da Encarnação, ambas as naturezas não são predicadas, em abstrato, de Cristo; e por isso não podemos dizer, em sentido absoluto, que Cristo seja dois.
RESPOSTA À SEXTA. — Dois significa dualidade, não num outro ser, mas no ser mesmo de que é predicado. Ora, a predicação é feita, do suposto, implicado em o nome de Cristo. Embora, pois, Cristo tenha dualidade de naturezas, como porém não tem dualidade de supostos, não podemos dizer que seja dois.
RESPOSTA À SÉTIMA. — A alteridade implica diversidade acidental. Por onde, a diversidade acidental basta para que o vocábulo outro se aplique em sentido absoluto, a um ser. Ao passo que a aliedade implica diversidade substancial. Ora, a substância designa não só a natureza, mas também o suposto, como diz Aristóteles. Por onde, a diversidade de natureza não basta para se atribuir a aliedade a um ser, em sentido absoluto, salvo se houver diversidade quanto ao suposto. A diversidade de natureza porém é causa da aliedade relativa, isto é, segundo a natureza, se não houver diversidade do suposto.
O duodécimo discute-se assim. — Parece que Cristo, enquanto homem, é hipóstase ou pessoa.
1 — Pois, o conveniente a qualquer homem convém a Cristo, enquanto homem. Porque é semelhante aos outros homens, conforme à Escritura: Fazendo-se semelhante aos homens. Ora, todo homem é pessoa. Logo, Cristo, enquanto homem, é pessoa.
2. Demais. — Cristo, enquanto homem, é uma substância de natureza racional. Não porém uma substância universal. Logo, uma substância individual. Ora, a pessoa não é senão uma substância individual de natureza racional, como define Boécio. Logo, Cristo, enquanto homem é uma pessoa.
Mas, em contrário. — Cristo, enquanto homem, não é uma pessoa eterna. Se, pois, Cristo, enquanto homem, é pessoa, segue-se que há em Cristo duas pessoas — uma temporal e outra eterna. O que é errôneo, como se disse.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, a palavra homem, tomada em sentido restritivo, pode significar o suposto ou a natureza. Assim, pois, quando dizemos, Cristo, enquanto homem, é pessoa, se homem é tomado como suposto, é manifesto que, enquanto homem, Cristo é pessoa; pois, o suposto da natureza humana não é senão a pessoa do Filho de Deus. Se, porém, for tomado pela natureza, então é susceptível de dupla interpretação. Num sentido, significa que à natureza humana é próprio existir numa pessoa. E então, neste sentido também a proposição é verdadeira; pois tudo o subsistente em a natureza humana é pessoa. Noutro sentido pode entender-se como significando que a natureza humana em Cristo tem uma personalidade própria causada pelos princípios da natureza humana. E então Cristo enquanto homem, não é pessoa; porque a natureza humana não subsiste por si, separadamente da natureza divina, ao contrário do que exige a noção de pessoa.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Todo homem é propriamente pessoa, porque é pessoa todo o ser subsistente da natureza humana. Mas é próprio ao homem Cristo, que a pessoa subsistente na sua natureza humana seja eterna e não causada pelos princípios da natureza humana. Por onde, é pessoa, de um modo, enquanto homem; mas de outro modo não o é, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A substância individual, posta na definição de pessoa, supõe uma substância completa subsistente por si, separada das outras. Do contrário, a mão do homem podia chamar-se pessoa, pois é uma certa substância individual; mas, por ser uma substância individual existente em outra, não pode chamar se pessoa. Pela mesma razão, também não o pode a natureza humana em Cristo, que contudo pode chamar-se indivíduo ou um ser particular.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como pessoa significa um ser completo e por si subsistente em a natureza racional; assim também, a hipóstase, o suposto e um ser da natureza pertencente ao gênero da substância significam um ente subsistente por si mesmo. Por onde, assim como a natureza humana não é em si mesma uma pessoa separada da pessoa do Filho de Deus, assim também não é em si mesma uma hipóstase ou um suposto ou um ser da natureza. E portanto, no sentido em que deve ser negada a proposição — Cristo, enquanto homem, é pessoa — devem também sê-lo todas as outras.
O undécimo discute-se assim. — Parece que Cristo, enquanto homem, é Deus.
1. — Pois, Cristo é Deus pela graça da união. Ora, Cristo, enquanto homem, tem a graça da união. Logo, Cristo, enquanto homem, é Deus.
2. Demais. — Perdoar os pecados é próprio de Deus, segundo a Escritura: Eu. sou, eu mesmo sou o que apago as tuas iniquidades por amor de mim. Ora, Cristo, enquanto homem, perdoa os pecados, conforme o diz o Evangelho: Pois, para que saibais que o Filho do homem tem poder sobre a terra de perdoar pecados, etc. Logo, Cristo, enquanto homem, é Deus.
3. Demais. — Cristo não é homem, em geral, mas este determinado homem. Ora, Cristo, enquanto este determinado homem, é Deus; pois, este homem determinado designa um suposto eterno que, por natureza, é Deus. Logo, Cristo, enquanto homem, é Deus.
Mas, em contrário. — O conveniente a Cristo, enquanto homem, convém a qualquer homem. Se, logo, Cristo, enquanto homem, fosse Deus, resultaria que todo homem seria Deus, o que evidentemente é falso.
SOLUÇÃO. — A palavra homem, tomada em sentido restritivo, pode entender-se de dois modos. — Primeiro, na sua natureza. E então, não é verdade que Cristo, enquanto homem, seja Deus; porque a natureza humana é distinta da divina, por uma diferença de natureza. — Noutro sentido, pode ser entendida em razão do suposto. E então, sendo o suposto da natureza humana, em Cristo, a pessoa do Filho de Deus, a que convém por natureza ser Deus, é verdade que Cristo, enquanto homem, é Deus. Como porém o termo, tomado em sentido restritivo, mais propriamente significa a natureza, que o suposto, como se disse, por isso, a proposição — Cristo, enquanto homem, é Deus — deve antes ser negada que afirmada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não é pela mesma razão que um ser se move para um termo e constitui esse termo; pois, um ser se move em razão da matéria ou do sujeito; e é atual, em razão da forma. Semelhantemente, não convém a Cristo, à mesma luz, ordenar-se a ser Deus pela graça da união, e ser Deus. Mas, aquilo lhe convém, segundo a natureza humana; e isto, segundo a divina. Por onde, é verdadeira a proposição — Cristo, enquanto homem, tem a graça da união; mas não esta — Cristo, enquanto homem, é Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O Filho do homem tem na terra o poder de perdoar os pecados, não em virtude da natureza humana, mas, da natureza divina. Dessa natureza divina promana o poder de perdoar os pecados por autoridade própria; ao passo que a natureza humana exerce a função de instrumento e de ministro. Donde, expondo esse assunto, o dizer Crisóstomo: O Evangelho disse sinaladamente — na terra, de perdoar os pecados — para mostrar que à natureza humana uniu, por uma união indivisível, o poder da divindade. Pois, embora feito homem, continuou sendo o Verbo de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Quando se diz — este homem — o pronome demonstrativo liga a palavra homem – ao suposto. Por isso, a proposição — Cristo, enquanto este homem, é Deus, é mais verdadeira que a outra — Cristo enquanto homem é Deus.
O décimo discute-se assim. — Parece falsa a proposição: Cristo, enquanto homem, é criatura, ou, começou a existir.
1. — Pois, nada há de criado em Cristo, senão a natureza humana. Ora, é falsa a proposição: Cristo, enquanto homem é a natureza humana. Logo, também esta outra o é: Cristo, enquanto homem, é criatura.
2. Demais. — O predicado se aplica mais estreitamente a um termo restritivo do sujeito do que ao próprio sujeito da proposição. Assim, se dissermos — o corpo, enquanto colorido, é visível — segue-se que o colorido é visível. Ora, como foi dito, não podemos conceder em sentido absoluto a proposição — o homem Cristo é uma criatura. Logo, nem esta: Cristo enquanto homem é criatura.
3. Demais. — Tudo o predicado de um homem, como tal, é dele predicado essencial e absolutamente; pois, falar de uma coisa, considerada como tal e de maneira essencial, é o mesmo; como diz Aristóteles. Ora, é falsa a proposição: Cristo é, em si e absolutamente considerado, criatura. Logo, também esta outra é falsa: Cristo, enquanto homem, é criatura.
Mas, em contrário. — Tudo o existente ou é o Criador ou é criatura. Ora, é falsa a proposição: Cristo, enquanto homem, é Criador. Logo é verdadeira a outra: Cristo, enquanto homem, é criatura.
SOLUÇÃO. — Quando dizemos — Cristo, enquanto homem — a palavra homem. pode ser retomada na explicação, em razão do suposto ou em razão da natureza. Se for em razão do suposto, sendo o suposto da natureza humana em Cristo eterno e incriado, será falsa a proposição: Cristo, enquanto homem, é criatura. Se porém o for em razão da natureza humana, então é verdadeira; pois, em razão da natureza humana, ou segundo a natureza humana, convêm-lhe ser criatura, como dissemos.
Devemos porém saber, que o nome, assim retomado na explicação, mais propriamente é tomado pela natureza que pelo suposto; pois, é reaplicado com força de predicado, que é tomado formalmente. Pois, a expressão — Cristo enquanto homem — equivale a esta — Cristo, segundo é homem. Logo, mais é para conceder que para negar a proposição: Cristo, segundo é homem, é uma criatura. Se, porém, fizéssemos alguns acréscimo, por onde o termo se referisse ao suposto, a proposição deveríamos antes negá-la que concedê-la; por exemplo, se dissessemos: Cristo, enquanto um determinado homem, é uma criatura.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora Cristo não seja a natureza humana, contudo tem a natureza humana. Ora, o nome de criatura, por natureza, se predica não só em abstrato, mas ainda em concreto; assim, dizemos que a humanidade é criatura, e que o homem é uma criatura.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A palavra homem, aplicada ao sujeito, mais se refere ao suposto; mas, quando usada em sentido restritivo, refere-se, antes, à natureza, como se disse. Ora, sendo a natureza criada, e o suposto incriado, embora não concedamos em sentido absoluto a proposição — Este homem não é criatura concedemos porém esta outra: Cristo, segundo é homem, é criatura.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A todo homem, que é suposto só da natureza humana, é lhe natural não existir senão segundo a natureza humana. Por onde, de qualquer suposto tal segue-se, se segundo é homem é uma criatura, que é criatura absolutamente falando. Ora, Cristo, não somente é o suposto da natureza humana, mas também da divina, segundo a qual tem o ser incriado. Donde, pois, não se segue, se, enquanto homem é uma criatura, que o seja absolutamente falando.