Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute-se assim. — Parece que não era conveniente a Cristo orar por si.
1. — Pois, diz Hilário: Embora de nada lhe servisse proferir palavras, contudo falou, para proveito da nossa fé. Assim, pois, parece que Cristo não orou por si, mas por nós.
2. Demais. — Ninguém ora senão pelo que quer; pois, como já dissemos, a oração é uma expansão da nossa vontade afim de ser satisfeita por Deus. Ora, Cristo queria sofrer o que sofria; e assim diz Agostinho: O homem, muitas vezes, encoleriza-se contra a sua vontade; embora não queira, se entristece; dorme embora não queira; e contra a vontade tem fome e sede. Ora, Cristo por tudo isso passou porque quis. Logo, não lhe competia orar por si.
3. Demais. — Cipriano diz: O Mestre da paz e da unidade não quis orar secreta e privadamente, como quem, quando ora, não pede só por si. Ore, Cristo fez o que ensinou, como o diz a Escritura: Jesus começou a fazer e a ensinar. Logo, Cristo não orou nunca só por si.
Mas, em contrário, o próprio Senhor, ao orar, dizia: Glorifica ao teu Filho.
SOLUÇÃO. — Cristo orou por si, de dois modos. Primeiro, exprimindo o afeto da sua sensibilidade, como se disse; ou ainda o da simples vontade, considerada como natureza, como quando pediu que passasse de si o cálice da paixão. De outro modo, exprimindo o afeto da vontade deliberada, considerada como razão, como quando pediu a glória da ressurreição. E isto racionalmente. Pois, como dissemos, Cristo quis recorrer ao Pai, na sua oração, para nos dar o exemplo de orar e para nos mostrar, que o seu Pai é o autor de que eternamente procede, segundo a sua natureza divina e que dele tem, segundo a sua natureza humana, todo bem que tem. Assim, pois, como pela sua natureza humana já tinha recebido do Pai certos bens, assim também dele esperava certos outros, que ainda não tinha, mas que devia receber. Por onde, assim como pelos bens já recebidos, na sua natureza humana, dava graças ao Pai, reconhecendo-lhe a autoridade deles conforme o lemos nos Evangelhos, assim também para que reconhecesse o Pai como autor, pedia-lhe nas suas orações o que lhe faltava à natureza humana, por exemplo, a glória do corpo e outros bens semelhantes. E nisto também nos deixou o exemplo, para que demos graças pelos bens que recebemos e peçamos também os que ainda não temos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Hilário se refere à oração vocal, que não precisava, por si mesmo, mas só por causa de nós; por isso diz sinaladamente, que de nada lhe servia proferir palavras. Se, pois, o Senhor ouviu o desejo dos pobres, como diz a Escritura, com muito maior razão só a vontade de Cristo tem o poder da oração, perante o Pai. E por isso ele mesmo dizia: Eu bem sabia que tu sempre me ouves; mas falei assim por atender a este povo que está à roda de mim, para que eles creiam que tu me enviaste.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo por certo queria sofrer o que sofria, e no tempo em que o sofria; queria contudo, depois da paixão, ser glorificado no seu corpo, glória que ainda não tinha. E essa ele a esperava do Pai como autor dela. Donde, e convenientemente, o pedir lho.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A glória mesma que Cristo pedia nas suas orações, era pertinente à salvação dos outros, segundo aquilo do Apóstolo: Ressuscitou para nossa justificação. E por isso, as orações que fazia, por si, de certo modo também redundavam para os outros. Assim como quando pedimos um bem a Deus para o empregarmos em benefício alheio, oramos não só por nós mesmos mas também pelos outros.
O segundo discute-se assim. — Parece que a Cristo, considerado na sua sensibilidade, convinha orar.
1. — Pois, diz a Escritura, da pessoa de Cristo: O meu coração e a minha carne se regozijaram no Deus vivo. Ora, a sensibilidade significa um desejo da carne. Logo, a sensibilidade de Cristo podia ascender para o Deus vivo, regozijando-se e, pela mesma razão, orando.
2. Demais. — Ora quem deseja o que pede. Mas, Cristo pediu o que desejava a sua sensibilidade, quando disse – Passe de mim este cálice, como se lê no Evangelho. Logo Cristo, na sua sensibilidade, orou.
3. Demais. — É mais unir-se a Deus em pessoa, que ascender a ele pela oração. Ora, a sensibilidade foi assumida por Deus na unidade de pessoa, assim como qualquer outra parte da natureza humana. Logo, com maior razão, podia ascender a Deus pela oração.
Mas, em contrário, o Apóstolo diz que o Filho de Deus, pela natureza que assumiu, fez-se semelhante aos homens. Ora, os outros homens não oram pela sensibilidade. Logo, também Cristo não orou pela sensibilidade.
SOLUÇÃO. — Orar, mediante a sensibilidade, podemos entendê-la de dois modos.
Primeiro, de modo que a oração mesma seja um ato sensível. E deste modo, Cristo não orou sensivelmente; pois. a sua sensibilidade foi da mesma natureza e da mesma espécie que a nossa. Ora, em nós a sensibilidade não pode orar, por duas razões. — Primeiro, porque o movimento da sensibilidade não pode transcender o sensível, e portanto, não pode subir até Deus, como o exige a oração. — Segundo, porque a oração implica uma certa ordem. consistente em desejarmos alguma coisa, como devendo ser realizada por Deus; o que é próprio só da razão. Por onde, a oração é um ato de razão.
Noutro sentido, dizemos que alguém ora mediante a sensibilidade, porque quando faz a sua oração propõe a Deus o objeto do desejo da sua sensibilidade. E neste sentido Cristo orou mediante a sua sensibilidade: enquanto que a sua oração exprimia o afeto da sensibilidade, como se fosse advogado desta. E para assim nos dar uma tríplice instrução. Primeiro, para mostrar que assumiu verdadeiramente a natureza humana, com todos os seus afetos naturais. Segundo, para mostrar que é lícito ao homem, pelo seu afeto natural, querer o que Deus não quer. Terceiro, para mostrar que o homem deve sujeitar o seu afeto próprio à vontade divina. Donde o dizer Agostinho: Cristo, enquanto homem, mostra uma certa vontade particularmente humana, quando diz — Passe de mim este cálice; pois, essa era urna vontade humana, a querer uma causa propriamente particular. Mas como quer, com coração recto, ser homem e ser dirigido para Deus, acrescenta — Contudo, não se faça a minha vontade, senão a tua; como se dissesse — considera-te em mim pois, posso querer algo como próprio, embora Deus queira de outro modo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A carne se regozija em Deus vivo, não pelo ato pelo qual ascende para o Deus vivo, mas pelo redundar nela o coração; isto é, enquanto o apetite sensitivo segue o movimento racional.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora a sensibilidade quisesse o que a razão pedia, pedi-lo, contudo, nas suas orações, não era próprio da sensibilidade, mas, da razão.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A união, na pessoa, se funda no ser pessoal, implicado em qualquer parte da natureza humana. Mas, a ascensão da oração é mediante um ato só próprio da razão, como se disse. Logo, a comparação não colhe.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a Cristo não convinha o orar.
1. — Pois, como diz Damasceno, orar é pedir o que convém, a Deus. Ora, podendo Cristo fazer tudo, não lhe convém pedir nada a ninguém. Logo, parece que não convinha a Cristo o orar.
2. Demais. — Não devemos pedir, em nossas orações, o que sabemos haver certamente de se dar; assim, não oramos para o sol nascer amanhã. Também não é conveniente pedir em nossas orações o que sabemos que de nenhum modo se dará. Ora, Cristo sabia, em tudo, o que haveria de suceder. Logo, não lhe cabia pedir nada, pela oração.
3. Demais. — Damasceno diz que a oração é ascensão do nosso intelecto para Deus. Ora, o intelecto de Cristo não precisava ascender para Deus, com quem estava sempre unido, não só pela união hipostática mas também pela fruição da beatitude. Logo, a Cristo. não convinha orar.
Mas, em contrario, o Evangelho: Aconteceu naqueles dias que saiu ao monte a orar e passou toda a noite em oração a Deus.
SOLUÇÃO. — Como dissemos na Segunda Parte, a oração é um como expandir-se da nossa vontade para com Deus, para que a satisfaça. Se, pois, Cristo tivesse uma só vontade – a divina, de nenhum modo lhe cabia orar; pois, a vontade divina faz por si mesma tudo quanto quer, segundo a Escritura: Quantas coisas quis todas fez o Senhor. Mas, tendo Cristo uma vontade divina e outra, humana, e não sendo a sua vontade humana capaz, por si mesma, de fazer o que quer, senão por virtude divina, daí vem que era natural a Cristo orar, enquanto homem e dotado de uma vontade humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo, como Deus, podia fazer tudo o que queria; mas não como homem, pois, como tal, não tinha a onipotência, como dissemos. Contudo quis ele, mesmo como homem e Deus, fazer oração ao Pai, não porque não fosse onipotente, mas para nossa instrução. — Primeiro, para mostrar que vinha do Pai, sendo por isso que disse: Falei assim, isto e, orei por atender a este povo que está à roda de mim, para que eles creiam que tu me enviaste. Donde o dizer Hilário: Não precisava de orar; orou por nós, para que o Filho não fosse ignorado. — Segundo, para nos dar o exemplo da oração. E por isso diz Ambrósio : Não escuteis com ouvidos enganosos, pensando que o Filho de Deus orava, por fraqueza, pedindo se realizar o que não podia ele realizar. Mas, como fonte de todo poder, como mestre da obediência, ensina-nos, com o seu exemplo, os preceitos da virtude. Daí o dizer Agostinho: O Senhor podia, sob a forma de servo, e se o fosse necessário, orar em silêncio; mas quis se apresentar ao Pai como pecador, para lembrar que era o nosso Mestre.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Entre as várias coisas futuras que Cristo sabia, sabia que certas se realizariam mediante suas orações. E essas não era inconveniente as pedisse a Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A ascensão não é mais que o movimento para o que está em cima. Ora, o movimento, conforme Aristóteles, é susceptível de duplo sentido. - Num sentido próprio implica a passagem a potencia para o ato, enquanto é o ato do que é imperfeito. E assim, ascender é próprio do que é potencial, e não atual, em relação ao que está em cima. E neste sentido Damasceno diz: O intelecto humano de Cristo não precisava de ascender para Deus, pois, estava sempre unido com Deus, tanto pela sua existência pessoal, como pela contemplação beatífica. — Noutro sentido, o movimento é o ato do perfeito, isto é, do que existe em ato; e assim chamamos movimento ao inteligir e ao sentir. E neste sentido, o intelecto de Cristo sempre ascende para Deus, pois sempre o contemplava como o que tinha uma existência superior.
O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não estava sujeito a si próprio.
1. — Pois, diz Cirilo, numa Epístola aceita pelo Sínodo Efesino: Não era Cristo seu próprio servo nem senhor. E assim, é fátuo, e ainda mais, impio, senti-lo e dizê-lo, O que também afirma Damasceno quando diz: O mesmo ser, Cristo, não podia ser servo e senhor de si mesmo. Ora, Cristo é chamado servo do Pai enquanto lhe está sujeito. Logo, Cristo não estava sujeito a si mesmo.
2. Demais. — O servo supõe o senhor. Ora, não pode haver relação de um ser para consigo mesmo; e por isso diz Hilário, que nada é semelhante ou igual a si mesmo. Logo, não podemos dizer fosse Cristo senhor de si mesmo. E por consequência, nem que a si mesmo estivesse sujeito.
3. Demais. — Assim como a alma racional e a carne constituem um só homem; assim o Deus e o homem constituem um só Cristo, no dizer de Atanásio. Ora, não dizemos, de ninguém, que esteja sujeito a si mesmo ou seja servo de si mesmo ou seja maior que si mesmo, pelo fato de ter o corpo sujeito à alma. Logo, nem que Cristo fosse sujeito a si mesmo, pelo fato de ser a sua humanidade sujeita à divindade.
Mas, em contrario, Agostinho diz: A verdade mostra, deste modo, isto é, pelo qual o Pai é maior que Cristo segundo a natureza humana, que o Filho é menor que si próprio.
Demais. — Como Agostinho argumenta no mesmo lugar, o Filho de Deus recebeu a forma de servo mas de modo a não perder a forma de Deus. Ora, pela forma de Deus, comum ao Pai e ao Filho, o Pai é maior que o Filho segundo a natureza humana. Logo, também o Filho é maior que si próprio segundo a natureza humana.
Demais. — Cristo, segundo a natureza humana, é servo de Deus Padre, conforme àquilo do Evangelho. Vou para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus. Ora, quem é servo do Pai o é também do Filho; do contrário, nem tudo o que é do Pai seria do Filho. Logo, Cristo é servo de si mesmo e a si mesmo sujeito.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, ser senhor e servo é atributo da pessoa ou da hipóstase, segundo uma certa natureza. Quando, pois, dizemos que Cristo é Senhor ou servo de si mesmo, ou que o Verbo de Deus é Senhor do homem Cristo, essas expressões podemos entendê-las de dois modos. - Num sentido se aplicam em razão de uma hipóstase ou pessoa; como se uma seja a Pessoa do Verbo de Deus, como senhor, e outra a do homem, como servo; o que constitui a heresia de Nestório. Por isso, na condenação de Nestório, diz o Sínodo Efesino: Quem disser que é Deus ou Senhor o Verbo de Cristo, procedente de Deus Padre, e não o confessar simultaneamente como Deus é homem, por ter o Verbo sido feito carne, segundo as Escrituras, seja anátema. E é nesse sentido que o negam Cirilo e Damasceno; devendo-se no mesmo sentido negar que Cristo fosse menor que si próprio, ou a si próprio sujeito. — De outro modo podemos entender as referidas expressões relativamente à diversidade de naturezas numa mesma Pessoa ou hipóstase. E então podemos dizer, relativamente a uma delas, na qual convém com o Padre, que Cristo, simultaneamente com o Pai é senhor e domina; relativamente porém à outra natureza, na qual convém conosco, está sujeito e serve. E, neste sentido, Agostinho diz ser o Filho menor que si próprio.
É mister porém saber que, sendo o nome de Cristo um nome de Pessoa, como o é o nome de Filho, podemos atribuir a Cristo, essencial e absolutamente falando, o que lhe convém em razão da sua Pessoa, que é eterna; e sobretudo essas relações consideradas como mais propriamente pertencentes à pessoa ou à hipóstase. Ao passo que o que lhe convém segundo a natureza humana, devemos, antes, lhe atribuir com restrição. Assim, podemos dizer que Cristo é, absolutamente falando, Máximo, Senhor e Chefe; mas o ser sujeito ou servo ou menor devemos lhe atribuir com restrição, isto é, segundo a natureza humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cirilo e Damasceno negam fosse Cristo Senhor de si mesmo, se isso importar pluralidade de supostos, necessária para alguém ser senhor de si mesmo, absolutamente falando.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Absolutamente falando, é necessário que o senhor seja diferente do servo; pode porém o domínio e a servidão se revestirem de um certo aspecto, de modo que possa alguém ser senhor e servo de si mesmo, a luzes diversas.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Por causa das partes diversas do homem, das quais uma é superior e outra inferior, diz também o Filósofo, que pode haver justiça do homem para consigo mesmo, quando o irascível e o concupiscível obedecem à razão. E assim, desse modo, pode um homem considerar-se sujeito a si mesmo e de si mesmo servidor, conforme as suas partes diversas.
As RESPOSTAS aos outros argumentos resultam claras do que ficou dito. — Assim, Agostinho afirma que o Filho é menor que si próprio, ou a si mesmo sujeito, segundo a natureza humana, não segundo a diversidade de supostos.
O primeiro discute-se assim. — Parece que não devemos dizer que Cristo fosse sujeito ao Pai.
1 — Pois, tudo o sujeito a Deus Pai é criatura; porque, como foi dito, na Trindade nada serve nem é sujeito. Ora, não podemos dizer, em sentido absoluto, que Cristo seja uma criatura, como dissemos. Logo, também não devemos dizer, em sentido absoluto, que Cristo fosse sujeito a Deus Pai.
2. Demais. — Dissemos que está sujeito a Deus o que lhe serve ao domínio. Ora, não podemos atribuir nenhuma servidão à natureza humana de Cristo. Pois, diz Damasceno: Devemos saber, que não podemos considerar sujeita à servidão a natureza humana de Cristo. Pois, as denominações de servidão e de domínio não designam a natureza nem são sinais de conhecimento, mas exprimem relações, como os nomes de paternidade e de filiação. Logo, Cristo, pela sua natureza humana, não está sujeito a Deus Padre.
3. Demais. — O Apóstolo diz: E quando tudo lhe estiver sujeito, então ainda o mesmo Filho estará sujeito aquele que sujeitou a ele todas as coisas. Ora, como diz ainda o Apóstolo, nós não vemos ainda que lhe esteja sujeito tudo. Logo, Cristo ainda não está sujeito ao Pai, que lhe sujeitou tudo.
Mas, em contrario, o Senhor diz: O Pai é maior que eu. E Agostinho: Não impropriamente diz a Escritura ser o Filho igual ao Pai e o Pai, maior que o Filho. Entendendo-se sem nenhuma confusão que é igual, pela forma de Deus; e maior, por ter o Filho se revestido da forma de servo. Ora, o menor é sujeito ao maior. Logo, Cristo, pela forma de servo, é sujeito ao Pai.
SOLUÇÃO. — Ao ser de uma determinada natureza convêm-lhe as propriedades dessa natureza. Ora, a natureza humana, pela sua condição, está sujeita a Deus, de três modos. — Primeiro, pelo grau de bondade. Pois, ao passo que a natureza divina é a bondade mesma por essência, como diz Dionísio, a natureza criada tem uma certa participação da bondade divina, sendo como um raio projetado por ela. — Segundo, a natureza humana está sujeita a Deus, quanto ao poder divino; isto é, enquanto que a natureza humana, como qualquer outra criatura, está sujeita ao ato da disposição divina. — Terceiro, a natureza humana especialmente está sujeita a Deus, pelo seu ato próprio; isto é, enquanto que, por vontade própria, lhe obedece aos mandamentos.
E essa tríplice sujeição ao Pai, Cristo a confessa, de si mesmo. — A primeira, quando diz: Por que me perguntas tu o que é bom? Bom só Deus o é. O que comenta Jerônimo: Aquele que chamara ao mestre, bom e não o proclamara Deus ou Filho de Deus, fica sabendo que, apesar de ser um homem santo, não é bom em comparação com Deus. Com o que quis significar que Cristo, pela sua natureza humana, não chegava ao grau da bondade divina. E como, quando não se trata da grandeza material, ser maior é o mesmo que ser melhor, na expressão de Agostinho, por isso, o Pai é considerado maior que Cristo, quanto à natureza humana deste. — A segunda espécie de sujeição é atribuída a Cristo, por crermos que o que Cristo praticou, na sua humanidade, ele o fez por disposição divina. Donde o dizer Dionísio, que Cristo está sujeito às ordens de Deus Padre. E esta é uma sujeição de servidão, pela qual toda criatura serve a Deus, sujeitando-se-lhe às ordens, conforme àquilo da Escritura: A criatura servindo-te a ti, seu Criador. E neste sentido também o Apóstolo diz, que o Filho de Deus recebeu a forma de servo. — A terceira sujeição, Cristo a si mesmo se atribui, quando diz: Eu sempre faço o que é do seu agrado. E essa é a sujeição da obediência. Donde o dizer o Apóstolo: Feito obediente ao Pai até a morte.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como não devemos pensar seja Cristo Criatura, absolutamente falando, mas só em virtude da sua natureza humana, quer lhe acrescentemos, quer não, qualquer restrição, como dissemos; assim também não devemos pensar, em sentido absoluto, que Cristo fosse sujeito ao Pai, senão só pela sua natureza humana, mesmo se não lhe acrescentarmos essa restrição. É conveniente porém lha acrescentarmos, para cortar o erro de Ario, que dizia ser o Filho menor que o Pai.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A relação de servidão e do domínio se funda na ação e na paixão; enquanto que é próprio do servo ser movido pelo império do Senhor. Agir, porém, não o atribuímos à natureza como agente, mas à pessoa; pois, o ato é próprio do suposto e do indivíduo, segundo o Filósofo. Mas, a seção é atribuída à natureza como o meio pelo qual a pessoa ou a hipóstase age. Por onde, embora não possamos dizer, propriamente, que a natureza é senhora ou serva podemos porém afirmar com propriedade, que qualquer hipóstase ou pessoa seja senhora ou serva, segundo esta natureza determinada, ou aquela outra. E assim, nada impede dizermos que Cristo está sujeito ao Pai ou lhe é servo, pela sua natureza humana.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz Agostinho: Então Cristo transmitirá o seu reino a Deus e ao Pai, quando conduzir a plena visão os justos sobre os quais reina pela fé, de modo que contemplem a essência comum do Pai e do Filho. E então estará totalmente sujeito ao Pai não só em si mesmo, mas também nos seus membros, pela plena participação da vontade divina. Embora, pois, atualmente todas as causas lhe estejam sujeitas, quanto ao seu poder, conforme o Evangelho: Tem-se me dado o poder no céu e na terra.
O quarto procede-se assim. — Parece que Cristo não podia merecer para os outros.
1 — Pois, diz a Escritura: A alma que pecar essa morrerá. Logo, e pela mesma razão, a alma que merecer será remunerada. Logo, não é possível tivesse Cristo merecido pelos outros.
2. Demais. — Todos nós participamos da plenitude da graça de Cristo, diz o Evangelho. Ora, os outros homens, tendo a graça de Cristo, não podem merecer pelos outros, segundo aquilo da Escritura: Se Noé, Daniel e Jó se acharem na cidade não livrarão nem a seus filhos nem a suas filhas, mas eles livrarão as suas almas pela sua própria justiça. Logo, também Cristo não podia merecer nada por nós.
3. Demais. — A recompensa que merecemos nos é devida por justiça e não por graça, como o diz o Apóstolo. Se, pois, Cristo mereceu a nossa salvação, segue-se que a nossa salvação não provém da graça de Deus, mas da sua justiça; e que procede injustamente com os que não salva, pois que o mérito de Cristo se estende a todos.
Mas, em contrario, o Apóstolo: Assim como pelo pecado de um só incorreram todos os homens na condenação, assim também pela justiça de um só recebem todos os homens a justificação da vida. Ora, o demérito de Adão redundou em condenação dos outros. Logo, com maior razão, o mérito de Cristo deriva para os demais.
SOLUÇÃO. — Como dissemos, Cristo teve a graça, não só como um homem particular, mas como cabeça de toda a Igreja, a que todos estão unidos como os membros à cabeça, com o que se constitui misticamente uma pessoa. Donde vem, que o mérito de Cristo se estende aos demais, como membros seus; assim corno num homem a ação da cabeça de certo modo pertencente a todos os membros, pois, não sente só para si, mas por todos eles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O pecado de uma pessoa particular não é nocivo senão a si mesma; mas o pecado de Adão, constituído por Deus princípio de toda a natureza, se transmitiu aos outros pela propagação da carne. E semelhantemente, o mérito de Cristo, constituído por Deus, cabeça de todos os homens, quanto à graça, estende-se a todos os seus membros.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Os outros recebem da plenitude de Cristo, não certo a fonte da graça, mas uma certa graça particular. Por onde, não é necessário que os outros homens possam merecer para os demais, como Cristo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como o pecado de Adão não se transmite aos outros senão pela geração carnal, assim também aos outros não se transmite o mérito de Cristo senão pela regeneração espiritual, operada pelo batismo, pelo qual nos incorporamos em Cristo, segundo aquilo do Apóstolo: Todos os que fostes batizados em Cristo revestiste-vos de Cristo. E isto mesmo é uma graça, o ser concedido ao homem regenerar-se em Cristo. E assim, a salvação do homem provém da graça.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a ação humana de Cristo não podia ser meritória.
1. — Pois, Cristo, antes da sua morte, já gozava da visão beatífica tal como agora a goza. Ora, quem goza da visão beatifica não pode merecer. Pois, a sua caridade é o prêmio da bem-aventurança, porquanto nesta se funda o gozo da visão; portanto, não pode ser princípio de merecimento, porque o mérito não se confunde com o prêmio. Logo, Cristo, antes da paixão não merecia, como atualmente não merece.
2. Demais. — Não merecemos o que nos é devido. Ora, por natureza Filho de Deus, Cristo tem direito à herança eterna que os outros homens merecem pelas suas boas obras. Logo, Cristo, que desde o princípio foi Filho de Deus, nada podia merecer para si.
3. Demais. — Se temos um bem principal, não merecemos propriamente o que desse bem resulta. Ora, Cristo tinha a glória da alma, da qual ordinariamente resulta a glória do corpo, como diz Agostinho; em Cristo, porém, por exceção, a glória da alma não derivava para o corpo. Logo, Cristo não mereceu a glória do corpo.
4. Demais. — A manifestação da excelência de Cristo não é um bem de Cristo mesmo, mas, dos que o conhecem. Pois, como prêmio aos seus amantes Cristo promete que há de se lhes manifestar, como está no Evangelho: Aquele que me ama será amado de meu Pai e eu o amarei também e me manifestarei a ele. Logo, Cristo não mereceu a manifestação da sua grandeza.
Mas, em contrário, o Apóstolo diz: Feito obediente até a morte; pelo que Deus também o exaltou. Logo, obedecendo mereceu a sua exaltação e, portanto, algo para si mereceu.
SOLUÇÃO. — Ter um bem, por si mesmo, é mais nobre que tê-lo por outrem; pois, como diz Aristóteles, a coisa que por si. mesma o é, é mais nobre que a que o é mediante outro. Ora, dizemos que tem uma causa por si mesmo quem de certo modo é causa dela, para si mesmo. Ora, a causa primeira de todos os nossos bens como autor deles, é Deus. E, assim, nenhuma criatura tem qualquer bem por si mesma, segundo aquilo da Escritura: Que tens tu que não recebesses? Mas, podemos, de modo secundário, ser a causa de um bem que tenhamos, como um resultado da nossa colaboração com Deus; e então, o que temos pelo nosso próprio mérito nós o temos de certo modo por nós mesmo. Por onde, o que temos por mérito o temos mais nobremente que o que temos sem mérito.
Ora, toda perfeição e toda nobreza devemos atribuí-las a Cristo. Logo e consequentemente, também ele terá por mérito o que os outros por mérito o tem; salvo se se tratar daquilo cuja carência mais prejudique à dignidade e à perfeição de Cristo do que a aumente, pelo mérito. Por isso, Cristo não mereceu a graça, nem a ciência, nem a beatitude da alma, nem a divindade; pois, como não merecemos senão o que não temos, havia Cristo, algum tempo, de ter carecido desses bens; ora, carecer deles mais diminui a dignidade de Cristo, do que a aumenta o merecê-las. A glória do corpo porém, ou de um bem semelhante, é menor que a dignidade de merecer, que pertence à virtude da caridade. Donde devemos concluir, que Cristo teve por mérito a glória do corpo e o que implica uma excelência exterior sua, como a ascensão, a veneração e bens tais. Por onde é claro que podia merecer para si.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O gozo, que é um ato de caridade, pertence à glória da alma, que Cristo não mereceu. Por onde, de ter merecido pela caridade, não se segue a confusão do mérito e do prêmio. Mas não mereceu pela caridade, enquanto era a sua caridade a de quem frui da visão beatífica, mas a do viandante. Pois, ao mesmo tempo foi viandante e vidente, como demonstramos. Logo, como já agora não é viandante, não está em estado de merecer.
RESPOSTA À SEGUNDA· — A Cristo, enquanto Filho de Deus e Deus por natureza é lhe devida a glória divina e o domínio sobre todas as coisas, como ao primeiro e supremo Senhor. Nem por isso, contudo, deixa de lhe ser devida a glória, como a quem é bem-aventurado; e essa, de certo modo, devia tê-la sem mérito; e de certo outro, com mérito, como do sobredito se colige.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O redundar da glória, do alma para o corpo, resulta da ordenação divina, de conformidade com os méritos humanos. Assim, como merecemos pelo ato, que a alma exerce sobre o corpo, assim, também somos remunerados pela glória, redundante, da alma, para o corpo. E por isso, não somente a glória da alma, mas também a do corpo é susceptível de mérito, segundo aquilo do Apóstolo: Dará vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito, que habita em vós. E assim podia ser merecida por Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — A manifestação da excelência de Cristo inclui-se-lhe no bem, que lhe resulta do conhecimento dos outros, embora mais principalmente pertença ao bem dos que o conhecem, pelo ser que em si mesmos tem. Mas isso mesmo se refere a Cristo, enquanto membros dele.
O segundo discute-se assim. — Parece que há em Cristo várias operações humanas.
1. — Pois, Cristo, enquanto, homem, participa da natureza vegetativa das plantas e da natureza sensitiva dos animais; e, pela sua natureza intelectual, é como os outros homens, semelhante aos anjos. Ora, uma é a atividade da planta, como planta e outra, a do animal, como animal. Logo, Cristo, enquanto homem, tem várias operações.
2. Demais. — As potências e os hábitos distinguem-se pelos seus atos. Ora, a alma de Cristo tinha diversas potências e diversos hábitos. Logo, também diversas operações.
3. Demais. — Os instrumentos devem ser proporcionados às operações. Ora, o corpo humano tem diversos membros de formas diferentes e portanto acomodados a operações diferentes. Logo, a natureza humana de Cristo tem diversas operações.
Mas, em contrário diz Damasceno: a operação resulta da natureza. Ora em Cristo há uma só natureza humana. Logo, em Cristo havia uma só operação humana.
SOLUÇÃO. — Sendo o homem o que é pela sua razão, chama-se operação humana, em sentido absoluto, a procedente da razão por meio da vontade, que é o apetite racional. Se houver porém no homem alguma operação não procedente da razão e da vontade, essa não será humana em sentido absoluto, mas convém ao homem por uma parte da natureza humana. E, ora, pela natureza mesma do elemento corpóreo, como ser levado para baixo; ora, pela virtude da alma vegetativa, como nutrir-se e crescer; ora, pela parte sensitiva, como ver e ouvir, imaginar e lembrar-se, desejar e encolerizar-se. E entre essas operações há diferenças. Pois, as operações da alma sensitiva são de certo modo obedientes à razão; e portanto são de certo modo racionais e humanas, isto é, enquanto obedientes à razão, como está claro no Filósofo. Quanto às operações resultantes da alma vegetativa, ou ainda da natureza elementar do corpo, essas não estão sujeitas à razão e portanto de nenhum modo são racionais nem humanas em sentido absoluto, mas só por uma parte da natureza humana.
Pois, como dissemos, quando o agente inferior age pela sua forma própria então a sua ação difere da do agente superior; mas quando o agente inferior não age senão enquanto movido pelo superior então ambos os agentes tem a mesma operação. Assim, pois, em qualquer homem puramente homem, uma é a operação do corpo elementar e da alma vegetativa e outra, a da vontade, que é propriamente humana; também e semelhantemente, uma é a operação da alma sensitiva, enquanto não movida pela razão e outra enquanto movida por ela, pois então, é a mesma que a da parte racional. Quanto à alma racional, ela só tem uma operação, se lhe atendermos ao princípio da operação, que é a razão ou a vontade; mas ela se diversifica pelos seus objetos diversos. E essa diversidade uns a chamaram diversidade, antes, de efeitos operados, que de operações, julgando a unidade de operação só relativamente ao princípio operativo. E é neste sentido que agora indagamos da unidade ou da pluralidade das operações de Cristo.
Portanto, no homem puro e simples, há só uma operação, chamada propriamente humana; além da qual, porém, há nele certas outras operações, não propriamente humanas, como dissemos. Mas no homem Jesus Cristo nenhum movimento havia da parte sensitiva que não fosse ordenado pela razão. Mesmo as operações naturais e corpóreas de certo modo lhe pertenciam à vontade, por querer a sua vontade que a sua carne agisse e sofresse como lhe é próprio, segundo dissemos. E, pois, muito mais é una a operação de Cristo, que em qualquer outro homem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A operação da parte sensitiva e também da nutritiva não é propriamente humana, como se disse. E contudo, em Cristo essas operações eram mais humanas, que nos outros.
RESPOSTA À SEGUNDA. — As potências e os hábitos se diversificam por comparação com os seus objetos. Por onde, a diversidade de operações responde à diversidade de potências e de hábitos, do mesmo modo pelo qual responde a objetos diversos. Ora, tal diversidade de operações não pretendemos excluir da humanidade de Cristo; assim como a determinada pela diversidade de instrumentos; mas só a procedente de um primeiro princípio ativo, como se disse.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO.
O primeiro discute-se assim. — Parece que em Cristo é só uma a operação da divindade e da humanidade.
1. — Pois, diz Dionísio: A operação de Deus para conosco foi discernidamente benigníssima, porquanto o Verbo supersubstancial humanou-se, íntegra e verdadeiramente, assumindo uma natureza semelhante à nossa, de nós mesmos recebida, e operou e sofreu tudo o que se compadecia com a sua operação divina e humana. E isso a que aí chama operação humana e divina, em grego se denomina, isto é, divino humano. Logo, parece que havia em Cristo uma operação composta.
2. Demais. — O agente principal e o instrumento tem uma mesma operação. Ora, a natureza humana em Cristo era instrumento da divina, como se disse. Logo, em Cristo, as operações divina e humana se identificam.
3. Demais. — Havendo em Cristo duas naturezas numa só hipóstase ou pessoa, necessariamente é um mesmo o ser da hipóstase ou da pessoa, pois, só o suposto subsistente é que opera; donde o dizer o Filósofo, que agir é próprio do indivíduo. Logo, em Cristo é uma mesma a operação da divindade e da humanidade.
4. Demais. — Assim como o existir é próprio da hipóstase subsistente, assim também o agir. Ora, por causa da unidade da hipóstase, Cristo tem um só ser, como se disse. Logo, também pela mesma unidade, há em Cristo unidade de operação.
5. Demais. — A uma obra corresponde uma operação. Ora, uma mesma era a obra da divindade e da humanidade, como a cura de um leproso ou a ressurreição de um morto. Logo, parece que em Cristo é uma mesma a operação da divindade e da humanidade.
Mas, em contrário, diz Ambrósio: Como pode uma mesma operação provir de potências diversas? Por ventura poderá o menor operar como o maior e haverá uma só operação onde há diversidade de substâncias?
SOLUÇÃO. — Como dissemos, os heréticos, que atribuíram a Cristo uma só vontade, atribuíram-lhe também uma só operação. E para que melhor compreendamos quão errônea é essa opinião, devemos considerar que quando há muitos agentes ordenados, o inferior é movido pelo superior; assim, no homem, o corpo é movido pela alma e as potências inferiores pela razão. Por onde, as ações e os movimentos do princípio inferior são, antes, efeitos operados, que operações; ao passo que as operações do princípio supremo são operações propriamente ditas. Assim, se disséssemos, que no homem o andar dos pés e o apalpar das mãos são operações dele, operando-os a alma — pelos pés, a primeira, e a segunda, pelas mãos. E sendo a mesma alma que opera, desses dois modos, da parte do agente, que é o primeiro princípio motor, há uma só e mesma operação; diferem elas porém quanto aos efeitos operados. Assim, pois, como, no homem, enquanto tal, o corpo é movido pela alma e o apetite sensitivo, pela razão, assim também, em Nosso Senhor Jesus Cristo, a natureza humana era movida e governada pela divina. Por isso, os referidos heréticos diziam que as operações são as mesmas, sem nenhuma diferença, relativamente à divindade que opera, mas são diversas as coisas operadas. E assim, a divindade de Cristo agia, de um modo, por si mesma, enquanto sustentava todas as coisas com o poder da palavra; e agia de outro modo, pela sua natureza humana, assim, por exemplo, andava corporalmente. Por isso, o Sexto Sínodo cita as palavras do herético Severo, que soam: As ações e as operações mesmas de Cristo muito diferiam entre si. Pois, umas eram próprias de Deus e outras, do homem. Assim, andar corporalmente sobre a terra por certo o pode o homem; mas, fazer andar os coxos e os que de nenhum modo são capazes de se mover, é próprio de Deus. Ora, uma e outra cousa o fez o Verbo incarnado, sem que fossem umas próprias de uma determinada natureza e outras, de outra, nem por serem diversas as obras diríamos, com acerto, que procedem de duas naturezas.
Mas, assim pensando, enganava-se. Pois, a ação do que é movido por outro é dupla: uma a tem pela sua forma própria, outra, enquanto recebe de fora o movimento. Assim, a ação do machado; pela forma própria dele, é cortar; mas, enquanto movido pelo artífice, a sua ação própria é fazer um móvel. Por onde, a operação própria de um ser é a que ele realiza em virtude da sua forma; nem pertence ao motor senão na medida em que dele se serve para a sua ação própria. Assim, aquecer é operação própria do fogo; não porém, do ferreiro, senão na medida em que se serve do fogo para aquecer o ferro. Mas a operação de um ser, só enquanto movido por outro, não difere da do agente que o move; assim, fazer um móvel não é operação diferente da do artífice. Por onde, sempre que o motor e o movido tem forma ou virtudes operativas diversas, então e necessariamente, uma é a operação do motor e outra, a do movido; embora o movido participe da operação do motor e o motor se sirva da operação do movido, e assim um obre com a cooperação do outro.
Assim, pois, em Cristo, a natureza humana tem uma forma e virtude próprias, pelas quais obra; e também a natureza divina. E portanto, a natureza humana tem uma operação própria distinta da operação divina, e vice-versa. Contudo, a natureza divina se serve da operação da natureza humana, como sendo a operação do seu instrumento; e semelhantemente, a natureza humana participa da operação da natureza divina, como o instrumento participa da operação do agente principal. E é o que diz Leão Papa: Uma e outra forma, isto é, tanto a natureza divina de Cristo como a humana, em comunhão com a outra, jaz o que lhe é próprio: o Verbo obra o que é próprio do Verbo, e a carne executa o que lhe pertence executar. Se, porém, a operação, da divindade e da humanidade fosse uma só em Cristo, deveríamos admitir ou que a natureza humana não tinha forma e virtude próprias, donde — sendo impossível dizê-lo, da natureza divina — se seguiria que em Cristo só havia a operação divina; ou que a divina virtude e a humana se fundiram em Cristo numa só virtude. Ora, tudo isso é impossível, pois, pela primeira hipótese teríamos de admitir a imperfeição da natureza humana de Cristo; e pela segunda, a confusão das naturezas.
Por isso e com razão o Sexto Sínodo condenando a opinião referida, dispõe: Glorificamos no mesmo Cristo Senhor nosso e verdadeiro Deus duas operações naturais indivisas, inconvertíveis, inconfusas, inseparáveis, isto é, uma operação divina e outra humana.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A operação teândrica isto é, divino humana ou humano divina, que Dionísio atribui a Cristo, ele não a funda em nenhuma confusão de operações ou de virtudes de ambas as naturezas; mas porque a divina operação de Cristo se serve da humana e a humana participa da virtude da divina. E por isso diz numa Epístola: Os seus atos humanos ele os realizava de modo superior ao humano, como o demonstra a conceição sobrenatural da Virgem e o fato de ter-se sustentado à tona da água apesar do peso do seu corpo. Ora, é manifesto, que tanto conceber como andar, a natureza humana o pode; mas, uma e outra coisa Cristo a fez sobrenaturalmente; do mesmo modo, quando curou o leproso pelo simplesmente tocar, obrava humanamente, enquanto Deus. Por isso Dionísio acrescenta: Não agia divinamente, como Deus, nem humanamente, como homem; mas tendo o Deus sido feito homem, obrava, por uma nova operação, obras próprias de Deus e do homem. - Mas, que entendia serem duas as operações em Cristo — uma da natureza divina e outra, da humana, resulta claro do passo onde, declara: Do pertinente à sua ação humana nem o Pai nem o Espírito Santo participam, por nenhuma razão, salvo se disséssemos participarem, por uma benigníssima e misericordiosa vontade, isto é, enquanto que o Pai e o Espírito Santo quiseram por sua misericórdia, que Cristo agisse como homem e sofresse. Mas acrescenta: Em todas as sublimíssimas e inefáveis obras divinas que obrou, feito homem, mostra-se imutavelmente Deus e Verbo de Deus. Por onde é claro que uma é a sua operação humana, da qual nem o Pai nem o Espírito Santo participam, salvo pela aceitação da sua misericórdia, e outra a que obra como Verbo de Deus, da qual participam o Pai e o Espírito Santo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Dissemos que um instrumento age quando movido pelo agente principal; mas, além dessa ação, pode o instrumento ter uma operação própria resultante da sua forma, como dissemos a respeito do fogo. Assim, pois, a ação do instrumento, como tal, não difere da do agente principal; mas pode, como um determinado ser que é, ter outra operação. Por onde, a operação da natureza humana de Cristo, enquanto instrumento da divindade, não difere da operação da divindade; assim, a salvação obrada pela humanidade não difere da operada pela divindade. Mas, a natureza humana em Cristo, enquanto uma determinada natureza, tem uma operação própria, além da divina, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Operar é próprio da hipóstase subsistente; mas, segundo a forma e a natureza da qual a operação recebe a sua espécie. Por onde, da diversidade das formas ou naturezas resultam espécies diversas de operações, ao passo que da unidade da hipóstase resulta a unidade numérica da operação especificada. Assim, o fogo tem duas operações especificamente diversas — iluminar e aquecer — por causa da diferença entre a luz e o calor; contudo, a iluminação é uma operação única e simultânea produzida pelo fogo. Semelhantemente, pelas suas duas naturezas, hão de ser por força duas e especificamente diferentes as operações de Cristo; mas, cada uma delas é numericamente uma e simultaneamente realizada por Cristo; assim um é o seu ato de andar e um, o de curar.
RESPOSTA À QUARTA. — Existir e operar a pessoa o tem da natureza, mas de modos diferentes. Pois, a existência pertence à constituição mesma da pessoa; e assim considerada, ela exerce a função de termo; e por isso a unidade de pessoa supõe a unidade do ser mesmo completo e pessoal. Mas a operação é um efeito da pessoa, em virtude de uma determinada forma ou natureza. Por isso, a pluralidade de operações não prejudica a unidade pessoal.
RESPOSTA À QUINTA. — Um é o efeito próprio da operação divina e outro, o da humana, em Cristo. Assim, efeito próprio da operação divina é a cura do leproso; ao passo que efeito próprio da natureza humana é o tê-lo tocado. Mas, ambas essas operações concorrem para o mesmo efeito, porque uma natureza age com a participação da outra, como dissemos.
O sexto discute-se assim. — Parece que havia em Cristo vontades contrárias.
1 — Pois, vontades contrárias supõem a contrariedade dos seus objetos; assim como também a contrariedade dos movimentos supõe a contrariedade dos seus termos, como está claro no Filósofo. Ora, Cristo, pelas suas vontades diversas, queria coisas contrárias; assim, pela vontade divina queria a morte, que repugnava à sua vontade humana. Donde o dizer Atanásio: Quando o Cristo exclama — Pai, se é possível, passe de mim este cálix, todavia não se faça nisto a minha vontade, mas sim: a tua; e ainda — o espírito está pronto mas a carne é fraca; revela ter duas vontades, - a humana que, pela fraqueza da carne, fugia o sofrimento; e a divina, pronta para a paixão. Logo, havia em Cristo vontades contrárias.
2. Demais. — O Apóstolo diz: Porque a carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne. Há, pois, vontades contrárias, quando o espírito deseja uma coisa e a carne, outra. Ora, tal se dava com Cristo; pois, pela vontade de caridade, que o Espírito Santo lhe causava na. alma, queria o sofrimento, segundo aquilo da Escritura. — Foi oferecido porque ele mesmo quis; ao contrário, pela carne, fugia o sofrimento. Logo, havia nele contrariedade de vontades.
3. Demais. — O Evangelho diz, que posto em agonia orava Jesus com maior instância. Ora, a agonia implica uma luta da alma, que tende para uma direção oposta. Logo, parece que em Cristo havia vontades contrárias.
Mas, em contrário, determina o Sexto Sínodo: Afirmamos duas vontades naturais não contrárias, ao invés do que os impios ensinam hereticamente; e que a vontade humana de Cristo obedece, sem resistência nem relutância, antes com sujeição, à sua vontade divina e onipotente.
SOLUÇÃO. — Não pode haver contrariedade, sem haver oposição fundada num mesmo sujeito e no mesmo ponto de vista. Pois, a diversidade fundada em coisas diferentes e a luzes diversas não basta para constituir uma contrariedade, nem ainda uma contradição; assim, se um homem for belo ou são de mãos e não de pés.
Por onde, para haver vontades contrárias é necessário, primeiro, que essa contrariedade tenha o mesmo sujeito. Assim, se a vontade de um quiser fazer uma coisa fundada numa razão universal, e a de outro não quiser fazer a mesma coisa por uma razão particular, não há absolutamente contrariedade de vontades. Por exemplo, se o rei quiser que um ladrão seja enforcado, para o bem da república, e um dos parentes deste não o quiser, pelo amor particular que lhe tem, não haverá contrariedade de vontades. Salvo talvez se a vontade do particular chegar a ponto de querer impedir o bem público, para conservar o seu bem particular; pois, então, a repugnância das vontades se funda no mesmo objeto.
Em segundo lugar é necessário, para haver vontades contrárias. que a contrariedade se funde na mesma vontade. Assim, se quisermos uma coisa pelo apetite racional e outra, pelo sensitivo, não há aí nenhuma contrariedade; salvo se o apetite sensitivo prevalecer a ponto de alterar ou retardar o apetite racional; pois, então, já o movimento contrário do apetite sensitivo teria, de certo modo, atingido a vontade racional em si mesma.
Donde devemos concluir, que embora a vontade natural e a vontade sensitiva, em Cristo, quisessem coisas diferentes das queridas pela vontade divina e pela sua própria vontade racional, não havia contudo nele nenhuma contrariedade de vontades. — Primeiro, porque nem a vontade sensitiva repudiava aquela razão pela qual a vontade divina e a vontade da razão humana, em Cristo, queriam a paixão. Pois, a vontade absoluta de Cristo queria a salvação do gênero humano; não podiam porém querê-la como um meio. Quanto, ao movimento da sensibilidade, ele não podia elevar-se até aí. — Segundo, porque nem a vontade divina nem a racional eram impedidas ou retardadas em Cristo pela vontade natural ou pelo apetite sensível. Semelhantemente e ao contrário, nem a sua vontade divina ou a vontade racional evitavam ou retardavam o movimento da vontade natural humana e o movimento da sensibilidade. Pois, aprazia a Cristo, pela sua vontade divina e também pela vontade racional, que a sua vontade natural e a sua vontade sensível se movessem conforme a ordem das suas naturezas. — Por onde é claro, que em Cristo não havia nenhuma repugnância ou contrariedade de vontades.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O mesmo querer a vontade humana de Cristo coisa diferente do que quisesse a sua vontade divina procedia da própria vontade divina, a cujo beneplácito a natureza humana de Cristo se movia com seu movimento próprio; como diz Damasceno.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A concupiscência da carne retarda ou impede em nós a concupiscência do espírito; o que não se dava em Cristo. E por isso em Cristo não havia, como há em nós, contrariedade entre a carne e o espírito.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo não sofreu agonia na parte racional da alma, enquanto isso implica um choque de vontades procedente de razões diversas; por exemplo, quando queremos uma coisa que a razão nos oferece, e queremos também o contrário, que ela nos propõe. O que provém da fraqueza da razão, incapaz de discernir o que é absolutamente melhor. E tal não se dava em Cristo, que, com a sua razão julgava ser, absolutamente, melhor cumprir pela sua paixão a vontade divina, no tocante à salvação do gênero humano. Houve porém agonia em Cristo quanto à parte sensitiva, que implica o temor do infortúnio iminente, como diz Damasceno.