Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute–se assim. – Parece que Deus não pode reduzir nenhum ser ao nada.
1. – Pois, diz Agostinho, Deus não é causa da tendência para o não ser. Ora, tal se daria se reduzisse ao nada qualquer criatura. Logo, Deus não pode reduzir nenhum ser ao nada.
2. Demais. – Deus, pela sua bondade, é a causa da existência das coisas, pois, como diz Agostinho, nós existimos porque Deus é bom. Ora, Deus não pode deixar de ser bom. Logo, não pode fazer com que as coisas deixem de existir, o que se daria se as reduzisse ao nada.
3. Demais. – Por alguma ação é que Deus haveria de reduzir seres ao nada. Ora, tal não é possível; pois, como toda ação tem como termo algum ser, também a ação do corruptor teria como termo um ser gerado, porque a geração de um é a corrupção de outro. Logo, Deus não pode reduzir nenhum ser ao nada.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Castiga–me, Senhor; porém seja isto segundo o teu juízo, e não no teu furor, para que não suceda que tu me reduzas a nada.
SOLUÇÃO. – Alguns ensinaram que Deus produziu as coisas agindo por necessidade de natureza. E a ser isso verdade, Ele não poderia reduzir nenhum ser ao nada, assim como não pode sofrer mutação na sua natureza. Mas, como já se demonstrou antes, essa posição é falsa e absolutamente contrária à fé católica, que ensina que Deus produziu os seres por livre vontade, conforme a Escritura: quantas coisas quis, todas fez o Senhor. Logo, o comunicar Deus a existência à criatura depende da sua vontade; nem, como já se disse, conserva a existência das coisas de modo diverso do pelo qual continuamente lhas dá. Por onde, assim como, antes de as coisas existirem, podia não lhes outorgar a existência e, assim, não as fazer; do mesmo modo, depois de havê–las feito, pode deixar de lhes influir a existência e, então elas deixariam de existir, o que seria reduzi–las ao nada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. O não ser não tem, por si, causa; porque nada pode ser causa senão na medida em que é ente, pois este, propriamente falando, é a causa da existência. Por onde, Deus não pode ser a causa da tendência para o não ser; essa tendência as criaturas a trazem em si mesmas, como vindas do nada. Mas, por acidente, Deus pode ser causa da redução das coisas ao nada, subtraindo–lhes a sua ação.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A bondade de Deus é causa das coisas, não por necessidade de natureza, porque essa bondade não depende das coisas criadas; mas age por livre vontade. Por onde, assim como Deus podia, sem prejuízo da sua bondade, não dar a existência às coisas; assim também, sem detrimento da mesma, pode não lhas conservar.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Não por uma ação, mas por cessar de agir, é que Deus reduziria um ser ao nada.
O segundo discute–se assim. – Parece que Deus conserva imediatamente todas as criaturas.
1. – Pois, Deus é conservador das coisas pela mesma ação pela qual é criador, como já se disse. Ora, Ele é o criador imediato de todas as coisas. Logo, também é conservador imediato delas.
2. Demais. – Uma cousa é mais próxima de si mesma que de qualquer outra. Ora, não pode ser comunicado a nenhuma criatura o conservar–se a si mesma. Logo, com maior razão, não lhe pode ser o conservar a outra. Portanto, Deus conserva todas as coisas, sem a mediação de nenhuma causa média conservadora.
3. Demais. – O efeito é conservado na existência pela sua causa, não só quanto ao vir a ser, mas também quanto ao existir. Ora, todas as coisas criadas, segundo parece, não são causas dos seus efeitos, senão quanto ao vir a ser; pois, são apenas causas motoras como antes já se estabeleceu. Logo não são causas conservadoras da existência dos seus efeitos.
Mas, em contrário, uma coisa é conservada pelo mesmo ser que lhe deu a existência. Ora, Deus dá a existência às coisas mediante certas causas médias. Logo, também as conserva na existência, mediante certas causas.
SOLUÇÃO. – Como já se disse de duplo modo um ser conserva outro na existência: indireta e acidentalmente, removendo ou impedindo a ação do corruptor; e diretamente e por si, porque desse ser depende a existência do outro, como da causa depende a existência do efeito. Ora, de ambos esses modos uma criatura é conservativa da existência de outra. Pois é manifesto que, mesmo nas coisas corpóreas, muitas são as que impedem as ações dos elementos corruptores e por isso se chamam conservativas de outras; assim, o sal impede a putrefação da carne e, semelhantemente, o mesmo se verifica com muitas outras coisas. Ora, dá–se também que a existência de certos efeitos depende de certas criaturas. Pois, sendo muitas as causas ordenadas, necessariamente é que o efeito dependa, primária e principalmente, da causa primeira; secundariamente, porém, de todas as causas médias. Por onde, principalmente, a causa primeira é conservativa do efeito; secundariamente porém todas as causas médias; e tanto mais quanto fôr a causa mais elevada e mais próxima da causa primeira. E por isso a conservação e a permanência das coisas atribui–se às causas superiores, mesmo nos seres corpóreos. Assim, como diz o Filósofo, o movimento diurno, que é o primeiro, é a causa da continuidade da geração; ao passo que o movimento segundo, pelo zodíaco, é a causa da diversidade, quanto à geração e à corrupção. E semelhantemente, os astrólogos atribuem a Saturno, supremo entre os planetas, o fixo e o permanente. E, portanto devemos concluir que Deus conserva as coisas na existência, mediante certas causas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus criou imediatamente todas as coisas, mas na criação mesmo delas estabeleceu–lhes uma ordem, de modo que umas dependessem de outras, pelas quais secundariamente se conservassem na existência; pressuposta porém a conservação principal que de Deus mesmo procede.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Causa própria sendo a conservativa do efeito dela dependente, assim como não é possível a nenhum efeito ser causa de si mesmo, mas lhe é contudo possível ser causa de outro; assim também, embora nenhum efeito possa ser conservativo de si mesmo, pode contudo sê–lo de outra cousa.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nenhuma criatura pode ser causa de outra, de modo que esta adquira uma nova forma ou disposição, salvo por meio de alguma mutação; pois, aquela sempre atua sobre um sujeito pressuposto. Mas depois que infundiu uma forma ou disposição no efeito, conserva–a sem nenhuma outra imutação deste. Assim compreende–se que haja mutação no ar recém–iluminado: mas a conservação da luz se dá sem nenhuma imutação do ar, só pela presença da luz.
O primeiro discute–se assim. Parece que as criaturas não necessitam de ser conservadas na existência por Deus.
1. – Pois, o que não pode deixar de existir não necessita ser conservado na existência, assim como o que não pode morrer não o necessita, para que não morra. Ora, há certas criaturas, que por natureza, não podem deixar de existir. Logo, nem todas necessitam ser conservadas na existência por Deus. Prova da média. O que é inerente a um ser o é necessariamente, e é impossível que o oposto também o seja; assim, o binário há de necessariamente ser par e é impossível seja impar. Ora, a existência em si resulta da forma, porque um ser é atual na medida em que tem forma. Ora, como há certas criaturas que são formas subsistentes, segundo foi dito, antes, dos anjos, a essas a existência, em si, é inerente. E a mesma essência têm os seres cuja matéria é potencial em relação a uma só forma, conforme se disse antes, dos corpos celestes. Logo, tais criaturas existem por natureza necessariamente e não podem deixar de existir; pois a potência para o não ser não pode fundar–se nem na forma, de que, em si, resulta a existência; nem na matéria existente com uma forma, que não pode perder, por não ser potencial em relação a outra forma.
2. Demais. – Deus é mais poderoso que qualquer agente criado. Ora, há agentes criados que podem comunicar ao seu efeito a conservação na existência; assim, cessada a ação do construtor, a casa permanece; cessada a ação do fogo, a água permanece aquecida por algum tempo. Logo, com maior razão, Deus pode cessada a sua operação, conferir à sua criatura a conservação na existência.
3. Demais. – Nada de violento pode suceder sem alguma causa agente. Ora, não é natural, mas violento, que uma criatura tenda para o não ser, pois todas buscam naturalmente a existência. Logo, nenhuma criatura pode tender para o não ser, sem que algum agente a leve à corrupção. Mas há certos seres sem corrupção possível, como as substâncias espirituais e os corpos celestes. Logo, tais criaturas não podem tender para o não ser, mesmo tendo cessado a operação de Deus.
4. Demais. – Há de ser por alguma ação que Deus conserva as coisas na existência. Ora, qualquer ação eficaz do agente causa algum efeito. Logo, é necessário que a ação de Deus conservador cause algo, na criatura. Ora, tal não se dá. Pois, tal ação não dá a existência à criatura, porque o já existente não pode vir a existir; nem algo de acrescentado, porque então, ou Deus não conservaria a criatura continuamente na existência, ou lhe acrescentaria algo, continuamente, o que é inadmissível. Logo, as criaturas não são conservadas na existência por Deus.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Sustentando tudo com a palavra da sua virtude.
SOLUÇÃO. – Necessário é admitir–se, tanto segundo a fé, como segundo a razão, que as criaturas são conservadas na existência por Deus. Para cuja evidência deve–se considerar que, de duplo modo um ser é conservado por outro. – De um modo, indiretamente e por acidente; assim, diz–se que conserva uma cousa quem dela remove o que a corrompe; por exemplo, diz–se que conserva uma criança quem a guarda para que não caia no fogo. E neste sentido se diz que Deus conserva, não todos os seres, mas alguns, porque certos há que não tem elementos corruptores, que necessitem ser removidos, para que sejam conservados na existência. – De outro modo se diz que um ser conserva outro, por si e diretamente, quando o conservado depende do conservador, a tal ponto que não pode existir sem este. E deste modo todas as criaturas necessitam da conservação divina. Pois, todas dependem de Deus, a tal ponto que nem por um momento poderiam subsistir, mas voltariam ao nada, se a operação divina não as conservasse na existência, como diz Gregório.
E isto pode ser compreendido do modo seguinte. Todo efeito depende da sua causa enquanto causa. Ora, devemos notar que qualquer agente é causa do seu efeito, só quanto ao vir a ser deste, e não diretamente, quanto à essência do mesmo. E isto se dá tanto com as coisas artificiais como com as naturais. Assim, o construtor é causa da casa quanto ao vir a ser desta e não, diretamente, quanto à existência dela. Porquanto, é manifesto que a forma da casa, que é composição e ordem, resulta da virtude natural de certas coisas. Pois, como o cozinheiro coze o alimento, ajudando–se da virtude natural ativa do fogo, assim o construtor faz a casa, servindo–se do cimento, das pedras e madeiras, susceptíveis e conservativas de tal composição e de tal ordem. Por onde, a existência da casa depende das naturezas dessas coisas, como o vir a ser dela depende da ação do construtor. – Ora, a essa mesma luz devemos considerar as coisas naturais. Porque, se um agente não é causa da forma, como tal, não será, por si, causa da existência resultante de tal forma, mas será causa do efeito, só quanto ao vir a ser. Mas é manifesto que se dois entes são da mesma espécie, um não pode ser, por si, causa da forma como tal do outro; porque então seria também causa da própria forma, pois arribas tem a mesma essência. Mas pode ser causa da dita forma, enquanto pertencente a uma determinada matéria, isto é, enquanto essa matéria adquire a tal forma. O que é ser causa só do vir a ser, como quando um homem gera outro e um fogo, outro fogo. E, portanto, sempre que é próprio ao efeito natural receber a impressão do agente, com a mesma essência que ela tem neste, então o vir a ser e não a existência do efeito é que depende do agente.
Mas, às vezes, não é da natureza do efeito receber a impressão do agente com a mesma essência que ela tem neste; como é patente em todos os agentes que não produzem o especificamente semelhante; assim os corpos celestes são causa da geração dos corpos inferiores, especificamente deles dissemelhantes. E tal agente pode ser causa da forma, quanto à essência de uma determinada forma e não só enquanto esta é recebida por tal matéria; sendo, portanto, causa, não só do vir a ser, mas também da existência.
Por onde, assim como o vir a ser de uma cousa não pode permanecer, cessada a ação do agente, causa do vir a ser do efeito; assim também a existência da mesma não pode permanecer, cessada a ação do agente, causa não só do vir a ser, como também da existência do efeito. E esta é a razão porque a água aquecida conserva o calmo, cessada a ação do fogo; ao passo que o ar não permanece iluminado, nem por um momento cessada a ação do sol. Pois a matéria da água é susceptível do calor do fogo do mesmo modo pelo qual ele está no fogo; e por isso, unindo–se perfeitamente com a forma do fogo conservará sempre o calor; se, porém participar algo imperfeitamente da forma do fogo, por uma como incoação, o calor não se conservará sempre, mas só temporariamente, por causa da fraca participação do princípio do calor. Ao passo que ao ar de nenhum modo é natural receber a luz, do mesmo modo pelo qual ela está no sol, de maneira que receba a forma do sol, que é o princípio da luz; e por isso, cessada a ação do sol, imediatamente cessa a luz, que se não radica no ar.
Ora, todas as criaturas estão para Deus, como o ar para o sol iluminador. Pois, assim como o sol luz por natureza, ao passo que o ar se torna luminoso participando, não da natureza, mas da luz do sol; assim, só Deus existe pela sua essência, porque esta é a sua existência; ao passo que todas as criaturas têm a existência participada, e não porque se identifique, nelas, a existência com a essência. Por onde, diz Agostinho: Se o poder governativo de Deus cessasse por algum instante nos seres criados, também cerraria imediatamente a espécie deles e toda a natureza sucumbiria, E o mesmo: Assim como o ar, com a presença da luz torna–se lúcido, assim o homem, quando Deus lhe esta presente, ilumina–se e, quando ausente, imediatamente se entenebrece.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A existência, em si, resulta da forma da criatura, suposto, contudo o influxo de Deus. Por onde, a potência para o não ser, nas criaturas espirituais e nos corpos celestes, está antes em Deus, que pode subtrair o seu influxo, do que na forma ou na matéria de tais criaturas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Deus não pode comunicar a nenhuma, criatura que se conserve existente, cessada a sua operação; assim como não lhe pode comunicar que não seja a causa dela. Pois, uma criatura precisa de ser conservada por Deus, na medida em que a existência do efeito depende da causa da existência. Por onde, não há símile com o agente, que não é causa do existir, mas só do vir a ser.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção procede quanto à conservação resultante da remoção do elemento corruptor: e, dessa, nem todas as criaturas necessitam, como já se disse.
RESPOSTA À QUARTA. – Deus não conserva as coisas por uma nova ação, mas continuando a ação pela qual deu a existência; e essa ação é independente do movimento e do tempo, assim como a conservação da luz, no ar, resulta do influxo continuado do sol.
O oitavo discute–se assim. – Parece que alguma resistência pode haver à ordem do governo divino.
1. – Pois, a Escritura diz: a língua deles e as invenções da sua fantasia são contra o Senhor.
2. Demais. – Nenhum rei justo pune os que não lhe resistem às ordens. Se pois, nada se opusesse à ordem divina, ninguém seria punido justamente por Deus.
3. Demais. – Cada ser está sujeito à ordem do governo divino. Ora, há seres opostos a outros. Logo, há coisas que contrariam à ordem divina.
Mas, em contrário, diz Boécio: nada há que queira ou possa opor–se a este Sumo Bem. É pois o Sumo Bem. que rege firmemente todas as causas e as dispõe suavemente, como diz a Escritura falando da divina sapiência.
SOLUÇÃO. – De duplo modo podemos considerar a ordem da divina providência: em geral, enquanto resultante da causa governadora de tudo; e em especial, enquanto resultante de uma causa particular, executiva do governo divino. – Ora, do primeiro modo, nada se opõe à ordem do governo divino, o que se evidencia por duas razões. A primeira é que a ordem desse governo tende totalmente para o bem; e cada cousa, na sua operação e no seu impulso, não tende senão para o bem; pois, ninguém opera o mal refletidamente, como diz Dionísio. A segunda resulta clara de que, como já se disse antes, toda inclinação natural ou voluntária de um ser não é mais do que uma impressão do primeiro motor, assim como a inclinação da seta para o alvo determinado não é mais do que uma impressão do sagitário. Por onde todos os seres que agem, natural ou voluntariamente, chegam como espontaneamente ao fim para que foram ordenados divinamente. Por onde se diz que Deus dispõe de tudo suavemente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Diz–se que alguns pensam, falam ou agem contra Deus, não porque totalmente resistam à ordem do governo divino, pois mesmo os pecadores buscam algum bem; mas porque se opõem a algum determinado bem que lhes é conveniente pela sua natureza ou estado. E por isso são justamente punidos por Deus.
E daqui se deduz clara a RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O fato de uma cousa se opor a outra mostra que um ser pode resistir à uma ordem procedente de alguma causa particular; não porém à ordem dependente da causa universal total.
O sétimo discute–se assim. Parece que podem acontecer coisas fora da ordem do governo divino.
1. – Pois, como diz Boécio, Deus dispõe tudo por meio do bem. Se portanto, nas coisas, nada acontecesse fora da ordem do governo divino, resultaria que nada nelas seria mau.
2. Demais. – Não é casual o que se realiza segundo a preordenação do governador. Se pois, nada acontece, nas coisas, fora da ordem do governo divino, resulta que, nelas, nada há de fortuito e casual.
3. Demais. – A ordem do governo divino é certa e imutável, porque se funda na razão eterna. Se pois, nas coisas, nada pode acontecer fora da ordem desse governo, resulta que tudo se realiza necessariamente e nada há, nelas, contingente, o que é inadmissível. Logo, podem–se dar coisas fora da ordem do governo divino.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Senhor, Senhor Rei Onipotente, porque no teu poder estão postas todas as coisas, e não há quem possa resistir à tua vontade.
SOLUÇÃO. – Pode um efeito resultar fora da ordem de uma causa particular; não, porém, fora da causa universal. E a razão é que, só por impedimento de alguma outra causa é que pode se dar alguma cousa fora da ordem de uma causa particular; e essa causa impediente há de necessariamente reduzir–se à causa primeira universal. Assim, uma indigestão se dá, fora da ordem da virtude nutritiva, por algum impedimento, por exemplo, de alimentos pesados, que hão de reduzir–se, necessariamente, a alguma outra causa, e assim até à causa primeira universal. Ora, como Deus é a causa primeira universal, não só de um gênero, mas da totalidade dos seres, é impossível que alguma cousa aconteça, fora da ordem do governo divino. Por onde, qualquer cousa que escape, de um lado, à ordem da divina providência, considerada essa ordem em relação a alguma causa particular, necessariamente há de entrar na sobredita ordem, por outra causa,
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Nada há no mundo que seja totalmente mau, porque o mal sempre se funda no bem, como antes se demonstrou. Por onde, diz–se má a cousa que escapa à ordem de algum bem particular. Se pois escapasse, totalmente à ordem do governo divino, reduzir–se–ia totalmente ao nada.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Chama–se casual, nas coisas, aquilo que escapa à ordem das causas particulares; mas, em relação à divina providência, nenhum acaso há no mundo, como diz Agostinho.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Alguns efeitos se chamam contingentes por comparação às causas próximas que, nos seus efeitos, podem ser deficientes. E não porque alguma cousa possa realizar–se escapando à ordem total do governo divino, porque o fato mesmo de alguma cousa se dar fora da ordem da causa próxima é em virtude de alguma causa sujeita ao governo divino.
O sexto discute–se assim. – Parece que todas as coisas são governadas imediatamente por Deus.
1. – Pois, Gregório Nisseno ataca a opinião de Platão, que admitia três sortes de providência: a primeira, a do primeiro Deus que provê aos corpos celestes e a todos os seres do universo; a segunda, a dos deuses secundários, que percorrem o céu e provêm às coisas sujeitas à geração e à corrupção: e a terceira, enfim, a de certos demônios, guardas na terra, das ações humanas. Logo, resulta que todas as coisas são governadas imediatamente por Deus.
2. Demais. – Sendo possível, melhor é fazer–se uma cousa por um só que por muitos, como diz Aristóteles. Ora, Deus pode, por si mesmo, sem causas intermediárias, governar todas as causas. Logo, conclui–se que as governa a todas imediatamente.
3. Demais. – Em Deus nada há de deficiente e imperfeito. Ora, é um defeito do governador governar mediante outros; assim um rei terreno, não podendo fazer tudo, nem estar presente em todas as partes do reino, necessita ter, ministros, para o seu governo. Logo, Deus governa todas as coisas imediatamente.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Assim como os corpos mais crassos e inferiores são regidos, numa certa ordem, pelos mais subtis e potentes, assim, todos os corpos, pelo espírito racional da vida; e o espírito desertado da vida racional e pecador, pelo espírito da vida racional pio e justo; e esse, pelo próprio Deus.
SOLUÇÃO. – Dois elementos se devem considerar, no governo: o plano do governo, que é a providência mesma, e a execução. Quanto àquela, Deus governa imediatamente todas as coisas; quanto à esta, governa certos seres mediante outros. – E a razão é que, sendo Deus a essência mesma da bondade, deve–se–lhe atribuir tudo o que for ótimo. Ora, é ótimo em qualquer gênero, noção ou conhecimento prático – e tal é o governo por essência que sejam conhecidas as particularidades, em que consistem os atos. Assim, é ótimo o médico que não só conhece as coisas em universal, mas também pode conhecer as menores particularidades; e o mesmo se dá em outras condições. Por onde, deve–se dizer que Deus governa, essencialmente, todas as coisas, ainda nas mínimas particularidades. Mas como as coisas governadas devem pelo governo ser levadas à perfeição, tanto melhor será ele, quanto maior for a perfeição comunicada pelo governador às coisas governadas. Ora, maior perfeição é que um ser, além de ser bom em si mesmo, seja também para os outro; causa de bondade, do que ser somente bom em si mesmo. E portanto, Deus governa as coisas de modo a fazer de umas as causas das outras, quanto ao governo; como se um mestre não só comunicasse a ciência aos seus discípulos, mas ainda os fizesse mestres de outros.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A opinião de Platão é atacada porque, mesmo quanto à essência do governo, admitia que Deus não governa imediatamente todas as coisas; o que bem se vê por ter tripartido a providência, que é da essência do governo.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Se Deus governasse só, seriam as coisas privadas da perfeição causal. Por onde não seria melhor fazer–se por um só o que é feito por muitos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Não só por imperfeição é que um rei terreno tem executores do seu governo, mas ainda por dignidade; pois, pela ordem dos ministros o poder real se torna mais excelente.
O quinto discute–se assim. – Parece que nem todos os seres estejam sujeitos ao governo divino.
1. – Pois, diz a Escritura: Vi que debaixo do sol não é o prêmio para os que melhor correm, nem a guerra, para os que são mais fortes, nem o pão para os que são mais sábios, nem as riquezas para os que são mais doutos, nem a boa aceitação para os que são mais hábeis artífices; mas que tudo se faz por encontro e por casualidade. Ora, seres submetidos a um governo não são casuais. Logo, o que está debaixo do sol não está sujeito ao governo divino.
2. Demais. – A Escritura diz: Acaso tem Deus, cuidado dos bois? Ora, cada qual cuida do que lhe está submetido ao governo. Logo, nem todos os seres estão sujeitos ao governo divino.
3. Demais. – Quem pode se governar a si mesmo não precisa do governo de outrem. Ora, a criatura racional pode se governar a si mesma, pois, tem o domínio dos seus atos, age por si; e não é levada por outrem, somente, o que é próprio de coisas governadas. Logo, nem todos os seres estão sujeitos ao governo divino.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Deus não abandonou o céu e a terra, o anjo e o homem, e nem ainda a estrutura interna de qualquer ser animado, por pequeno e desprezível que seja, nem a penazinha da ave, nem a florzinha da erva, nem a folha da árvore, sem a das suas partes, Logo, todos os sujeitos ao seu governo:
SOLUÇÃO. – Pela mesma razão Deus é governador e causa dos seres; pois a Ele pertence produzi–los e dar–lhes a perfeição, o que tudo é próprio de quem governa. Ora, Deus é, não a causa particular de um gênero de seres, mas a universal, da totalidade dos seres, como já se demonstrou. Por onde, assim como nada pode existir sem ser criado por Deus, assim também nada há que lhe possa escapar ao governo. – E isto mesmo também se deduz claramente da noção do fim. Pois, o governo de alguém se estende até onde pode alcançar o fim desse governo, Ora, o fim do governo divino é a bondade mesma de Deus, como antes se demonstrou. Por onde, como nada pode haver que se não ordene à bondade divina, como fim, segundo do sobredito se colhe, impossível é a qualquer ser subtrair–se ao governo divino. – Logo, estulta é a opinião dos que dizem que os seres inferiores corruptíveis deste mundo, ou mesmo ser em particular, ou ainda as coisas humanas, não são governados por Deus. E em nome desses diz a Escritura: O Senhor deixou a terra.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Diz–se que estão debaixo do sol as coisas geradas e corrompidas pelo movimento do mesmo. E em todas elas se encontra o acaso; não que seja casual tudo quanto nelas se faz, mas porque em cada uma delas pode–se encontrar algo de casual. E isto mesmo demonstra que elas estão sujeitas ao governo divino. Pois, se tais seres corruptíveis não fossem governados por um superior, sobretudo, os que não tem conhecimento não tenderiam para nada; e, então, não poderia existir neles nada contrário à intenção, sendo esta contrariedade o que constitui a essência do acaso. Por onde, para significar que o casual realiza–se conforme à ordem de uma causa superior, na Escritura não se diz simplesmente que se viu o acaso em todas as coisas, mas se diz tempo e casualidade porque segundo certa ordem do tempo, encontram–se nas coisas deste mundo defeitos casuais.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O governo é uma mutação das coisas governadas, proveniente do governador. Ora, todo movimento é um ato do móvel, proveniente do motor, como diz Aristóteles. Ora, como todo ato é proporcionado ao ser do qual resulta, necessário é que móveis diversos sejam movidos diversamente, mesmo relativamente ao movimento de um só motor. Assim pois, por um só modo do governo de Deus as coisas são governadas diversamente, conforme a diversidade delas. E então, certas, tendo domínio sobre os seus atos, agem, por natureza, por si mesmas; e estas são governadas por Deus, não só por serem movidas por Ele, que nelas opera interiormente, mas ainda porque Ele as induz ao bem e retrai do mal por meio de preceitos e proibições, prêmios e penas. Ao passo que desse modo não são governadas por Deus as criaturas irracionais, que são levadas a agir, somente, e não agem. Assim, pois quando o Apóstolo diz, que Deus não cura dos bois, não os subtrai totalmente ao cuidado do governo divino; mas só quanto ao modo que convém propriamente à criatura racional.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A criatura racional governa–se a si mesma pelo intelecto e pela vontade; e ambas essas faculdades necessitam ser governadas e completadas pelo intelecto e pela vontade de Deus. E portanto, além do governo pelo qual a criatura racional se governa a si mesma, como senhora dos seus atos, necessita ela ser governada por Deus.
O quarto discute–se assim. – Parece que o efeito do governo do mundo é um só e não vários.
1. – Pois, efeito do governo é o causado pelo mesmo, nas coisas governadas. Ora este é um só a saber, o bem da ordem, como claramente se vê num exército. Logo é um só o efeito do governo do mundo.
2. Demais. – É natural que de um ser proceda só um outro. Ora, o mundo tem um só governador, como já se demonstrou. Logo, também é um só o efeito do governo.
3 . Demais. – Se o efeito do governo não fosse um só, por causa da unidade do governador, então devia necessariamente ser multiplicado relativamente à multiplicidade dos seres governados. Ora, estes são para nós inumeráveis. Logo, os efeitos do governo não podem ser compreendidos num determinado número.
Mas, em contrário, diz Dionísio, que a Divindade com providência e bondade perfeita contém todas as causas, e as completa a todas em si mesma. Ora, o governo se inclui na providência. Logo, são alguns, determinados, os efeitos do governo divino.
SOLUÇÃO. – Devemos considerar o efeito de qualquer ação relativamente ao fim desta; pois, da operação resulta a consecução do fim. Ora, o fim do governo do mundo é o bem com o qual tendem todas as coisas. Por onde, em tríplice acepção pode–se tomar o efeito do governo, – Primeiro, relativamente ao fim, em si mesmo; e, então, o governo só tem um efeito, que é assimilar–se ao Sumo Bem. Segundo, pode–se considerar o efeito do governo relativamente ao que leva a criatura à assimilação com Deus. E então, em geral, tem o governo dois efeitos, porque, quanto a duas coisas a criatura se assimila com Deus, a saber: quanto a ser Deus bom, e a criatura, boa; e quanto a ser Deus a causa da bondade dos outros seres, e uma criatura mover a outra para a bondade. Por onde, dois são os efeitos do governo: a conservação das coisas no bem, e a moção delas para o bem. – Terceiro, o efeito do governo pode ser considerado em particular e, então são para nós inúmeros.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A ordem do universo inclui em si tanto a conservação das diversas coisas instituídas por Deus, como a moção delas; pois, segundo esta doutrina, dupla ordem se encontra nas coisas, por ser uma cousa melhor que outra, e uma movida por outra.
RESPOSTAS ÀS OUTRAS DUAS. – Deduzemse claras, do que acaba de ser dito.
O terceiro discute–se assim. – Parece que o mundo não tem um só governador.
1. – Pois, julgamos da causa pelo efeito. Ora, o governo dos seres manifesta que eles não são uniformemente governados e nem operam uniformemente; porque, certos fenômenos são contingentes, certos, necessários, e outros, ainda, tem modalidades diversas. Logo, o mundo não tem um só governador.
2. Demais. – Seres submetidos a um só governador não dissentem entre si, a não ser por imperícia, insipiência ou impotência do governador; o que não se pode supor em Deus. Ora, os seres criados dissentem entre si, entre si se combatem, como se vê nos contrários. Logo, o mundo não tem um só governador.
3. Demais. – A natureza sempre tende para o melhor. Ora, como diz a Escritura, melhor é pois estarem dois juntos do que alar um só. Logo, o mundo não é governado por um só governador, mas por vários.
Mas, em contrário, confessamos existir um só Deus e um só Senhor, conforme aquilo da Escritura: Para nós, há um só Deus, o Pai e só um Senhor. Ora, ambos dizem respeito ao governo: pois, ao senhor pertence o governo dos súbditos: e o nome de Deus é derivado da providência, como já se disse antes. Logo, o mundo tem um só governador.
SOLUÇÃO. – Necessário é admitir–se que o mundo tem um só governador. Pois, como o fim do governo do mundo é o essencialmente bom, que é óptimo, necessário é seja óptimo o governo do mundo. Ora, óptimo é o governo de um só. E á razão é que o governo não é senão a direção dos governados para um fim, que é um certo bem. Ora, a unidade se implica em a noção da bondade, como o prova Boécio; pois, como todas as coisas desejam o bem, desejam ao mesmo tempo a unidade, sem a qual não podem existir, porquanto, um ser existe na medida em que é uno. E por isso vemos que as coisas soberanamente repugnam à divisão, e que a dissolução de um ser provém de alguma deficiência sua. Por onde, aquilo para o que tende a intenção de quem governa a multidão é a unidade ou a paz. Ora, a causa da unidade, é o ser uno em si; sendo manifesto que diversos não podem unir e fazer concordarem, coisas múltiplas, a não ser que eles próprios se unam de algum modo. Ao passo que o ser uno, em si, pode ser causa da unidade mais convenientemente que muitos unidos; e por isso, a multidão é melhor governada por um só do que por vários. E conclui–se, portanto, que o governo do mundo, governo ótimo, provém de um só governador. E é isto mesmo que o Filósofo ensina: os entes não querem ter mal dispostos; nem é boa a pluralidade dos principados ; haja, pois, um só príncipe.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O movimento é o ato do móvel, proveniente do motor. Donde, a não uniformidade dos movimentos procede da diversidade dos móveis, exigida pela perfeição do universo, como se disse antes, e não pela pluralidade dos governadores.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Embora os contrários dissintam quanto aos fins próximos, convêm, contudo, quanto ao fim último, enquanto compreendidos numa mesma ordem do universo.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nos bens particulares, dois são melhores que um só; mas ao bem essencial nenhuma adição de bondade pode ser feita.
O segundo discute–se assim. Parece que o fim do governo do mundo não é nada de exterior ao mesmo.
1. – Pois, o fim do governo de um ser é o para o que tal ser tende. Ora, aquilo para o que um ser tende é um certo bem nele mesmo existente; assim o enfermo busca a saúde, que é um bem nele mesmo existente. Logo, o fim do governo dos seres é um bem não extrínseco, mas existente neles próprios.
2. Demais. – O Filósofo diz: dos fins, umas são tu operações e outras, tu obras, isto é, as coisas feitas. Ora, como a operação esta nos operantes, nada de extrínseco a todo o universo pode ser operado. Logo, nada de extrínseco pode ser o fim do governo das coisas.
3. Demais. – O bem da multidão é a ordem e a paz, que é a tranquilidade da ordem, como diz Agostinho. Logo, o mundo consiste numa multidão de coisas. E portanto o fim do governo do mundo é a ordem pacífica, existente nas coisas mesmas. Por onde, o fim do governo das coisas não é nenhum bem extrínseco.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo, Mas, Ele mesmo está fora da ordem total do universo. Logo, o fim das coisas é algum bem extrínseco.
SOLUÇÃO. – Como o fim corresponde ao princípio, não é possível, uma vez conhecido este, ignorar–se o fim das coisas. Ora, sendo, conforme resulta do que já foi dito, o princípio das coisas, Deus, ser extrínseco a todo o universo, necessariamente também o fim delas há de ser algo de extrínseco. E isto racionalmente se demonstra. Pois, é manifesto que o bem tem natureza de fim. Por onde, o fim particular de um ser é algum bem particular; e o fim universal de todos, é algum bem universal. Ora, universal é o bem em si e essencial, que é a essência mesma da bondade; e particular é o bem, participativamente. E sendo manifesto que, em toda a universidade das criaturas, nenhum bem há que não o seja participado, necessariamente há de o bem, que é fim de todo o universo, ser extrínseco à totalidade do mesmo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – De muitos modos podemos conseguir um bem: de um modo, como forma existente em nós, e assim a saúde ou a ciência; de outro, como algo operado por nós, e assim o edificador consegue o fim fazendo a casa. De outro, como um bem adquirido ou possuído, e assim quem comprou consegue o fim, possuindo o campo. Por onde, nada impede seja aquilo, a que é levado o universo, um bem extrínseco.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O Filósofo se refere aos fins das artes, das quais umas tem como fim, as próprias operações. sendo assim o fim do citarista tocar citara : ao passo que outras tem, como fim uma cousa feita, sendo assim o fim do edificador, não edificar, mas a casa. Ora, dá–se, que o extrínseco pode ser fim, não só como operado, mas também como possuído e como adquirido, ou ainda, como representado; assim, se dissermos que Hércules é o fim da imagem feita para representá–lo. Por onde, pode–se dizer que o bem extrínseco a todo o universo é fim do governo dos seres; como adquirido e como representado; porque todos eles tendem a participar dele, e a assimilá–lo o mais possível.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Há um fim do universo que é um bem nele mesmo existente e esse fim é a ordem do dito universo. Porém tal bem não é o último fim, mas se ordena ao bem extrínseco como ao fim último; assim como também a ordem de um exército se ordena ao chefe, como diz Aristóteles.