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Category: Liberdade religiosaConteúdo sindicalizado

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A constituição cristã do Estado – comentário ao livro de M. Ayuso

 “A heresia individual, com o laicismo liberal, torna-se social e política” (M.Ayuso)

“Da forma dada à sociedade, segundo esteja de acordo ou não com as Leis Divinas, depende o bem ou o mal das almas. Diante dessas considerações e previsões, como poderia ser lícito à Igreja (...) permanecer espectadora indiferente diante dos perigos que os seus filhos enfrentam; calar ou fingir não enxergar situações que (...) tornam difícil ou praticamente impossível uma conduta de vida cristã ?” (Pio XII, Radiomensagem “A Solenidade”, Pentecostes de 1941).

 

Prólogo

Miguel Ayuso, professor de Direito Constitucional na Universidade Comillas de Madri, Presidente da União de Juristas Católicos, escreveu, em 2008, um livro muito interessante sobre as relações entre a Igreja e o Estado, traduzido em italiano pelas Edizione Scientifiche Italiane, de Nápoles, em 2010, com o título “A Constituição cristã dos Estados”(1). Em seu livro, o célebre jurista toma em consideração inclusive o tema da liberdade religiosa, tal como foi enfrentado pelo Decreto Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II e o  compara com o ensinamento do Direito Público Eclesiástico, colocando às claras as diferenças entre a doutrina tradicional e o ensinamento pastoral de Vaticano II de um ponto-de-vista cientificamente jurídico.

 

Breve excursus das relações entre Estado e Igreja

Na Antiguidade pagã era inconcebível a ideia da separação entre poder temporal e espiritual. A esfera política e a religiosa se identificavam. A religião era considerada uma virtude social ou política, enquanto a impiedade era, além de um pecado, um crime político bem grave, uma vez que a unidade da Cidade se baseava sobre o princípio da piedade em relação à Divindade (2)

O Cristianismo sempre ensinou a dependência da sociedade temporal em relação à religiosa e, a partir de Constantino, orientou também na prática o bem comum temporal ao sobrenatural e espiritual. Esses dois poderes são distintos (diferentemente de como era no paganismo), mas não separados (diferentemente de como é no laicismo) (3).

A partir da Revolução Francesa se chega à neutralidade ou separação entre Estado e Igreja, que vai da indiferença à perseguição. É a época da secularização ou do laicismo, que tentaram abater indiretamente a Fé cristã atacando diretamente a Cristandade ou a Constituição cristã dos Estados europeus (4). Nessa época procurou-se destruir a ordem natural e divina mediante a Revolução ou a subversão das relações entre temporal e espiritual, natureza e graça, razão e fé. Em parte, foi bem sucedido o intento descristianizando a sociedade temporal mediante as ideias e as instituições políticas. A heresia de individual, com o laicismo liberal, torna-se social e política(5). A Revolução é uma doutrina social ou política, que quer fundar a sociedade temporal, não sobre Deus, mas sobre o homem. A Contra-Revolução é a doutrina política que funda o Estado sobre Deus e Sua Lei (6).Ora, “a toda ação corresponde uma reação igual e contrária”. Logo, se a Revolução “heretizou” socialmente, a Contra-Revolução deve dar um remédio não só individual, mas social e político à heresia social que o laicismo liberal é. Se a Revolução quer aniquilar a Cristandade ou o Estado católico para depois destruir a própria Fé, a Contra-Revolução (que não é uma Revolução de sinal trocado, mas é o contrário per diametrum da Revolução) quer restaurar a Civilização cristã, ou seja, a moral social cristã como ensinada pela Tradição apostólica e, depois, inscrita nas Constituições civis a partir de Constantino (7).

O Magistério da Igreja é citado por Ayuso para demonstrar o quanto exposto. Pio VI, na Alocução ao Consistório, de 9 de março de 1789, condena as liberdades modernas e na encíclica Adeo nota, de 1791, condena a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”. Gregório XVI, na encíclica Mirari Vos, de 1832, condena o catolicismo liberal. Leão XIII, na encíclica Diuturnum illud, de 1881, na Immortale Dei, de 1885, na Libertas, de 1888, e, por fim, na  Annum ingressi, de 1902, expõe a doutrina católica sobre as relações entre Igreja e Estado e condena toda doutrina separacionista dos dois poderes. São Pio X, na encíclica Vehementer nos, de 1906 e na  Notre Charge Apostolique, de 1910, condena a separação entre o poder temporal e espiritual e o modernismo político ou “Democracia Cristã”. Pio XI,  em Quas Primas, de 1925, fala da Realeza social ou política de Cristo e condena o laicismo. Por fim, Pio XII, na encíclica Summi Pontificatus, de 1939, na Radiomensagem Benignitas et humanitas, de 1944 e no Discurso aos juristas católicos italianos, de 1953, continua o mesmo ensinamento de união e subordinação entre os dois poderes e de condenação da sua separação(8).

 

Questão social, política e moral católica

A Questão Social, isto é, a relação entre trabalhador e patrão, não é somente econômico-financeira, mas sobretudo moral e religiosa. De fato, para Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, a economia é a virtude de prudência aplicada à família (diferente da área de negócio, crematística ou finanças, que é a arte de arriscar-se); e a política é a virtude de prudência aplicada à sociedade temporal. Para resolver o conflito, que surgiu no século XIX entre trabalhadores e patrões – segundo o Magistério – não basta uma resposta puramente financeira ou de salário, mas deve se elevar um pouco e ver a questão à luz da Moral e da Fé. O problema operário – segundo Leão XIII na encíclica Rerum Novarum de 1891, Permoti nos de 1895 e Graves de communi re de 1901 – resolve-se, sobretudo, com a virtude de caridade e de justiça e, depois, com o justo salário. Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, explica beníssimo que o “desejo de novidade” ou a “rerum novarum cupiditas”, do campo político (Liberalismo) transbordou para o econômico-financeiro (Liberalismo/Socialismo). Logo, para resolver e refutar o problema liberal e social-comunista (primado da economia ou área de negócio, materialismo histórico), é preciso primeiro responder ao erro liberal (primado da liberdade como fim absoluto e não como meio para tomar o fim). O Papa mostra a ligação que há entre Revolução religioso-dogmática e revolução moral, já que a moral é a Fé praticada e vivida (“agere sequitur esse”), e, depois, entre Revolução política, que é a heresia dogmática e moral transferida do nível individual ao campo social, e Revolução econômico-financeira(9). “Depois da heresia individual vem a Revolução social ou política e, depois  da Revolução é a hora do carrasco” (Donoso Cortès, Ensaio sobre o Catolicismo, o Liberalismo e o Socialismo).

Miguel Ayuso entendeu perfeitamente o caráter do Magistério eclesiástico dos séculos XIX e XX de contestação da modernidade. A Igreja enfrentou os temas de caráter político (Liberalismo), cultural (Tomismo/modernismo), econômico-financeiro (social-comunismo), oferecendo uma doutrina completa e orgânica sobre a Realeza Social além de individual, temporal além de espiritual, de Cristo já sobre esta terra, além de no Paraíso.

 

A ruptura ou Revolução de Vaticano II

Se a Modernidade é a Revolução filosófica, dogmática, moral, política e econômica (modernismo, liberalismo, libertarismo, socialismo) a doutrina católica tradicional é a Contra-modernidade ou Contra-revolução. Infelizmente, com o Concílio Vaticano II foi “esquecida com desenvoltura esta Tradição. (...) Esquecimento acompanhado muitas vezes de desprezo”(10). A causa de tal ruptura com a Tradição apostólica em matéria de doutrina social Miguel Ayuso encontra na “fase de conformismo (conciliar e pós-conciliar) com respeito à modernidade”(11). Entenda-se: “modernidade” significa pensamento filosófico moderno subjetivista e relativista, que vai de Descartes a Hegel, e não significa “fazer-se compreender pelo homem de hoje”, o que é completamente legítimo e normal, mas totalmente diferente da condescendência eclesiástico-pastoral com a “modernidade”. A Igreja havia contestado e refutado a modernidade com o Magistério tradicional dos séculos XIX e XX, referindo-se à doutrina de Papa Gelásio I. Infelizmente, com a Declaração sobre a liberdade religiosa ou  Dignitatis humanae subverteu-se ou “revolucionou-se” a doutrina  de dogmática em pastoral e pressionou-se os “católicos a conformarem-se à modernidade (...) e a sair do gueto em que a Igreja tradicional os havia reduzido (12), contrariando o dizer de São Paulo “: “Nolite conformari huic saeculo!”.

 

O Magistério tradicional contrasta com a Modernidade

A conclusão que Miguel Ayuso tira é que, se o Magistério constante e tradicional da Igreja contestou e refutou a modernidade subjetivista e relativista (Liberalismo, Modernismo, libertarismo e social-comunismo), o ensinamento pastoral de Vaticano II chegou mesmo à “renúncia da tradicional doutrina política – baseada sobre a Constituição cristã dos Estados – (...) [e revelou-se] incapaz de delinear uma nova estratégia” (13), ou seja, não apenas abandonou a doutrina social tradicional sobre relações entre Estado e Igreja, mas não consegiu nem mesmo propor uma alternativa filosofico-política adequada ao surgimento do novo laicismo, sempre mais radical e paroxístico.

 

O Vaticano II se rendeu à Modernidade

 Renderam-se em face da modernidade e da pós-modernidade sem mostrar resistência, esperando não serem perseguidos mas deixados em paz, não se quis opor uma resistência doutrinal (filosófica e teológica) ao mundo contemporâneo e calou-se, logo, fugiram da frente do lobo que veio despedaçar o rebanho, esperando serem poupados, como o mercenário e o mau pastor do Evangelho, que “trai as ovelhas não só fugindo, mas também calando” (São Gregório Magno). A tática ‘não-pastoral’ de não condenar, desaprovar e criticar o erro, equivale à atitude do mercenário, que cala quando vê o lobo vir, ao invés de gritar e de alertar o seu rebanho. É por esse motivo que não apenas doutrinalmente houve ruptura entre ensinamento pastoral e falível do Vaticano II e Tradição apostólica, mas também pastoralmente, isto é, ao calar a doutrina e os princípios no caso prático e no modo de agir, o Vaticano II revelou-se um imenso fracasso, porque em vez de avisar que um perigo repousava, nos anos 60, sobre a Cristandade e a Fé Católica (pense-se no Comunismo e em 1968), quis calar-se para não parecer “profeta de desgraças”, e, analogamente no pós-concílio mais recente (2005-2011) não se alertou o rebanho contra o perigo do teoconservadorismo, do catolicismo liberal, do judeo-cristianismo e do ateísmo devoto, os quais estão matando hoje também aquele “pequeno rebanho”, que tinha resistido ao modernismo e neomodernismo. É evidente a todos que para ensinar a verdade (por exemplo que 1+1=2) não se pode aprovar o erro (1+1=3) e, logo, não se pode não condenar.

Combater e promover. O professor Ayuso comenta: “Trata-se não apenas de combater aquilo que é socialmente nocivo em relação ao influxo que exercita sobre as almas, mas também de promover aquilo que é socialmente benéfico, em virtude de seu valor intrínseco”(14). De fato, não se pode ser somente “contra” ou limitar-se a  pars destruens  ou negativa, mas ocorre também propor alguma coisa “pró”, ou seja, de positivo(15).

 

Não se pode calar, senão “as pedras gritarão”

Pio XII tinha previsto esse perigo e o denunciara já em 1941: “Da forma dada à sociedade, segundo esteja de acordo ou não com as Leis Divinas, depende o bem ou o mal das almas. Diante dessas considerações e previsões, como poderia ser lícito à Igreja (...) permanecer espectadora indiferente diante dos perigos que os seus filhos enfrentam; calar ou fingir não enxergar situações que (...) tornam difícil ou praticamente impossível uma conduta de vida cristã ?” (Pio XII, Radiomensagem “A Solenidade”, Pentecostes de 1941). Não se pode calar ou fingir não enxergar o perigo de uma situação que torna difícil viver cristãmente. Ora, a “liberdade das falsas religiões”, o abandono do ideal do Estado Católico ou da Realeza Social de Cristo, sancionados pelo Concílio Vaticano II são exatamente uma situação ou um modo de vida que torna praticamente impossível a prática cristã. Os homens de Igreja caíram num tipo de “surdo-mudismo” pelo qual fingem não terem ouvido de modo a não deverem falar. Não podem permanencer espectadores indiferentes, que olham mas não gritam: “Lobo ! Socorro! Perigo! Atenção!”. Seria aceitar na prática e implicitamente, mesmo se não explicitamente ou por princípio, o erro e o mal, ou seja, a negação prática do primeiro princípio da moral per se conhecido: “malum vitandum, bonum faciendum”. Ora, quem nega os princípios per se conhecidos não é escusável por ignorância invencível, porque estes são evidentes a todo mundo, são mostrados, não demonstrados. Como os homens de Igreja hoje calam esta verdade social, esta – como disse Jesus – é gritada pelas pedras, isto é, pelos monumentos do passado, que testemunham uma verdade histórica: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava os Estados” (Leão XIII, Immortale Dei, 1885). Que tremenda responsabilidade não haver querido condenar o erro, não haver querido alertar a Cristandade e os fiéis cristãos contra o perigo. Não o tendo desaprovado ou condenado, implicitamente se o aprovou. “Um Papa bom não é um bom Papa”, dizia padre Innocenzo Colosio. “O médico piedoso faz a chaga gangrenosa”, recita o provérbio popular. O excesso de “bondade” pode se tornar a máxima crueldade (“summo bonarietas, summa malvigatas”).

Pars destruens et construens. Miguel Ayuso explica muito bem que “a Igreja não age em política apenas ‘negativamente’, mediante condenações (...), mas também intervém positivamente, declarando quais são os princípios que devem presidir a organização de uma comunidade” (16). A neutralidade, o pluralismo ou a indiferença do Estado em matéria religiosa não são princípios conformes à Tradição apostólica quanto às relações de Igreja e Estado, assim como está ensinado pela Sagrada Escritura, pelos Padres da Igreja do século IV e pelo Magistério, a partir do Papa Gelásio I (496) até Pio XII (1958).

 

A Cristandade já existe e não está por ser inventada

São Pio X ensinou formalmente – retomando o Magistério tradicional de seus predecessores, continuado pelos seus sucessores até Pio XII – que “a Civilização cristã não deve ser inventada, nem a Cidade deve ser construída sobre as nuvens. Ela existiu e existe. É a Civilização cristã, a Cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e estabelecê-la e restaurá-la e restabelecê-la, incessantemente, sobre os fundamentos naturais e divinos, contra os ataques sempre novos da utopia malsã, da Revolução e da impiedade: omnia instaurare in Christo” (Notre Charge Apostolique, 1910). A solução do problema político (relações entre Estado e Igreja) e social (relações entre mundo do trabalho e capital) é simplicíssima, porque não existe nada por ser inventado, basta instaurar ou fundar uma Pólis ou Civitas católica, baseada na Lei divina e natural nos lugares onde não tenha ainda começado a existir e restaurá-la ou consertá-la lá onde existiu, mas foi assaltada pela Revolução, que quer separar o Estado e a Igreja, os trabalhadores  e os patrões, a justiça e a caridade, a economia e a moral, destruindo assim a Civitas christiana. Até 1968, havia ainda vestígios, traços ou “ruínas” dessa Civilização cristã, (que tinha sido somente ferida, ainda que gravemente) e bastava restaurar as ruínas como se faz com as obras de arte dos séculos passados. Hoje ela está aniquilada ou ferida de morte pelo assalto da Revolução maçônica, que invadiu inclusive o ambiente eclesiástico, como denunciou Paulo VI mesmo: “a fumaça de Satanás penetrou na Igreja de Deus”. Por isso, agora na Europa (o berço da Cristandade), é preciso não mais restaurar a Civilização cristã, mas sim instaurá-la, mas sempre sobre os idênticos fundamentos (Lei eterna e natural) e princípios (cooperação de subordinação ou hierarquização do temporal em relação ao espiritual).

Nova Cristandade. Não é preciso inventar a “nova Cristandade” como fizeram Maritain (Humanismo Integral, 1936) (17) e Dignitatis humanae (1965), construindo-a sobre as “nuvens” da doutrina liberal e laicista da separação entre Igreja e Estado. Leão XIII, mesmo antes de São Pio X, havia escrito: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava os Estados” (Immortale Dei, 1885). Essa é a doutrina social substancialmente imutável da Igreja: o Estado fundado sobre a Lei natural e divina e dirigido pelos princípios da reta filosofia e da Revelação sobrenatural, em cooperação de subordinação hierarquizada com o poder espiritual. Podem existir tonalidades acidentais nessa doutrina (plenitudo potestatis ou potestas indirecta in temporalibus ratione peccati), mas não essenciais (liberdade das falsas religiões posta no mesmo plano daquela da única verdadeira Religião, e indiferença religiosa da sociedade temporal ou separação do Estado e da Igreja).

 

A Nova Cristandade maritainiana e conciliar

O Concílio Vaticano II. Infelizmente, na Declaração Dignitatis humanane se encontra uma fratura, uma mutação substancial, com a doutrina tradicional contida na Sagrada Escritura e na Tradição apostólica (que são as duas fontes da Revelação), sob a guia do Magistério constante da Igreja (de Papa Gelásio I até Pio XII). Pio XII disse desse ensinamento sobre as relações entre Igreja e Estado que “está definitivamente estabelecido quanto aos seus pontos fundamentais, é suficientemente amplo para ser adaptado às múltiplas vicissitudes dos povos, desde que isso não aconteça às custas dos seus princípios imutáveis e permanentes. (...). Isso é em todo aspecto obrigatório. Nem se pode distanciar disso sem perigo para a Fé e a ordem moral” (Discurso ao Congresso da Ação Católica italiana, 29 de abril de 1945).

Ruptura e não continuidade. É mesmo isso que Dignitatis humanae fez. Ora, se o ensinamento pastoral de Vaticano II discorda daquele dogmático constante e infalível da Igreja, deve ser modificado e tornado conforme à Tradição apostólica. Especialmente hoje, de frente ao assalto final do laicismo agressivo e daquele mascarado de teoconservadorismo, é preciso retornar à Tradição apostólica e antes de tudo repropor a doutrina da cooperação subordinada entre Estado e Igreja para depois procurar trabalhar na prática à restauração das condições a fim de que a Civilização cristã possa renascer, permitindo aos indivíduos, às famílias e aos corpos intermédios realizarem facilmente a sua finalidade próxima ordenada ao fim último sobrenatural. A Civilização cristã não deve ser inventada ex novo, mas agora instaurada, porque, infelizmente, já não há mais nada para restaurar. A pós-modernidade e o pós-concílio destruíram os vestígios, as ruínas  ou restos da Cristandade que ainda sobravam.

 

A Igreja não pode não fazer “política”

O homem é um animal naturalmente social. Disso vem a necessidade de ensinar, hoje mais do que nunca, a doutrina social da Igreja e de não se trancar nas sacristias, como desejavam os católicos liberais, mascarando tal rebaixamento ao catolicismo liberal sob uma máscara de excessivo espiritualismo ou angelismo desencarnado, cujo lema é “não é preciso fazer política!”. Ao contrário, a realidade, e logo, a verdade, é que o homem é composto de alma e de corpo, que é um animal racional e também social, isto é, político, feito para viver na Societas ou na Pólis, e não é um anjo, um ente desencarnado ou um monge que vive isolado. Os monges são casos “excepcionais” e “heróicos” que confirmam a regra.

O Perigo do Angelismo ou do espiritualismo exagerado. O erro dos conservadores e de alguns “tradicionalistas” católicos atuais é o de eliminar o elemento social da natureza humana, que, ao contrário, foi criada por Deus naturalmente sociável. (Aristóteles, Politica, VI; Santo Tomás de Aquino, De regimine principum, lib. I, cap. 14) e de querer transformar o homem num singular indivíduo (como o liberalismo individualista) sem espaço social e político, para endereçá-lo, com um empurrão puramente natural (mesmo se vem do padre, que permanence sempre um homem, mesmo que consagrado e não é Deus, mas só um instrumento de Deus para ajudar os fiéis a fazerem a Vontade de Deus, que não é necessariamente a do sacerdote) em direção a uma vida consagrada e à qual, ao contrário, só Deus chama e, na qual, só com a ajuda de Deus se persevera. “Não fostes vós que me escolhestes, mas Eu que vos escolhi” disse Jesus no Evangelho aos Seus Apóstolos. A vocação é um conselho e não um preceito e não se pode obrigar a seguir um conselho sob pena de pecado (18).È preciso contestar, refutar e contrastar o lacicismo, na teoria e na prática, arruinar tal modo de vida subversivo e revolucionado, fazer a históriamais do que sofrê-la passivamente e tentar criar as condições de um viver social, que facilite o viver espiritual. Como “a Graça pressupõe a natureza, aperfeiçoa-a, e não a destrói” (Santo Tomás de Aquino), assim a Fé pressupõe a humanidade civilizada (19), aperfeiçoa-a, mantém-na viva, e não a deve destruir. Do mesmo modo, a vocação sagrada pressupõe a vida familiar, social e política, aperfeiçoa-a, e não a deve aniquilar. Se não houvesse uma sociedade familiar, não poderia haver um “chamado” e se a sociedade temporal, ao invés de ajudar o indivíduo e a família a chegar ao próprio fim, obstaculizasse-o, os “chamados” seriam muito menos. É por isso que é preciso “dar a César o que é de César (obediência às leis temporais conformes à lei natural) e a Deus o que é de Deus (a adoração)”.

 

É possível hoje um Estado Católico ?

Doutrinalmente. A questão pareceria, à primeira vista e superficialmente, um anacronismo, como até Miguel Ayuso concorda (20). De fato, historicamente não existe hoje nenhum Estado católico, mas a questão doutrinal que se põe é se seja possível fazê-lo reviver. Na teoria ou quanto ao princípio doutrinal a resposta é evidente: o Estado não pode ser neutro, dada a sociabilidade natural do homem, da família e da sociedade temporal, que devem todas as três dar a Deus o culto e a adoração que Lhe é devida. Na prática ou nos fatos, contudo, encontramo-nos diante do enorme problema da pastoral sobre a liberdade religiosa (Dignitatis humanae) do Vaticano II, que não se contrapôs à modernidade ou à sociedade permissivista (21), mas entrou em diálogo simpatizante com ela e acelerou a secularização ou descristianização da sociedade. Miguel Ayuso traz o exemplo da  Ley de libertad religiosa de 1967, pedida por Paulo VI ao general Francisco Franco e a consequente Nova Concordata espanhola de 1978 (22), similar àquela italiana de 1984 (que ab-rogou a Concordata de 1929), definida por João Paulo II como “ideal”, em quanto se passou (na Espanha como na Itália) do Estado confessional, que reconhecia Religião católica como religião oficial de Estado, ao Estado neutro em matéria religiosa. Ayuso comenta: “Estamos assistindo à separação consciente e desejada entre Igreja e sociedade, depois que  foi consumada a separação entre a Igreja e o Estado”(23). Hoje, encontramo-nos em uma sociedade anti-cristã por princípio e na prática, que seria melhor chamar de “Dis-sociedade” (Marcel de Corte) ou “Sinagoga de Satanás” (Apocalipse 2, 9), que é a “Contra-Igreja” ou  o “perigo maçônico” (Ernest Jouin) (24). Se a doutrina católica sobre as relações entre Estado e igreja é imutável(25), infelizmente, “a linguagem (...) em seguida ao Vaticano II, distingue-se claramente da precedente. (...). O direito à liberdade religiosa levanta não poucas dificuldades do ponto-de-vista do Magistério tradicional”(26). Ou seja, não existe continuidade real entre Tradição apostólica e Dignitatis humanae (de agora em diante ‘DH’), mesmo se esta continuidade vem afirmada, mas não demonstrada. Ayuso encontra em ‘DH’ um tipo de heterodoxia pública, isto é, um erro em matéria de doutrina social e política (27).

Prudencialmente. Ayuso se pergunta se um retorno imediato ao Estado católico é realista. A realidade hodierna, em que, ou não se toma nem mesmo em consideração o problema das relações hierarquizadas entre poderes político e espiritual ou se as tem como atualmente insustentável, “ é assim – e  isso é ainda pior – da parte da própria hierarquia eclesiástica”(28), não favorece na prática tal retorno imediato, antes o torna humanamente impossível e só miraculosamente viável. Certamente, é necessário evitar os dois erros opostos por excesso (fanatismo ideológico simplista: tudo e agora) e por defeito (oportunismo pragmatístico: renúncia dos princípios e/ou aquiescência prática com o erro), mas é preciso sempre tender ao ideal ou à doutrina da cooperação hierarquizada e subordinada entre Estado e Igreja, que é “uma moral invariável da ordem política (...), não é algo de meramente facultativo, (...) mas é o constitutivo interno [ou a essência] da sociedade temporal”(29), ainda que na prática esta hoje é dificilmente viável no imediato ou no futuro próximo, mas não absolutamente impossível de se realizar gradualmente ou no futuro remoto. É preciso, então, “recolocar em pé – como escreve Ayuso – a doutrina da Igreja (...) sobre as bases da Tradição” (30). Sobretudo, não se deve nunca desesperar, nem quanto à salvação eterna da própria alma e nem quanto à salvação temporal da sociedade, a qual deve e pode voltar a cumprir o seu dever e chegar ao seu fim: o bem estar temporal dos cidadãos subordinado ao bem estar espiritual dos mesmos. De fato, Deus é a Causa Primeira do homem, “animal racional”, que vive em uma sociedade imperfeita de ordem natural (família) e perfeita de ordem temporal (Estado) e sobrenatural (Igreja). Por isso o Estado deve trabalhar em cooperação hierárquica com a Igreja, como o corpo com a alma. Deus é onipotente e providente, seja para a alma singular e a sua salvação, seja para a família e a sociedade (temporal e religiosa). Então deve-se esperar a salvação eterna da própria alma como também o estabelecimento do Reino Social de Cristo e trabalhar por estes. De fato, “quem quer o fim, toma os meios”.

 

Conclusão

● “A Igreja não pode, sem trair a própria missão, deixar de afirmar que existe uma lei moral natural (...) à qual devem estar submetidos os poderes públicos. Esse é o núcleo do Estado católico”(31), como ensinou Pio XI na sua primeira encíclica Ubi Arcano Dei de 1922, sintetizada no lema desse Papa: “Pax Christi in Regno Christi”. O “pecado original” da modernidade consistiu no ter posto no homem e não em Deus o fundamento da vida social e política do Estado (“eritis sicut Dii”). O  antropocentrismo social ou político é o ‘princípio e fundamento’ da filosofia e da civilização modernas, como o antropocentrismo individualístico o é do modernismo. A heresia dogmática modernistas se transformou em Revolução social liberal ou modernismo político (cf. São Pio X, Notre Charge Apostolique, 1910)(32). Todas ou quase todas as Revoluções sociais nascem de erros filosóficos e de heresias dogmático-morais.

● A Verdade filosófica, dogmática e moral foi sintetizada teocentricamente pelo lema de São Paulo: “Non est Potestas nisi a Deo”, a Contra-Igreja o revolucionou antropocentricamente em: “Non est poetestas nisi ab Homine”(33). Assim a heresia dogmática modernistas influiu na Revolução política democrático-cristã e esta acabou por demolir os último traços ou “ruínas” de uma civilização, que era ainda cristã antes de ser demo-cristianizada. Certamente, ‘DH’ teve um papel filosófico, teológico e político nesse processo de laicização ou secularização. O Bispo espanhol, Dom José Guerra Campos tinha convidado a “reedificar a doutrina [social] da Igreja” por causa das notáveis “incoerências na pregação atual”(34). Com ‘DH’, assiste-se ao fenômeno de penetração do laicismo em ambiente católico e eclesial até ao ponto de que a separação entre Igreja e Estado é pregada pelos próprios homens de Igreja. O pós-concílio agravou o erro laicista de ‘DH’ até ao ponto de fazer rever as Concordatas com a Espanha (1978) e a Itália (1984) em sentido separacionista, o que foi definido como “ideal” por João Paulo II no que concerne à Concordata italiana de 1984. O próprio João Paulo II, na Carta apostólica aos Bispos franceses, de 11 de fevereiro de 2005, por ocasião do primeiro centenário da lei francesa de 1905 sobre a separação de Igreja e Estado (lei condenada por São Pio X na encíclica Vehementer nos, 1906) escreveu: “O princípio da laicidade(...) pertence à doutrina social da Igreja”. Isto é, o “Estado livre e Igreja livre” de Cavour se tornaram doutrina social católica!!!

●Só Deus nos pode fazer sair de uma situação de apostasia geral, que penetrou até no santuário e nas mentes dos hierarcas da Igreja. Ele, de fato, prometeu-nos: “Portae inferi non praevalebunt adversus eam”.

 

[Tradução: Permanência]

 

NOTAS

(1) www.edizioniesi.it / info@edizioniesi.it / 116 paginas. E também: http://www.deastore.com/libro/la-costituzione-cristiana-degli-stati-miguel-ayuso-edizioni-scientifiche-italiane/9788849520774.html

(2) M. Ayuso, La costituzione cristiana degli Stati, “Edizioni Scientifiche Italiane”, Napoles, 2010, p. 13. Cfr. J. A. Widow, El ombre, animal politico, Santiago del Cile, Editorial Universitaria, 1984.

(3) Ibidem, p. 14.

(4) Ibidem, p. 18. Cfr. ainda Ramòn Orlandis, Pensamientos y occurrencias, Barcelona, Balmes, 2000; Francisco Canals, Polìtica española: pasado y futuro, Barcelona, Acervo, 1977.

(5) Ibidem, p. 21.

(6) Cfr. A. De Mun, Ma vocation sociale, Paris, Lethielliieux, 1908.

(7) Ibidem, p. 22.

(8) Ibidem, pp. 24-26. Cfr. M. Ayuso, La revoluciòn liberal y sus metamorfosis ante el pensamento catòlico, in J. M. Sànchez, Polìtica y religiòn en la crisis de la modernidad, Madri, Fundaciòn Tomàs Moro, 2000; A. Gambra, Los catòlicos y la democrazia. Génesis històrica de la democrazia cristiana, Madri, Speiro, 1982.

(9) M. Ayuso, La costituzione cristiana degli Stati, cit., p. 27.

(10) Ib., p. 28.

(11) Cfr. F. Rodrìguez, Introduciòn a la polìtica social, Madri, Civitas, 1979; M. Ayuso, La polìtica, officio del alma, Buenos Aires, Nueva Hispanidad, 2007; Id., Koinòs. El pensamiento politico de Rafael Gambra, Madri, Speiro, 1998; D. Castellano, L’ordine della politica, Napoles, Edizioni Scientifiche Italiane, 1996, tradução espanhola, La naturaleza de la polìtica, Barcelona, Scire, 2006; Id., De Christiana Republica, Napoles, ESI, 2004; Id., Costituzione europea, diritti umani e libertà religiosa, Napoles, ESI, 2005; Id., L’ordine politico-giuridico, Napoles, ESI, 2007; Id., La politica tra Scilla e Cariddi, Napoles, ESI, 2010; A. d’Ors, Ensayos de téoria polìtica, Pamplona, Eunsa, 1979; F. E. de Tejada, Europa, tradizione, libertà, Napoles, ESI, 2005; J. Ousset, Pour Qu’il Règne, Paris, Office international, IIa ed., 1970.

(12) Ib., p. 29. Sobre a Tradição apostólica e as novidades de Vaticano II cfr. Brunero Gherardini, Concilio Ecumenico Vaticano II. Un discorso da fare, Frigento, Casa Mariana Editrice, 2009; Id., Tradidi quod et accepi. La Tradizione, vita e giovinezza della Chiesa, Frigento, Casa Mariana Editrice, 2010; Id., Concilio Vaticano II. Il discorso mancato, Turim, Lindau, 2011; Id., Quaecumque dixero vobis. Parola di Dio e Tradizione a confronto con la storia e la teologia, Turim, Lindau, 2011.

(13) M. Ayuso, La costituzione cristiana…, cit., p. 36.

(14)La costituzione cristiana…, cit., p. 38.

(15) Cfr. A. Millàn Puelles, Sobre el hombre y la sociedad, Madri, Rialp, 1976.

(16) La costituzione cristiana…, cit., p. 39. Cfr. V. Rodrìguez, Temas clave del humanismo cristiano, Madri, Speiro, 1984.

(17) Cfr. J. Meinvielle, Il cedimento dei cattolici al liberalismo. Critica a Maritain, Roma, Sacra Fraternitas Aurigarum, 1991.

(18) Cfr. P. C. Landucci, La sacra vocazione, Roma, Paoline, 1956.

(19) Cfr. M. de Corte, Essai sul la fin d’une civilisation, Paris, De Médicis, 1949.

(20) La costituzione cristiana…, cit., p. 71.

(21) J. Guerra Campos, Amor, deber y permissivismo, Madri, Adue, 1978.

(22) M. Ayuso, Las murallas de la ciudad, Buenos Aires, Nueva Hispanidad, 2001.

(23) La costituzione cristiana…, cit., p. 75.

(24) Cfr. J. Meinvielle, Influsso dello gnosticismo ebraico in ambiente cristiano, Roma, Sacra Fraternitas Aurigarum, 1989.

(25) Cfr. D. Castellano, L’aristotelismo cristiano di Marcel De Corte, Florença, Pucci-Cipriani, 1975; Id., La razionalità della politica, Napoles, ESI, 1993; J. Orlandis, Historia y espìritu, Pamplona, Eunsa, 1975;

(26) Ib., p. 84. Cfr. L. E. Palacios, Nota critica a la declaratiòn conciliar sobre libertad religiosa, in “Anales de la Real Academia de Ciencias Morales y  Politicas”, Madri, n. 56, 1979, pp. 45 ss.

(27) La costituzione cristiana…, cit., p. 85.

(28) La costituzione cristiana…, cit., p. 91.

(29) La costituzione cristiana…, cit., p. 89. Cfr. J. Guerra Campos, Hacìa la estabilizatiòn polìtica, Madri, Uniòn Editorial, 1983; M. Ayuso, Une culture pour l’Europe de démain, Paris, Editions Universitaires, 1992; D. Castellano, Razionalismo e diritti umani, Turim, Giappichelli, 2003.

(30) La costituzione cristiana…, cit., p. 91.

(31)La costituzione cristiana…, cit., p. 106.

(32) D. Composta – D. Castellano, Questione cattolica e questione democristiana, Padoa, Cedam, 1987.

(33) Cfr. C. Fabro, La svolta antropocentrica di Karl Rahner, Milão, Rusconi, 1974; Id., L’avventura della teologia progressista, Milão, Rusconi, 1974.

(34) J. Guerra Campos, La Iglesia y la comunidad polìtica, XIV centenario del III Concilio di Toledo, 1989

A "Liberdade religiosa" - o estandarte de Satanás erguido no meio da Igreja

Agosto 26, 2018 escrito por admin

O ESTANDARTE DE SATANÁS ERGUIDO NO MEIO DA IGREJA: 

A "LIBERDADE RELIGIOSA"

Pe. Pierre Marie, O. P.

Na raiz do liberalismo encontra-se, como já se viu, uma falta de coragem para condenar o erro. O liberalismo penetrou oficialmente na Igreja no dia em que foi aceito o direito à "liberdade religiosa" no foro externo. É este, indubitavelmente, o erro fundamental do Concílio, o erro mais grave. Se se admite a assim chamada "liberdade religiosa", é claro que, em vista disto, se deve adaptar-se ao pluralismo religioso e procurar conviver com as outras religiões. Tal é a tarefa do ecumenismo. Da mesma forma, admitida a "liberdade religiosa", é preciso adotar uma forma de governo eclesiástico que favoreça a liberdade, e este será o papel da colegialidade, a qual não é senão a introdução da democracia na Igreja.

Se, ao contrário, se rejeita a "liberdade religiosa", buscar-se-á favorecer a unidade centrada na Verdade, mediante a conversão à verdadeira Fé. Assim se evitará também dissolver a autoridade na colegialidade e no número. Isso para que a verdade possa ser mais eficazmente ensinada pela autoridade do Magistério, e o erro, condenado com mais energia.

Sabe-se que os inimigos da religião compreenderam, há mais de dois séculos, que a instauração da "liberdade religiosa" é o meio mais eficaz para destruir a Fé católica. Eles a impuseram a partir da assim chamada Revolução francesa, e as diversas tentativas de restauração não ousaram questionar esta "liberdade".

Sabe-se também que a maçonaria fez pressão sobre a Igreja para esta adotar a doutrina sobre a "liberdade religiosa", no último Concílio. Dom Lefebvre recorda o exemplo do Cardeal Bea e dos seus contatos, antes do Concílio, com os membros da B´nai Brith, a maçonaria judaica. O próprio Cardeal Willebrands no Osservatore Romano, por ocasião da morte de Adolfo Visser´t Hooft, idealizador e primeiro secretário do Conselho Ecumênico das Igrejas (C. O. E.) conhecidamente ligado à maçonaria, escrevia: "Foi ele [Visser´t Hooft] quem me sugeriu dois pontos concretos que deviam constituir a "pedra de toque" dos aspectos ecumênicos do Concílio: o problema da liberdade religiosa e o dos matrimônios mistos"1.

No boletim do Centro de Documentação do Grande Oriente da França, no. 48, de 1964, lê-se nas páginas 84 e seg.: "Nós nos propomos [...] atrair a atenção dos nossos leitores para as intervenções dos bispos e cardeais que, no decurso dos debates, parecem ter manifestado o anúncio de um certo degelo do pensamento católico". E entre as intervenções cita-se um certo "Arcebispo Wojtyla (Cracóvia)": "É preciso aceitar o perigo do erro. Não se abraça a verdade sem ter uma certa experiência do erro, é preciso por isso falar do direito de buscar e de errar. Eu reivindico a liberdade de conquistar a verdade".

Sabe-se também que o Concílio procurou esconder o veneno, falando dum direito negativo ao erro. "A Igreja -- assim se pretende -- condenou o direito positivo ao erro: ninguém tem o direito moral de escolher o mal e o erro. Ela porém não condena o direito negativo ao erro: o homem tem o direito de não ser impedido de professar os próprios erros, se isto não perturba a paz e a ordem pública".

No periódico "Le Sel de la terre" demonstramos a falsidade dessa argumentação: a Igreja, com a sua praxe multissecular coercitiva do erro religioso, mostrou que esta não reconhece nem um direito negativo às falsas religiões.

Por outro lado, na prática, não se faz esta distinção, e a Santa Sé, nos seus atos oficiais, refere-se ao direito à liberdade religiosa como foi enunciado pela ONU. Assim, no § 2 do acordo recente entre a Santa Sé e Israel: "A Santa Sé, recordando a Declaração sobre a liberdade religiosa do Concílio ecumênico Vaticano II, "Dignitatis Humanae", afirma o empenho da Igreja Católica em preservar o direito de todos à liberdade de religião e de consciência, como sublinha a Declaração universal dos direitos humanos e os outros atos internacionais dos quais participa"2. Ou também: "O Concílio Vaticano II [...] declara que a pessoa humana "tem direito à liberdade religiosa" (Dignitatis Humanae no. 2). Neste documento, o Concílio sente-se unido aos milhões de homens que, no mundo, aderem, em todas as suas aplicações práticas, ao artigo 18 da declaração universal dos direitos humanos da ONU, a qual afirma: "Todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião"3.

Releiamos este artigo 18 da Declaração universal dos direitos humanos: "Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicções, assim como a liberdade de manifestar a própria religião ou convicções, só ou em comum, tanto em público como em particular, mediante o ensino, as práticas, o culto e a execução dos ritos".

Notamos que o artigo não fala dos justos limites que, no dizer dos partidários do Concílio, são um elemento essencial da liberdade religiosa conciliar, aquilo pelo qual esta se distinguiria da falsa liberdade dos maçons e dos liberais. Eis, paralelamente, o artigo correspondente da Declaração dos direito humanos e do cidadão de 1789: "Ninguém deve ser incomodado pelas suas opiniões também religiosas, contanto que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei" (art. 10).

Essa liberdade religiosa da Declaração dos direitos humanos do homem e do cidadão em 1789, aproxima-se mais da doutrina conciliar em prever "justos limites" à "liberdade religiosa" e contudo foi declarada um "direito monstruoso" pelo Papa Pio VI4.

Mede-se assim o desvio da "Igreja conciliar" que não se limita mais a reclamar um "direito negativo e limitado" (já criticável e criticado justamente), mas se alinha pura e simplesmente com a doutrina da ONU!

Ainda recentemente, na reunião inter-religiosa realizada no Vaticano em princípios de novembro, o Papa [João Paulo II - N. da P.] declarou: "Devemos fazer com que todos respeitem a liberdade religiosa. Ela é a pedra angular de todas as liberdades; impedir os outros de professar livremente a própria religião equivale a pôr a nossa em perigo."

Santo Tomás na Suma Teológica se pergunta se o demônio é o cabeça dos maus, e responde afirmativamente. Ele precisa que o demônio governa os homens, incitando-os ao próprio fim que é a desobediência à Lei de Deus: "O fim que o demônio se propõe é afastar de Deus a criatura racional [...] e isso tem motivo de fim enquanto é buscado sob a aparência de liberdade (sub specie libertatis)".

Portanto, enquanto os pecadores aspiram a este fim, caem debaixo do domínio e governo do demônio, o qual, por isso, é chamado o seu cabeça"5.

"Não é porventura ao grito de "Viva a liberdade"! -- comenta o padre Pègues -- que se viram perpetrar todos os atentados e crimes contra Deus, contra a Igreja e contra toda a autoridade legítima que queira exercitar o poder em nome deles? Seria muito bom que meditassem esta doutrina de Santo Tomás tantos espíritos ingênuos que pensam ser tudo louvável e excelente neste grito, feito o grito de união na sociedade moderna. No fundo, esse é o grito de revolta do grande inimigo de Deus e dos homens ("Non serviam!") e é, lançando-o às multidões que ele as reúne, em todo o mundo, debaixo do estandarte da sua rebelião. Na medida em que os homens obedecem a esse grito, caem -- diz Santo Tomás -- sob o domínio e o governo do demônio"6.

A liberdade, e em particular a "liberdade religiosa", é o estandarte de Satanás. Os adeptos da "liberdade religiosa" conciliar servem por isso admiravelmente ao demônio. É a abominação da desolação na casa de Deus. "Quem lê, compreenda", nos diz Nosso Senhor. Diante deste estandarte, erguido no meio da Igreja, devemos reagir alçando o estandarte de Nosso Senhor, no qual está escrito: "Veritas liberabit vos", "A Verdade vos libertará". Amemos a verdade: ela nos tornará livres com a verdadeira liberdade dos filhos de Deus; e odiemos o erro, porque é pelo nosso ódio ao erro que Nosso Senhor medirá o nosso amor à Verdade.

  1. 1. L´Osservatore Romano, 15/16 de julho de 1985; v. Sì Sì No No, 15 de outubro de 1985, pp. 4 ss.
  2. 2. La Croix, 31 de dezembro de 1993.
  3. 3. Alocução de João Paulo II aos Bispos da Índia em visita ad limina, 23 de junho de 1979.
  4. 4. Pio VI Quod aliquantulum, 10 de março de 1791.
  5. 5. ST III, q. 8, a. 7.
  6. 6. Comentário do Pe. Pègues ao supracitado artigo de Santo Tomás: "Este artigo, um dos mais importantes da doutrina sagrada é absolutamente próprio da Suma Teológica. Infelizmente, passa freqüentemente despercebido nos comentários".

O conceito de liberdade religiosa na "Dignitatis Humanae"

O CONCEITO DE LIBERDADE RELIGIOSA 
NA "DIGNITATIS HUMANAE" 
DO CONCÍLIO VATICANO II

Antônio de Castro Mayer
Bispo de Campos

 Em matéria de liberdade religiosa na ordem civil, três pontos capitais, entre outros, são absolutamente claros na tradição católica:

1. Ninguém pode ser obrigado pela força a abraçar a fé;
2. O erro não tem direitos;
3. O culto público das religiões falsas pode, eventualmente, ser tolerado pelos poderes civis, em vista de um maior bem a obter, ou de um maior mal a evitar, mas de si deve ser reprimido, mesmo pela força, se necessário.

É o que se depreende, por exemplo, dos seguintes documentos:

Os primeiros choques - a questão da liberdade religiosa no Concílio

Agosto 12, 2018 escrito por admin

“Todos vêem que isso é completamente contrário à doutrina católica transmitida

até hoje, ensinada e promulgada pelos Pontífices Romanos”.

Cardeal Quiroga y Palacios

Já se passaram exatamente vinte anos desde que S. E. Monsenhor Lefebvre fez uma brilhante conferência sobre o novo código de direito canônico no teatro Carigmano de Turim. Nessa ocasião, tocou várias vezes na questão do falso “direito” à liberdade religiosa que o Vaticano II introduziu, assim como das relações entre a Igreja e o Estado. Durante a fase inicial de sua intervenção, Mons. Lefebvre mostrou dois opúsculos que levava consigo: tratava-se dos diferentes esquemas que se apresentaram, sobre esses assuntos, na fase preparatória do concílio: o esquema da Comissão Teológica, presidida pelo Cardeal Ottaviani, e o esquema do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, tendo à frente o Cardeal Bea. 

Monsenhor Lefebvre afirmou aberta e profeticamente que a disputa entre essas duas posições, que na sala conciliar teve a vitória da segunda, constituía o início da grande batalha na Igreja entre católicos e “liberais”. Ilustraremos nesse artigo ambos os esquemas e os debates suscitados ao longo da fase preparatória do Concílio. Seguiremos as idéias da conferência de Mgr. Lefebvre, uma conferência na qual vibravam uma advertência e um apelo a não depor as armas num assunto de tanta importância para o reinado social de Jesus Cristo. Os próprios inimigos da Igreja reconhecem a importância da realeza social de Nosso Senhor; demonstram isso empregando todas suas forças para laicizar os Estados outrora católicos e impor o “dogma” da liberdade religiosa.

O estudo que se segue nos permitirá lembrar a doutrina católica que os Papas defenderam contra o liberalismo, “católico” ou não, a custa de lágrimas e sangue, e refutar ao mesmo tempo as doutrinas dos inovadores que, desgraçadamente, constituem hoje a forma mentis de quase todo o mundo católico, que tornou-se liberal mais ou menos conscientemente.

 

I. O esquema da comissão teológica: DE TOLERANTIA RELIGIOSA

O primeiro esquema, De relationibus inter Ecclesiam et Status necnon de tolerantia religiosa 1 é uma obra prima de síntese da doutrina católica sobre o assunto. Seu principal autor pode ser considerado o Cardeal Ottaviani, presidente da comissão apostólica, encarregado da redação dos esquemas preparatórios 2.

O esquema se inicia com a afirmação da existência de dois poderes: a sociedade civil e a Igreja, ambos necessários e supremos em sua ordem. A finalidade própria de cada uma da duas ordens constitui o fundamento da diferença entre ambas as sociedades. Tal distinção integra por sua vez a garantia de seu poder real e efetivo. Visto que entre o fim terreno, próprio da sociedade civil, e o fim espiritual, privativo da Igreja, há uma relação de subordinação do primeiro ao segundo (pois de nada valeria a felicidade temporal se não se alcançasse a eterna), concluímos que “o fim próprio da sociedade civil não pode nem deve ser perseguido excluso vel laeso fine ultimo: salute videlicet aeterna” [com exclusão em detrimento do fim último, isto é, da salvação eterna] 3.

Daí que a Igreja não intervenha nos assuntos puramente temporais. Mas o que interessa tanto ao âmbito natural quanto ao sobrenatural (como por exemplo, o matrimônio, a educação da juventude, etc.) o Estado deve tratá-lo de maneira que não fira, a juízo da Igreja, os bens superiores de ordem sobrenatural. A salvaguarda e a proteção de tais bens, mesmo sendo próprias da missão da Igreja, resultam muito vantajosas também para o Estado, porque favorecem a formação de bons cidadãos.

 

Os deveres religiosos do Estado

O parágrafo que trata dos deveres religiosos do poder civil pode ser considerado o mais importante de todos e, certamente, foi o alvo das críticas mais acerbadas por parte dos inovadores. Inicia-se com uma sentença lapidar: potestas civilis erga religionem indifferens esse nequit [o poder civil não pode ser indiferente à religião] 4.

De fato, o poder civil foi instituído por Deus para ajudar os homens a conseguir a perfeição humana, não somente mediante uma justa aquisição dos bens temporais e materiais, mas para favorecer, além disso, a circulação dos bens espirituais e o cumprimento dos deveres religiosos. Entre esses bens, nenhum é mais importante do que conhecer o Deus verdadeiro e cumprir os próprios deveres para com Ele. Isso é exigido pela própria ordem natural, expressão da sabedoria e vontade divinas; ignorar tal doutrina “afeta de modo particular o bem público e privado” 5.

Nesse ponto o esquema sustenta  uma afirmação de importância capital: “Não só os simples indivíduos hão de cumprir os deveres referidos para com Deus, mas também o poder civil, que representa a sociedade civil nos atos públicos, há de exercer a mesma obrigação em relação à Majestade Divina. De fato, Deus é o autor da sociedade civil e fonte de todos os bens que convergem a seus membros através dela mesma. Assim, pois, a sociedade civil deve honrar e venerar a Deus” 6. Deus, de fato, não criou os homens como indivíduos ilhados; ao contrário: quis que o homem fosse um animal social. Ao inscrever na natureza humana a característica da sociedade, instituiu também a potestatem civilem. “É inerente à natureza humana ser social e criado para ser regido por leis sociais, vivendo agregado a outros, muito mais do que se observa nos demais animais [...]. O homem [...] pode procurar recursos para ele próprio, mas não por si só, porque por si só, seria insuficiente para remediar todas as necessidades de sua vida. É natural, pois, que o homem viva em sociedade [...]. Sendo natural que o homem viva em sociedade, deve haver nela tudo quanto seja necessário para seu governo; porque se em uma sociedade ninguém se ocupasse mais do que de si próprio, logo ela se dissolveria, a não ser que houvesse um que a detivesse em sua perdição, consagrando-se ao regime e direção dos interesses comuns...” 7.

Ainda falta algo a ser dito sobre os deveres do poder político para com Deus: “o modo com que se deve honrar a Deus na presente economia não pode ser mais do que o que o próprio Deus  estabeleceu como obrigatório em relação à  verdadeira Igreja de Cristo” 8.

Assim, pois, o primeiro ponto sustentado pelo esquema é que Deus é o autor da sociedade civil e do poder político. Daí o poder que cabe ao próprio poder político de “dar a Deus o que é de Deus” (Lc 20, 25) 9. 

O segundo ponto diz respeito ao modo em que a sociedade civil há de honrar a Deus. De fato, Deus não deixou o homem sem guia nem freio: fundou só uma religião verdadeira e uma única e autêntica Igreja, a Católica, que não deixou nunca de assinalar os deveres da sociedade civil para com Deus. Por isso, está no esquema que “também o poder civil, assim como os cidadãos, tem o dever de reconhecer a revelação proposta pela Igreja” 10.

O terceiro ponto é o seguinte: Deus não se limitou a fundar a Igreja; além disso, manifestou ao mundo inteiro suas origens 11: “um juízo imparcial e prudente vê facilmente qual é a verdadeira religião. A verdade e o cumprimento das profecias, a freqüência dos milagres, a rápida propagação da fé apesar de  inimigos superiores e de barreiras humanamente insuperáveis, o testemunho sublime dos mártires e mil outras preclaras demonstrações tornam  patente que a única religião verdadeira é aquela que Jesus Cristo em pessoa instituiu, confiando-a a sua Igreja para que a mantivesse e a dilatasse em todo o universo” 12. Segue-se daí o dever, para o poder civil, de defender a plena liberdade da Igreja e não permitir que  ninguém a impeça de cumprir sua missão 13.

 

Aplicação aos Estados católicos e acatólicos

Uma vez explicados claramente os princípios doutrinais, o esquema infere as aplicações.

Nos Estados onde os cidadãos professam em sua maioria a religião católica, “o poder civil não goza de modo algum do direito de obrigar as consciências [dos católicos] para que aceitem a fé revelada por Deus” 14; disso não se infere, entretanto, que o Estado não tenha o direito de intervir “negativamente”, isto é, de impedir que se difundam religiões falsas e princípios contrários à religião católica: “para proteger os cidadãos da sedução do erro, para conservar o Estado na unidade da fé, sendo bem supremo e fonte de numerosos benefícios, inclusive temporais, o poder civil pode usar de sua autoridade para regular e moderar as manifestações públicas dos demais cultos e defender os cidadãos da difusão de doutrinas falsas que, a juízo da Igreja, põem em perigo sua salvação eterna” 15. Por isso, Monsenhor Lefebvre também afirmava: “naturalmente, o poder civil não pode obrigar ninguém a abraçar a religião católica (nem, com maior razão, outra religião, como diz o Código de Direito Canônico, can. 1351); mas pode, ao contrário, proibir ou moderar o exercício público das outras religiões” 16.

O estado pode, entretanto, promulgar, sob o olhar do bem da Igreja e do seu próprio, leis que se inspirem na tolerância de religiões falsas. Isso pode acontecer “para evitar males maiores, como o escândalo ou a discórdia civil, um obstáculo para a conversão à verdadeira fé...” 17. O Papa Pio XII abordou magistralmente esse tema em uma audiência concedida aos participantes do V Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos: “O dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode ser, portanto, uma norma última de ação. Deve estar subordinado a normas mais altas e mais gerais, que em determinadas circunstâncias permitem o erro, como sendo o melhor caminho para promover um bem maior.

Com isso, ficam claros os dois princípios dos quais deve-se deduzir, nos casos concretos, a resposta à gravíssima questão da conduta jurídica, do homem político e do Estado católico diante de uma fórmula de tolerância religiosa e moral sobre o que já foi citado antes [...]. Primeiro: o que não responde à verdade e à norma moral não tem objetivamente direito algum nem à existência nem à propaganda e nem à ação. Segundo: o fato de não impedi-lo por meio de leis estatais e de disposições coercitivas pode, entretanto, ser justificado pelo interesse de um bem superior e mais vasto” 18.

Quanto aos Estados católicos, o esquema lembra o dever que o Estado tem de, no mínimo, conformar-se com a lei natural; por fim, o Estado deve garantir a liberdade civil a todos aqueles cultos que não se oponham à religião nem à moral natural 19.

 

O direito-dever de anunciar o Evangelho

O esquema visto até aqui se inseria no esquema De Ecclesia. Pars  Secunda (cap. IX), e a ele se acrescentava o seguinte capítulo: De necessitate Ecclesiae annunciandi Evangelium omnibus gentibus et ubique terrarum (capítulo X) 20.

O dever da Igreja de evangelizar todos os povos deriva dos próprios poderes de Cristo, que ordenou: “ide, pois, ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto eu ordenei” (Mt. 28, 19-20). Por isso “a Igreja goza em todas as partes, independentemente de qualquer poder humano, do direito inalienável de enviar núncios do evangelho,de estabelecer comunidades cristãs, de  incorporar-se aos homens mediante o batismo e exercer sobre seus súditos tanto poder quanto o de reger e santificar 21.

O Estado Católico não só não deve impedir este direito-dever da Igreja Católica, mas deve facilitá-lo; por outro lado, o poder civil de um Estado acatólico deve abster-se  pelo menos de proibi-lo, e há de reconhecer que a doutrina católica não contém nada que discorde da religião natural, nada contrário à dignidade humana e que não redunde em vantagem nem da vida individual nem da social. Tampouco é lícito a poder algum opor-se à pregação do Evangelho para defender suas tradições, visto que a obra evangelizadora da Igreja conservará e elevará tudo o que há de bom e de justo nelas.

A Igreja, por sua vez, não pode renunciar a sua missão por motivo nenhum, e resistirá até ao martírio, se for necessário: “por esse motivo, o santo sínodo proclama solenemente, ante todo o universo, o direito que a Igreja possui de anunciar o Evangelho a todos os homens e no mundo inteiro e fornecer-lhes os meios de salvação, e insiste com aqueles que estão constituídos em autoridade sobre os povos para que não estorvem a plena liberdade da Igreja no cumprimento desse dever, sendo melhor favorecer o exercício desta entre os povos que lhes confiou a providência divina"22.

 

II- O CONFRONTO

Oposições ao esquema da Comissão Teológica

A primeira oposição relevante foi a de S. Em. o Cardeal Frings. Ele afirmou que a revelação divina tem por destinatários os indivíduos e não a comunidade civil. Portanto, ainda sustentando firmemente que existe uma verdade religiosa, deve-se deixar as pessoas em liberdade para seguirem a religião que julguem ser verdadeira. A intervenção do Estado só se justifica quando a opção religiosa causa lesão ao bem público 23. Ao Cardeal Frings fez eco o Cardeal Léger: também para este último o Estado deve abster-se completamente de favorecer a verdadeira religião menosprezando assim as falsas 24, visto que tal escolha pertence à consciência de cada um dos indivíduos. 

Os dois príncipes da Igreja esqueciam, entretanto, que tal posição fora condenada por Pio IX de maneira circunstanciada: “Sabeis perfeitamente, veneráveis irmãos, que há homens na atualidade que, aplicando ao Estado o ímpio e absurdo princípio do chamado naturalismo, têm a ousadia de ensinar que “o caráter (a representação) mais perfeito do estado e o progresso civil exigem imperativamente que a sociedade humana se constitua e governe sem consideração alguma da religião, e como se ela não existisse, ou pelo menos, sem fazer diferença alguma entre a verdadeira religião e as religiões falsas”. E contradizendo a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, não temem afirmar que “o melhor governo é aquele no qual  não se reconhece a obrigação do poder político de reprimir com sanções penais os profanadores da religião católica, a não ser quando a tranqüilidade pública o exija” 25.

S. Em. o Cardeal Doephner acrescentou outros “motivos” 26. Depois de ter afirmado que nem todos os teólogos católicos concordam com o fato de que o poder civil tem o dever de honrar a Deus com o culto público, acolher a fé católica e limitar a liberdade de cultos (mas então duvidamos de que se tratem de teólogos católicos), o Cardeal Doephner declara: “Parece claramente inoportuno que o Concílio enuncie o direito das nações católicas de negarem a liberdade de culto público às religiões acatólicas. Isso ofenderia muito aos não-católicos[?!] e atrapalharia a colaboração dos católicos com os não-católicos para realizarem o bem comum...27. Por isso o Cardeal desprezava o esquema proposto pela Comissão Teológica. De fato, “devemos ter sempre presente o fato de que não podemos esperar, nos Estados onde a maioria dos cidadãos á acatólica, que nos tratem de maneira diferente à que nós tratamos os acatólicos nos Estados onde a maioria é católica. Portanto, o próprio bem da igreja universal parece exigir que nos abstenhamos de reprimir as demais religiões” 28.

Observemos, antes de tudo que a intervenção do Cardeal Doephner não apresenta nem sombra de distinção entre a religião verdadeira e as falsas. Em segundo lugar, notemos que o dever da sociedade civil de render culto a Deus, ele o considerava uma “uma opinião teológica discutível”, ainda que o magistério, sustentando-se na revelação e no direito natural, tivesse se pronunciado a respeito várias vezes com toda clareza: “A liberdade de cultos no Estado [reivindicada também por ‘católicos liberais’] pede que este não atribua nenhum culto público a Deus, por não haver razão que o justifique; que nenhum culto seja preferido aos outros; e que todos eles tenham igual direito, sem respeito algum ao povo, caso seja ele declaradamente católico. Para que tudo isso fosse correto, teria de ser verdade que a sociedade civil não tem nenhuma obrigação para com Deus ou que pode infringi-las impunemente. Mas a primeira asserção não é menos falsa do que a segunda. Não se pode duvidar, de fato, que a sociedade estabelecida entre os homens, existe por vontade de Deus, seja considerada em suas partes, em sua forma, que é a autoridade, em sua causa, seja na grande lista de utilidades que fornece [...]. Logo, a sociedade há de reconhecer Deus como pai e autor e reverenciar e adorar seu poder e seu domínio. Esconde, pois, a justiça, e esconde também a razão, seja o Estado ateu ou um que venha parar em ateísmo, que se aja de igual modo quanto às religiões, e conceda a todas promiscuamente iguais direitos. Sendo, pois, necessário ao Estado professar uma religião, há de professar a única verdadeira, que se conhece sem dificuldade, singularmente nos povos católicos, visto que nela aparecem como que selados os caracteres da verdade 29.

Assim, pois, o Cardeal Ottaviani tinha razão de sobra quando disse, contra as objeções alegadas na fase preparatória do Concílio, que o ponto chave consistia em compreender se a sociedade civil deve honrar a Deus, colere Deum 30, ou não; o que significa também que era preciso decidir se todas as declarações do magistério sobre esse assunto deviam ser seguidas ou ignoradas.

 

A defesa do Magistério constante da Igreja

Deixemos o próprio Cardeal Ottaviani responder, num tom profundamente ardente, ao Cardeal Doephner e seus demais “companheiros de infortúnio”: “Já disse ― e não quiseram escutar ou então não o entenderam ― que no Estado regido por um regime democrático e em que os católicos são a maioria [...] os próprios católicos podem exigir que o estado aja segundo os princípios dos cidadãos. No Estado em que há várias religiões [...] a Igreja se posiciona pela paridade dos cultos, e no Estado em que há uma enorme maioria de não-católicos [...] disse que [os católicos] devem ser tolerantes, como pedia Tertuliano quando os católicos eram poucos 31. Foi assim que o Cardeal Ottaviani enunciou de maneira realista o modo com que se devem esboçar as relações Igreja-Estado com base nas diferentes situações em que os católicos se encontrem, sem reconhecer entretanto o direito à liberdade religiosa, o que teria sido contrário ao ensinamento da Igreja; um ensinamento que Pio XII repetiu até as vésperas do Concílio: “antes de tudo é preciso afirmar claramente que nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for seu caráter religioso, pode dar um mandato positivo ou uma autorização positiva de ensinar ou de fazer o que for contrário à verdade religiosa ou ao bem moral. Um mandato ou uma autorização deste gênero não teria caráter obrigatório e ficaria sem valor. Nenhuma autoridade poderia conferi-la, porque é contra a natureza obrigar o espírito e a vontade do homem ao erro e ao mal, ou considerar um e outro como indiferentes. Nem sequer Deus poderia dar um mandato positivo ou uma autorização positiva de tal caráter, porque estaria em contradição com sua absoluta veracidade e santidade 32.

O Cardeal Ottaviani afirma, ademais, com vigor: “falou-se da [má] impressão que teriam  os protestantes, os pagãos, etc.; mas devemos manter nossa posição, tendo em vista o que diriam os católicos na Itália, na Espanha, em Portugal, na Irlanda, na Hispano-América[...], e me dirijo particularmente aos bispos da América Espanhola: sabem que batalha os protestantes empreenderam nessas zonas contra a unidade da religião. Vamos dar, então, aos protestantes, conduzidos pelo Vaticano II, uma arma para atacar o catolicismo ou para opor contrapeso ao que fazem as autoridades civis ― e fazem muito ― em favor do catolicismo? [...]. Assim, não se pode dizer com segurança, como fez um bispo, ‘salva reverentia erga Magisterium ecclesiasticum’ [salva a reverência devida ao Magistério eclesiástico]. O magistério ensina o que está exposto [no esquema], e é por isso que não cabe afirmar: ‘sejamos reverentes’, e logo em seguida agir contra ele 33.

O Cardeal Alfrink percebeu a diferença entre a doutrina tradicional, representada pelo esquema da Comissão Teológica, e a “liberal”, exposta no esquema do Secretariado para a Unidade dos Cristãos: “só o mero fato de que se fale de tolerância religiosa no primeiro esquema e não de liberdade religiosa, como no outro,  já nos causará problemas...34. Mas o Cardeal Alfrink, mesmo reconhecendo em tal diferença de termos uma diferença de doutrina, confirma a posição “liberal”, porque do primeiro esquema “os católicos inferirão que a Igreja Católica, enquanto goze de maioria em seus países, privará os cidadãos acatólicos da liberdade civil de professar sua religião e irá tolerá-los como um mal35. Ao falar dessa maneira, o cardeal exibe uma incompreensão absoluta tanto dos fundamentos da doutrina católica quanto do direito natural. De fato, desde quando o erro pode reivindicar direitos? Desde quando o árbitro pessoal pode reivindicar direitos absolutos? Isso acontece só no âmbito da reflexão filosófica moderna, que se inspira no pensamento liberal-maçônico, sempre condenado pela Igreja. Perguntemo-nos então: que devem fazer os cardeais no concílio: ensinar a verdade perene que Deus lhes confiou ou fazer propaganda dos delírios daqueles que reivindicam para o homem direitos absolutos que só competem a Ele? Não se ouve aqui o eco da tentação original: eritis sicut Deus [sereis como Deus]? 

S. Em. o Cardeal Larraona alertou todos contra qualquer concessão em matéria doutrinal para “favorecer” os acatólicos: “se cremos que a conversão há de se realizar mais facilmente pelo fato de que nos acerquemos deles de maneira que já não subsista diferença alguma, nos equivocamos completamente [...]; crer que devemos ceder na doutrina (como já cederam muitos, oh dor!) ― nessa doutrina que por desgraça, já não se reverencia publicamente na Europa, ― ou que devemos ceder também na disciplina, constitui, a meu juízo, um erro que tem de ser rechaçado... 36. O Cardeal Browne sustentou que o esquema da Comissão Teológica era impecável e classificou de “infantilismo” a suposição de que a doutrina exposta admiravelmente na Immortale Dei de Leão XIII fosse uma doutrina contingente e mutável 37. 

Tudo o que já foi exposto revela claramente a existência de uma fissura no seio das próprias comissões preparatórias, uma fratura que sairia definitivamente a flor da pele na sala conciliar. De um lado, encontramos os que só queriam re-elaborar e expor fielmente a doutrina católica de sempre, procurando dar diretrizes práticas de ação pastoral, e de outro, configurava-se cada vez mais a vontade de recorrer à pastoral para inserir uma modificação substancial na concepção católica das relações entre Igreja e Estado. A nova orientação deletéria, que desgraçadamente acabou prevalecendo, manifesta-se com clareza no esquema do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, presidido pelo Cardeal Bea.

 

III – AS “NOVIDADES” DO ESQUEMA DO SECRETARIADO PARA A UNIDADE DOS CRISTÃOS   DE LIBERTATE RELIGIOSA

O magistério “repensado”

O primeiro dado desconcertante que aparece a primeira vista no esquema em questão é a ausência de uma lista de notas que remeta o leitor aos textos do magistério, enquanto que no esquema da Comissão Teológica, ao contrário, há uma lista que ocupa páginas e mais páginas. 

E é o próprio Cardeal Bea quem nos diz que peso deve-se atribuir ao esquema De libertate religiosa. O presidente do Secretariado para a Unidade dos Cristãos declarou, na apresentação do esquema citado 38, que foi escrito tendo presente a situação de então, caracterizada, por um lado, pelas acusações de intolerância que os católicos vertiam contra a Igreja Católica (sic!), e, por outro lado, pelo fato de que já não existia nenhuma nação que se pudesse considerar católica (afirmação que provocou a reação do Cardeal Larraona 39); entretanto e isso é o que nos interessa o Secretariado “quis expressar-se também em termos teológicos” (de principiis theologics cogitavit 40), ou seja, quis repensar a posição católica apresentada ininterruptamente pelo magistério de todos aqueles Papas que tiveram de enfrentar as idéias liberais. As novidades de tal “repensamento” são de importância capital.

 

As “time bombs” (as bombas-relógio)

O esquema confirma, antes de tudo, que a Igreja deve ocupar-se não somente das verdades que devem ser cridas, mas, além disso, deve ocupar-se das pessoas que hão de aderir a tais verdades, precisamente de “todos aqueles movidos pelo Espírito Santo por caminhos diversos a fim de que ascendam livremente à casa do Pai comum41. 

Já encontramos nessa afirmação dois elementos abundantemente desenvolvidos no pós-concílio (essas novidades “escondidas” nos textos, que constituem os avanços e os pretextos em que se possa apoiar as doutrinas heterodoxas para desenvolvê-las amplamente em tempos mais oportunos, são chamadas com toda razão de time bombs nos ambientes anglo-saxões, isto é, são bombas conscientemente programadas para explodir no seu devido tempo).

Descobrimos in primis a idéia segundo a qual o Espírito Santo se serve positivamente de caminhos distintos aos estabelecidos por Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica (viis diversis a Spiritu Sancto moventur), uns caminhos que a reflexão pós-conciliar identificará explicitamente com as religiões falsas. Isso foi previsto com olhos de lince por S. Em. o Cardeal Quiroga y Palacios, que pediu que se esclarecesse que, se o Espírito Santo move de fato, também aqueles que andam por outros caminhos fora da Igreja Católica, “não os move para que andem por tais caminhos, mas apesar de andarem por eles, isto é, a despeito de que discorram por tais caminhos. Por isso não poderá inferir-se nada daqui em favor da liberdade religiosa, mas somente em favor da tolerância42. O Cardeal havia explicado no mesmo sentido a parábola do grão e da cizânia, alegada tortuosamente no esquema do Secretariado como suposta testemunha evangélica em favor do direito à falsa “liberdade religiosa”. De fato, o Senhor Jesus diz explicitamente que foi o inimigo quem semeou a cizânia, enquanto aquele que devia velar se encontrava dormindo. Portanto, não é reconhecido direito algum ao inimigo semeador, porque atuou às escondidas e com dolo. Enfim, essa parábola sugere a tolerância e nega todo direito ao erro 43.

Em segundo lugar, no esquema do Cardeal Bea, se insinua que a liberdade é, em sua essência, ausência de constrição interna, o que exige que ninguém limite a expressão da interioridade do sujeito. O único limite consiste, segundo ele, em não por obstáculo à liberdade dos outros. Também aqui se opôs o Cardeal Quiroga y Palacios, pois ainda que seja verdade que cada um tenha o direito de formar livremente sua consciência e de tomar suas decisões a partir dela, não é verdade que o status mentis errantis (a consciência errônea) possa reivindicar direitos sociais para si ou lamentar-se das intervenções da autoridade legítima a fim de evitar danos ao bem da Igreja e da sociedade 44.

  

O ponto chave                           

Com toda razão é reconhecido a todas as pessoas, no esquema, o direito de seguir sua consciência, mesmo quando esta erra (“em matéria religiosa, deve-se respeitar o direito de seguir sua própria consciência, tanto para os crentes [...] como para todos os homens e todas as sociedades humanas, sem restrição45). Mas o Secretariado para a Unidade dos Cristãos extrai daí conseqüências errôneas, especialmente para a livre expressão da religião que a consciência julga verdadeira. Este ponto é de uma importância extrema. Sem pretender abusar da paciência do leitor, parece-nos necessário seguir passo a passo o modo como São Tomás trata esse assunto: “Visto que o objeto da vontade é o que a razão lhe propõe, se ela lhe apresenta algo mal, a vontade se torna má ao procurá-lo. Isso não se verifica somente nas coisas indiferentes, mas também nas boas ou más por natureza. De fato, não só a coisa indiferente pode assumir acidentalmente natureza de bem ou de mal, mas também o próprio bem pode assumir aspecto de mal, e o mal, aspecto de bem, em virtude da apreciação da razão. Abster-se da fornicação, por exemplo, é um bem. Contudo, a vontade só pode mover-se em direção a ele como sendo um bem,  baseada na apresentação da razão. Assim, se a razão erra e apresenta [a abstinência da fornicação] como um mal à vontade, esta tenderá a ele sob o aspecto de mal e, por conseguinte, será má, pois quererá um mal (não um mal que seja tal por si mesmo, mas um mal que é tal acidentalmente, em virtude da apresentação da razão). E assim, crer em Cristo é algo essencialmente bom e necessário para a salvação. Mas a vontade não pode tender a isso se não estiver baseada na apresentação da razão. Logo, se a razão apresenta isso como um mal, a vontade, forçosamente, o quererá como um mal. Não porque seja um mal em si, mas porque seria um mal na consideração da razão. Daí que é necessário concluir que, falando em termos absolutos, toda volição que se afaste da razão, certa ou errada, é sempre pecaminosa46. Segue-se que ninguém deve forçar uma pessoa a crer em Jesus Cristo: “A doutrina católica e a Igreja sempre se pronunciaram, e continuam fazendo-o hoje, a favor da mais ampla liberdade de consciência na busca da verdade revelada e em sua aceitação integral mediante o ato de fé. O princípio que enunciou outrora Santo Agostinho a esse respeito, segundo o qual o homem não pode acercar-se da fé religiosa nonnisi volens, foi sempre a norma a que se adequou constantemente a práxis da Igreja em relação aos infiéis; igualmente se conforma com ela  a postura que mantém quanto aos dissidentes, nascidos e crescidos no seio de confissões religiosas que desertaram há tempos da unidade querida por Cristo 47.

Com o princípio da não constrição, especialmente no âmbito religioso, deriva a obrigação que a vontade tem de seguir a consciência: “a aceitação da verdade há de ser espontânea: a força ou a constrição podem produzir um conformismo externo, mas nunca a adesão espiritual a uma doutrina [...]. Segue-se então que quem erra, especialmente se o faz de boa fé, tem direito a não sofrer violência externa ou pressão moral para fazê-lo mudar de opinião ou profissão religiosa [...]. Direito de liberdade interior, que exclui categoricamente o exercício de qualquer tirania sobre as consciências, tanto no campo político quanto no religioso. Mas trata-se de um direito não do erro, mas da pessoa humana em sua dignidade de ser racional na qual caminha com firmeza48. Sobre tal dignidade de ser racional, funda-se o princípio da tolerância religiosa, sempre defendida pela doutrina católica. Mas a Igreja jamais considerou tal dignidade como absoluta, isto é, solta, desligada de todo limite extrínseco e intrínseco. Pelo contrário, sempre ensinou que o direito à liberdade do ser racional está intrinsecamente limitado pela lei moral e a justiça, e que se acha extrinsecamente circunscrito pelas exigências da vida social (onde se choca com o direito dos outros). Daí que a consciência errônea, ainda que obrigue a vontade, não pode ufanar-se de possuir direito algum, pois o direito se liga ontologicamente somente à verdade e ao bem objetivamente determinados e por conseguinte, à consciência verdadeira, isto é, conforme a verdade objetiva: “gostaríamos de perguntar aos sustentadores dos direitos da consciência subjetiva o que responderiam a um amigo que chegasse em sua casa e lhes convidasse a abandoná-la porque tem certeza subjetiva que esta casa lhe pertence. Não têm dúvida de que o entregariam à polícia, se não fossem ao manicômio diretamente. Como se explica tal comportamento se a consciência subjetiva [a consciência errônea inclusive] goza do direito de fazer-se valer? Explica-se perfeitamente pela natureza das relações sociais, as quais têm fundamento no direito objetivo, perante o qual há de bater em retirada qualquer persuasão pessoal49.  

Tampouco a vontade que segue os ditados da consciência errônea se exime sempre de pecado: “Se a razão ou a consciência são errôneas por causa de um erro direta ou indiretamente voluntário quanto a assuntos que todos estão obrigados a saber, tal erro não exime de pecado a vontade que segue a razão ou a consciência errôneas. Mas se, pelo contrário, trata-se de um erro[...] em que não haja negligência por parte do sujeito,  que ignora apenas as circunstâncias particulares, então tal erro da razão ou da consciência exime a vontade de pecado 50.

Tiremos agora as conseqüências de nossa análise: “sendo uma faculdade moral, o direito só pode germinar sobre o terreno da verdade e do bem [...]. Ora, estando a consciência subjetiva no erro, ainda que o professe de boa fé [isto é, mesmo no caso em que a consciência apresente tal erro como se fosse um bem, ainda que na realidade seja um mal], não pode engendrar por si própria direito algum. Portanto, o direito acompanha unicamente a consciência objetiva, ou seja, a consciência que se conforma com a verdade objetiva na aceitação da religião 51.

Os desvios doutrinais do cardeal Bea não acabam por aqui. Mais na frente, o esquema afirma que a Igreja jamais admitiu e não pode admitir a doutrina do indiferentismo religioso. Entretanto, enaltece as sociedades civis modernas que dispensem tal modo de agir a todas as religiões 52. Bea sustentou igualmente, na tese que defendeu, que o Estado deverá ocupar-se  somente do bonum communem humanum, o único que o Estado pode reconhecer à luz da razão (o Cardeal Bea já exclui então, por princípio e contra o Vaticano I, que se possa reconhecer a origem divina da religião católica através de prova externas, acessíveis à razão humana!), e que de pouco servirá multiplicar citações de outros tempos, porque o Concílio, segundo a vontade de João XXIII, devia ter o olhar posto sobre o aggiornamiento.

 

O hiato

É evidente o hiato existente entre o esquema e a doutrina tradicional: “a doutrina antiga [...] tem seus fundamentos nas premissas reveladas: que a religião verdadeira não pode ser mais que uma e é exclusivamente a católica, em cujo favor convergem todas as provas históricas e dogmáticas. A estas premissas, se acrescenta logo um princípio de ordem racional, ou seja, que o direito só se vincula ontologicamente à verdade. E visto que a religião católica é a única verdadeira, deduz-se que urge o dever do Estado, particularmente se a maioria de sua população é católica, de proteger a religião revelada com todos os meios que estão ao seu alcance [...]. Segue-se que [...] não se pode sustentar a  tese do laicismo do Estado e sua separação da Igreja [...] sem antes virar de cabeça para baixo este sólido baluarte chamado dogma 53. A isso se acrescenta que “não somente o bem comum obriga o Estado a sair da neutralidade proposta, mas também há a obrigação indeclinável, sobretudo como Estado, de render culto público ao Deus verdadeiro na única forma que este estabeleceu através da revelação” 54. Exatamente o mesmo que sustentava o Cardeal Ottaviani e todo o ensinamento do magistério infalível!

Portanto, podem-se perceber vários erros graves na posição de Bea:

1) Negação do direito natural, segundo o qual também a sociedade civil deve render o  culto devido a Deus, pois O tem como autor.

2) Negação da Redenção, que exprime qual é o único culto verdadeiro e agradável a Deus.

3) Negação do conceito filosófico da verdade, entendida como adequação do intelecto com a realidade, conhecido universal e objetivamente.

4) Negação do conceito verdadeiro de liberdade humana, “limitada intrinsecamente pela lei moral e a justiça, e circunscrita extrinsecamente pelas exigências da vida social” 55.

Assim, pois, o Cardeal Quiroga y Palacios falou com razão sobre o esquema apresentado por Bea: Nemo non videt omnia haec esse omnino contraria doctrinae usque adhuc tradiate ab omnibus et a Summis Pontificibus expositae et propugnata [Não há ninguém que não veja que tudo isso é contrário à doutrina católica transmitida até hoje por todos e exposta e propugnada pelos Sumos Pontífices] 56.

 

Conclusões

Começamos esse artigo ponderando a clarividência da Monsenhor Lefebvre. Agora será mais fácil apreciá-la.

Pensando bem, todo o debate relativo aos dois esquemas propostos gira em torno de um ponto decisivo: é absoluta a dignidade humana e a liberdade que se deve a tão preciosa dignidade? Ou é Deus o Absoluto? (A existência de dois absolutos, de fato, é impossível por ser contraditória e o que não é possível, não pode ser real). A pergunta pode parecer banal e fácil de responder, mas não é assim. O castelo elaborado pelo Cardeal Bea e seus colaboradores só se mantém em pé se a indivisível conexão do direito com a verdade for negada. A liberdade humana deve adaptar-se às exigências dessa conexão, pois ela procede de uma ordem objetiva de valores cujo fim último é a vontade do ordenador e legislador supremo. Assim, pois, a liberdade não é em nada ofendida ao se negar que a consciência subjetiva tenha direitos; no máximo, “manifesta-se uma oposição irredutível a um conceito errôneo de liberdade, entendida como faculdade de fazer tudo que dê vontade: um conceito com o qual nenhuma doutrina moral jamais  poderá chegar a compromisso algum” 57

A negação do vínculo da liberdade com a verdade leva à liquidação do Absoluto divino, fonte da ordem da verdade, fora do qual todo o resto só pode ser relativo, não no sentido de um meio sobre o fim, mas no sentido de um fim secundário (o homem) sobre o fim último (Deus). Esta é a tentação original: eritis sicut Deus, sereis como Deus. É a loucura do anticristo, que “se ergue acima de tudo o que se chama Deus ou é objeto de veneração até o ponto de sentar-se ele próprio no templo de Deus, proclamando-se Deus a si mesmo” (2Ts 2, 4). É a luta das duas cidades: a cidade de Deus, que O ama até o desprezo de si, e a do homem, que ama a si próprio até o ponto de menosprezar Deus.

Dom Marcel Lefebvre tinha razão: os primeiros choques da batalha apocalíptica no seio da igreja se produziram a propósito da liberdade religiosa. O próprio Paulo VI disse, de uma  maneira desconcertante, em um incrível discurso pronunciado na ONU, precisamente ao acabar o Concílio, que o Concílio Vaticano II era o primeiro baluarte conquistado pelos que, sabendo ou não, preparam a sopa de Satanás, seu anticristo e sua cidade: “O humanismo leigo e profano apareceu, finalmente, em sua terrível estatura e, de um certo modo, desafiou o Concílio. A religião do Deus que se fez homem encontrou-se com a religião – porque assim é – do homem que se faz Deus. O que aconteceu? Um choque, uma luta, uma condenação? Poderia ter acontecido, mas não aconteceu... Vós, humanistas modernos, que renunciais à transcendência das coisas supremas, reconhecei pelo menos este mérito [ao Concílio] e reconhecei  nosso novo humanismo. Também nós ― e mais do que ninguém ― somos promotores do homem 58.

São João, ao contrário, diz o seguinte: “Eles são do mundo: por isso dizem coisas do mundo e o mundo os escuta. Nós somos de Deus. Quem não é de Deus não nos ouve. Por isso distinguimos o espírito de verdade do espírito de erro” (1 Jo 4, 5-6). Escutemos, pois, o Espírito da verdade!

Aloysius

 

(Jornal "Sim Sim Não Não", no. 143)

  1. 1. Acta et Documenta Concilio Oecumenico Vaticano II Apparando. Series II Praeparatoria II. 4; pp 657 ss
  2. 2. O cardeal havia terminado há pouco tempo uma obra em dois volumes sobre o direito público da Igreja.
  3. 3. Acta et Documenta... cit., p. 658.
  4. 4. Ibidem
  5. 5. Leo PP. XIII, Litterae encyclicae Libertas de libertate humana, 20 de junho de 1888.
  6. 6. Acta et Documenta... cit., p. 658
  7. 7. Santo Tomás de Aquino, De regimine principum, I, 1
  8. 8. Acta et Documenta... cit., Pp. 658-659
  9. 9. Precisamente essa passagem evangélica será muito mal entendida pelos liberais, que a utilizarão para sustentar (erroneamente, como é claro) a separação entre Igreja e Estado.
  10. 10. Ibidem, p. 659
  11. 11. Cf. Ibidem
  12. 12. Leo PP. XIII, Epistola encyclica Immortale Dei de civitatum constitutione christiana, 1 de novembro de 1885.
  13. 13. Cf. Acta et Documenta... cit., p. 659
  14. 14. Ibidem, p. 660.
  15. 15. Ibidem
  16. 16. M. Lefebvre, Accuso el Concilio (Acuso ao Concílio) Editorial Ichthys: Albano Laziale, 2002, p.78, nota 5.
  17. 17. Acta et Documenta ...cit,. p.600
  18. 18. Pius PP. XII,Nazione e comunitá internazionale nella allocuzione ai Giuristi Cattolici Italiani (Nação e Comunidade internacional no discurso aos juristas católicos italianos), 6 de dezenbro de 1953, em Discorsi e Radiomessagi di Sua Santitá Pio XII (Discursos e Radiomenssagens de Sal Santidade Pio XII), tipogrtafia Poliglota Vaticana, 1954, vol. XV, pp. 488-489.
  19. 19. Acta et Documenta... cit., p. 600
  20. 20. Cf. Acta et Documenta... cit., pp. 672 ss.
  21. 21. Ibidem, pp. 672-673.
  22. 22. Ibidem, p.  673.
  23. 23. Cf. Acta et Documenta ..., cit, pp. 692-693.
  24. 24. Ibidem, pp 695-701.
  25. 25. Pius PP. IX, Cuanta cura, 8 de dezembro de 1864.
  26. 26. Cf. Acta et Documenta ...cit., pp. 701-706.
  27. 27. Ibidem, p. 705.
  28. 28. Ibidem.
  29. 29. Leo PP. XIII, Litterae encyclicae Libertas de libertate humana , 20 de junho de 1888.
  30. 30. Cf. Acta et Documenta ... cit., pp. 719-721.
  31. 31. Ibidem, p. 720.
  32. 32. Pius PP. XII, Nazione e comunitá internazionale..., 6 de dezembro de 1953, em Discorsi e Radiomessage di Sua Santitá Pio XII cit., p. 487.
  33. 33. Acta et Documenta... cit., p. 721
  34. 34. Ibidem, p. 707.
  35. 35. Ibidem.
  36. 36. Ibidem, p. 710
  37. 37. Cf. Ibidem, pp. 710-712.
  38. 38. Cf. Acta et Documenta..., pp. 688-691.
  39. 39. Cf. Ibidem, p. 710.
  40. 40. Ibidem, p. 689.
  41. 41. Ibidem, p. 677.
  42. 42. Ibidem, p. 727.
  43. 43. Ibidem.
  44. 44. Ibidem.
  45. 45. Ibidem, p. 678
  46. 46. Summa Theologicae, I-II, q. XIX, a.5.
  47. 47. A. Messineo, S. I., La libera ricerca della verità (a Livre busca da verdade), “La Civiltà Cattolica”, IV (1950), p. 57.
  48. 48. A. Messineo, S. I., Soggettivismo e liberta religiosa (Subjetivismo e liberdade religiosa), “La Civiltà Cattolica”, III (1951), p. 16.
  49. 49. A. Messineo, S. I., La coscienza soggetiva e la vita sociale (A cosnciência subjetiva e a vida social), “La Ciiltà Cattolica”, II (1950), p. 510.
  50. 50. Summa Theologicae, I-II, q. XIX, a. 6.
  51. 51. A. Messineo, S. I., Soggettivismo e libertà religiosa  cit., p. 5.
  52. 52. Cf. Acta et Documenta... cit., pp. 680-681.
  53. 53. Cf. Ibidem, pp. 689-690.
  54. 54. A. Messineo, S. I., Democrazia e laicismo dello Stato (Democracia e laicismo do Estado), “La Civiltà Cattolica”, II (1951), p. 588.
  55. 55. Ibidem, p.589.
  56. 56. A. Messineo, S. I., Soggetivismo e liberta religiosa cit., p.15.
  57. 57. Acta et Documenta cit., p. 728. Intervenção de S. Em. o Cardeal Quiroga e Palácios.
  58. 58. A. Messineo, S. I., Soggetivismoe liberta religiosa cit., p.15. I Documenti Del Concilio Vaticano II (Os documentos do concílio Vaticano II), Edit. Gregoriana, Pádua, 1967, pp. 1155-1156.

A Declaração "Dignitatis Humanae" é compatível com a doutrina católica tradicional?

A doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por sinceras que sejam, nem na indiferença teórica ou prática ao erro ou vício em que vemos mergulhados nossos irmãos... se Jesus foi bom para os transviados e pecadores, não respeitou suas convicções errôneas por sinceras que parecessem; amou-os a todos para os instruir,converter e salvar.. São Pio X, Notre charge apostolique, 25 de outubro de 1910” (condenação do Sillon).

 
Desejo que se desenvolva o respeito pela liberdade de consciência e de culto para todo ser humano. João Paulo II, encontro com os muçulmanos de Guiné, 25 de fevereiro de 1992. (O.R. em língua francesa de 17 de março de 1992, pág. 9).
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