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Category: FilosofiaConteúdo sindicalizado

A filosofia sã deve ser estudada

O caso Kant

Antônio Caetano

O objetivo desta conversa é apresentar um tema central do pensamento de Kant: as “formas da sensibilidade” que, na Crítica da Razão Pura, são abordadas na Estética Transcendental – “estética” aqui com o sentido de “gnosiologia” ou “teoria do conhecimento”.

Uma mínima compreensão desses conceitos decisivos do kantismo é essencial para entendermos os rumos do Modernismo – especialmente do que Dom Lourenço Fleichman chamou de “subjetivismo moderno” – e o quanto ele é incompatível com o Catolicismo, em geral, e com o tomismo, em particular.

Nossa conversa se dividirá em três partes.

Na primeira, vamos pensar juntos sobre o modo como pensamos, num exercício do que podemos chamar de “gnosiologia natural”.

Na segunda, veremos como Aristóteles e São Tomás sistematizaram essa "gnosiologia natural".

E na terceira, veremos o quanto e como Kant se afasta dessa concepção, numa inversão que ele chamou "copernicana", em referência a Copérnico, e que nós bem poderíamos chamar de demoníaca, por conta de tudo o que será perdido.

* * *

Vamos começar então "pensando o pensamento”. Não é uma tarefa tão complicada, é apenas algo que não estamos acostumados a fazer, pela simples razão de o pensamento funcionar tão bem, de um modo tão natural, espontâneo e eficaz, que nunca nos ocorre pensar como ele funciona. Sabemos, por experiência, que ele funciona. E isso nos basta.

Para começar, eu vou pedir a vocês para pensar em um objeto muito simples: o clipe de papel.

Todos nós sabemos o que é um clipe. Imagino que ninguém terá dificuldade em concebê-lo. Acredito que todos já estejam aí com uma idéia do clipe na mente.

Sabemos que há do clipe uma variedade imensa de tamanhos, cores, matérias e formas.

Eu gostaria que vocês reparassem em uma característica muito especial dessa idéia do clipe que vocês têm na mente agora: o quanto ela é vaga, genérica. Eu diria mesmo, quase invisível, como um fantasma. Ela não tem cor, tamanho, um material específico. Pois é exatamente por isso que nela “cabem” todos os clipes possíveis. É como se houvesse um certo parentesco entre essa idéia do clipe e a idéia de infinito. Deixemos essa questão plantada num canto de nosso espírito e sigamos em frente

Enfim, guardem bem este ponto: na idéia que temos do clipe cabem todos os clipes possíveis. (2)

Agora vejam que curioso: houve um tempo em que o clipe não existia.

Ele só começou a existir a partir de 1899, quando dois homens patentearam o clipe ao mesmo tempo: o norueguês Johann Vaaler, que patenteou o clipe na Alemanha; e o americano William Middlebrook, que o patenteou nos Estados Unidos. E não só o clipe, mas também a máquina de fabricar clipes. Só por isso, nesta nossa conversa, vamos dar primazia a Mr. Middlebrook, para compreensível desgosto dos noruegueses, que têm em Johann Vaaler um herói e fazem do clipe um símbolo nacional. Durante a ocupação nazista da Noruega na segunda guerra mundial, usar um clipe na lapela era um signo de oposição e resistência que levou muita gente à prisão.

Para nós, o que importa é saber que o clipe não existiu sempre. Ele foi criado. Isto é, ele existiu primeiro como idéia na cabeça de alguém. Depois tornou-se um objeto material. E, finalmente, tornou-se idéia na mente de todos nós.

Então vamos guardar esse circuito: idéia criadora – coisa criada – idéia da coisa criada.

Acredito que seja possível dizer que a idéia da coisa criada é uma idéia conservadora, no sentido de que ela é a memória viva do objeto criado. Ela é obtida por abstração a partir de nossa experiência com a coisa criada.

No entanto, a idéia criadora obviamente não chega a alguém por abstração. Ela é como uma espécie de iluminação, intuição, inspiração que aparece como que do nada. Podemos dizer que a idéia original do clipe foi obtida por composição sem que isso comprometa sua originalidade: ninguém antes pensara no clipe ou num objeto com aquela forma para cumprir aquela determinada função que é a de manter juntas folhas soltas.

Mas certamente há uma relação entre a idéia criadora do clipe, a primeira idéia original, e a idéia que existe – mais ou menos precisa segundo o conhecimento que cada um tenha dele – na mente de cada um de nós. Isto é, a idéia que temos do clipe nos remete de modo mais ou menos imperfeito à idéia original.

Vamos complicar um pouco mais? Reparem que não é só pela forma, mas também pela finalidade que definimos o que é um clipe. A finalidade do clipe é juntar folhas de papel. Então se lhes mostro um grampo de cabelo, todos concordarão que o grampo não é um clipe, mas, ainda assim, pode ser usado improvisadamente para juntar papéis. Mas, e se lhes mostro o monumento ao clipe que existe na Noruega, uma estátua de sete metros em forma de clipe, e pergunto: “Isto é um clipe?”, a resposta será obviamente “não”, porque, apesar de ter a forma de um clipe, o monumento não serve para juntar papéis. Então vejam que forma e finalidade andam juntas, mas a finalidade tem precedência na definição das idéias e das coisas.

* * *

Agora eu vou pedir que vocês pensem em outro objeto: a manga.

Dizem que existem mais de 1.500 tipos de manga. Eu conheço só uma meia dúzia delas, mas todas cabem nessa idéia que eu tenho de manga. Como na idéia do clipe cabem todos os clipes possíveis, na idéia de manga que tenho na mente também cabem todas as mangas possíveis.

Então é natural que nós apliquemos agora à manga o mesmo raciocínio que aplicamos ao clipe e nos perguntemos: “Quem criou a manga? Na mente de quem ela existiu primeiro?”

Reparem que com essa pergunta saltamos de repente do âmbito mais ou menos tranqüilo de uma “gnosiologia natural” para o “chiaro-oscuro” de uma “teologia natural”.

Só quando se trata de um ente da natureza é que percebemos com clareza que essa idéia, aparentemente quase vazia de tão genérica, também tem um caráter ontológico, no sentido de atribuirmos a ela uma relação imediata com a idéia original da coisa – ainda que seja mais fácil admiti-lo quando se trata do clipe do que quando se trata da manga.

Por isso é até possível dizer que a filosofia – ou ao menos uma filosofia realista – se funda nesta idéia que de um modo tão natural formamos imediatamente das coisas. Porque é daí que se constrói o conceito de verdade como correspondência. Ou como dirá São Tomás, seguindo Aristóteles: a verdade como adequação do intelecto à coisa.

E é exatamente por conta dessa relação de adequação que falamos em sujeito e objeto. Porque o sujeito é chamado de sujeito porque se sujeita – isto é, submete-se – ao objeto. Ele recebe – ou se preferirem um termo mais poético: acolhe – em seu espírito a imagem ou representação do objeto particular à sua frente e, nessa experiência que pode durar anos, vai abstraindo dele as características que lhe são absolutamente singulares e aquelas que lhe são próprias da espécie. Do mais geral ao mais específico, nada deve escapar ao sujeito atento.

Penso aqui tanto na relação médico/paciente quanto na relação amante/amado.

Ou seja, quanto maior a atenção que ele dedica ao objeto, maior será o conhecimento que ele tende a obter dele, tanto como espécie quanto como objeto singular.

Reparem que a modernidade inverteu esse conceito. Hoje se usa “sujeito” como sinônimo de “eu” e acreditamos que a “subjetividade” tem um papel decisivo na determinação da objetividade das coisas. É na verdade quase uma crença, quase uma superstição moderna, a idéia de que a realidade é uma projeção do sujeito.

Talvez seja um exagero dizer que Kant é o fundador dessa superstição chamada subjetivismo moderno. Há antecedentes modernos – Hume, Berkeley – e a própria possibilidade do conhecimento verdadeiro (ou do acesso humano à verdade das coisas) é uma questão que acompanha a filosofia desde sempre. Mas é inegável que Kant deu ao problema, não uma mera roupagem moderna, mas uma formulação inteiramente nova e original.

Antes de seguirmos, vale registrar alguns dados históricos:

Immanuel Kant nasceu em 1724 e morreu em 1804, aos 80 anos. Era de família luterana e pietista. O Pietismo foi uma espécie de Jansenismo protestante, profundamente puritano, cuja influência no pensamento de Kant não parece desprezível, como veremos.

* * *

Para entendermos o que Kant fez é preciso aprofundar um pouco mais aquela nossa reflexão sobre o modo como pensamos.

Vamos ver o que Aristóteles e São Tomás fizeram dessa nossa percepção simples e natural da idéia ou essência das coisas, que chamei de “gnosiologia natural”.

Voltemos, pois, à pergunta incômoda: Quem criou a manga? Ou, dito de outro modo, em analogia ao clipe: quem primeiro pensou a manga?

* * *

A primeira resposta a essa pergunta foi formulada por Platão, não em termos de “quem”, mas de “onde”.

Em Platão, essas Idéias são entes que existem de fato numa outra dimensão: o Mundo das Idéias.  Quem as terá criado, Platão não nos explica. E ainda que ele admita deuses – e mesmo um deus maior do que todos os outros – as Idéias têm uma existência autônoma.

Elas são eternas, imateriais e imprimem sua forma na matéria dando origem às coisas.

Tudo que existe no mundo sensível é, portanto, cópia de uma idéia que existe nesse mundo inteligível. Uma cópia infiel, decaída em perfeição.

As coisas decaem na Existência, decaem do mundo inteligível para o mundo sensível.

Para Platão, o mundo sensível tem pouco valor: ele, na verdade, nos ilude com sua beleza efêmera. O verdadeiro conhecimento está na contemplação do mundo inteligível, o mundo das idéias imutáveis, a que as coisas nos podem servir de acesso. O mundo sensível é então como uma escada para o mundo inteligível, uma escada que deve ser descartada tão logo alcancemos esse patamar mais alto.

Há como que uma distância entre as coisas e as idéias que são sua origem. A forma segue eterna, enquanto sua cópia degenera junto com a matéria que a compõe.

A crítica mais modesta que se pode fazer à concepção platônica é que ela é profundamente contra-intuitiva. Principalmente, porque carrega em si uma evidente desvalorização do mundo sensível. Aos olhos das pessoas comuns, o mundo não nos aparece como algo degradado, mas, ao contrário, impregnado de uma genuína beleza.

* * *

Aristóteles foi o discípulo amado de Platão. Aristóteles não rejeita o platonismo, apenas discorda da existência de um Mundo das Idéias à parte do mundo sensível. Sua solução é muito mais engenhosa, porque sistematiza aquela nossa percepção natural.

Com quatro pares conceituais interdependentes – forma e matéria; ato e potência; causa e efeito; substância e acidente – Aristóteles vai resolver o problema da relação lógico-ontológica entre as idéias e as coisas.

Aristóteles concorda com Platão que todas as coisas resultam de uma composição de matéria e forma. E que a idéia que temos das coisas corresponde à forma que as define como tal, como exemplar de uma espécie. Onde eles se afastam é na resposta à questão seguinte: onde estão as formas?

Platão, como vimos, afirmava a existência de um mundo de formas, distinto do mundo sensível. Aristóteles, ao contrário, dirá que a forma das coisas está nas próprias coisas – o que soa até como uma obviedade para nós hoje. E é essa exatamente a beleza do pensamento aristotélico: sua simplicidade altamente intuitiva.

Voltemos à nossa manga.

Nós dissemos que na idéia da manga estão contidas todas as mangas possíveis – e até por isso ela é uma idéia tão vaga.

E como chegamos a essa idéia? Pela abstração das qualidades sensíveis dos objetos particulares. Ou seja: passamos do particular ao universal e nesse diálogo vamos construindo nosso conhecimento do mundo.

O mesmo vale para a mangueira que vemos lá fora. Ela também pode ser reduzida à idéia genérica de “árvore”. Uma idéia que eu posso desenhar no ar e todos a reconhecerão imediatamente. Assim como outras tantas idéias que podem ser reduzidas a formas simples, esquemáticas e que aparecem das pinturas rupestres aos primeiros desenhos de nossas crianças. O que nos leva a crer que se trata de uma percepção intuitiva de algo que está de fato nas coisas, e não de um mero convencionalismo.

É mais ou menos isso que Aristóteles vai perceber e sistematizar. Matéria e forma estão nas coisas. Tomadas em separado matéria e forma são inapreensíveis. Só apreendemos o composto que são já as coisas realmente existentes.

O par forma/matéria dá conta então da dimensão espacial das coisas existentes ao nosso redor. Mas como explicar a mudança, isto é, como dar conta da dimensão temporal delas? Pela introdução do par ato/potência, o correlato temporal de forma/matéria.

O composto forma/matéria é dotado de uma potencialidade de ser específica de sua espécie que pode ser atualizada por causas externas adequadas.

Tomemos por analogia a semente da mangueira.

Pensem na semente da mangueira, mas agora já não como idéia, mas como a imagem de uma semente singular, real que infelizmente não temos aqui para passar de mão em mão, para que todos a pudessem ver, sentir, tocar.

Portanto, mais do que simplesmente pensar uma semente de manga genérica, estou pedindo a vocês para imaginar uma semente de manga, recorrendo à memória de experiências passadas. Supondo, claro, que aqui todos já chuparam mangas até só restar o caroço.

Vocês lembram que, ainda há pouco, quando pensamos o clipe e a manga, dissemos que aquela idéia continha de uma maneira um tanto vaga e fantasmal todas os clipes e mangas possíveis.

Agora percebam que na semente da mangueira estão contidas potencialmente todas as mangueiras possíveis.

Potencialmente.

Para que essa potencialidade se atualize, isto é, para que essa semente venha a ser mangueira, ela depende da realização de uma série de condições que, por sua vez, quanto mais adequadamente satisfeitas, mais assegurarão a qualidade da mangueira obtida e de seus frutos.

Ou seja: para explicar que a forma está na própria coisa e não em alguma outra dimensão, Aristóteles introduz um novo par conceitual correlato ao par “forma e matéria”: o par “ato e potência”. De tal modo que o ato está para a forma assim como a potência está para a matéria.

É a idéia de potência se atualizando no tempo e no espaço que explica para Aristóteles a mudança que é a expressão própria da vida das criaturas.

Falta ainda um par conceitual para fechar a abordagem aristotélica: a noção de causa e efeito.

Pois, para que essa potência se atualize, é preciso uma causa – no caso da mangueira, um conjunto de causas muito bem definido.

Vocês certamente se lembrarão da parábola do semeador, presente nos evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus.

É preciso que a semente seja plantada, regada, cuidada. Desse modo, as potências vão sendo atualizadas, até que a semente se torne uma mangueira e assim permaneça. Quem já fez germinar uma semente e dela nascer uma planta, sabe exatamente do que estou falando.

A percepção de que tudo tem uma causa é algo óbvio para todos nós. Tudo tem causa e conseqüência, tudo é fim e começo de algo.

Vamos dar mais um passo, agora em direção à origem dessa idéia, que é a forma, a qual, por abstração, percebemos existir em todas coisas.

Bom, se tudo tem uma causa, se formos remontando de causa em causa é uma exigência lógica que em algum momento se diga: "Isto tem de parar em algum ponto". Onde? Numa causa não causada. Essa causa não causada é então a causa primeira de tudo o mais.

Se é incausada é, portanto, incriada. Se ela é incriada ela é uma causa pura, ou seja, nela não há traço de potência. Portanto, é ato puro. O que significa dizer que é, por exigência lógica, incessante e sempre atual. Logo, se a causa primeira cessasse de ser, tudo mais cessaria de ser imediatamente.

Ou seja: a Causa Primeira não é só criação, mas também conservação de tudo.

A Causa Primeira é, portanto, origem e fonte de todas as coisas.

O entendimento dessa Causa Primeira como Deus é o resultado de toda uma teologia que já está prefigurada no Evangelho de João.

É, portanto, a Ele que nos remetem as idéias que abstraímos das coisas. Como nos diz São Paulo: “Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras” (1Rom 1, 20).

Ou seja, o mundo que enxergamos é apenas o traço mais facilmente acessível do esplendor divino. O mundo é como uma porta aberta para Deus.

As coisas, o mundo, tudo que existe são como intermediários entre o Homem e Deus. É belíssimo perceber que no Gênesis, Adão é feito do barro, como uma espécie de síntese da Criação. E depois é chamado por Deus para junto com Ele nomear todas as coisas. Então essa relação de verdade, de intimidade entre a mente humana e o mundo, entre o Homem e a Criação é uma verdade profundíssima, que nos obriga a um vigoroso realismo.

 * * *

Chegamos agora à terceira e última parte desta conversa: Kant.

O que fará Kant? Kant vai negar tudo isso. Ou para ser mais exato, vai inverter tudo isso.

Por analogia à inversão produzida pelo sistema heliocêntrico de Copérnico, que tira a Terra e coloca o Sol no centro do sistema, a auto-intitulada “revolução copernicana” de Kant irá tirar o objeto do “centro”, e colocar no lugar o homem, mas já não mais como sujeito, ao menos não no sentido clássico de “espírito submetido ao objeto”, como dissemos no começo.

De Kant em diante, o sujeito não está mais sujeito a nada. Ao contrário, é ele quem sujeita os objetos a uma forma determinada, como já veremos.

Para usar uma terminologia moderna, talvez estranha a Aristóteles e São Tomás, não sei, mas contra a qual eles não levantariam objeção, presumo, as coisas ao nosso redor são entidades espaço-temporais.

Quando falamos de ato e potência, falamos de potências sendo atualizadas no tempo e no espaço. Tempo e espaço são, portanto, propriedades das coisas e do mundo. Isso nos parece a todos inegável. Essa será a originalidade de Kant: negar o inegável ao senso comum e tentar sistematizá-lo em um sistema.

Kant dirá que as noções de espaço e de tempo não estão fora de nós, como propriedades do mundo e das coisas criadas, mas dentro de nós: são formas de nossa sensibilidade.

Assim, quando nossos sentidos entram em contato com as coisas, imediatamente esses dados sensíveis são formatados espaço-temporalmente pela sensibilidade e ganham essa aparência tridimensionalizada que elas parecem ter em nossa mente. Mas em nossa mente apenas.

Isso é o mesmo que dizer que as imagens imediatas que temos das coisas não registram qualidades reais de objetos singulares, e por conseguinte, tampouco as idéias são abstrações que apontam para a essência real dessas coisas, mas meras representações mentais, sem nenhuma conexão com os objetos em si.

Porque na verdade – para Kant – isso que vemos não é a "coisa em si", mas a representação mental que fazemos dela. Representação que não temos meios de saber se correspondem ou o quanto correspondem às coisas em si. É por isso, ao que nos aparece, que Kant irá chamá-las de fenômeno e não de realidade.

Qual a conseqüência? De cara, já não podemos falar em essência, idéia ou forma obtida por abstração. Ou melhor, até podemos, mas essa idéia ou essência já não tem qualquer relação com a coisa em si. Ou seja, não é propriamente uma essência no sentido ontológico do termo. É um mero esquema mental.

Portanto, já não temos mais, como sempre pensáramos ter, acesso, por abstração, à essência das coisas criadas por Deus e, desse modo, ao próprio Deus, indiretamente.

Ao contrário, estamos cercados por uma couraça fenomênica que nos separa irremediavelmente de Deus e do mundo. E que ironicamente nós próprios produzimos, mais ou menos como no nominalismo do século XIV.

Sola fides seria nossa única segurança, nesse caso. Uma fé cega e sem fundamento: o pietismo familiar parece ter deixado sua marca na filosofia de Kant.

No prefácio à “Crítica da Razão Pura”, Kant afirma ter sido obrigado a negar o conhecimento de Deus de modo a dar lugar à fé. Não creio que haja na frase algum cinismo oculto. Mas é certo que o kantismo abriu caminho para o ceticismo, a despeito de toda a influência na teologia moderna que serviu de fundamento ao Concílio Vaticano II.

Pesquisando para esta conversa, encontrei um texto de Peter Byrne (3), em que ele escreve que, “em contraste com o poder destrutivo de Robespierre, que matou apenas uma família real, Kant produziu um terrorismo muito maior: Kant matou Deus”.

Sim, pois nossas representações do mundo, em Kant, já não são um elo de comunicação com o Criador, a Causa Primeira, mas a prova final do nosso isolamento ontológico: o que os homens partilham é, ao fim das contas, uma ilusão coletiva.

A analogia com a Caverna de Platão é inevitável.

O mundo torna-se um hospício calmo porque todos compartilham do mesmo delírio. Ou uma colônia de daltônicos. Ou um cinema, onde todos assistem ao mesmo filme como se fosse a realidade.

É evidente que num tal sistema a noção de verdade é altamente instável; ela existe, mas está destituída de qualquer valor ontológico ou metafisico. É uma verdade fundada numa espécie de convencionalismo biológico, digamos assim.

É, enfim, nesse sentido, e só nesse sentido, que se pode compreender por que, em um ambiente kantiano, a verdade é relativa. Ela é relativa aos sujeitos e nem se pode dizer que ela sequer exista nesse contexto de vazio ontológico. A verdade facilmente se reduz a narrativas, pontos de vista, opiniões – como tanto se ouve dizer cotidianamente. E por mais que tentemos depois amarrar os sujeitos em "imperativos categóricos", nada, a não ser a força bruta, será capaz de ordenar esse mundo kantianamente determinado.

A impressão que tenho é que, a partir do kantismo – ou, se preferirem, do subjetivismo moderno – o sujeito, ao assumir o lugar do objeto, coisificou-se. E o objeto, ao tomar o lugar do sujeito, humanizou-se – como farsa.

Acredito que se poderia mesmo dizer que, a partir de Kant, os objetos artificiais idealizados pela mente humana, como o clipe, por exemplo, tornaram-se até mais "verdadeiros" ou “acessíveis” do que as coisas naturais, como a manga, por exemplo.

Porque, ao passo que das coisas naturais não temos mais como atribuir à essência que delas abstraímos um valor ontológico real, já das coisas artificiais, criadas pelo homem, como o clipe, exatamente por se tratar de objetos idealizados pelo homem, posso dizer que lhes conheço integralmente a origem, a essência ou a forma, pois sua idéia primeira não resulta de nenhum contato sensível ao qual se adicionaram as formas espaço-temporais da sensibilidade. É uma idéia “pura” que os homens partilham entre si por intermédio das coisas artificialmente criadas.

Então, se os objetos artificiais têm mais valor de verdade do que o mundo das coisas naturais, é obvio que aqueles passarão a ter mais valor e interesse do que estes.

Enfim, é como se literalmente criássemos uma “segunda” Natureza – destituída de essência, artificial, humanizada.

Por outro lado ainda, se essas idéias que temos das coisas são meras representações de fenômenos, sem conexão direta com o mundo que lhes garanta a condição de verdade, então parecem suficientemente inconsistentes para que sobre elas se exerça a influência ou a interferência de outras mentes ou de produções humanas deliberadamente criadas para esse fim.

Pois, se tudo se reduz à ilusão, a questão tentadora será "como produzir ilusão?".

Daí também a obsessão moderna pela educação. Óbvio: é suposto que o bombardeio de dados sensíveis com finalidades pré-determinadas será capaz de formar e direcionar os seres humanos para onde a “vontade coletiva” – um dos nomes que se pode dar à couraça fenomenológica kantiana – pretenda levá-los.

Não sei o que me responderia um kantiano a isto que é só uma especulação improvisada numa conversa entre amigos, mas por aí, já podemos antever as distorções que um tal subjetivismo é capaz de produzir.

 

Em contraponto, o que nos oferece a filosofia realista de São Tomás?

Segundo Joseph Pieper (4), dizer que tudo é criatura, como São Tomás, é dizer que nada é causa de si mesmo. E isso é fácil de constatar: se fôssemos causa de nós mesmos, isto é, se nos fosse possível tirar a nós próprios do nada, teríamos poder suficiente para nos fazer imortais. Mas ainda que pudéssemos menos, se fôssemos causa de nós mesmos, saberíamos necessariamente o que somos, determinaríamos nosso fim, em todos os sentidos. É, portanto, evidente que a causa de nosso ser não somos nós mesmos. Por outro lado, se não somos causa de nossa criação, tampouco, por conseqüência, somos causa de nossa conservação no ser – ou do contrário, novamente, nos garantiríamos a imortalidade.

Então se somos criaturas criadas e conservadas no ser por Deus, logo todas as criaturas estão vinculadas ao seu Criador por um laço ontológico de verdade e realidade. Usando da mesma analogia de Pieper em seu texto, se o clipe existe na mente de um homem antes de se tornar um objeto real, do mesmo modo, todas as coisas existem em Deus como idéia.

Por isso, São Tomás dizia, como lembra Pieper, que não temos a capacidade intelectual e espiritual para esgotar a verdade essencial sequer de uma mosca. Portanto, a verdade última ou total de qualquer criatura nos é inacessível. Mas não é uma inacessibilidade como a pretendida por Kant, que é uma inacessibilidade negativa. No caso de São Tomás, trata-se de inacessibilidade positiva: as coisas são verdadeiros abismos de verdade, uma verdade inesgotável e só abarcável em sua totalidade pela graça concedida.

 

E aqui, para encerrar, voltamos ao começo de nossa conversa, àquela idéia que temos das coisas, vaga e genérica o bastante para abarcar virtualmente todos os exemplares possíveis de uma espécie – seja uma manga ou um clipe.

Na simples idéia que temos de cada coisa podemos perceber essa presença – ainda que imperfeita, ou tão perfeita quanto é possível ao humano – do infinito como condição mesma do próprio pensamento.

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Notas:

1. Sobre o título, me pergunto se a estrutura da filosofia de Kant não é a mesma da psicose: o confinamento interno, a impossibilidade de empatia com o mundo exterior, a elaboração da própria doença como sistema para retornar à realidade, submetendo-a. Solipsismo, couraça fenomênica, imperativo categórico: não haveria nessa trajetória o esboço de uma patologia?

2. Toda idéia é também o indício da presença da unidade na multiplicidade.

3."In contrast to the destructive power of Robespierre, who merely killed a royal family, Kant produces the greater terrorism. Kant killed Go" Peter Byrne, Kant on God, Ashgate.

4. Joseph Pieper, Luz Inabarcável - o Elemento Negativo na Filosofia de Tomás de Aquino, trad. Gabrielle Greggersen. (http://www.hottopos.com/convenit/jp1.htm)

A liberdade gloriosa dos filhos de Deus

Pe. Robert Brucciani, FSSPX

 

Meus queridos fiéis, eu quero ser livre! Eu quero liberdade! Esse é um clamor universal. Ouvimo-lo cantado por pop stars e entoado por multidões efervescentes; vocês recebem a promessa dela por políticos em campanha eleitoral e em propagandas online; vocês a veem em pichações em muros e naqueles detidos contra sua vontade. Liberdade!

Pensar-se-ia que a ânsia universal de liberdade poderia trazer um certo grau de libertação, mas, ao invés, os homens encontram-se escravizados a suas paixões na ordem interior e a um totalitarismo crescente na ordem exterior.

Isso parece ser um grande paradoxo, mas não na realidade quando se compreende o que a liberdade é enquanto uma perfeição no homem e como ela é mal compreendida pelo mundo.

 

Noção moderna de Liberdade

Para o mundo liberdade significa três coisas:

- ausência de coerção externa (nenhum obstáculo exterior à escolha);

- ausência de limites internos (nenhuma limitação inerente à natureza);

- autonomia (permissão de escolher o bem ou o mal).

Essa definição é aprazível ao homem moderno e, por isso, é a moeda da cultura moderna.

 

Ausência de coerção externa

Para o mundo liberal, a liberdade, enquanto perfeição, é a ausência de coerção: a possibilidade de indulgência com qualquer capricho sem inibições, o gozo de todo prazer sem consequências, a abolição de todo tabu.

É a oportunidade sem qualquer regra, exceto, talvez, a regra “desde que eu não machuque ninguém” ou “desde que eu não viole os direitos do outro” ou “desde que todos consintam”. Portanto, um liberal pode proclamar “eu sou livre para usar meu corpo como desejar: embriagar-me, vestir-me como quiser, continuar ou não meu casamento. Sou livre para decidir matar a criança no meu útero. Sou livre para acreditar no que quiser e praticar qualquer religião que quiser – tanto em público, quanto em privado – sem restrições governamentais ou sociais”

 

Ausência de limites internos

A noção de liberdade do mundo não se resume à liberdade de coerções exteriores, mas liberdade das limitações inerentes à natureza humana.

“Eu posso ser aquilo que quiser: um homem ou uma mulher, até mesmo uma galinha. Posso fazer o que quiser se conseguir remover as consequências naturais indesejadas das minhas ações: posso ser promíscuo, se usar contraceptivos; não preciso trabalhar, porque o Estado não me deixará morrer de fome. Não preciso rezar, porque decidi que Deus não existe. Posso decidir, por mim mesmo, onde minha perfeição última (o céu) está: no prazer sensual, na fama, no poder ou no nirvana”

 

Autonomia completa

Para o mundo ser livre significa ter a possibilidade de escolher qualquer coisa: o bem ou o mal. É a posse da autonomia. Para o liberal, a liberdade, enquanto perfeição, é a vontade indeterminada: a vontade em potência, não em ato. A liberdade é pró-escolha: significa ser capaz de escolher como viver sem qualquer referência à natureza, à finalidade, ao bem, a Deus. Para o liberal, a glória do homem está na possibilidade de escolher, não em ter feito a escolha certa.

 

Problemas nas raízes da noção moderna de liberdade

Os problemas na noção liberal de liberdade enquanto perfeição advêm do fato do homem moderno (filósofos, cientistas, políticos e o público em geral) ter uma compreensão equivocada do ser em geral e do homem em particular.

 

Quatro causas do ser

A filosofia aristotélica nos ensina que todo ser criado pode ser definido por suas quatro causas:

- Causa eficiente: como uma coisa é feita;

- Causa material: do que é uma coisa é feita

- Causa formal: o que faz a coisa ser aquilo que é. No homem,

~ isso é a alma (enquanto coprincípio com o corpo);

~ é a essência: a coisa que faz um homem ser o que ele é, a coisa que dá a seu ser coerência, unidade e identidade;

 ~ é a natureza: aquele princípio de todo movimento e descanso da coisa: aquilo que faz o homem desejar o que deseja, odiar o que odeia; aquilo que determina onde sua perfeição última está – onde ele repousaria em estado definitivo

- Causa final: é o fim último, no qual um ser atinge a perfeição. Para o homem, trata-se da contemplação de Deus na Visão Beatífica.

A filosofia e a ciência modernas não têm noção da causa formal de uma coisa (alma, essência ou natureza) e, consequentemente, nenhuma noção da causa final dela. Eles apenas veem causas materiais, algo da causa eficiente, e forças (mecânica, elétrica, magnética e gravitacional).

Os cientistas modernos não conseguem detectar a ordem espiritual com seus instrumentos e, portanto, ou a desprezam, ou negam.

 

Problemas na definição de liberdade como “ausência de coerção externa”

Sem nenhum conceito da natureza da coisa, não há conceitos sobre as regras pertinentes àquela natureza.

Por exemplo, não temos liberdade de beber petróleo, voar por nossas próprias forças, respirar água. Essa coisas são contrárias à nossa natureza e levariam à nossa morte física. Semelhantemente, não temos liberdade de ser promíscuos, de mentir, de ignorar Deus, porque essas coisas levariam à nossa morte espiritual. Se a liberdade deve ser uma perfeição, então ela tem de levar à nossa perfeição quando a praticamos, tanto física quanto espiritualmente.

A Liberdade de fazer qualquer coisa que quisermos, na realidade, é perigosa para nós enquanto indivíduos e enquanto sociedade, porque a liberdade, necessariamente, está correlacionada à nossa natureza. Isso significa que a coerção externa que impede a escolha do mal é boa. Por exemplo, é bom proibir a pornografia, é bom que tenhamos várias de nossas leis civis (não todas) e uma força policial para as garantir, é bom que tenhamos corrimões nas escadas e lacres a prova de violação em frascos de medicamentos. Seria bom se, quando crianças, fôssemos forçados a rezar o terço em família por nossos pais.

Buscar a liberdade como se ela fosse, simplesmente, a ausência de limitações, na realidade, é pedir a escravidão: não apenas à nossa própria vontade desordenada, mas para toda a sociedade. Não apenas os indivíduos se tornam escravos de suas paixões – viciados nos vícios – mas também predispostos a se tornarem escravos do Estado, porque uma sociedade viciosa, muito provavelmente, tenderá ao totalitarismo que multiplica as leis e aumenta seus poderes de aplicar as leis em uma tentativa de escorar a desintegração inevitável da ordem.

E, então, em relação às limitações que o mundo aceita: quando as pessoas dizem que devemos ser livres para fazer tudo que quisermos, desde que não machuquemos alguém, elas esquecem que o homem é um ser social e que tudo que fazemos afetará o resto da sociedade. A garota que passa horas se admirando em segredo ou o menino viciado em jogos de computador no seu quarto, necessariamente, afetará aqueles próximos a ele.

Os que alegam que o consentimento é a condição da liberdade completa erram da mesma maneira, mas tendo cúmplices do seu erro.

“Meus direitos terminam onde os do outro começam” também é um dito popular, mas todos os direitos devem ter em vista o bem comum, não a coexistência ou a competição de bens individuais.

 

Problemas na definição de liberdade como "ausência de limitações interiores”

Crer que eu posso escolher minha natureza e minha própria finalidade é, claramente, uma ilusão. Isso reduz o mundo inteiro ao absurdo e, ironicamente, é mais restritivo:

- Se um homem escolher ser mulher, não terá a liberdade de atingir a perfeição da feminilidade (não poderá ter filhos, não poderá ser uma mãe).

- Se um homem escolher ser uma galinha, então estará mais inapto ainda a atingir a perfeição da natureza da galinha.

Consequentemente, ao escolher uma identidade e uma finalidade diferentes da minha identidade e finalidade reais, torno-me um escravo por minha escolha e causo dano real a mim mesmo. Jamais serei feliz ou atingirei a perfeição da minha real, imutável natureza, que me foi dada pelo meu Criador.

 

Problemas na definição de liberdade como “autonomia”

Para o mundo, liberdade é autonomia. É a vontade em potência com relação tanto ao bem quanto ao mal, o que é o mesmo que dizer: a vontade em potência com relação à perfeição ou à escravidão, ou até mesmo à autodestruição.

Uma perfeição muito maior da vontade é a potência de escolher entre um bem ou outro. E ainda maior é a vontade, já não em potência, mas no ato de escolher o bem. Essa é a liberdade tal qual existe em Deus.

A liberdade do mundo é a mesma prometida por Satã a Adão e Eva: “sereis como deuses, ao conhecerdes o bem e o mal” (Gn 3, 5). É uma liberdade ilusória da lei de Deus: liberdade do Direito Natural, de Jesus Cristo, da Igreja e até mesmo de Deus.

Tanto os homens decaídos quando Satã buscam essa falsa noção de liberdade e, portanto, são escravos. Os homens tornam-se escravos do mundo, da carne e do demônio. Satã é um escravo perpétuo do seu ódio de Deus.

 

A verdadeira Liberdade

Então, o que é a verdadeira liberdade, enquanto perfeição no homem? Essa pergunta é respondida por Santo Tomás no seu tratado sobre os anjos:

 

Se o anjo bem-aventurado pode pecar? (Ia. pars, q.62, a.8, ad 3)

… Por onde, à perfeição da liberdade do arbítrio pertence o poder de eleger diversos meios, conservada a ordem do fim; mas, será um defeito da sua liberdade se eleger algum meio divertindo da ordem do fim, e pecando. Donde, maior é a liberdade do arbítrio nos anjos, que não podem pecar, do que em nós, que podemos.”

A liberdade sempre deve estar relacionada com o fim visado: a finalidade de uma coisa. É livre aquele que se direciona à perfeição suprema relativa à própria natureza.

A maior liberdade, portanto, consiste em estar no céu, onde não podemos escolher nada além do que nos leva a Deus, porque a visão de Deus é inteiramente satisfatória, não terá nenhuma diminuição e é possuída sem o temor de perdê-la.

A verdadeira liberdade não consiste em estar livre da coerção, em ter a escolha entre o bem ou o mal. A verdadeira liberdade é a liberdade de conhecer, amar e servir a Deus Todo-Poderoso. Ela é:

- a liberdade interior de virtude, que nos faz escolher o bem,

- a liberdade exterior de uma sociedade ordenada que nos protege e encoraja a escolher o bem,

- e o ato em si de escolher o bem

Atingimos a Liberdade interior ao viver a vida cristã de oração, mortificação e prática religiosa. Buscamos a liberdade exterior pela Ação Católica. E, pela prática da nossa liberdade, somos livres da sujeição à corrupção, para participar da liberdade gloriosa dos filhos de Deus (Rom 8, 21).

 

(Ite Missa Est, editorial, Julho-Agosto de 2021. Tradução: Permanência)

A filosofia do «pode ser» de Kant

Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX

Temos tido o cuidado de sublinhar como o luteranismo entra em contradição com os princípios de Lutero. Lutero, a princípio, desprezou todo o passado racional, histórico e dogmático. Pretendia deixar que a liberdade individual fosse expressa abertamente, com todo seu séquito de desordem e anarquia. Mas como essa doutrina não é viável, encheu de defesas e dificuldades o seu sistema e fundou a Igreja luterana, que é diametralmente o oposto do seu conceito de liberdade de pensamento e de fé. O luteranismo, juntamente com todas as seitas que dele saíram, é um sistema incoerente que oscila entre dois polos contraditórios: o livre exame e a autoridade religiosa, a salvação por si mesmo e a necessidade de uma Igreja. Durante dois séculos, o protestantismo dogmático fez um grande esforço para esconder pudicamente esta deficiência congênita, pondo em relevo principalmente o aspecto moral ou o aspecto político e antipapista; mas esses subterfúgios não faziam mais que retardar o aparecimento de uma crise que, cedo ou tarde, teria que explodir com grande violência.

Os verdadeiros sucessores de Lutero tirarão todas as conclusões lógicas da doutrina do livre exame. Por meio de sua nova filosofia, de sua nova religião e de sua nova Revelação, eles fundamentarão tudo no homem e somente no homem, sem fé e sem lei, sem razão e sem Revelação exterior, sem Deus e sem nada. Essa será, respectivamente, a obra de Kant, Strauss e Schleiermacher, que estudaremos nos próximos capítulos. Indiscutivelmente, o primeiro deles e o verdadeiro fundador da escola é Kant, a quem devemos associar o filósofo Hegel.

A filosofia eterna, segundo Aristóteles, ensina que as coisas existem e que podemos conhecer sua natureza. Para fazê-lo, ela supõe três coisas: 1) que a inteligência humana pode conhecer a verdade; 2) que ela é capaz de conhecer a realidade exterior;  3) que ela conhece o elemento estável do ser, sua natureza e sua essência. Com Descartes, já há uma mudança de perspectiva: o cogito cartesiano — «Penso, logo existo» — parte do sujeito para terminar no real. O germe cartesiano, junto com o idealismo kantiano, produzirá frutos amargos. Kant vangloria-se de ter feito a «revolução copernicana» em filosofia. Durante muito tempo, acreditou-se que o Sol girava ao redor da Terra, e Copérnico demonstrou o oposto, que era a Terra que girava ao redor do Sol. Do mesmo modo, sempre foi aceito que o espírito se adequava às coisas com o fim de conhecê-las, mas Kant, ao contrário, pretende demonstrar que é o objeto que se adequa ao pensamento, e que o pensamento é de fato o centro de gravidade do conhecimento. Kant sustenta que o homem não pode conhecer a verdade das coisas e que a inteligência está confinada em si mesma sem nenhuma referência externa. Por isso, professa abertamente o agnosticismo ignorantista e o imanentismo egologista, limitado a conhecer somente o seu eu. Hegel ataca principalmente o terceiro ponto, a estabilidade do ser, por meio de sua dialética da evolução revolucionista. Ainda que, à primeira vista, pareça que Hegel encarna melhor o espírito modernista, entendido como a evolução da Revelação a partir da consciência, na verdade, é Kant quem lhe dá sua expressão mais profunda.

 

1. Kant e sua época

O século XVIII foi a época da Aufklärung — o Iluminismo. Kant descreve perfeitamente a Aufklärung como o esforço do homem para se liberar de sua imaturidade culpável, vale dizer, de sua incapacidade de raciocinar sem a ajuda de outro1. Para isso, é necessário deixar de lado Deus e a religião e substituí-los pela religião do homem. O maçom Lessing, em sua obra A Educação do gênero humano, propunha a religião da razão pura, emancipada de Deus:

«Por que não ver simplesmente, em todas as religiões positivas, esta ordem em que a inteligência humana desenvolve-se e segue desenvolvendo-se só e por si mesma, em vez de criticar ou escarnecer essa ou aquela?» 2.

Essa declaração deveria inspirar todo o desenvolvimento ou, melhor dito, toda a revolução teológica do século XIX. Seu principal agente e propulsor não foi propriamente um teólogo, mas um filósofo da Aufklärung, Immanuel Kant.

Kant nasceu em Könisgberg em 1724. Era o quarto filho de pais honrados, a quem sempre admirou, principalmente sua mãe:

«Minha mãe era de temperamento doce, afetuosa e piedosa, uma mulher direita e uma mãe terna, que educou seus filhos no temor de Deus segundo uma doutrina piedosa e um exemplo virtuoso»3.

A educação recebida de sua mãe, que era fiel de uma seita protestante pietista, contribuiu muito para fazê-lo aceitar sem contestação o valor da moral e da religião. Ao mesmo tempo, na universidade, instruiu-se nas ciências modernas, especialmente no sistema astronômico de Newton, que o impressionou até o ponto de proporcionar-lhe um segundo fato, tão evidente e inquestionável aos seus olhos quanto o fato moral: a existência de uma ciência positiva necessária e universal. Com exceção de uma curta ausência, passou toda a vida em sua cidade natal, como professor de lógica e metafísica na universidade. De acordo com o poeta Heine, é muito difícil escrever a história da vida de Immanuel Kant, porque não teve nem vida nem história. Levou uma vida de solteiro metodicamente ordenada e abstraída, em uma tranquila avenida de Könisgberg, antiga cidade do nordeste da Alemanha4. Sua vida é a caricatura da vida de um professor. Tudo tinha seu tempo regulado: levantar-se, tomar café da manhã, lecionar, comer, dar um passeio; a tal ponto que, quando Immanuel Kant saía de sua casa, com seu casaco cinza e sua bengala espanhola na mão, para caminhar ao longo da avenida, logo rebatizada de O passeio do filósofo, os vizinhos sabiam que eram exatamente quatro e trinta da tarde. Apesar da saúde frágil, Kant alcançou, desse modo, uma longa carreira, repleta de trabalhos intelectuais, frutos de suas reflexões um tanto lentas, mas profundas e perseverantes. Não começou a ruminar seu sistema, que haveria de revolucionar toda a filosofia, senão nos anos de 1770. Embora desfrutasse de uma natureza mais sociável do que a descrita por Heine, visto que sua presença era muito solicitada nos alegres salões da cidade, é certo que a moral do dever desse celibatário haveria de influenciar imensamente o espírito calvinista e puritano.

Quanto à sua obra filosófica, podemos dizer que gira em torno de duas estrelas de sua juventude: a evidência da ciência física newtoniana e a certeza da lei moral no fundo do coração, inspirada em Rousseau. Toda sua ambição intelectual, todo seu sistema filosófico, foi construído para defender esses dois pontos cardeais contra todos os problemas e obstáculos, a tal extremo que desejou que fosse escrito em sua tumba: «O céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim». O epitáfio poderia servir de epígrafe a suas obras, pois as resume perfeitamente. De fato, o sistema filosófico de Kant articula-se para conciliar essas duas verdades intangíveis, a física newtoniana e a moral rousseauniana, e, ao mesmo tempo, confiná-las em dois domínios distintos, com o propósito de evitar qualquer conflito entre elas.

Em consonância com o empirista inglês David Hume, Kant reconhece que as coisas existem realmente, mas também assente que não é possível conhecê-las tal como são. A única ciência verdadeiramente certa é a física experimental de Newton, que não capta a realidade em si mesma, mas só os fenômenos, isto é, as coisas tais como aparecem sob as lentes da inteligência humana. Há algo sob essas lentes que informam e deformam, mas não se pode saber se transmitem verdadeiramente o que está além do vidro. As substâncias, o eu e Deus, a realidade além do sujeito que conhece, tudo isto pertence à ordem da terra incognita, terra desconhecida e no man´s land5. Por esta razão a metafísica, que trata das «coisas em si», é incerta e frequentemente falsa. Disto trata seu primeiro livro: A crítica da razão pura. Mas, no segundo livro, A crítica da razão prática, defende a moralidade pietista e devolve à metafísica o valor de conhecimento que retira da própria física. Como ele próprio explica: «Destruí a razão para dar lugar à fé»6. A metafísica, inválida no campo científico, pode chegar a ser válida quando é utilizada em proveito da vida moral, reduzida que foi a uma fé cega. As «coisas em si» do mundo real são falsas do ponto de vista científico, mas verdadeiras do ponto de vista moral, posto que são úteis para viver. Aquilo que, na realidade, é duvidoso, converte-se em certeza prática, mediante a varinha mágica da moral do dever. O mais além, Deus, o mundo e o «eu» com sua liberdade, não são objetos do conhecimento físico e científico, mas devem existir, uma vez que são moralmente necessários. Pertencem à ordem do «pode ser», mas, é preciso viver «como se» eles fossem. O homem nega todo conhecimento razoável do mundo das coisas, mas deve agir como se soubesse muito a respeito deste mundo. Nunca se sabe com segurança o que há para além das lentes da inteligência, mas devemos viver como se estivéssemos seguros dessas coisas. À custa de semelhante dualismo, que separa hermeticamente a ordem prática da ordem especulativa, Kant consegue preservar as duas estrelas fixas de sua vida. Falta-nos ver com mais detalhes de que modo um sistema como esse é fundamentalmente ignorantista e egologista.

2. O ser é? Pode ser!

Heine queixava-se que Kant era um comerciante mesquinho que a natureza havia criado para pesar chá e açúcar. Desgraçadamente, Kant, ultrapassando seus limites naturais, se fez pensador, e seu pensamento acabou destruindo um mundo.  Na Prússia dos primeiros anos da vocação de escritor de Kant, a caça aos hereges estava aberta. O pequeno professor de lógica de Könisgberg já havia publicado alguns trabalhos de estilo confuso, que só poderiam interessar a alguns intelectuais específicos, quando veio à luz sua Crítica da razão pura, em 1781. Seu estilo complexo e enfadonho o salvou da censura do Ministério de Educação prussiano. O inquisidor que, em Berlim, quisera condenar sua obra, se viu em apuros para extrair do livro uma única heresia contra a fé luterana; ele teria muito pouco sucesso, pouca gente o leria e certamente ninguém o compreenderia. Esse livro, embora ignorado de início, foi sendo descoberto pouco a pouco. Tornou-se o manifesto do idealismo, porque nega à inteligência o poder de conhecer a realidade. É o agnosticismo subjetivo, a filosofia do incompreensível. Kant sofreu a influência de seus contemporâneos, e seu sistema pretende conciliar o ceticismo do inglês Hume com a ciência física de Newton. Para ilustrar como Kant compreende o mistério do conhecimento, imaginemos um diálogo entre os dois filósofos durante uma partida de petanca7:

 — Caro Hume, minha primeira bocha ficou a dois dedos do bolim. Cabe a ti deslocá-la!

 — Aqui vai, caro Kant. Veja! Tenho a impressão de afastar tua bocha com a minha, mas é só uma ilusão. Desde minha mais tenra infância, aprendi a associar o antes e o depois como a causa e o efeito, de maneira que o primeiro movimento da bocha seria causa do segundo. Na realidade, não é nada disso. Há duas manchas de cor de aço, dois movimentos, um antes e outro depois, isso é tudo. É a mesma coisa que dizia nosso amigo Descartes, que reduzia os corpos a sua simples extensão. Além disso, as substâncias que chamamos bochas e o primeiro movimento entendido como causa do segundo, tudo isso é fruto de nossa imaginação e dos erros de nossa infância.

 — O que diz, caro Hume, é muito profundo e me leva a sair de minha ilusão realista. Temos a certeza de apreender alguma vez as coisas e suas causas? Não, isso é impossível. Não obstante, veja! Quando lanço minha segunda bocha, não há dúvida de que estou consciente da lei da gravidade que Newton descobriu. O problema, então, é saber de onde vem esta lei evidente, universal e necessária. Concedo-te que não vale a pena dizer que procede da experiência recebida do exterior. Portanto, há de proceder do interior, do sujeito. Tal como o entendo, o conhecimento é obra do meu espírito que produz suas próprias ideias a partir dos fatos brutos, da mesma forma que o escultor produz a estátua ao trabalhar a pedra.

O ponto de partida da crítica de Kant é eliminar das coisas sua natureza e essência. Desta forma, nem o pinheiro e nem o carvalho compartilham a natureza comum de árvore. Além disso, a natureza humana não é comum a Pedro e a Paulo, de modo que uma inteligência possa compreendê-los sob o conceito de «homem». Para ele, as coisas são um plasma informe e incognoscível, e a inteligência nada aprende da realidade. O ser é? Pode ser, mas as coisas são impermeáveis à inteligência, e, se delas inteligência há, só pode ser de si mesma que ela as tira. Assim, o pensamento, acreditando apreender e contemplar um objeto desconhecido, não capta e contempla senão a si mesmo. Esta é a essência do idealismo: o pensamento não alcança a coisa em si mesma, mas só a ideia. No idealismo, o espírito humano, ao desprezar desde o início os fatos da experiência, tem de, no fundo, dar forma àquilo que conhece. E, ao término do percurso, só chega a conhecer suas próprias ideias, e não as coisas exteriores. Da perspectiva idealista, sobretudo segundo os discípulos radicais de Kant, as coisas são postas pelo espírito humano e se reduz ao conhecimento que o sujeito tem delas, ao contrário do realismo.

Que ilusão colossal é este conhecimento idealista! Conhece seu pensamento — o fenômeno — mas não a realidade — a coisa em si. É um divórcio completo entre a inteligência e a realidade. Kant proclama deste modo a autonomia total da inteligência humana frente à realidade exterior. As consequências são trágicas. Kant, por exemplo, não vê nenhuma contradição entre dizer que uma coisa que aparece está sujeita a leis e que essa mesma coisa é independente, pois a pessoa tem de se observar das duas maneiras8.

O kantismo, ao aceitar a existência de um pensamento de nada, de uma representação sem coisa representada, chega à conclusão de que a contradição é possível. E vai ainda mais longe: arruina a eterna noção de verdade. A verdade kantiana define-se como a conformidade do pensamento consigo mesmo: é verdade tudo aquilo que é coerente. Nestas condições, é desnecessário dizer que um kantiano nunca se equivoca; é infalível em todo lugar e em todo momento, porque as ideias que seu cérebro produz são a verdade. Seus sonhos mais rocambolescos tornam-se ipso facto verdadeiros pelo simples fato de serem pensados. E, não obstante, esse pensamento que não sabe sair de si mesmo é a definição de verdade professada por todos os modernistas, a exemplo de seu mestre. Em matéria de iluminismo, esta filosofia moderna assina um pacto com as trevas e faz aberta profissão de ignorantismo. Em matéria de sabedoria, desaba em um obscurantismo declarado.

 

3. O egologismo fideísta

Diz-se em tom de gracejo que a Crítica da razão pura, que desdenhou de todas as coisas e da religião, encheu de desespero ao criado de Kant. Por isso, dez anos depois, o mestre decidiu escrever a Crítica da razão prática para reabrir espaço à moral. O segundo volume segue a mesma linha que o precedente: a melhor maneira de destruir algo é substituí-lo por outra coisa. Kant chegara à conclusão de que a razão pura nada pode conhecer. Agora, ia provar que a razão prática, que se ocupa das questões morais, pode conhecer as verdades metafísicas sobre o homem e sobre Deus pela única via ainda resta aberta: o eu pensante. Essa segunda obra foi objeto de uma investigação mais profunda por parte dos inquisidores de Berlim. É que o autor tratava de questões religiosas como a existência de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade, já expostas em seu primeiro volume, mas que passaram despercebidas naquele denso conjunto. Mas, ali também, Kant, que provara a existência delas por um caminho original e obscuro, conseguiu ocultar-se das redes da censura. Os berlinenses, embora lamentassem que o professor não pusesse os pés na igreja, estavam satisfeitos com suas conclusões corretas, apesar de seu raciocínio manco.

Para Kant, com efeito, as três grandes ideias metafísicas — Deus, a alma, o mundo — não são mais que preconceitos na ordem da razão especulativa. Deus é da ordem do «pode ser», é uma «coisa em si» desconhecida. Porém, Kant herdara de sua mãe pietista a convicção indubitável de que a vida moral é uma necessidade, um dever que funda o bem-viver. E o dever — o imperativo categórico — reivindica certas condições, como a existência de Deus, da alma humana e da liberdade. Da mesma forma, a ideia de Deus é uma consequência da ordem moral e não seu fundamento, porque, segundo Kant, a moralidade é mais importante que Deus. Deus existe porque é útil. Esta maneira kantiana de ver as coisas, não é tomar os desejos por realidades?

Essa via de fuga, a exigência moral, que pretende provar o que a razão engenhosamente negara, é, na verdade, um eco das teorias de Lutero e Siger. De Lutero, porque é a expressão mais perfeita de sua fé-confiança cega. O dever moral kantiano não apreende jamais o racional e a verdade. É um ato de fé cega em nossos instintos morais e na existência de Deus, da alma imortal e do mundo. Ao mesmo tempo, é um fideísmo ao estilo de Siger. Tanto para Kant quanto para Siger, existem duas verdades completamente separadas que podem se contradizer tranquilamente: a verdade como conhecimento científico dos fenômenos e a verdade como crença cega nas coisas. Entre as duas, o jogo é desigual. A verdade científica não tarda em humilhar sem piedade a verdade fideísta, limitada ao domínio dos dogmas pietistas e sentimentais de sua religião materna. Daí provém a tese comum entre os modernistas, de que aquilo que é falso especulativamente pode ser verdadeiro na prática9.

Para aplicar seus princípios utilitaristas à religião, Kant publicou um terceiro livro, ainda mais audacioso que os anteriores, A religião nos limites da razão pura, que continha uma minuciosa análise das doutrinas luteranas mais sensíveis, cujo fundamento histórico ele nega. Os credos protestantes têm um valor puramente «simbólico». Pouco importa que o homem tenha cometido historicamente o pecado original, pois a consciência é suficiente para revelar nossas más inclinações. Jesus Cristo, historicamente, era só um homem, mas resultava útil apresentá-lo como Deus aos fiéis, para que entendessem, dessa forma, que também eles são, de algum modo, filhos de Deus. Toda a Revelação fica reduzida à razão pura. Por exemplo, os milagres não precisam ser provados, pois o único testemunho que vale é o da alma, e, seja como for, o único Deus possível de se conhecer é aquele que está dentro de nós. Esse Deus é tão somente uma quimera, e uma quimera não pode mandar ninguém para o Paraíso ou  para o inferno. Tamanha abstração da divindade corresponde ao que pensavam os deístas de seu tempo, que lançaram o desafio blasfemo: «Façamos Deus à nossa imagem!». E tal ideia abstrata de Deus, imagem de uma humanidade abstrata, imagem da unidade do gênero humano, era a única maneira de promover a paz na terra. Longe dos credos que dividem, Kant erigia assim a religião da consciência, que logo será reivindicada por seu discípulo, Schleiermacher.

 

4. Hegel e o puro devir

Kant fez com que tudo procedesse da consciência humana perfeitamente autônoma. Como passar deste fundamento estático à revolução das ideias? Era preciso acrescentar um elemento dinâmico. Essa foi a obra de Hegel, que haveria de proporcionar novos recursos ao idealismo. O modernismo então fecha o círculo com a teoria evolucionista, que transforma a evolução e a torna verdadeiramente revolucionista. O evolucionismo radical é o ponto nuclear do sistema modernista, pelo qual os modernos justificam sua revolução, que se estende desde a filosofia até o dogma, a moral, a História e a exegese bíblica. Não se trata da evolução das espécies segundo Darwin, mas da hipótese mais sutil e estendida do devir universal, que é a base da «nova» filosofia de Hegel, e que procede diretamente do velho Heráclito: o ser não é, tudo é puro devir.

Hegel não é um autor fácil de ler. Na Alemanha, um filósofo só é levado a sério quando é obscuro. Entretanto, se adota um estilo mais denso do que o de seu compatriota, Hegel tem sobre Kant a grande vantagem de apresentar princípios claros, porque, para ele, o racional é o real e o real é o racional, ou, em outras palavras, o pensamento é a realidade. A filosofia se define como o saber absoluto, a ciência que Deus tem de si mesmo e de todas as coisas. A obra filosófica de Hegel consiste em construir e encadear metodicamente os conceitos para apreender o processo de geração do universo. Os conceitos — ainda que para ele os conceitos sejam as coisas — encadeiam-se por meio do método dialético, que supera as contradições fazendo progredir o pensamento até as ideias superiores. Toda sua Lógica, que pretende descrever o universo bem ordenado segundo seu sistema, é uma verdadeira valsa de conceitos que funciona em três tempos: tese-antítese-síntese.

Para chegar ao ápice da consciência de si mesma, a religião deve passar, como qualquer outra ideia, por uma cascata de formas inferiores graduadas em grupos de três: a religião naturalista do Oriente de um Deus impessoal (magia, budismo, zoroastrismo); a religião do Deus individual e espiritual (judaica, grega, romana ou prática); ambas se fundem para produzir o Cristianismo, religião de um Deus infinito unido a humanidade finita (também com sua tríade: encarnação, Paixão, história da Igreja), tudo unificando-se na Santíssima Trindade. A religião cristã, resumo das riquezas contraditórias do passado, não é, porém, o cume da consciência do Espírito. Assim, a história das religiões mostra a evolução das crenças primitivas inferiores às religiões superiores, que as reúne em uma síntese mais rica, para desembocar na filosofia hegeliana, pináculo da religião da razão.

É necessário sublinhar alguns pontos desse gigantesco palácio de ideias. Em Hegel, Deus — a quem chama de o Absoluto — não existe ainda, e só existirá ao término de sua própria evolução. Com efeito, antes de ser plenamente Ele mesmo como termo final, o Absoluto é o processo de geração do universo; logo, parte integrante do universo e de todo espírito. Ademais, tudo o que é posterior a outra coisa é necessariamente superior ao que o precede. Este é um dos postulados modernistas da História necessariamente progressiva, um dogma muito prático porque permite jogar para debaixo do tapete as crenças anteriores pelo simples fato de serem anteriores, pois, tudo o que é anterior é a priori inferior.

 

Para Hegel, o homem torna-se pouco a pouco divino por suas próprias forças. Passa do conhecimento sensível ao conhecimento inteligível até alcançar a consciência absoluta divina. Este movimento ininterrupto para a divinização das criaturas, tese panteísta por excelência, é um dogma constante entre os modernistas radicais, particularmente em Teilhard de Chardin e Karl Rahner. Rahner restaura por sua conta a tese hegeliana de que o conceito de Deus, e Deus mesmo, é a projeção da consciência humana. Em vez de existir antes do homem, Deus é fruto do espírito humano.

Como vemos, a fé do filósofo Hegel pretende mover muitas montanhas. Mas crer que os próprios conceitos são a medida do mundo é divinizar o homem e rebaixar a Deus. No fundo, o hegelianismo é um panteísmo ateu, onde a pura matéria parte do não-ser, e progressivamente, pela lei dos contrários, termina no cérebro humano. Então, refletindo sobre si mesma, toma consciência de sua divindade sem tê-la ainda, posto que é só um Deus in fieri — um Deus em potência — um Deus que ainda não é e que jamais poderá chegar a ser. Nunca o panteísmo havia sido formulado com tanto rigor.

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Ao considerarmos de perto os filósofos das Luzes do outro lado do Reno, é surpreendente notar um fato que, infelizmente, os historiadores da filosofia normalmente deixam de lado. Todos estes idealistas alemães atacam a religião. Seu combate é, em última instância, teológico. Com efeito, qual é a grande tentação do pensamento alemão? Em Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Nietzsche, mesmo em Feuerbach e Marx, a filosofia se engaja em um combate titânico contra o Deus transcendente, que ela procura conduzir ao interior do homem. De Kant, que faz de Deus um guardião da moral, passando por Feuerbach, que faz d’Ele um produto do homem, até Nietzsche, que proclama sua morte, os mais ilustres pensadores alemães se esforçaram para apagar a irrupção de Cristo-Deus na história, e, em seguida, liquidar com a supremacia divina. Esses supostos filósofos são abertamente ignorantistas e egologistas. Os filósofos iluministas são mais obscuros, e o fato de que desprezem verdades tão claras como a luz do dia prova-nos que são movidos por um preconceito: o ódio à religião e à autoridade que ela representa. Manter um preconceito naturalista como esse custa caro, pois é preciso lhe sacrificar a razão e seu objeto: a verdade. Eles se assemelham aos alquimistas da Idade Média que pretendiam transformar os metais em ouro por meio da pedra filosofal. Do mesmo modo, nossos filósofos modernos pretendem transformar a natureza de Deus e da religião por meio da pedra filosofal do momento, a pedra ignorantista e egologista. Atacam ao Deus de seus pais para substituí-lo por um deus «feito em casa», na medida do eu-ego, princípio e fim de tudo.

São Pio X, ao condenar o modernismo, não duvida em atribuir a Kant toda a culpa: o kantismo é a heresia moderna. Kant é o teórico e o príncipe do modernismo. Depois dele, seus discípulos não produziram nada mais que variações da melodia de seu mestre. Nada falta a seu sistema. Tudo já foi preparado, tudo já foi dito. Seus sucessores, Strauss em Sagrada Escritura e Schleiermacher em teologia, não farão mais que explorar as ideias emitidas por seu mestre. O dueto Kant-Hegel marca um acorde final na sinfonia modernista, ponto de encontro de seus princípios fundamentais. Estes filósofos defendem todos os princípios de onde brota a religião do homem, onde a Revelação é um produto da imaginação e da consciência do crente. Com semelhantes princípios, estamos já no coração do modernismo.

(100 anos de modernismo, tradução: Ricardo Bellei)

  1. 1. Kant, Was ist Aufklärung?, em Fabro, La aventura progresista, p. 197.
  2. 2. Lessing, prefácio a L’éducation de la race humaine (1778), em Stewart, Modernism, p. 195.
  3. 3. Em Nelly, Makers of the Modern Mind, p. 197.
  4. 4. Ibíd., p. 197.
  5. 5. Literalmente, terra de ninguém. (Nota do Tradutor).
  6. 6. Ibídem, p. 212.
  7. 7. Petanca é um jogo antiqüíssimo, muito popular na França, Espanha e Portugal. No Brasil, este esporte é mais conhecido por bocha. O jogo consiste em lançar uma série de bolas metálicas (no Brasil, as bolas são chamadas bochas e são de madeira ou de resina) com a finalidade de colocá-las o mais perto possível de uma pequena bola de madeira, o boliche (no Brasil, o bolim), que foi previamente lançado por um dos jogadores. O outro oponente, por sua vez, procurará colocar as suas bochas mais próximas  ainda do bolim, ou então retirar as bochas do(s) seu(s) adversário(s). Para fins didáticos, usaremos a terminologia brasileira na citação dada. (Nota do Tradutor).
  8. 8. Kant, Principes fondamentaux de la métaphysique morale, em Cooper, World of Philosophies, p. 305.
  9. 9. Cf. os escritos de Tyrrell. Contra esta teoria, assinalaremos simplesmente que o conhecimento de uma cosa só pode ser prático e útil se é teórico, ou seja, se é conhecimento de uma coisa real. Assim, a fórmula 2 + 2 = 4 não poderia ser prática para saldar dívidas com os credores se não fosse certa teoricamente.

Santo Tomás e a teologia dogmática

Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX

Depois de Santo Agostinho, a Igreja assume definitivamente o papel de educadora e civilizadora que havia ficado vacante pelo desaparecimento do Império Romano. Esse movimento doutrinal, essa cultura, que se mantém durante os mil anos em que durou a Idade Média, tem um nome: escolástica. Os grandes intelectuais, pelo fato de serem igualmente sábios e cristãos, acreditam-se na obrigação de analisar sua fé em termos tão racionais quanto seja possível. É a fé que procura entender as coisas de Deus, mas é também a fé queserve para compreender o universo terrestre. Desse trabalho realizado para expressar melhor a Deus, nasce na Igreja o esforço teológico e dogmático, cujo representante em mais alto grau é Santo Tomás de Aquino. Ao descrever a gênese e o apogeu da escolástica, e ao estudar seus mais ferozes adversários, poderemos esclarecer muito bem esta nova intuição própria da verdade cristã, a saber, a harmonia que há entre a Revelação e a razão.

 

1. A escolástica e Santo Tomás

Do século VII até o XVI, os filósofos e teólogos, apesar das suas diferenças, recebem um mesmo nome, o de escolásticos (homens da escola), porque são solidários em todos os pontos nevrálgicos do conhecimento. Nessa época, a Cristandade está perfeitamente unificada no plano político e religioso. O mesmo acontece com o pensamento. Há um idioma comum: o latim eclesiástico, que permite harmonizar os esforços na busca da verdade. O método é uniforme: a demonstração racional rigorosa, tanto em filosofia quanto em sua aplicação à Revelação em teologia. As fontes são idênticas: a insuperável filosofia de Aristóteles e a fé. Deste modo, durante vários séculos, gerações de sábios anônimos apoiam-se em seus predecessores com a única pretensão de clarificar e ordenar a cultura cristã. Longe de ser um castigo, os limites tão amplos e tão saudáveis da escolástica não podiam senão alcançar resultados prodigiosos.

Os hercúleos esforços da escolástica chegariam ao coroamento no século XIII, o século mais importante da História cristã e da História como um todo. É o século de São Luis e de Dante, o século que vê o nascimento da catedral de Colônia e da Suma Teológica, o século do Poverello de Assis e de São Domingos. E, como nos tempos do apogeu da época pagã, deparamo-nos com mentes brilhantes que oferecem uma vigorosa síntese. Mencionemos, em particular, Santo Alberto, São Boaventura e, sobretudo, Santo Tomás de Aquino, o maior de todos. O auge da escolástica deve-se a três fatores simultâneos: a fundação das universidades, coroado pela de Paris; a constituição da ordem dominicana, que fornece os primeiros monges universitários; e, principalmente, a tradução das obras de Aristóteles.

Com efeito, a chegada do Filósofo às escolas foi o acontecimento capital que deu ao século XIII uma fisionomia própria. A sabedoria pagã, expressa em uma ampla síntese científica e com seu ideal próprio de vida, se realinhava em face da sabedoria cristã conservada pela corrente agostiniana. Era a primeira confrontação da humilde filosofia das realidades humanas com a elevada teologia das coisas do céu. O encontro não aconteceu sem choques.

Aristóteles faz sua entrada por intermédio de comentadores judeus e árabes da Espanha meridional, que mereciam antes o nome de corruptores, entre outras coisas, por suas concepções de  sabor panteísta. Esse tesouro da sabedoria humana estava impregnado do veneno do paganismo. Chegariam a triunfar sobre o coração cristão os deuses da antiguidade? Todo o mérito do século XIII consistiu em elaborar a síntese que as culturas seguintes não puderam jamais repetir. O Renascimento humanista e as revoluções subsequentes do protestantismo e do «século das Luzes», ao fazer do homem o centro de tudo, não conseguiram senão destruir a unidade medieval. Com efeito, esta unidade e harmonia das duas grandes sabedorias que até esse momento corriam por caminhos separados, foi alcançada durante a Cristandade medieval. Este trabalho de integração das duas verdades, humana e divina, requeria um gênio providencial. E a Providência não negaria este homem ao século da fé.

Apelidaram-no de Boi mudo não só por seu físico e mutismo, mas também por ter sido um ruminante perpétuo. Tomás de Aquino, napolitano de gênio precoce, teve sempre a inteligência orientada para as coisas mais elevadas, desde que perguntou aos monges de Monte Cassino, quando contava com apenas cinco anos: «O que é Deus?». Esta pergunta o acompanhará até o dia de sua morte. O humilde frade mendicante, temeroso da responsabilidade de pregador, que renunciou generosamente a toda dignidade exterior, havia assimilado todos os livros acessíveis em sua época. Conhecia a Bíblia Sagrada de memória e teve acesso as melhores fontes escritas, tanto em Roma como nos demais centros universitários. Desde sua chegada a Paris, aurora borealis e capital intelectual do mundo cristão, Santo Tomás surpreende a todos os seus contemporâneos, que logo se aglomerarão ao seu redor para escutar o mestre mais famoso da Universidade de Paris. Os biógrafos não poupam elogios ao seu ensino: um novo método, novos argumentos, novos pontos doutrinais, uma nova série de problemas, uma nova luz. Executou um aggiornamento pelo simples fato de não buscar a novidade, mas a verdade apenas. Acreditava na verdade, e defendia a todo custo as verdades tiradas da experiência para fazer delas seus princípios imutáveis. Ele as hierarquizava e unia em uma síntese fecunda e de fácil leitura. Não resta dúvida que estava perfeitamente provido das armas necessárias para realizar a tarefa que lhe incumbia a escolástica de seu tempo: articular a verdade natural e a verdade sobrenatural em uma síntese harmoniosa.

 

2. O sofisma das «duas verdades» de Siger

A integração de Aristóteles na Cristandade havia de encontrar oponentes ferozes. Os agostinianos lançavam anátemas contra aquele intruso que foi apresentado com traços de panteísmo e paganismo. Seguiam a um Santo Agostinho limitado: uma teologia eminentemente espiritual e sublime, perdida em Deus, mas divorciada dos conhecimentos terrestres. Sua filosofia, inspirada em Platão, era mais angélica que humana, e mais fundada nas ideias do que na realidade. Esses agostinianos lançavam suas construções teológicas como certos arquitetos audaciosos que erguem pilares altos demais e elegantes demais. Eles construiam uma teologia sublime antes de se assegurar de seus fundamentos racionais. Eles detinham a autoridade em Paris, mas a sabedoria da filosofia eterna que fluía abundante dos escritos de Aristóteles não podia permanecer escondida debaixo do alqueire e, cedo ou tarde, haveria de impor-se aos escolásticos. O tempo e a curiosidade intelectual dos medievais ganharão a disputa contra os agostinianos, mesmo com o arcebispo de Paris fulminando anátemas contra as teorias tomistas.

Neste processo de integração se insere o episódio do turbulento Siger de Brabante. Siger, seguindo ao pé da letra o Aristóteles dos comentadores impregnados de panteísmo, ensinou graves erros dogmáticos em seus cursos na Universidade de Paris. Para ele, Aristóteles é a sabedoria natural inquestionável. A fé revela a verdade sobrenatural, também inquestionável. Ambas têm direito de ocupar um lugar no mundo, mas como? Fixando o limite de cada uma: a fé está a salvo em sua própria esfera, e a verdade filosófica na sua. Siger estabelecia o divórcio entre as duas ordens do conhecimento, entre a razão e a fé, entre o laboratório e a oratória. Chesterton, em sua biografia do Boi mudo, explica, em um estilo inimitável, a dramática crise dessa luta corpo a corpo entre as duas doutrinas:

«O demônio é o macaco de Deus. O erro nunca é mais falso do que quando está muito próximo da verdade. É quando o punhal toca o nervo da verdade que consciência cristã grita de dor … Siger de Brabante levanta-se e diz qualquer coisa de tão horrivelmente semelhante a São Tomás, e tão horrivelmente diferente, que (como o Anticristo) ele poderia enganar até os eleitos. Ele diz o seguinte: a Igreja, teologicamente, tem de ter razão,  mas, cientificamente, ela pode falhar. Há duas verdades: a verdade do mundo sobrenatural e a verdade do mundo natural, que contradiz o mundo sobrenatural. Enquanto formos naturalistas, estamos livres para supor que a Cristandade é sem sentido; mas quando nos lembramos de nossas raízes cristãs,  nós devemos admitir que a Cristandade é verdadeira, até mesmo se ela é sem sentido.

Em outras palavras, Siger de Brabante cortou a cabeça em duas, como no golpe de machado de uma velha lenda guerreira. Ele declara que o homem tem dois espíritos: um tem de ser inteiramente crente; o outro pode ser inteiramente descrente. Para muitos, isso parece uma paródia do tomismo. Na verdade, era o assassinato do tomismo. Não eram duas vias que conduziam à mesma verdade. Era uma via falsa que afirmava haver duas verdades… Aqueles que se queixam que os teólogos fazem distinções sutis dificilmente encontrariam exemplo melhor de sua própria loucura. De fato, uma distinção sutil pode ser uma contradição pura e simples. É evidentemente o caso aqui.» 1.

Santo Tomás aceitava de boa vontade a existência de dois caminhos para achar a única verdade, precisamente porque estava seguro de que havia uma única verdade. Uma vez que a fé é a verdade absoluta, nada há na natureza que possa contradizer a fé. É certo que se tratava de uma confiança total na realidade da religião. Com sua lógica concisa, o santo levantou-se com todas as suas forças contra aquela paródia sigeriana da verdade:

«É ainda mais grave, pois logo em seguida ele [Siger] diz: “Pela razão concluo necessariamente que a inteligência é numericamente uma só [para todos os homens], mas, pela fé mantenho firmemente o contrário.” Assim, pois, concede que a fé tenha por objeto coisas das quais necessariamente o oposto poderia ser concluído. Ora, como não se pode concluir necessariamente mais que a verdade necessária, cujo oposto é a falsidade impossível, resulta que, de acordo com sua declaração, a fé tem por objeto a falsidade impossível, o que entretanto nem o próprio Deus pode fazer. E isso é algo que os ouvidos dos fiéis não podem suportar»2.

Não poderia haver melhor refutação para essa «dupla verdade» aberta à contradição. Nem melhor defesa de que a verdade é una, que o Deus de Moisés é também o Criador do céu e da terra, e que o Verbo Encarnado que multiplicou os pães é o mesmo que faz crescer as espigas de trigo.

A disputa que Siger de Brabante e Santo Tomás de Aquino sustentaram na Universidade de Paris não foi uma simples discussão bizantina. Ela tocava o cerne da verdade cristã. Para um cristão, a fé é essencialmente imbuída de razão do começo ao fim.

Em primeiro lugar, o juízo da fé, como todo juízo humano, deve ser movido por motivos racionais, o que faz o santo doutor afirmar que ninguém creria se não visse que tem de crer. Por isso, nossa religião é, entre todas, a única que se dirige ao homem enquanto homem, ao homem que pensa por sua razão e que se nega a crer cegamente em algo de que não tenha nenhuma evidência. A religião cristã eleva os olhos ao céu e conserva os pés na terra. Para Siger e seus seguidores, ao contrário, a religião é um salto no absurdo, um golpe ao acaso, um tiro no escuro com toda a chance de errar o alvo.

Em segundo lugar, não pode haver desenvolvimento do dogma se os artigos de fé nâo são ilustrados e e explicados à luz da razão. Nossa religião pretende conhecer o único Deus verdadeiro, autor da natureza e da graça, por meio da razão intimamente unida à fé. Ela está sempre disposta a se submeter à prova de teses filosóficas e científicas rigorosas, porque sabe que Deus não se contradiz. A teologia tomista é eminentemente científica, uma vez que a razão demonstra rigorosamente as conclusões teológicas fundadas na fé. Ao contrário, a teologia de Siger, não sendo ciência no sentido estrito, converte-se, ao longo do tempo, em um discurso sentimental e carregado de imagens, tirado de uma Revelação carismática e fundado nas emoções.

O divórcio que Siger estabelece conduz ao fideísmo essencialmente irracional, que encontramos na fé cega de Lutero e na fé sentimental de Kant. Todos os modernistas fizeram profissão de fideísmo: Loisy opôs o Cristo histórico ao Cristo da fé; Tyrrell disse que aquilo que é falso especulativamente (segundo a razão) pode ser verdade na prática (segundo a fé). Esse fideísmo, que nega ao homem o uso de sua razão, é uma caricatura da verdade, pois pretende que a fé em Deus pode ser absurda sob o pretexto de que Deus é misterioso. É, portanto, a caricatura modernista da fé católica.

 

3. A função do teólogo: harmonizar as duas sabedorias

Santo Tomás pôs tranquilamente mãos à obra, sem se preocupar com o que diriam seus adversários. Porém, semelhante trabalho de harmonização teria de enfrentar as dificuldades inerentes aos moldes em que essas duas sabedorias se desenvolveram. A sabedoria grega crescera segundo o molde aristotélico, mais realista e terra à terra; a cristã, segundo o molde agostiniano, mais teológico e divino, longe das questões materiais.

E, no entanto, para o ouvido afinado de Santo Tomás, estas duas melodias, elaboradas em momentos históricos distantes, emitiam sons muito similares, como se uma fuga de Bach fosse tocada separadamente em dois teclados distintos.

Como um compositor genial, ele se propõe então tocá-las simultaneamente em seus respectivos teclados, para produzir os mesmos sons e realçar a riqueza dos harmônicos e a plenitude dos acordes. Semelhante composição requeria duas coisas: era preciso purificar cada um das melodias que ainda tivessem notas discordantes, apesar da correspondência da linha geral. Em seguida, era preciso uni-las em uma síntese orgânica superior e profunda, que produzisse um som tão mais harmonioso e adequado quanto mais distinto. E então, assim como Bach teve de primeiro temperar seus teclados antes de harmonizar com êxito suas tocatas e fugas, Santo Tomás também teve de primeiro revisar suas fontes, antes de reuni-las em uma síntese teológica superior.

O imenso respeito que tinha pelas luzes do Cristianismo fez com que o santo doutor conservasse sempre uma grande veneração pelo gênio de Santo Agostinho. Na realidade, seus enfoques eram verdadeiramente distintos. Enquanto o Pai da Igreja propunha uma meditação sobre as coisas de Deus, o doutor medieval lhes buscava as causas fundadas na razão. Entretanto, apesar dos inevitáveis ajustes, pode-se dizer que a substância do agostinismo passou à Suma Teológica3.

De fato, porque era, acima de tudo, teólogo, Santo Tomás tinha de escolher o instrumento filosófico apropriado. Somente a filosofia de Aristóteles lhe servia. Por quê? Porque é a única que merece com razão o nome de filosofia eterna por seu realismo, seu rigor lógico e seu impulso em direção aos primeiros princípios das coisas. O aristotelismo é a glorificação da sensatez, a sistematização filosófica do senso comum. Fora da filosofia aristotélica, a inteligência só pode equivocar-se, como prova a história da Grécia antiga. Porém, as conclusões do filósofo pagão eram pouco claras, sobretudo no que se refere ao Além, à Criação, à imortalidade da alma e a Deus. Por quê? Porque a sabedoria de Aristóteles era mais horizontal do que vertical, mais realista do que sublime. Aristóteles se detém na substância criada; Santo Tomás tinha de levar a análise filosófica mais longe e mais alto.

Uma vez afinadas, as duas sabedorias, divina e humana, tinham de ser unidas em uma síntese teológica harmoniosa. Também aqui, como no caso da filosofia e da fé, na origem da doutrina sagrada encontramos em Santo Tomás uma intuição profunda.

Com efeito, as duas linhas melódicas entoam o mesmo Autor, o mesmo Criador e o mesmo Deus. Mas, em que ponto elas se harmonizam com êxito? Em que chave teológica as duas linhas convergentes da razão e da fé unem-se para se reforçar mutuamente? Qual é o ponto comum, a noção metafísica universal que corresponde à Revelação mais definitiva de Deus? Santo Tomás foi o primeiro a descobrir essa evidência, tão natural que se poderia dizer conhecida desde os primórdios da humanidade. Ele viu que tudo remete ao ser e, mais precisamente, ao ato de ser — esse — que define Deus perfeitamente. Deus, ao revelar Seu nome a Moisés, lhe diz: «Eu sou o que sou». Jesus diz igualmente: «Antes que Abraão fosse, Eu sou». Os santos não têm outra linguagem: Deus é tudo, enquanto o homem não é nada! Toda criatura tem existência, mas só de Deus pode ser dito que é. Só Deus é totalmente simples; a criatura é composta, é uma natureza, uma essência que existe. Santo Tomás acrescentou ao pensamento aristotélico o ponto de vista supremo, o binômio essência-existência, o único que permite distinguir o criado do incriado, o composto finito do infinitamente simples. O professor Gilson, especialista em Idade Média, comenta essa concepção suprema do Aquinata:

«O simples fato de conceber Deus como o Ato de ser puro e subsistente por si mesmo, causa e fim de todos os demais seres, é criar uma teologia que pode justificar tudo aquilo que há de certo nas outras teologias, do mesmo modo que a metafísica do esse [existência] tem todo o necessário para justificar tudo o que há de certo nas outras filosofias. Porque inclui a todas, essa teologia do Ato incriado do ser, ou de Deus cujo nome próprio é “Eu sou”, é tão verdadeira como todas consideradas em seu conjunto, e mais verdadeira que cada uma delas considerada separadamente. Se não me equívoco, esta é a razão secreta por que a Igreja escolheu Santo Tomás como seu Doutor comum… Para aqueles que vivem dela, a metafísica do Doutor comum, recebida em sua plenitude, é o nec plus ultra da compreensão, insuperável por direito e insondável em suas consequências»4.

A analogia do ser, pedra angular do tomismo, permite então ao olho de águia do santo doutor alçar-se diretamente à mais elevada sabedoria. Dessa maneira, são reconciliados o Evangelho e a filosofia pagã, a fé e o gênio natural, mas inspirado, de Aristóteles. Reconciliados, mutuamente reforçados e unidos para construir um estado superior do conhecimento: a teologia que fala de Deus o quanto pode fazê-lo a razão e a fé. A doutrina tomista, comparada com o simples catecismo, eleva-se como uma gigantesca catedral gótica ao lado da casa de um camponês. Ambas as sabedorias apoiam-se mutuamente para elaborar o esforço arquitetônico intelectual mais audacioso da história, a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.

Por que a Igreja, por mais de sessenta Papas, recomenda o tomismo acima de qualquer outra doutrina? Por que, por exemplo, não se poderia seguir com a mesma segurança a síntese de um Santo Agostinho ou de um São Boaventura? Por duas razões muito simples. Em primeiro lugar, como já mostramos, porque é a teologia mais universal e mais provada. Assim como na ciência, as hipóteses que coordenam um maior número de fatos e se relacionam mais estreitamente com princípios superiores têm mais peso que as demais, do mesmo modo, um sistema teológico é tanto mais certo quanto mais provas ofereça em todos os campos5. Ora, isso é próprio do tomismo. Em nossos dias, o teólogo que queira fazer sua disciplina avançar deve se erguer sobre os ombros de Santo Tomás, como o físico sempre considera as descobertas precedentes, ou a ciência ainda estaria no tempo de Arquimedes.

A segunda razão que faz do tomismo a teologia oficial da Igreja é que ela se funda, em última instância, sobre princípios eternos e imutáveis: a Revelação e a filosofia realista. Se é verdade que só há uma Revelação, é igualmente verdade que esta só se converte em uma teologia científica quando a inteligência humana a estuda fazendo uso dos princípios do bom senso codificados por Aristóteles. Uma vez que não há mais que uma Revelação e uma filosofia eterna, tampouco pode haver, definitivamente, mais do que uma ciência teológica que reúna os dados da fé e as conclusões teológicas em rigorosa coordenação. Se a Igreja se aferra tanto ao tomismo, não é por fanatismo ou por disciplina, mas por uma necessidade lógica. Em arquitetura o estilo de construção varia de acordo com a época, mas para a construção de qualquer edifício imperam leis idênticas e invariáveis, como a gravidade e a resistência, sem as quais não haveria castelos, nem casas, nem choças Acontece o mesmo com Santo Tomás. Seu valor não reside tanto em ter elaborado uma admirável síntese teológica, mas em ter avançado mais que nenhum outro no conhecimento da teologia e na sistematização científica de princípios fundamentais que sempre servirão de base para todo aquele que queira tornar-se um teólogo, do mesmo modo que se vai à escola de arquitetura para se tornar arquiteto6. Ora, essas leis e princípios essenciais do tomismo são o que a Igreja manda seguir como diretivas certas quando ela obriga o uso de São Tomás.

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Terminaremos nosso estudo de Santo Tomás com o elogio que o Papa Pio XI lhe faz. Esta será a melhor introdução ao estudo da crise modernista.

«Se queremos evitar os erros que são a origem e a fonte de todas as misérias de nosso tempo, o ensinamento do Aquinate tem de ser mais do que nunca seguido religiosamente. Pois Santo Tomás refuta as teorias propostas pelos modernistas em todos os domínios, em filosofia, protegendo, como já dissemos, a força e o poder do espírito humano e demonstrando a existência de Deus pelos argumentos mais eficazes; em dogmática, distinguindo a ordem sobrenatural da natural e explicando as razões da fé e os dogmas neles mesmos; em teologia, mostrando que os artigos da fé não se fundam apenas na opinião, mas sobre a verdade e são, portanto, intangíveis; em exegese, transmitindo o verdadeiro conceito de intuição divina; na ciência da moral, da sociologia e do direito, estabelecendo os princípios certos da justiça legal e social, comutativa e distributiva, e explicando as relações entre justiça e caridade; no estudo do ascetismo,por seus preceitos de perfeição da vida cristã e sua refutação dos inimigos das ordens religiosas de seu tempo. Enfim, contra liberdade excessiva do espirito humano e sua independência em face de Deus, ele declara os direitos da Verdade primeira e a autoridade do Senhor supremo de todos nós. É, pois, claro que os modernistas têm todas as razões para temer Tomás de Aquino mais do que qualquer outro doutor da Igreja. Assim, como ele em outra ocasião dissera aos egípcios em tempos de fome: Ide a José, a fim de que eles possam receber dele a provisão de trigo para alimentar seus corpos, nós dizemos a todos que desejem a verdade: Ide a Tomás, e pedi a ele que vos dê em abundância o alimento da doutrina substancial para possais nutrir vossas almas para a vida eterna.”

(Cem Anos de Modernismo, tradução: Ricardo Bellei)

  1. 1. Gilbert Keith Chesterton, Saint Thomas Aquinas, pp. 106-108.
  2. 2. De unitate intellectus contra Averroistas, circa finem, em Ramírez, De fide divina, p. 108; cf. Vaticano I, Dei Filius, cap. 4.
  3. 3. Gilson, Les tribulations de Sophie, p. 40.
  4. 4. Gilson, ibídem, p. 44.
  5. 5. Gardeil, Le donné révelé et la théologie, pp. 253-284.
  6. 6. Em Labourdette, Dialogue théologique, p. 12.

Santo Agostinho e a Revelação do Filho de Deus

Pe. Dominique Bourmaud -- FSSPX

Aristóteles, usando o senso comum e a lógica, foi o primeiro a elucidar as bases definitivas da razão humana. As coisas existem e a inteligência pode, certamente, conhecê-las. Qualquer pessoa que negue as verdades do senso comum expõe-se a viver como uma planta, incapaz de fazer ou dizer qualquer coisa. Se as consequências são desastrosas no âmbito natural, que acontecerá quando se tratar do conhecimento de Deus? Quem nega estas evidências, poderá aceitar em algum momento a verdade absoluta da Revelação divina? Para admitir que Deus diz a verdade, é preciso demonstrar antes, por meio da razão, que Deus existe. Para isso, é preciso também que o homem seja capaz de reconhecer com certeza o fato da Revelação. É preciso saber com absoluta certeza que Deus se manifesta por sinais milagrosos, e isto supõe conhecer a natureza e suas leis. Em seguida, é preciso que Deus possa comunicar em linguagem humana as verdades sobre sua natureza misteriosa. Mais radicalmente ainda, é preciso  ao menos acreditar na verdade.

É evidente, portanto, que somente os princípios da filosofia realista podem servir de base à Revelação divina. E para que a Revelação possa manifestar-se efetivamente, a divina Providência teve que oferecer todas as provas necessárias para provocar o assentimento de qualquer homem razoável. Nesse caso, um realista não terá nenhuma dificuldade em ver que deve acreditar. Ao contrário, se um incrédulo se nega a crer, não será porque duvide da Revelação em si mesma, mas por um preconceito filosófico, nesse caso, um preconceito cético.

O nome de Agostinho vem naturalmente à mente quando se fala do cético inquieto que busca a sabedoria verdadeira e é conquistado, pouco a pouco, pela fé católica. Sua evolução permite reconstituir o itinerário típico do cético moderno, que passa pelas fases de hesitação, de recusa e, por fim, de submissão ao Deus encarnado. Na medida em que nossa escolha da fé é fruto de um ato da razão, sua história é, na realidade, nossa própria história. Santo Agostinho converte-se quando compreende que a Revelação é necessária para o gênero humano. E, ao longo de sua vida, explicará as Sagradas Escrituras, em particular o Evangelho, como um fato e uma história vivida, e não um mito. Retraçar as etapas da conversão de Santo Agostinho é descobrir o fundamento da Revelação; é compreender o mecanismo racional que nos dá a evidência desse fato único, de onde deriva toda a cultura cristã.

 

1. Necessidade da Revelação e da Igreja

Santo Agostinho (354-430), depois de vários anos de estudo e de ensino na África do Norte, sente-se atormentado por uma enorme sede de conhecer a verdade. A graça o persegue tanto quanto as lágrimas de sua santa mãe, Mônica. No ano de 383, fugindo de sua mãe e da graça de Deus, embarca com destino à Itália e consegue, em Milão, uma cátedra de retórica. Ali o esperava a conversão. Agostinho, adepto da heresia maniqueia, nunca perdeu o desejo da verdade. Rejeita finalmente a heresia quando o bispo herético Fausto, acossado por suas perguntas, confessa-lhe sua ignorância. Então, regressa à fé de sua infância e nesse mesmo ano começa a ouvir Santo Ambrósio, sem estar seguro ainda de que exista um caminho para alcançar a sabedoria. Sua conversão intelectual, ocorrida no ano de 385, baseia-se em uma dupla necessidade. Ele compreende que, além da razão, uma autoridade é necessária para possuir a verdade com absoluta certeza. Ele funda essa necessidade sobre a Providência divina que não pode negar ao homem a capacidade de conhecer a verdade necessária para sua salvação. Ora, os homens, pela razão apenas, são impotentes para conhecê-la, como ele podia julgar por sua própria experiência. Mas, por que a autoridade da Igreja católica? Pela mesma razão: seria contradizer a Deus e sua Providência afirmar que uma sociedade religiosa tenha conquistado o mundo inteiro se proclamando falsamente detentora da Revelação divina. Ora, a Igreja julga tranquilamente o mundo inteiro.

Como se vê, o orgulhoso retórico não se submeteu finalmente à Revelação senão pela mediação da Igreja. Ela é a porta-voz de Deus. Ela é a Mãe e a Mestra da verdade. Ela estabelece a ponte entre o presente e a Revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo, já então quatro vezes centenária. Ela nos permite remontar do efeito à causa, do rio à fonte. Se a Igreja existe, é porque seu Fundador existiu realmente. Se a Igreja é uma sociedade milagrosa, é porque sua fundação foi milagrosa e divina. Ora, a Igreja é uma instituição visível e viva, milagrosamente difundida pelo mundo que ela conquistou, apesar das mais violentas perseguições. O catecúmeno de Milão sente-se tocado:

«Ainda não vemos a Cristo, mas vemos a Igreja: creiamos, pois, em Cristo. Os Apóstolos, ao contrário de nós, embora vissem a Cristo, não viam a Igreja a não ser através da fé. Viram uma coisa e acreditaram em outra: façamos nós o mesmo. Creiamos em Cristo, a quem não vemos ainda, e, mantendo-nos unidos à Igreja a qual vemos, chegaremos, finalmente, a ver Aquele a quem ainda não podemos ver»1.

Na vida da Igreja, o que mais chama a atenção dos espectadores do mundo pagão, e de Agostinho de princípio, é a santidade dela, este selo de Deus que a Igreja traz na fronte e derrama ao seu redor. Seus princípios morais são puros e santificantes, e são, deste modo, a causa da santidade de seus membros, e a causa da extraordinária revolução moral que purificou e elevou o meio tão corrupto da bacia do Mediterrâneo durante o período de decadência imperial. «Vejam como eles se amam», diziam admirados os judeus em face da caridade cristã. Onde reina a verdade sobrenatural floresce a santidade, o heroísmo do martírio e, em particular, a virgindade consagrada; e isto nas épocas e lugares em que menos poderia alguém esperá-lo. De forma que Santo Agostinho podia responder a seus oponentes que, se Platão e Sócrates tivessem visto o que eles viam, também teriam acreditado. Mais tarde, o magistério não fará mais do que repetir Santo Agostinho. O Concílio Vaticano I, entre outros, afirma que:

«a Igreja por si mesma, por sua admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os bens, pela sua unidade católica e invicta estabilidade, é um grande e perpétuo motivo de credibilidade, e um testemunho irrecusável da sua divina missão»2.

Em resumo, a Igreja católica está dotada de todas as marcas suficientes para que todo homem de boa fé adira a verdadeira Igreja.

 

2. A Igreja foi fundada por Jesus Cristo

Ao frequentar a Igreja católica e seus bispos, o retórico encontra-se em condições de conhecer Jesus, seu Fundador. Através da Igreja, Agostinho tem acesso a outro monumento histórico desta Revelação divina, preservado há quatro séculos: o testemunho escrito das profecias messiânicas e da vida e doutrina de Jesus. Já antes de abraçar a fé, teve a oportunidade de estudar o Antigo e o Novo Testamento como simples documentos históricos. O Antigo Testamento serve de ponto de apoio ao Novo, uma vez que o prepara e prediz. Por esta razão, Santo Agostinho poderá dizer que os judeus da diáspora, fanaticamente opostos ao Cristianismo, são, de fato, seus melhores testemunhos, uma vez que fornecem todas as garantias possíveis da verdade das profecias passadas. Desta forma, a um homem de boa fé, livre de preconceitos, é-lhe suficiente confrontar a história de Jesus com as profecias messiânicas, para ver o fundamento da fé cristã e reconhecer em Jesus ao Messias esperado.

A história de Jesus nos é relatada pelos Evangelhos, que nos são apresentados como descrições históricas da manifestação de Deus aos homens:

«O que era no princípio, o que ouvimos e vimos com nossos próprios olhos, o que contemplamos e que nossas mãos sentiram do Verbo de Vida, porque a Vida se manifestou e nós a vimos»3.

Repugna aos Evangelhos serem tratados como produtos da imaginação fértil de poetas semíticos, como pretendem todos os modernistas imbuídos do vírus idealista. Santo Agostinho teve contato com as elucubrações absurdas dos maniqueus. É indubitável, pois, que ele sabe distinguir entre um conto de fadas e a Revelação divina. Homem de vasta cultura, sabe que, dentre todos os escritos antigos, os Evangelhos são os mais bem conservados. Compreende naturalmente que esses escritos, apresentados como descrições históricas, não são de fato outra coisa.

Ora: o que eles nos revelam? Os evangelistas contam a história de um homem que viveu entre eles durante três anos, realizou milagres em profusão e cumpriu todas as profecias messiânicas, morreu crucificado e ressuscitou ao terceiro dia. Esses evangelistas, homens de vida ao ar livre e acostumados ao trabalho duro, eram pouco propensos a alucinações. Além disso, se os milagres fossem lendas, teria sido fácil aos seus inimigos negá-los ainda durante sua própria vida; e, não obstante, eles tomaram o cuidado de não fazê-lo. Será possível acusar esses escritores de enganar conscientemente os leitores, quando não hesitaram em selar seu testemunho com o próprio sangue? Se há testemunhas dignas de fé, são certamente aquelas que não temem morrer como mártires da verdade histórica que proclamam.

Pouco a pouco, o jovem professor de retórica, ainda lutando com suas próprias dúvidas, começa a amar e reconhecer na pessoa de Cristo o taumaturgo que cura aos enfermos e leprosos, o grande profeta dos acontecimentos futuros que realmente aconteceram, como a destruição de Jerusalém no ano 70. Sobretudo, n’Ele vê o Messias anunciado durante quatro mil anos. Os milagres e as profecias serão sempre as melhores e mais objetivas provas de que o dedo de Deus está presente. Agostinho havia encontrado o caminho da salvação, mas seu orgulho continuava pondo obstáculos à verdade revelada. Via que deveria crer, mas lhe faltava querer. Não era humilde o bastante para conceber que o humilde Jesus fosse seu Deus, e não havia compreendido a lição de sua fraqueza humana4.

Finalmente, em setembro do ano de 386, compreende o profundo mistério da encarnação. Recebe a graça da conversão quando entende que Cristo, o Deus encarnado, manso e humilde de coração, é o único caminho da salvação. Todas as lutas e indecisões de seu coração curam-se de um só golpe quando, sob a repentina inspiração da voz de uma criança que lhe sugere que abra as Escrituras, ele lê a passagem de São Paulo sobre a continência5. Seu amor e sua humilde submissão a Jesus Cristo tinham vencido seu orgulho e suas paixões. Agostinho, da mesma forma que Saulo no caminho de Damasco, converte-se definitivamente a Jesus, seu Salvador. Como Saulo, o catecúmeno, a partir de então, prega Jesus Cristo, gloriando-se de não conhecer senão a Jesus Cristo, e a Jesus Cristo crucificado. Como São Paulo, tudo é medido em função de Nosso Senhor. «Se Jesus Cristo não ressuscitou, vã é nossa fé»6. Para ambos, o fundamento de toda sua fé é a Revelação histórica de Deus na pessoa de Jesus Cristo.

Depois, o itinerário de sua própria conversão serve de modelo aos que o ouvem. Ele os conduz pelo mesmo caminho que o conduzira à Revelação histórica de Jesus Cristo. Os incrédulos negam que Deus tenha falado aos homens, mas não é racional, pois não podem explicar a existência da Igreja e dos documentos históricos que formam o Antigo e o Novo Testamento. A primeira lição dada aos catecúmenos refere-se aos fatos evangélicos entendidos como a história da salvação e não como uma teoria ideal e imaginária, tal como queriam seus velhos amigos neoplatônicos. Aos neófitos, escreve Santo Agostinho ao diácono Deogratias, é preciso explicar a história real da boa nova de Jesus, como a explicou Felipe, sentado no carro do ministro da rainha Candace, isto é, interpretando as profecias e explicando como elas foram cumpridas. Tudo, desde a criação até nossos dias, centra-se em Nosso Senhor Jesus Cristo e na Igreja, e neles encontra sua perfeição. Em suma, a conversão e as obras do bispo de Hipona estão fundamentadas na evidência da Revelação, no fato de que Deus falou aos homens.

 

3. A Sagrada Escritura é infalível

Depois de aceitar a fé e receber o batismo das mãos de Santo Ambrósio, Santo Agostinho pôde dedicar-se com toda tranquilidade ao estudo de sua nova religião. Consagrará a ela toda sua vida. Toma novamente nas mãos a Palavra de Deus e sobre ela medita. Em sua época, raros são os espíritos críticos que negam que Deus possa se revelar e e dizer que Ele é em uma linguagem humana, por imperfeita que ela seja. São poucos os céticos que consideram as profecias da Sagrada Escritura como experiências pessoais, idealizadas pela fé e pela emotividade passional do profeta. Para esses, respondeu o santo bispo com as palavras de São Paulo: «Se a trombeta não dá senão um som confuso, quem se preparará para a batalha?» 7. Se Deus fala, não é para nada. E como a Revelação pública tem uma utilidade comum, a Providência divina deve protegê-la de qualquer erro, pois de sua aceitação ou rejeição depende a salvação ou a condenação eterna.

E se Deus falou, quem não vê que é preciso acreditar de todo o coração na autoridade de Deus, porque Ele não pode se enganar nem nos enganar? Diz o santo, ao comentar os salmos:

«O que significa dizer que “a palavra do Senhor é justa?” (Significa) Que Ele não te engana. E tu,  não o enganes. Ou melhor, não enganes a ti mesmo. Poderias tu enganar Aquele que tudo sabe? 8.

Ele tem olhos para conhecer, tu os tem para crença. O que Deus vê, tu, nisso creias»9.

Por isso, o santo bispo sustentará, contra todas as dificuldades, a inerrância bíblica, isto é, a infalibilidade absoluta da Sagrada Escritura. Para ele, a Sagrada Escritura é não só a obra de Deus, mas o próprio Verbo encarnado. Com frequência, ele retorna ao tema da autoridade bíblica:

«Dessa cidade para onde vamos, chegaram várias cartas que nos exortam a viver adequadamente. Jesus falou pela boca dos profetas e guiou a pena dos Apóstolos; os escritos dos Apóstolos são os escritos do próprio Jesus Cristo. “Oh, homem: aquilo que declaram minhas Escrituras, sou Eu quem O diz”. A fé será indecisa se a autoridade da Escritura é hesitante. Ninguém duvida da verdade das Escrituras, com exceção do infiel e do ímpio. Se te parece ter achado um erro no texto, é porque ou a cópia foi mal feita, ou o tradutor se equivocou, ou não compreendeste. Nas Escrituras, aprendemos quem é o Cristo, aprendemos o que é a Igreja»10.

Para Santo Agostinho, a Sagrada Escritura fala de Jesus Cristo; é Jesus Cristo quem fala nela; ela é Jesus Cristo.

Como se entende a relação entre a Sagrada Escritura e a Igreja?  Elas mantêm entre si um papel complementar, porque contribuem para promover a Revelação perfeita de Deus aos homens. Essa Revelação divina, depósito da fé, contém tudo o que foi dado por Deus até Jesus Cristo, em forma oral ou escrita. Ela é dupla porque abarca a Tradição apostólica e a Sagrada Escritura, ou, dito mais simplesmente, o catecismo e a Bíblia. As duas fontes estão unidas, mas subordinadas. A Sagrada Escritura ocupa o segundo lugar, não só porque foi escrita depois da pregação apostólica, mas também porque é incompleta: está muito distante de descrever tudo o que Jesus disse e fez11. Só depois de ter provado a divindade da Igreja, o catecúmeno se debruça sobre Revelação propriamente dita. Segundo Santo Agostinho, o Evangelho, sozinho, está como que suspenso no ar e privado de fundamento. Somente pode converter-se em regra de fé sob a autoridade divinamente estabelecida da Igreja.

«Da Igreja recebemos as Escrituras. É ela que fundamenta sua autoridade e seu ensino. A Igreja é a guia que devemos seguir na interpretação do Evangelho e da Tradição. Se te encontrasses com alguém que ainda não crê no Evangelho, o que responderias quando te dissesse: “Não creio?” Pessoalmente, eu não acreditaria no Evangelho se não me obrigasse a isto a autoridade da Igreja católica»12.

É todo o sistema protestante da sola Scriptura que se vê aqui condenado pelo doutor preferido de Lutero. Santo Agostinho sente demasiado respeito pelo Evangelho para deixá-lo livre à interpretação arbitrária do primeiro recém-chegado. Sabe que os homens têm necessidade de uma sociedade que fale com gravidade e autoridade divinas para ensinar infalivelmente a verdade e a salvação. O mundo tem necessidade de uma Igreja que seja Mãe e Mestra da Revelação divina anunciada por Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem.

*
*    *

O estudo da vida e da conversão de Santo Agostinho nos mostra o itinerário natural do espírito para provar a verdade da Revelação em sua integridade. Vamos dos efeitos atualmente visíveis às causas. Se, a despeito das perseguições sangrentas, existe hoje uma sociedade religiosa que dominou milagrosamente o mundo, que santificou milagrosamente uma sociedade decadente, é aquela marcada com o selo de Deus; ela e seu Fundador. E, uma vez que ela existe realmente, seu Fundador também existiu realmente.

Se, além do mais, temos escritos contemporâneos da vida, dos milagres e das palavras desse Fundador, será muito frutífero verificar se essa vida e essa doutrina sublimes são dignas de Deus e capazes de enobrecer o homem.

Se for possível confrontar a vida desse Fundador com os antigos escritos messiânicos que supostamente Ele cumpriu, temos um motivo adicional para crer nessa religião. Dessas investigações conclui-se que Deus se revelou aos homens, e essa Revelação é tão real quanto o é a Igreja católica. Para Santo Agostinho, e para todo cristão digno deste nome, a evidência do fato histórico da Revelação de Deus é o fundamento de toda a fé cristã. Ora, este caráter histórico da Revelação divina é precisamente o obstáculo em que tropeçarão todos os modernistas. Inventarão mil mentiras para desvincular o Evangelho e a Igreja de seu Fundador, isto é, os efeitos da sua causa. As soluções artificiais dos racionalistas só podem ressaltar mais ainda seus erros filosóficos, e servem, por outro lado, para reforçar nossa fé em Jesus Cristo, nosso Salvador.

 

(100 Anos de Modernismo, tradução: Ricardo Bellei)

  1. 1. Sermão 238.
  2. 2. Vaticano I, constituição Dei Filius, DzB 1794.
  3. 3. 1Jo 1, 1.
  4. 4. Confissões, VII, 18.
  5. 5. Rom 13, 13-14.
  6. 6. 1Cor 15: 17.
  7. 7. 1Cor 14, 8.
  8. 8. In Psalmo 32, serm. 1, ML 36, col. 284.
  9. 9. In Psalmo 36, enarrat. 2, n. 2, ML 36, col. 364.
  10. 10. Frases extraídas, respectivamente, das seguintes obras: In Psalmo 90, 2, 1, ML 37, col. 1159; De Doctr. christ. 2, 6; De Doctr. christ. 37, ML 34, col. 35; De Gen. ad litt.; Contra Faustum 11, 4, ML 42, col. 249; Confesiones 13, 28, ML 32, col. 864; Epístola 105, 3, 14, ML 33, col. 401.
  11. 11. Jo 21, 25.
  12. 12. De Gen. ad litt. 1, Ep. Man. 5, 6, ML 42, col. 176.

Aristóteles e a filosofia do ser

Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX

Santo Ambrósio disse que toda verdade, seja qual for, é obra do Espírito Santo. A verdade cristã, à primeira vista, apresenta um rosto eminentemente humilde e humano, porque se fundamenta no patrimônio de toda a humanidade, composto pelas verdades mais simples e evidentes. Este conhecimento se dá em dois níveis. No nível do vivido, é determinado pelo que nós chamamos verdades do senso comum; e, no nível científico, é constituído pelas verdades de ordem filosófica. O esforço filosófico, como parecem sugerir seus primórdios históricos, funda-se, de fato, em verdades do senso comum, que provocam a surpresa e a admiração dos homens ávidos de sabedoria. Em todo caso, o conhecimento natural começa, progride e termina sempre na realidade concreta. Pensar no nada equivale a não pensar, pois todo juízo é, em última instância, um juízo de existência.

Os sofistas, no tempo de Aristóteles, negaram esta postura natural e realista. As posições dos sofistas e do evolucionista Heráclito permitem-nos, de agora em diante, explicar as noções tipicamente modernistas em matéria de filosofia, para as quais estabeleceremos um epíteto característico. Denominaremos o agnosticismo de ignorantista; o imanentismo, de egologista; e à evolução, de revolucionista.

1. Os primórdios da filosofia

A investigação das coisas e das suas causas, a filosofia propriamente dita, começou com os gregos no século VI antes de Cristo. De todas as culturas antigas, foram eles, e somente eles, que nos ensinaram a pensar, uma vez que as demais civilizações baseavam-se em crenças religiosas e consideravam a razão como uma intrusa. Ora, quando se contempla a filosofia grega em seu conjunto, a primeira coisa que se observa é o estado de trevas que rodeava os raros gênios que a iluminam. A reflexão sobre a essência das coisas é uma tarefa árdua à natureza ferida. Foi preciso toda a serenidade e equilíbrio mental dos gregos para lançar-se à investida da verdade somente com a ajuda da experiência. Os primeiros esforços filosóficos foram reflexões na escuridão. Durante muito tempo, os gregos buscaram somente na matéria a causa de todas as coisas. Heráclito pertenceu a essa escola, mas suas teorias, mais que raciocínios no escuro, foram como a visão de um ébrio que acredita que tudo dá voltas ao seu redor: tudo muda, nada permanece, não há ser. Quando Parmênides opôs o ser à mudança perpétua, começou na Grécia uma guerra de titãs que terminaria estagnando-se no sofisma cético. Seja como for, vê-se que a filosofia, desde seus primórdios, interroga-se sobre a existência da matéria e do movimento, isto é, sobre a experiência concreta. Este é o ponto cardeal do pensamento humano, que veremos reaparecer continuamente ao longo das especulações helênicas.

Neste céu obscuro apareceram, então, sucessivamente, os três maiores luminares da sabedoria grega: Sócrates, com sua busca das essências; Platão, que só contempla as perfeições em suas causas mais elevadas; e Aristóteles, que se torna, para sempre, como que a estrela polar do firmamento filosófico. Se é verdade que certos homens encarnam o gênio de um povo, e que estes vastos e poderosos espíritos são como o ato e a perfeição em que todo um mundo de virtualidades alcança seu termo e seu acabamento, Aristóteles, mais do que qualquer outro, foi um desses homens. Nele, o gênio filosófico da Grécia encontrou sua expressão mais perfeita e universal.

Nascido em Estagira, cidade de Trácia, Aristóteles (384-322) viajou à Atenas aos dezessete anos para converter-se em humilde discípulo de Platão durante nada menos que vinte anos. O mestre apreciava o espírito vivaz de seu aluno, a quem chamava a Inteligência. Por outro lado, Aristóteles não hesitava em manifestar certa independência em suas ideias: «Sou amigo de Platão, porém mais amigo da verdade». Durante três anos, foi preceptor do filho do rei da Macedônia, o futuro Alexandre Magno. Pode-se pensar que os elevados pontos de vista de um mestre de tamanha envergadura tiveram muita influência no ideal de conquista e civilização universal de Alexandre. De regresso a Atenas, Aristóteles fundou sua própria escola no Liceu, que, em pouco tempo, eclipsou a Academia fundada por Platão. Morreu em Cálcis, aos sessenta e dois anos.

A herança aristotélica chegou à Europa de maneira indireta, através dos árabes da Espanha meridional, antes de fazer sua entrada triunfal nas universidades do Ocidente, no século XIII, e estimular poderosamente a cultura cristã. Como não ver uma intenção providencial no papel extraordinário que desempenhou essa sabedoria pagã, que se revelará como o instrumento perfeitamente apto para a teologia católica? Mas, por que, à exclusão de todos os outros sistemas, a teologia só pode servir-se das bases filosóficas de Aristóteles? A resposta é muito simples: Aristóteles soube estabelecer os fundamentos da verdadeira filosofia. Foi o único que pôs a inteligência humana no caminho da verdadeira sabedoria. Sua sabedoria é a filosofia eterna, válida para todas as latitudes e para todas as épocas, porque se baseia na intuição filosófica fundamental que se encontra na origem de todo conhecimento, tanto natural como sobrenatural. Aristóteles, contra os filósofos do seu tempo, admite que a razão humana conhece a realidade e pode dizer a verdade. Seus princípios são profundamente realistas, do início ao fim de toda sua investigação filosófica. Por isso mesmo são irrefutáveis, ainda que algumas de suas aplicações concretas tenham caducado com o progresso das ciências, como, por exemplo, a astronomia de Ptolomeu.

2. A filosofia é o conhecimento do ser

Para aqueles que se perguntam se devem pensar ou não, Aristóteles responde: Queiramos ou não, temos de filosofar. Não poderíamos evitá-lo ainda que o quiséssemos. Pois, declarar que a filosofia não tem valor é já adotar uma posição filosófica. Na tenra idade em que a inteligência se abre à realidade, já não se revelam os poderes mais naturais do homem? Nessa idade, a criança interroga os pais até cansá-los com seus «O que é isto?», seus «Porquê?» e seus «Como?». O homem faz o mesmo quando busca as essências, as causas e os princípios. Por sua vez, o adulto como a criança começa a filosofar no momento em que, confrontado com algo que o assombra, ele procura sua causa profunda. Admirado e surpreso, a princípio, diante das coisas mais humildes, pouco a pouco ele avança na admiração das coisas mais elevadas, como as mudanças da lua e do sol, até chegar, enfim, a se perguntar sobre a origem do universo inteiro. Diz-se que o homem é uma criança grande. Esta declaração é certamente verdadeira no sentido preciso de que, à imagem da criança, o homem faz filosofia (tão naturalmente) como respira.

A filosofia é essencialmente uma investigação, e, acima de tudo, a investigação das coisas reais. Se os Hamlets de todas as épocas apresentam-se a questão da existência, «Ser ou não ser, eis a questão»1, Aristóteles responde decidido, dizendo: «O ser é». Ele é o objeto de toda a verdade. Assim como não se põe em dúvida a própria existência ou o dom da vida, o sábio não põe tampouco em julgamento os fatos evidentes, como a natureza das coisas e a faculdade humana de conhecê-las. O Estagirita fundamenta toda sua filosofia na experiência: «A experiência é a mestra da filosofia». Cada uma de suas análises se apoia em uma experiência sensível, em uma intuição de algo concreto. Como poderia Aristóteles ter fundado a biologia sem dissecar porquinhos-da-índia, sem esse conhecimento experimental dos seres vivos? Ele, que era filho de médico, pôde criar múltiplas ciências porque sempre esteve próximo dos fatos, sempre à escuta das coisas, explorando as riquezas da natureza. Na realidade, a observação e a experiência do fato concreto determinam o desenvolvimento posterior de todas as ciências. Sobre essa base realista, finaliza-se o trabalho de fermentação intelectual que conduz à descoberta das leis científicas, que não têm outra ambição que a de adequar-se o melhor possível aos fatos concretos. Por outro lado, qualquer um que se dedique a questionar esse contato direto com as coisas compromete-se a destruir toda a ciência.

O que vale para as ciências físicas vale a fortiori para a ciência filosófica. Mais do que todas as outras ciências, ela é tributária do real, porque seu objeto é precisamente o ser enquanto existente. O filósofo não estuda somente o ser vivo do biólogo, ou o ser inanimado do físico, ou o ser quantitativo do matemático, mas estuda o que se encontra no centro mesmo do ser: sua existência íntima. O filósofo deve ir diretamente ao coração do ser, à realidade viva e concreta, sob pena de não ser filósofo. Se partisse de outro ponto, não seria nada. Seria como um lógico que negasse a razão, ou um matemático que negasse a unidade e a multiplicidade, ou um biólogo que negasse a vida. Cometeria o suicídio da filosofia, e não só da filosofia, mas também de toda a ciência. Porque toda ciência, sempre e quando é realmente científica, funda-se na filosofia, como afirma Einstein:

«Por mais “positiva” [descritiva] que pareça, a verdade teórica é uma espécie de metafísica obscura»2.

Os autênticos cientistas pressupõem sempre as verdades filosóficas, a existência de um universo real, a capacidade humana de conhecer a verdade, a causa por trás dos efeitos. Estas verdades, embora evidentes e triviais, são a condição necessária de toda verdade humana. Negá-las é reduzir o homem ao estado vegetal.

Se é um fato evidente que a razão é tributária do real, é igualmente fácil explicar por que tem de ser assim. De fato, compreender é informar-se e, portanto, receber uma forma do exterior. A inteligência humana vive e se enriquece na medida em que se abre ao exterior, porque por si mesma está vazia: não é mais que uma folha em branco na qual não há nada escrito. A inteligência humana, como as plantas, alimenta-se dos seres que a rodeiam. É justamente o oposto de um pensamento fechado ao mundo, confinado egoistamente em si mesmo, que jamais poderá desenvolver-se; porque não conhecer nada é não conhecer.

Aristóteles, da mesma forma que seu régio aluno, lança-se à conquista do mundo. Alexandre Magno queria mudar o mundo, submetendo-o à civilização grega. Aristóteles também pretende conquistar o mundo, mas sujeitando-o à sua inteligência. Esta é a única maneira de filosofar e de conquistar mundos. Longe de nós pensarmos que nossas ideias regulam as coisas; ao contrário, sabemos que são as coisas que regulam e ajustam nossas ideias. A inteligência humana é uma matriz que só está esperando ser fecundada pela realidade e afirmá-la como existente, dizendo: o céu é azul, o homem é racional. O vocabulário do conhecimento traduz perfeitamente esta submissão à realidade: o pensamento, fecundado pelo ser, dá à luz a uma concepção fértil, o conceito; este conceito do ser se chama ideia — visão —  visão que é evidentemente a visão de algo; e então a inteligência intus-legit — lê por dentro — o livro aberto da criação, a mensagem inteligível da sabedoria divina.

Diante do universo que a rodeia, a atitude da inteligência humana não é a de um artesão que fabrica o mundo, o homo faber, mas a de um contemplativo, o homo sapiens. O conhecimento é extático porque nos coloca literalmente fora de nós mesmos, e nos torna capazes de abarcar e nos converter no outro, sem deixar de ser nós mesmos. A filosofia, ciência contemplativa do mundo criado, chega a seu ponto culminante com a contemplação do Incriado, a teologia natural. Como nos recordam as Sagradas Escrituras:

«As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis desde a criação do mundo pelo conhecimento que delas nos dão suas criaturas»3. «Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento proclama as obras de suas mãos»4.

Aristóteles prova a existência de Deus pelo estudo do movimento e pela ordem que há na natureza5. Chama Deus de ser vivo, eterno e perfeito, porque n’Ele está a vida eterna. Deus é o Ato puro, a Inteligência pura que se contempla a si mesma. O Filósofo conclui sua Metafísica dizendo que Deus é uno, porque a multiplicidade de superiores não é boa: é necessário que um só governe. Aristóteles demonstra, assim, que o espírito humano, em boa lógica, só pode escolher Deus ou o absurdo. E todos os esforços dos maus filósofos e dos modernistas para negar o além não fazem senão reforçar essa tese, pois sempre naufragam na mais lamentável contradição.

3. Os negadores do ser e da verdade

Atenas era, no século V antes de Cristo, o ponto de encontro intelectual de todas as escolas filosóficas, mas a confrontação entre elas revelou amargamente suas limitações e contradições. Foi nesse contexto que apareceu então a espécie tão desonesta quanto improdutiva dos sofistas, a quem seria melhor chamar soficidas — assassinos da sabedoria. Eram professores ambulantes, mais ávidos dos benefícios da ciência que da verdade que desesperavam alcançar. Praticavam atos de ilusionismo intelectual. Incapazes de realizar algo construtivo, dedicaram-se a criticar todas as coisas. Para esses homens, da mesma forma que para as crianças, a destruição era o modo mais fácil de demonstrar sua força. Dois aspectos da escola sofista devem prender nossa atenção: o agnosticismo - como aspecto negativo - e o imanentismo - como substituto positivo. Veremos, na sequência, o sistema de Heráclito, embora tenha precedido historicamente os sofistas.

Górgias é o melhor representante do aspecto ignorantista dos sofistas: a negação da verdade. Tornou-se célebre por sua tríplice declaração:

«Nada é real. E ainda que algo existisse, não poderíamos conhecê-lo, pois o objeto muda, enquanto que o pensamento permanece. E mesmo que pudéssemos conhecer o ser, este conhecimento seria incomunicável, porque o pensamento permanece, enquanto que a palavra é fugaz»6.

A este suicídio intelectual, Sócrates respondeu com o otimismo da inteligência. Assim se fez porta-voz do senso comum, um sentido inato e idêntico em todos os homens. Negue a existência da luz e todo o mundo zombará de você! Ora, este mesmo senso comum protesta a favor do realismo dos nossos conhecimentos.

Entre os sofistas, Protágoras representa a corrente subjetiva ou egologista.

«A verdade depende do parecer de cada pessoa, de modo que um mesmo objeto pode ser branco para um e negro para outro. Há dois discursos para cada coisa, contraditórios entre si. O homem é a medida e a razão de todas as coisas: das que existem, faz que elas existam; e das que não existem, faz que elas não existam»7.

Aristóteles lhe respondeu indiretamente ao dirigir-se aos pitagóricos, não sem certa pitada de humor:

«Quando as coisas não concordavam com seus números, eles as corrigiam, ajudando, deste modo, Deus a construir o mundo»8.

Todas estas pessoas partem unicamente do pensamento e nele permanecem. Desde o princípio, combatem os fatos concretos que dão estabilidade e consistência ao pensamento, e, sem os quais, ele nada mais é que um sonho. Estes subjetivistas, idealistas e imanentistas, seja qual for o nome que se lhes dê, negam o fundamento essencial do conhecimento. Rejeitam a realidade que os sentidos veem, tocam e percebem, e que se dirige a uma inteligência humana, não a um anjo. São investigadores que nada investigam. Estes homens, vítimas das suas alucinações fantásticas, estendem freneticamente as mãos para, em vão, pegar o objeto das suas quimeras. Não são filósofos, mas ideósofos, estudantes do pensamento e das ideias, e não homens desejosos de conhecer o que é.

De todos os seus predecessores, nenhum sofreu tanto os ataques de Aristóteles como Heráclito (540-475). Isto se deu porque seu sistema era o contrário do realismo aristotélico. Ao afirmar o ser das coisas e sua natureza, Aristóteles pretende poder conhecê-las. A inteligência pode conhecer as coisas porque elas são. Heráclito nega o ser, e, por isso mesmo, nega também a faculdade do ser, que é a inteligência. Em sua disputa com Parmênides sobre a mudança, ele faz sua escolha entre o ser e o devir. Segundo ele, se o ser é admitido, a mudança é impossível; ora, a mudança existe:

«Tudo muda, tudo se move, nada se detém. O universo é como um rio. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. O fogo é o elemento onipresente e a causa de toda mudança. É a contradição mesma, porque o que é, enquanto é, não é. O fogo é algo vivo e divino, o princípio supremo, mas ao mesmo tempo impessoal e imanente no mundo. É a identidade entre Deus e o mundo. A própria alma humana, faísca procedente da grande fogueira universal, ao fim voltará a ela, dotada de uma imortalidade impessoal».

Faz, também outra comparação para explicar a mudança:

«A guerra é a causa de todas as coisas. Descemos e não descemos o mesmo rio; somos e não somos; a água do mar é, ao mesmo tempo, a mais pura e a mais contaminada; o bem e o mal são uma única e mesma coisa. Tudo se separa e tudo se une: o mesmo ser vivo está morto, o animal vive da morte da planta»9.

Estas palavras têm um tom mais que marcial, talvez quase marxista, mas certamente modernista e destruidor da inteligência e do ser. A guerra heracliteana, fonte da contradição e do caos universal em perpétua evolução, só pode gerar a destruição.

Em sua defesa do princípio de não contradição, Aristóteles não se expressa com rodeios:

«É impossível que a mesma coisa tenha e não tenha o mesmo ser. Pouco importa o que Heráclito, como alguns pretendem, tenha opinado sobre o tema, porque não é necessário que se pense o que se afirma»10.

Aristóteles explica que o erro de Heráclito foi negar as essências, que são o sujeito imprescritível da mudança. Negou as essências porque confundiu sentido e razão, ver e saber; porque seus olhos só foram capazes de ver as coisas sensíveis em perpétuo movimento. Como se os dados dos sentidos fossem suficientes para proporcionar o verdadeiro saber! Os sentidos, com efeito, percebem a trajetória de uma bola no ar, mas não que a bola continua sendo idêntica a si mesma. O dedo submergido na água que está sendo aquecida sente o frio e o calor, sem perceber que a água que se esquenta é a mesma. O mundo de Heráclito é uma pura mudança, um voo de pássaro sem pássaro, uma corrida sem corredor, um crescimento sem o ser que cresce. Teria ele percebido que, da mesma forma que aquele animal lendário da Idade Média que comia seus próprios pés, seu sistema de pura mudança acaba por destruir o próprio movimento? Ao reduzir a inteligência humana ao conhecimento sensível próprio dos animais, Heráclito é levado a reduzir o mundo visível ao puro movimento, quer dizer, ao nada.

*
*    *

Desde os primórdios do esforço filosófico, alguns espíritos se desencaminharam, embriagados pela fugacidade das coisas e pelos vapores opacos do mundo sensível, que oculta o mundo inteligível. O pensador Marcel de Corte julga com dureza estes intelecticidas:

«A maioria dos nossos contemporâneos que romperam deliberadamente com o real e com sua própria realidade são adolescentes tardios que não puderam resolver psicologicamente sua crise da puberdade. Por isso, estes efebos perpétuos veem-se obrigados a construir um mundo de quimeras… Na ordem intelectual e moral, não suportam a realidade, porque sua débil inteligência não pode perfurar sua cabeça dura e tenaz. Por isso a negam. Querem aniquilá-la, porque sua simples presença manifesta sua fraqueza. Um ato de humildade diante dela, uma confissão de seu mistério, seria, ao menos, um reconhecimento de sua existência. O adolescente tardio nega-se a isso: já não pode sequer, seja qual for sua idade, sair de seu eu em que o aprisiona a crise permanente que sofre. Seu narcisismo constitucional também o obriga a satisfazer-se com as representações mentais saídas de sua própria substância, e então ele impõe o modelo a todas as coisas para criar um mundo acessível e não acede, nem nunca acederá, senão a ele. Ele constrói esse mundo mundo, esse homem novo, esa sociedade nova, porque ele adora a si mesmo.” 11.

Ao fazer um diagnóstico tão severo da inteligência moderna em perigo de morte, o autor nos dá a chave da tragédia modernista: a negação do ser, a negação do outro e, portanto, a negação do Outro que é o Ser por excelência, o único que pode fazer-nos viver, porque é a Vida. O homem, ao enclausurar-se sobre si mesmo por amor próprio, condena-se à morte, pois, sendo uma pobre criatura, por si mesmo nada é. E ao amar-se e fechar-se sobre si mesmo, envenena-se e morre de inanição. Sufoca o germe da vida intelectual e moral que só pode alcançar seu pleno desenvolvimento abrindo-se ao ser e à fonte de vida. É exatamente o que sugerem as palavras evangélicas, em uma ordem de valor muito mais sublime:

«Aquele que amar sua vida, perdê-la-á; mas aquele que perde sua vida por Mim, a salvará»12.

(Cem Anos de Modernismo, cap. 1. Tradução: Ricardo Bellei)

  1. 1. «To be or not to be, that is the question».
  2. 2. Albert Einstein, «Sobre a teoria generalizada da gravidade», em Ideas and Opinions, Crown, Nova York, 1954, p. 342.
  3. 3. Rom 1, 20.
  4. 4. Sl 18, 2.
  5. 5. Física, VIII, 5-6. A partir do movimento de uma gota de água no mar, Aristóteles deduz a existência de um motor imóvel, posto que tudo o que se move é movido por outro, e a série de motores movidos não pode ser infinita, uma vez que  «é necessário deter-se». Não há outras duas palavras (gregas) que tenham tido tanta influência na história da filosofía.
  6. 6. Thonnard, Précis d’histoire de la philosophie, Desclée, 1937, pp. 30-31.
  7. 7. Ibidem, p. 30.
  8. 8. Metafísica, I, 5.
  9. 9. Thonnard, op. cit., pp. 13-14.
  10. 10. Metafísica, IV, cap. 3.
  11. 11. Marcel de Corte, L’intelligence en péril de mort, pp. 267-268.
  12. 12. Mt 16, 25.

A imortalidade

Gustavo Corção

 

A imortalidade de que se fala nas academias, ou nos comentários tecidos em torno de um grande morto, como acontece agora com Hemingway, é aquela que Augusto Comte chamava de imortalidade subjetiva, e que consiste na sobrevivência, não da pessoa, mas das obras e dos passos. Essa imortalidade comporta graus, conforme seja maior ou menor o rumor que o finado tenha feito em torno de si. Há nomes sonoros que ficam na lembrança dos povos por séculos e séculos, enquanto outras vidas mais leves, mais silenciosas e cinzentas logo se apagam, às vezes no próprio mundo familiar. Lembra-me aqui um amigo que morreu deixando um magro legado de ressonâncias. Tão obscuro, tão pouco conseqüente fora que até um dia aconteceu-me, encontrando a viúva, abrir a boca para perguntar notícias do Belmiro, já morto, mais morto do que um prego de caixão de defunto como dizia Dickens. Calei-me a tempo quando recapitulei rapidamente a história póstuma do amigo. Deixara filhos e viúva, mas por uma ironia da sorte a viúva recebeu uma herança, empregou-se num desses cargos em que se ganha muito e pouco se faz, como tantos há nesta República, e assim a família conheceu melhor padrão nos dias de luto. Um ano depois a viúva namorava um guapo peruano que acabou de apagar na memória de todos a lembrança fugaz do pobre Belmiro. Lembro-me de um pormenor curioso da história do apagamento do Belmiro: um dia, trazendo os filhos para o colégio, de automóvel, entrou de mau jeito, como aliás freqüentemente o fazia, e tirou um pedaço, um pequeno pedaço do pilar do portão. Ficou aquela marca discreta, de que, ao cabo de algum tempo, suponho, só eu conhecia a causa. E sempre que passava por ali, e que via o arranhão na alvenaria, evocava a figura de Belmiro. Um dia, veio um pedreiro, recompôs o pilar, e com essa pá de cal desapareceu o último vestígio interessante de uma vida vivida meio século.

Creio que a ninguém escapa o ridículo que sempre acompanha esta tal imortalidade subjetiva, mesmo quando a figura imortalizada é imponente e o traço deixado na casca do planeta é um pouco maior do que um risco na cal. Ainda outro dia estive a ruminar meditações deste tipo diante de uma estátua que o escultor concebera e realizara em atitude oratória e que, exposta ao aguaceiro, tinha um aspecto lamentável.

Entretanto, apesar dessa carga de ridículo, a humanidade se obstina em guardar as lembranças dos mortos, e nós mesmos, se nos sondarmos com lealdade, descobriremos um esquisito desejo de sobrevivência na memória dos outros. De que nos vale isto? De que me vale meu nome pronunciado aqui ou acolá, com tais ou quais atributos, se eu não estou aqui ou acolá, pessoalmente, sobrevivente?

O fato é que apesar dessa pobreza de significação pessoal, desse caráter acidental, a sobrevivência pelas obras corresponde a um profundo desejo de nosso ser. Ninguém quer passar a vida em branca nuvem. Ninguém quer morrer como o poeta disse que morrem os pássaros. Mas a verdade é que é esse instinto de sobrevivência, digamos horizontal, que nos impede a visão da outra imortalidade, a vertical, a que tem dimensões de eternidade e não dimensões de história, à qual também corresponde um grande anseio de nossa alma, que tem horror à morte, à idéia do aniquilamento da pessoa, e que se insurge em cada caso, diante de cada defunto, como se estivesse vendo um espetáculo de espantosa raridade. O caso é que a alma humana tem profundidades de inconsciência em dois sentidos. Diria até dois hemisférios, um voltado para a terra e outro voltado para o céu. Num desses hemisférios a idéia de imortalidade da alma brilha como uma estrela; no outro, entretanto, levantam-se obstáculos erguidos pelas exigências da sensibilidade. É por isso que nos parece fria e distante a consideração filosófica em torno do asssunto. Disse Edgar Poe que não custou muito a ver que jamais se convenceria de sua própria imortalidade se tivesse de acei­tar as demonstrações filosóficas. Pagando o seu tributo ao empirismo triunfante na atmosfera cultural de seu tempo, Edgar Poe diz brutalmente: «... he (the man) will never be so convinced by the mere abstractions which have been so long the fashion of the moralists of England, of France, and of Germany».

Que quer isto dizer? Será assim tão inoperante, tão pouco convincente a demonstração filosófica? Será a razão tão pobre ou tão fria diante da vida? Na verdade, estamos diante de um problema típico, ou melhor de um tratamento típico dado a um problema espiritual pelo empirismo, podendo ser este da espiritualidade e decorrente imortalidade da alma, ou o da existência de Deus. Quando alguém diz categoricamente que as demonstrações filosóficas não convencem intelectualmente, ele quer dizer que tais demonstrações não satisfazem à sensibilidade. Quer dizer que não sacia a fome, não apazigua o sexo, não tranqüiliza os nervos, não atende em suma a exigências que vêm de todo o dinamismo da sensibilidade. Seria pueril zombar de tais exigências e fazer parada de espiritualidade alambicada e inteiramente despreendida daqueles laços. Mas também é pueril pedir à inteligência um tipo de alimento que não lhe compete preparar. É claro, claríssimo, que ninguém se lembrará de ler uma página filosófica para o pai que chora diante do cadáver do filho. Mas também é claro que nesta mesma hora o pobre pai não entenderia uma demonstração de geometria. Será defeito da geometria? Ou será mais fácil pensar que a situação emocional, sensibilizada, responde pela mo­mentânea incapacidade?

A filosofia é mais difícil do que todas as geometrias juntas, e para se tornar operante e convincente numa alma é preciso que essa alma trabalhe longamente para se desobstruir do empirismo. Assim, a idéia de imortalidade da alma, que vale a pena ser desempatada, tem de ser apresentada ao espírito muito antes da emoção, da perturbação, para que na hora oportuna ela tenha algum valor vital.

Vale à pena desempatar esse problema, e procurar entrever, através de nossos obstáculos, as novas dimensões da eternidade. A imortalidade verdadeira, pessoal, essencial, não se distribui pelas pessoas em graus proporcionados ao sucesso da vida. É ao contrário um atributo da alma espiritual, e portanto um denominador comum de toda a humanidade. E se assim é, segue-se que a sorte do homem, referida aos eixos da eternidade, deveria dominar todas as cogitações da vida terrena, e não estar relegada à categoria de assunto que serve para consolo nas câmaras ardentes e logo em seguida é esquecido. Vale à pena desempatar este pro­blema que nada tem de relativo. Ou somos dotados de alma espiritual ou não somos. Ou somos criaturas com vocação de eternidade, ou não somos. Uma das mais inacreditáveis contradições da condição humana é justamente a do pouco caso com que tratamos as coisas mais relevantes; mas ainda mais espantosa atitude é a daquele que se alegra com a divisão de opiniões em todos os assuntos, inclusive nesses de máxima relevância. E ainda mais incompreensível, nessa progressão geométrica de disparates, é o fato de passar por muito inteligente quem relativiza todas as categorias intelectuais e alegremente desiste de pensar.

Vale à pena tirar a limpo o x da sorte do homem; mas para isto temos de seguir um caminho inteiramente diverso do experimentalismo procurado por Edgar Poe, no conto de onde tiramos a passagem acima transcrita. O caminho da descoberta dos valores de eternidade é o da purificação e o da ascensão da inteligência e da vontade espiritual, e até o da renúncia de qualquer perpetuidade na memória do mundo. Na mente do santo, o mais vertical dos homens, tudo se refere à vida eterna que por sua vez se refere a Deus. Nós outros, por nossos pecados, por nossa gulodice de instantes de vida, pela impureza de nossos critérios, temos apenas lampejos, e às vezes nem a isso damos uma pequena parte de nossa atenção.

(Diário de Notícias 16/7/1961)

A escolástica e Santo Tomás

Louis Jugnet

 

Não esperem encontrar aqui uma história, ainda que sumária, da filosofia medieval, tão bem estudada por especialistas como Gilson e Maurice de Wulf. Antes do mais, já que nosso objetivo não é fazer obra histórica, mas mormente apreender o significado essencial e o valor perene do pensamento tomista, não usamos de contingências cronológicas. Além disso, falta muito para que pensamento medieval seja sinônimo de tomismo, mesmo de escolástica. No presente capítulo, simplesmente propomos dissipar as confusões assaz propagadas, dando idéia geral, por sua vez sumária e precisa, do nascimento do tomismo. Eis porque diremos somente o estrito necessário dos sistemas que o precederam, e nada dos que se seguiram a ele (scotismo, occamisno etc).

Primeiramente, digamos que o tomismo e a escolástica não são de forma alguma sinônimos. Sem dúvida, a nossos olhos, o tomismo representa a encarnação mais pura e a única forma realmente válida do pensamento escolástico. Mas, enfim, há além dele outras correntes que são parte autêntica da Escola (agostinismo, franciscanos, scotismo, suarismo). As relações entre tomismo e escolástica são as da parte com o todo, se tomarmos a questão dum plano puramente descritivo e histórico.

Demais, o tomismo não é – não mais que os outros sistemas escolásticos – “a filosofia da Idade Média”, e isso por dois motivos: primeiro, porque na Idade Média, a escolástica, apesar de sua proeminência no ambiente ocidental, sempre tivera de combater sistemas opostos em espírito e conteúdo, gozando em face do pensamento medieval a mesma relação de parte e todo de que o tomismo gozava em face dos demais sistemas escoláticos; ainda, porque o tomismo (como de resto o scotismo ou o suarismo, contudo mais fortemente que esses) ultrapassou em duração a Idade Média, encarnando-se em grandes nomes e obras influentes dos séculos XVI e XVII [...]. Só ignorantes consideram a cultura medieval um como bloco monolítico e jugulado num conformismo marcial, suprimindo-lhe as profundas diversidades. A Idade Média, a despeito das seitas não-cristãs, judias ou muçulmanas – cuja vitalidade filosófica e teológica foi grande, e cuja influência dá-se até em ambiente cristão -, conheceu formas doutrinais tais como o panteísmo, o dualismo de tipo maniqueu, até mesmo o materialismo. Se observamos de perto, a coisa é impressionante. Descobre-se que, em pleno século XIV, mais exatamente em 1351, um teólogo foi declarado niilista, numa disputa pública em vistas ao doutorado... Isso sem falar dos místicos ortodoxos – por vezes cautelosos em face da especulação escolática – , dos espíritos de compleição científica, como Rogério Bacônio, cientista e erudito, ou dos doutores da Universidade de Paris, cujos trabalhos em mecânica prepararam as descobertas da Renascença.

Demoraria nomear os fomentadores que contribuíram para a formação da escolástica, tomada em conjunto. Já os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos dos primeiros séculos tentaram, às vezes com algum sucesso e real riqueza de pensamento, utilizar os recursos da filosofia antiga para repudiar as objeções dos pagãos e heréticos. Todavia, as tentativas eram mais das vezes fragmentárias, ou adstritas às preocupações apologéticas específicas, o que os impediam de construir um verdadeiro sistema do mundo, e sobretudo de reconhecer à filosofia a especificidade que lhe convinha. As grandes invasões e o fim do Império Romano foram uma catástrofe para a cultura profana e religiosa. No entanto, lentamente começa ela a emergir durante a Alta Idade Média, marcando o início da escolástica. De meados do século VIII a meados do XI, a escolástica toma forma. Do século XI ao XIII, organiza-se. No século XIII, conhece sua idade de ouro. O que vem depois é lento declínio. Vejamos mais de perto.

No final do século VIII, graças a Carlos Magno, o ensino se organiza, amparado pela fundação de escolas, dentre as quais convém fazer especial menção à Escola Palatina, em Aix-la-Chapelle. Recordemos o nome de Alcuíno, graças a quem foram possíveis grandes feitos. Além das escolas palacianas, multiplicaram-se as escolas monacais e episcopais: Corbie, Reims, Auxerre, Cluny etc, em França, daí o nome escolástica (schola). Aí comentam os textos, ou melhor, o que conheciam [dos textos] de Aristóteles (pouquíssimos escritos, dentre os quais os escritos lógicos) e das fontes neoplatônicas, em particular. Ensinavam as artes liberais (trivium et quadrivium), que englobavam o conjunto da cultura profana (sem prejuízo dos estudos propriamente religiosos sobre a Escritura, os Padres etc.). A filosofia e a teologia estão em estado de completa indistinção, mas as controvérsias religiosas (sobre a Trindade, a presença real na Eucaristia etc.) obrigam os mestres a aprofundar as noções metafísicas fundamentais (substância, natureza, pessoa etc.). Citemos Rabano Mauro, Fredegiso e João Escoto Erígena dentre os primeiros “escolásticos”: o último professa uma doutrina de inspiração neoplatônica que mal consegue esquivar-se – apesar de sua intenção e protestos – da acusação de panteísmo, tomando, de fato, lugar entre os sistemas anti-escolásticos de que falamos acima.

Além do mais, este é o período dos sistemas, em que se toma consciência dos problemas filosóficos de modo mais distinto e explícito, com a célebre querela dos universais (longe de morrer em seu começo, esse problema contém um dos pontos fundamentais de toda a filosofia: a natureza e o valor do conceito, ou idéia geral, a qual interessa à teoria do conhecimento).

Pedro Lombardo (que morreu no século XII) compôs uma espécie de suma, o Livro das Sentenças, forma continuada por outras obras além da sua, consistindo numa espécie de síntese do saber, de enciclopédia cristã, com o enunciado das razões pró e contra, e tentativa de solução. Não devemos esquecê-lo, não tanto por causa da qualidade (menor) da sua obra, mas pela importância da forma empregada – que fará fortuna na grande escolástica; tal veículo fora munido dalgumascorreções na [forma de] apresentação, graças, notadamente, a Alexandre de Hales (morto no séc. XIII), que foi um precursor de São Tomás, valorizando a apresentação silogística mais rigorosa.

Ei-nos no século XIII, século de ouro do pensamento escolástico, uma século notável para a humanidade. Por vezes, o pitoresco bizarro da Idade Média, a rudeza (voluntária, enquanto nossas crueldades são hipócritas e clandestinas) dos costumes, geralmente a torna incompreensível ao homem moderno médio, para quem civilização quer dizer transporte rápido, máquinas colossais, cinema 24 horas e reportagens radiodifundidas (o homem viria a suicidar-se com a bomba atômica, ou soçobrar no cretinismo intelectual à ausência de perspectivas ajuizadas a respeito do sentido de seu destino). Contudo, nada mais justo que a admirável fórmula do Sr. Gustavo Cohen: “as trevas da Idade Média só existem na alma dos que assim o crêem”. Um século que conheceu a monarquia simples e popular, não tão distante e hierárquica como a do século XVII, que viu lado a lado São Luís e São Tomás, que deu origem à Santa Capela e à Divina Comédia deveria estar ao abrigo dos sarcasmos ininteligíveis de que o cobrem as gentes que não lhe alcançaram à medula – i.é, os humanistas (eruditos e ocos) do século XVI e os “filósofos” do século XVIII, cheios de desprezo pelas “idades góticas”...

De que forma pôde se dar o nascimento dum pensamento tão amplo e sistemático? Às qualidades individuais de tal ou qual personagem, convém acrescer as condições históricas bem delineadas. As três principais dentre elas são: as aquisições de traduções e de várias fontes; o aparecimento das grandes universidades; a criação das Ordens Mendicantes. Algumas precisões se impõem aqui: em 1200 exatamente, Felipe Augusto reuniu numa universidade as várias escolas de Paris, fazendo-se o mesmo em Tolouse, Montpellier e outras mais, tais como Oxford e Cambridge, Salamanca e Bolonha – contudo Paris lhes supera, com seus milhares de estudantes (teria até 30.000 alunos, vindos de todo lugar), com suas “nações”, suas faculdades (Teologia e Artes, sobretudo filosofia; após, Medicina e Direito). Os professores e “leitores” (comentavam) constantemente, com grande independência, os textos fixados para o uso (obras de Aristóteles, Boécio etc.); junto a isso, acontecia variados gêneros de “disputa” – ou discussão – em que se poderia formular livremente as dificuldades percebidas...

Provavelmente, tais métodos de ensino - justificados, entre outras razões, pela penúria de textos que obrigavam o mestre e o discípulo a afiar a inteligência e desenvolver a memória – ocasionaram o nascimento da lenda tola da Idade Média jugulada sob o método da autoridade (do qual sozinho nos libertara Descartes), reproduzida piamente, quase que por obrigação, por qualquer manual de história da literatura, para a edificação dos alunos do médio e do fundamental. Realmente, nisso há um considerável contra-senso, que é importante denunciar: em primeiro lugar, confundem a teologia (que depende eminentemente em suas bases da autoridade da Escritura, da Tradição e da Igreja: Pascal, inimigo da escolástica, repisou esse ponto) e a filosofia propriamente dita; projetam sobre a filosofia escolástica a verdade da teologia católica (medieval ou moderna, tanto faz) enquanto tal. Em seguida, obnubilam os procedimentos pedagógicos, esquecendo seu sentido e necessidade naquelas condições históricas determinadas e também, como veremos, esquecendo a liberdade com que os escolásticos se valiam dos luminares em relação aos textos “lidos”: as “autoridades”, ou textos veneráveis alegados em favor duma tese, serviam como contraponto. Os grandes escolásticos (é deles que se trata, e não dos epígonos) nunca pensaram nem afirmaram que era mister aceitar de olhos fechados uma afirmação em matéria profana, baseados na autoridade de Aristóteles ou qualquer outro. Disseram mesmo o contrário. Deste modo, Santo Alberto Magno (Alberto de Colônia), o mestre de São Tomás, de quem falaremos mais adiante, não hesita em dizer sem pejos: “Aqui, enganou-se Aristóteles (hic erravit Aristóteles): sua opinião não repousa sobre fundamento razoável”. São Tomás é ainda mais direto, porque escreve sem rodeios, na Suma Teológica, 1ª parte, q. I. a. 8 ad 2m: “O argumento de autoridade que se funda sobre a razão humana (= autoridade humana) é o mais fraco dos argumentos”. Comentando o Tratado do Céu e do Mundo de Aristóteles, I lect. 22: “O estudo da filosofia não consiste em saber o que pensaram os homens, mas o que é realmente verdade”. Ficou claro? Mas a lenda ainda vigora...

Precisamente, quais foram os textos que renovaram o legado das Universidades? Os cruzados estabeleceram um contato, de início rude mas concreto, entre oriente e ocidente. Após a fundação do Império Latino de Constantinopla, em 1204, reaproximaram-se os gregos e os latinos. No final do séc. XII, a perseguição espanhola causou o refluxo de importantíssimas obras árabes e judias para França e Espanha. As traduções arábico-latinas e greco-latinas divulgaram os filósofos gregos e seus comentadores mouros. As primeiras, supondo-se a transposição dos textos através de várias línguas, são pouco fiéis, mas as que vieram depois são mais confiáveis. Além das obras de Alfarabi, Alkindus, Avicena e Averróis, tomar-se-á conhecimento direto dalguns textos até então desconhecidos, graças a inestimáveis helenistas como Guilherme de Moerbeke, cuja tradução de Aristóteles São Tomás (que lia grego) utilizará. É falso então dizer que a Idade Média – em bloco – “não sabia grego”. Mesmo não sendo filósofo ao estilo dos alemães do séc. XIX, ele conheceu Aristóteles com fidelidade maior do que se acredita.

Essa obra só foi possível com a criação das grandes Ordens Mendicantes – Franciscanos e Dominicanos. Durante o primeiro quartel do séc. XIII, os seculares defendem energicamente seu monopólio nas universidades. Mas em 1229 e 1231, na seqüência de incidentes diversos, alguns com certo toque de pitoresco (notadamente, um movimento paredista de mestres artífices), os dominicanos conseguiram se estabelecer, assim como os franciscanos. Ocupando no começo só uma cátedra, conseguiram os regulares, com o apoio dos Papas, estenderem sua influência, e lograr a derrota dalguns de seus inimigos mais encarniçados... O exemplo estimula outras ordens (Cisterciences, Agostinianos e os Carmelitas) a imitá-los. É justamente dessas duas ordens mendicantes admiráveis que sairão na prática todos os grandes doutores escolásticos.

Explicam as características fundamentais da escolástica a identidade dos pioneiros, o meio de origem e o conhecimento das fontes, que a partir de agora tentaremos enumerar antes de ir adiante. Não falemos do gosto pela síntese e coerência, que ela elevou ao cume, mas que se manifesta através da história em outras correntes de pensamento, trate-se do próprio Aristóteles ou da filosofia de Hamelin, por exemplo. Antes do mais, insistamos acerca da fonte de acordo entre razão e fé, entre filosofia e Revelação, que jaz na origem dos sistemas escolásticos. [...] Os escolásticos não tinham pontos de vista concordes no detalhe (uns davam primazia à fé, outros à filosofia), mas estavam absolutamente de acordo nos princípios; isso é muito importante, porque tal perspectiva metodológica distancia-os tanto dos pensadores antigos, que ignoravam a fé, quando dos modernos que, em sua maioria, combatiam-na ou, caso a conservassem, separavam-na de sua atividade filosófica e científica num “compartimento hermético”, com algumas exceções.

Ainda, é notável entre os escolásticos da era de ouro o respeito à razão espontânea ou natural, o caráter como que autêntico, fundante, das construções (e nisto aqui eram helênicos, mais particularmente aristotélicos): realismo, dogmatismo, confiança madura nos sentidos e na razão. [...]

Por isso, não era uma filosofia puramente espiritualista (mereceriam tal nome Descartes ou Malebranche), mas estava centrada nalgumas noções que, embora recebessem dos diversos sistema escolásticos interpretações diversas e por vezes inconciliáveis, constituem uma sorte de patrimônio comum (ato e potência, matéria e forma, essência e existência etc.) que tem por origem também a filosofia grega.

O pensamento escolástico possui uma fisionomia geral. Cabe-nos agora contemplar a forma tomada por ela em São Tomás.

A crescente influência das obras de Aristóteles, favorecida pelas traduções de que acima falamos, suscitou diversas reações: nalguns, verdadeiro entusiasmo; noutros, oposição feroz. Outros enfim (é o caso de Santo Alberto Magno e São Tomás) quiseram separar o que era aceitável no Estagirita do que um cristão deveria rejeitar. A luta fora longa e confusa. Continuou [...] até depois a morte de São Tomás.

Muitas traduções de Aristóteles, como vimos, faziam-se a partir do texto árabe. Eram freqüentes glosas inquietantes (de inspiração panteísta etc..) se infiltrarem no texto original. Obras de fato neoplatônicas se atribuíam a Aristóteles. Compreende-se porque a autoridade eclesiástica, colocando-se ao lado da prudência e da salvação das almas, em detrimento da ciência profana, começara a obstruir a difusão do aristotelismo então falsificado. Todavia, tal interdição disciplinar, cujo alvo principal era Paris, deixava a Toulose certa liberdade, e além disso os doutores ortodoxos, licenciados para combater a nova doutrina, haviam de estudar as obras do Filósofo para arrostar com proveito as doutrinas perniciosas. Por isso, numa censura decretada uns vinte anos mais tarde (1231), Gregório IX estipula claramente que a condenação é válida até que a obra atribuída a Aristóteles estivesse passada a limpo e desimpedida de erros, nomeando para tanto uma comissão de teólogos. Ademais, a física e a metafísica de Aristóteles difundiam-se em todo lugar; dois decretos posteriores resultaram sem efeito. No séc. X, a Igreja obriga os candidatos de licenciatura ao estrito dever de estudar Aristóteles. Esse conflito histórico repousava de fato sobre um mal-entendido, sobre apresentações ou interpretações mui posteriores à obra do Filósofo. Em seus princípios fundamentais, a filosofia do Estagirita era perfeitamente conciliável com os pressupostos judaico-cristãos, e foi São Tomás, precedido de Santo Alberto Magno, que tiveram a honra de demonstrá-lo. Por conseqüência, não há comparação entre esse caso e a oposição da Igreja, na época moderna, contra a “falsa philosophia” relativista, idealista, subjetiva, que natural e necessariamente arruína os fundamentos da fé e da ortodoxia, e cuja condenação é portanto irrevogável.

Alberto Magno é um gênio admirável, que explorou com veras a obra de Aristóteles, e tinha clara inclinação para as ciências experimentais. Contudo, sua coerência sistemática não é das maiores, por vezes justapondo, ao sabor dos comentários e das ocasiões, visões aristotélicas, neoplatônicas e agostinianas. Por seu turno, o pensamento de São Tomás, embora não desdenhe o platonismo [...], é muito mais coerente, no que era devedor de Aristóteles. Nisso opõe-se ao que se denomina algumas vezes de antiga escolástica agostiniana, que não obstante ainda goza de prestígio na ordem franciscana, por causa dalgumas idéias mestras, cujos pontos fundamentais são a orientação mística, o relativo racionalismo em sua teoria do conhecimento (pondo o mundo sensível e o conhecimento sensível em segundo plano), além das teses bem peculiares acerca da pluralidade das formas substanciais no ser corpóreo [...]; eram representantes dessa escola Alexandre de Hales e o admirável pensador São Boaventura, doutor franciscano contemporâneo a São Tomás. O Doutor Angélico teve de defender a metafísica aristotélica contra a corrente agostiniana e contra os sectários servis e heterodoxos de Aristóteles, como Sigério de Brabante. Este último, com as idéias embebidas em Averróis, chegou a conclusões inaceitáveis à ortodoxia cristã, como a unidade do intelecto em todos os homens (monismo) e a eternidade do mundo, sem mencionar as doutrinas que reduziam a liberdade humana a nada. A bem dizer, não professava a teoria das duas verdades [...], mas lhes sustentava os princípios. Mau-grado a boa vontade em atenuar o que havia de inaceitável no sistema, em seus últimos anos de vida, o pensamento de Sigério ainda se conservava mui distante do aristotelismo tomista. Isso não impediu os renhidos e “veteres” adversários do pensamento de São Tomás de incluir as teses tomistas numa condenação que Etienne Tempier, bispo de Paris, formulou contra os erros averroistas. Manobra inútil, pois não impediu a Igreja de testemunhar em favor do tomismo um crescente apreço, jamais desmentido [...].

Situamos [a obra de] São Tomás. [...] Convém-nos agora, antes de encerrar o capítulo, dar algumas indicações biográficas sobre nosso autor e construir sua personagem psicológica.

Tomás de Aquino nasceu a 7 de março de 1225, em Roca Secca, no reino de Nápoles. Era de família nobre, parente de Frederico Barbarroxa. Os ancestrais maternos remontavam a chefes normandos. Seu pai, o conde Landolfo, o confiou desde os cinco anos de idade aos beneditinos de Monte Cassino, levando-o para casa somente nove anos mais tarde, depois de já muito ler e estudar latim nos escritos dos mais eminentes Padres (sobretudo, Santo Agostinho). Após o imperador expulsar os monges de Monte Cassino, a criança retornara ao lar e partira (1239) para a Universidade de Nápoles, cuja vitalidade intelectual e informativa era digna de elogio. Em 1224, atingida a maioridade, decide ingressar na Ordem de São Domingos, seduzido pelo pensamento e atividade dos irmãos pregadores. Essa decisão privava sua família da abadia de Monte Cassino, mas pessoas tomadas daquilo que Pascal denomina a primeira ordem das grandezas (grandezas carnais) não compreendiam muito bem tal atitude. O superior geral da ordem dominicana decidiu enviar Tomás a Paris, para poupá-lo de pressões sobre sua vontade, mas seus irmãos o capturaram no caminho e, mui sordidamente, tentaram corrompê-lo com uma sedutora cortesã, mas depois que o jovem a perseguira com um tição, aquela nada mais intentou. Retido cerca de um ano, lograra abandonar os tiranos familiares e chegar a Paris (1245). No convento de São Tiago, tornou-se aluno de Alberto Magno, mestre com justiça reputadíssimo. Pouco loquaz, taciturno, aos estudantes petulantes parecia que se acercavam dum parvalhão, dum “boi mudo da Sicília”, digno de compaixão e ironia. Não se deixou levar pelas aparências Alberto Magno, e lhe predissera fulgurante carreira de doutor. Em 1248, Tomás seguiu Alberto para Colônia como professor assistente; retorna a Paris em 1252, e é admitido como mestre em Teologia em 1256 (os estudos teológicos eram longos e minuciosos, joeirando o aluno a partir de temas escolhidos). Durante três anos, ensinou na universidade mais admirável da Europa; retornou à Itália para ensinar em Anagni, de 1256 a 1261. Depois, enquanto acompanhava a corte romana em trânsito, ensinou em Orvieto, Roma e Viterbo. Em 1269, volta a Paris, então em plena efervescência doutrinal, e luta por sua vez contra os averroístas e os arcaizantes agostinianos. Em 1272, retorna novamente à Itália para ensinar em Roma e Nápoles até o final de 1273, já que, sob as ordens de Gregório X, segue caminho para se juntar ao Concílio Geral de Lyon. É neste momento que adoece e morre, curiosamente em março (nascera ele em 7 de março), no monastério de Fossanova, assistido pelos cisterciences. Tinha apenas quarenta e oito anos. [...]

Nossos contemporâneos, amantes de biografias e descrições vivazes, não nos perdoariam caso não evocássemos, ainda que à brevidade, a fisionomia moral e até física do autor. Tratemos de saciá-los, sem contudo cair na anedota.

Tomás era mui grande e gordo, verdadeira cariátide que obrigava as pessoas a desviarem-se a sua passagem; de resto, era de compleição sensível e delicada. Dotado dum intelecto prodigioso, confessava com simplicidade nunca ter lido algo que não houvesse compreendido à primeira vista, e ditava textos de sua autoria para quatro secretários simultaneamente. Possuía imensa memória, impressionando os que se aproximavam. Era humilíssimo, e confiava no próximo ao ponto da ingenuidade: um dia, dirigira-se à janela para observar um boi voando, confiando no testemunho dum noviço chocarreiro; declarara ele com delicada ironia que maior prodígio era um monge mentiroso. À mesa de São Luís, constrangido com as contingências sociais, encontrara um argumento decisivo contra os maniqueus, e eis que de tudo se esquece, nada mais existe a seu redor. A pureza de coração, que nossa época não mais respeita, mas os pagãos reverenciam num homem superior, nele era tão imensa que, à sua morte, fizera a confissão duma criança de cinco anos, conforme seus biógrafos. O ardor pelo trabalho nada roubava à piedade; imaginá-lo como uma máquina de citações e silogismos seria fazer dele uma idéia grotesca. Interrogando-o Cristo, numa visão que teve em Nápoles, sobre qual seria o prêmio de suas penas e labores por um trabalho acerca da Eucaristia, respondeu ele: “Vós mesmo, Senhor.” Morrera a afirmar que tudo quanto escrevera não passava de palha (mihi videtut ut palea). [...]

 

Tradução: Permanência

(a partir da obra de Louis Jugnet, La pensée de saint Thomas d’Aquin, 1964)

O caminho para a ruína: surge o espírito laico

O CAMINHO PARA A RUÍNA

- Surge o espírito laico -

Pacheco Salles

  Ao findar o milênio do Reino de Cristo, que começara como Edito de Milão do ano 313, florescem, na primeira metade do séc. XIV, dois personagens de importância ímpar em todo o desenvolvimento ulterior da cultura cristã: o Mestre Eckhart de Hochheim e Guilherme de Ockham. É o momento em que a besta do Apocalipse, que estava encalhada nas areias do mar, e parecia ferida de morte, começa a dar novos sinais de vida. A terra, isto é, a Cristandade, havia aberto a sua boca para absorver as torrentes de perseguições que a serpente infernal vomitara contra a Igreja no vão intuito de afogá-la no nascedouro. Mas os mártires venceram, e a sexta cabeça da besta, o poder deste mundo, que foi o Império Romano, teve de reconhecer a sua derrota no Edito de Nicomédia, também chamado de tolerância, do ano 311, que preludiou de perto o triunfo de dois anos depois. Então o Império deixou de ser cabeça da besta para tornar-se Reino de Cristo aqui na terra. Não nos enganemos porém; não era ainda o Reino dos Céus, que só virá no século futuro, mas somente uma prefiguração. Nos mil anos que se seguiram, a Cristandade passou por muitas vicissitudes, por terríveis perigos, e teve de combater ou de suportar em seu próprio seio muitos defeitos, pecados, e escândalos. Uma coisa porém é inegável: tanto nos períodos de maior brilho como nos momentos de pior crise a soberania incontrastável de Jesus Cristo jamais foi seriamente contestada, pois os que procuraram faze-lo acabaram por ser esmagados, desde Juliano Apóstata até os Albigenses. Mesmo os que praticavam abusos procuravam respaldar sua conduta no Evangelho e pretextavam o proveito da religião. A Cristandade era assim como uma ilha, a terra dos santos, cercada pelas águas da gentilidade, na qual a besta exercia o seu domínio, ao serviço do deus deste mundo, sem ter contudo um centro de poder, uma cabeça imperial.

Mais eis que a cena se transforma. Daquela mesma terra, que outrora absorvera as perseguições, sobe agora uma segunda besta que tem chifres semelhantes aos do carneiro, mas fala como o dragão e faz que a terra e seus habitantes se submetam à primeira besta, cuja ferida fora curada. Terminam os mil anos do Reino incontrastável de Cristo, e nos princípios do séc. XIV aparece o espírito laico, que procura estabelecer uma legitimidade não mais proveniente de Cristo e na salvação dos homens em Cristo, mas alicerçada no interesse das coisas temporais consideradas em si mesmas. Esta concepção se consubstanciou numa obra de repercussão transcendental, o Defensor Pacis de Marsílio de Pádua, composta logo em 1324, onde a autonomia do bem comum temporal já era preconizada, devendo a Igreja subordinar-se ao poder secular. Daí por diante o espírito laico não fez senão ganhar terreno dentro da própria Cristandade, vindo a triunfar na Paz de Westfália que pôr termo à Guerra dos Trinta Anos, colocando os interesses políticos por cima dos princípios religiosos. E com o Império Napoleônico, a consolidar a Revolução Francesa, a besta produz a sua sétima cabeça, afinal consagrada por alguém que tinha o poder do Cordeiro e coonestou a Igreja juramentada, perseguindo ao mesmo tempo os clérigos e prelados refratários, que com risco e sacrifício da própria vida tinham enfrentado as forças infernais para manter a França católica. Contudo, como estava profetizado, esta última cabeça permaneceria por pouco tempo. Cai Napoleão definitivamente em 1815, e após uma fugaz e ilusória Restauração é a besta ela mesma que assume o comando. Ela é a oitava, e pertence às sete anteriores. Desvanecidos os sonhos da Santa Aliança, aparece o Manifesto Comunista que abre a era das revoluções de esquerda, culminando com a instauração do regime soviético na Rússia, que desde então vem estendendo sempre mais seu poderio e prestígio por todo o mundo. Mesmo entretanto nos lugares onde este regime não exerce a sua tirania, os espíritos estão conturbados e os valores subvertidos, de maneira que o mundo todo se acha submetido a uma força maligna que o subjuga progressivamente.

O pior porém é que a própria mentalidade dos católicos foi infeccionada pelos maus princípios, tornando-se cada vez mais secularizada, o que tornou possível a aceitação da Renascença e do Humanismo com seu paganismo implícito. E vamos vê-los mais tarde também sensíveis às “luzes” racionalistas do séc. XVIII. Como depois da Revolução Francesa assistiremos à formação dentro da Igreja da forte corrente liberal que deságua naturalmente no modernismo e na democracia-cristã do Sillon, tudo isto não obstante a reação do movimento contra-reformista, do Syllabus de Pio IX, da Pascendi de S. Pio X, mas com muitas cumplicidades, desídias e traições a seu favor. A Igreja pós-renascentista já não era a Igreja dos mártires nem a Igreja das Cruzadas, nem mesmo a de João XXII. Era a Igreja dos espíritos esclarecidos e cultivados, a Igreja do barroco jesuítico, à qual foi mandado dizer: “Tens fama de viver mas estás morto. Sê vigilante e confirma os restos que estão para morrer; pois não encontro as tuas obras perfeitas diante do meu Deus. Lembra-te do que recebeste e ouviste, e conserva-os, e faz penitência. Pois se não tomares cuidado, virei a ti como um ladrão, e não sabes a que hora virei” 1. Certamente esta Igreja teve grandes santos, grandes mártires, grandes doutores e escritores eclesiásticos, pois sempre e ainda era a Igreja Santa, Católica e Apostólica. Contudo, tomada como um todo, era um corpo em decadência, que todos os dias perdia terreno para o mundo, e até mesmo se tornou sensível aos prestígios e prosperidades deste mundo, deixando-se ir a seu reboque como uma entidade animadora do progresso. Isto é um fato histórico inegável, insofismável, irrefutável, que só não será aceito pelos que pretendem escrever a história à maneira dos ideólogos. Vieram a Renascença e o Humanismo; veio a Revolução Mercantil; sobrevieram as Revoluções Industriais, o Estado moderno, o Imperialismo. Tudo isto perturbou profundamente a mentalidade dos católicos, corroendo os próprios fundamentos da Cristandade, que se voltava sempre mais para o Reino da Terra, deixando na distância e na penumbra o Reino do Céu. Contudo foi preciso aguardar a segunda metade do séc. XIX para que o Magistério reagisse num documento vigoroso como o Syllabus, que sem hesitar conclui condenando a seguinte proposição: “Romanus Pontifex potest ac debet cum progressu, cum liberalismo et cum recenti civilitate sese reconciliare et componere”. Era o que já devia ter sido dito ao tempo do Concílio de Trento, e antes ainda. E, no entanto, embora tardio, produziu uma renovação e um reflorescimento da vitalidade da Igreja que se estendeu por uns setenta anos. Infelizmente fatos adversos acarretaram o ofuscamento deste surto primaveril. E por fim a Constituição Gaudium et Spes, do pastoral Vaticano II, virou o Syllabus pelo avesso e pretendeu fazer a reconciliação e a composição cum progressu, cum liberalismo et cum recenti civilitate. Assim caímos na miséria da chamada Igreja pós-conciliar, da qual bem se pode dizer que non est species ei neque décor. Tudo quanto estava para morrer acabou morrendo e nada foi conservado, as mensagens de penitência da Sma. Virgem não foram atendidas e até foram obliteradas pela Hierarquia. O mais doloroso é que o simples povo católico queria permanecer fiel, mas foi abandonado e desorientado pela maior parte dos pastores. E aqueles humildes heróis que chegaram a dar a vida pela defesa da fé, como na Vendéia, como no Vietnam, foram indignamente esquecidos debaixo do altar, onde aguardam que Deus lhes faça justiça. Foram derrotados pois foi dado à besta fazer guerra aos santos e vence-los. É verdade que as imagens alegorias deste livro não podem ser tomadas univocamente, sendo prenhes de sentido; como aliás acontece às profecias em geral. O que não é motivo para deixar de estudá-las com atenção, porque foram escritas para nosso esclarecimento e utilidade. Com efeito, “bem-aventurado aquele que guardar as palavras da profecia deste livro”.

Voltemos assim ao que dizíamos, e vejamos como foi que as idéias daqueles dois personagens, Mestre Eckhart de Hochheim e Guilherme de Ockham, influíram para encerrar a era do Reino de Cristo, iniciada auspiciosamente com o Edito de Milão. Comecemos pelo segundo, cuja influência foi mais aparente e brilhante.

Aluno e depois professor na Universidade de Oxford, esteve preso em Avignon, justamente com o Geral de sua Ordem, a dos Franciscanos, por suspeitas de heresia, a partir de 1324. Em 1328 ambos conseguem fugir e correr para a corte de Luis de Baviera, que se achava em luta acirrada contra o Papa João XXII, sendo por isto excomungados. Ali Ockham conhece Marsílio de Pádua, e ambos dão apoio intelectual ao cesaropapismo do monarca, no que são acompanhados pelos franciscanos e espirituais. Após a morte de Luis da Baviera pensou em reconciliar-se com a Igreja, mas não é certo que o tenha feito. Morre por volta de 1350.

Com a filosofia de Ockham verificou-se a revivescência e afinal o predomínio da teoria nominalista que, instalando-se firmemente na Universidade de Paris, logo se estendeu pelas demais. O problema dos universais, em que se inscreve a solução nominalista, poderá parecer à primeira vista uma questão puramente acadêmica, a saber, se a universalidade inerente aos nossos conceitos corresponde a algo fora de nossa mente. É uma indagação de cunho epistemológico tendente a determinar o valor e o alcance daquilo que conhecemos intelectualmente. Sem entrar em pormenores, os nominalistas, também chamado terministas e conceptualistas, negavam, de maneira geral, uma correspondência mais profunda entre os conceitos universais e a realidade das coisas individuais; a universalidade em si mesma nada mais seria do que uma propriedade lógica dos conceitos. Tudo poderia parecer uma questão lógica para ser debatido no âmbito restrito dos especialistas. Mas o assunto não é tão inocente assim. Um dos mais famosos nominalistas ou terministas foi Lutero, que assim explicava a posição de sua escola:

“Terministas, nas escolas superiores, diziam-se os de uma seita a que eu pertencia. Sustentam opiniões contrárias aos tomistas, escotistas e albertistas, e se chamam também occamistas..., e é a mais moderna das seitas e também em Paris a mais poderosa. Disputam sobre se a palavra humanitas, por exemplo, significa a humanidade comum a todos os homens. Tomás e outros o afimam; mas os occamistas ou terministas negam que exista tal humanidade comum, asseverando que o terminus homo, ou humanidade, se diz de todos os homens em particular do mesmo modo que um homem pintado representa a todos os homens”

Eis a enorme conseqüência, já muito distante de qualquer sutileza: não existe algo assim como uma natureza humana. Humanidade designa apenas uma coleção de uns certos entes que apresentam algumas semelhanças de figura e comportamento. Porém já não se admite uma forma intrinsecamente determinante e comum, que dá aos indivíduos um conteúdo ontológico igual para todos, não obstante seja diversificado acidentalmente em cada um deles. Assim o homem, como todos os outros entes, são considerados desprovidos de qualquer natureza específica, e o mundo nada mais será do que um grande acervo de coisas individuais. Cairemos então no caos? Não propriamente. Mas depois trataremos disto. Por enquanto devemos fixar-nos na idéia de que homem seria um conceito sem compreensão real, pois real seria somente a sua extensão. A noção de “compreensão”, como conteúdo objetivo dos conceitos, é superada pela de “suposição”; e “supor”, na linguagem da Escola, significa designar ou fazer-as-vezes-de. Assim, homem “supõe” por todos e cada um dos indivíduos com certos traços externos perceptíveis aos sentidos, tal como “um homem pintado representa a todos os homens”. Em linguagem atual diríamos que o termo homem designa um conjunto de n elementos, que também poderia ser representado pela letra H. Da teoria da suposição seguiu-se um grande desenvolvimento da teoria da significação e dos símbolos, que, como já vimos, veio repercutir em João de Sto. Tomás com sua noção de conceito como sinal da coisa.

Uma primeira conseqüência do occamismo é que, se não existe natureza humana (como de qualquer outra coisa), não se pode mais falar de um direito natural nem de uma lei natural, isto é, que deriva da própria natureza das coisas mediante a reflexão da razão prática. E tampouco haverá lugar para um critério ontológico de distinção entre o bem e o mal. A via moderna substitui tudo isto pela vontade discricionária de Deus. É bom o que Deus quer que seja bom; é mau o que Deus quer que seja mau. Esta seria a razão última da distinção entre o bem e o mal e não haveria buscar outra. O occamista Pierre d’Ailly chegou a dizer que “nihil est de se peccatum, sed praecise quia lege prohibitum”. Mais ainda, afirmou que o próprio ódio a Deus seria meritório se Deus o mandasse. Neste voluntarismo que faz do bem e do mal meras determinações extrínsecas, e do mérito e do demérito uma simples questão de obediência a um regulamento arbitrário, vem ter seu fundamento a doutrina da justificação imputativa bem como o “pecca fortiter”. Também encontramos aí um forte incentivo ao princípio da obediência cega e incondicional às autoridades, uma vez que nada é intrinsecamente bom ou mau. João Gerson, o conhecido chanceler da Universidade de Paris, famoso por suas idéias conciliaristas e pelo papel que desempenhou no Concílio de Constança, que conseguiu pôr um termo ao Grande Cisma do Ocidente, afirmou em seu livro De vita spirituali animae:

“Nullum peccatum potest remitti nisi per hoc quod Deus liberaliter non imputat illud ad peccatum... Probabile est nullum actum creaturae de per se et intrinsece esse bonum bonitate moris aut meriti, aut similiter malum, nisi quia prohibitum… Deus non ideo actus nostros vult et approbat quia boni sunt, sed ideo boni sunt quia approbat; similiter ideo mali, quia prohibet"2

Em outras palavras, Deus, que determinou arbitrariamente uma certa ordem moral, pode mudar as regras do jogo a favor de seus eleitos. Para estes, o que era pecado deixa de o ser por um decreto soberano do monarca universal. É uma concepção puramente jurídica do pecado e da justificação, que exclui formalmente a idéia de uma regeneração interior pela graça santificante. Regenerar de que, se não há uma deformidade intrínseca no pecado? Assim toda a malícia do pecado como o mérito da virtude resultam apenas da imputação que Deus, em sua vontade absoluta, lhes quiser dar. A noção mesma da graça santificante se torna supérflua, e por graça tende-se cada vez mais a compreender os auxílios naturais ou sobrenaturais, externos ou internos, com que Deus impele os homens pela sua Providência. A célebre controvérsia sobre a predestinação, que vem a estalar no século XVI entre dominicanos e jesuítas, se chama mesmo a questão De Auxiliis. Ainda que daí não se pretenda extrair um maior significado, não deixa contudo de ser sintomático. O fato é que aquela concepção jurídica da justificação foi aceita integralmente por Lutero, que, como é sabido, sofreu uma forte influência de Gerson durante o tempo em que passava por suas piores anfechtungen, logo antes de seu engajamento heterodoxo; como também por todos os reformadores que se lhe seguiram. Mais do que isto, e possivelmente pela grande autoridade alcançada por Gerson, penetrou profundamente na mentalidade católica até os dias de hoje. O princípio não confessado que inspira a vida espiritual da maior parte dos católicos é o de um contrato de Deus com os homens, cuja cláusula principal assim se exprime: Cumpram o meu regulamento e eu lhes darei o Céu. A segunda cláusula acrescenta: Aos que demonstrarem boa vontade, socorrerei com meus auxílios, a fim de que possam cumprir o difícil regulamento; e, no que não puderem, fecharei os olhos na minha misericórdia.

A verdade é que o nominalismo e seu voluntarismo tinham de resultar no pelagianismo em suas mais variadas formas. Em geral, a noção que se tem do pelagianismo é a de uma doutrina que atribui algum valor formal e intrínseco aos atos humanos na ordem da salvação eterna e na consecução da divina bem-aventurança. E os diferentes graus de pelagianismo se medem pelos graus em que tal valor é admitido, desde o pelagianismo puro até o mais disfarçado semipelagianismo. Esta noção é exata em si mesma, e é coerente com o voluntarismo já referido. Porém, se é coerente e exata, não é completa, deixando na sombra o essencial que fica apenas suposto. Pois quando se admite que o homem, por sua pura natureza, pode fazer algo que o conduz formalmente à eterna bem-aventurança, que é a posse e a contemplação de Deus sicuti est, é porque já se negou, mesmo só implicitamente, a transcendência absoluta de Deus; é porque já se admitiu uma forma qualquer de continuidade natural entre o ser das criaturas e o Ser do Criador. Um Deus absolutamente transcendente só pode ser atingido através de meios que participem desta transcendência, isto é, meios formalmente sobrenaturais. Seria contraditório que assim não fosse. E portanto nem o próprio Deus poderia fazê-lo de potentia absoluta. E aqui aparece a coerência que liga o nominalismo ao semipelagianismo: desde que não há natureza humana, como distinguir o que é natural do que é sobrenatural? Apaga-se a linha divisória entre ambas as ordens, e os entes passam a ser considerados como dispostos linearmente, desde o mínimo até o máximo, de tal modo que, embora se verifiquem diferenças de grau e de qualidade, isto não obstaria a uma continuidade ininterrupta do Ser.

Não se pense entretanto que tudo isto era apenas a conseqüência do occamismo triunfante no ocaso da Idade Média. O nominalismo e o voluntarismo levavam logicamente ao semipelagianismo, que, por sua vez, obscurecia a noção da transcendência absoluta de Deus, que tinha sido o fundamento da cultura medieval. Mas esta era uma conseqüência indireta. Diretamente houve quem procuraria unir essencialmente Deus e o mundo, como se aquele fosse a medula deste, e tal foi o Mestre Eckhart de Hochheim. Após o tumultuoso processo de Colônia, 28 proposições extraídas de seus escritos e sermões foram condenadas pelo Papa João XXII, na Constituição In Agro Dominico, de 27 de março de 13293

. Consta que se retratou de seus erros antes de morrer em 1327. Que tenha salvo a sua alma é o pio desejo dos corações cristãos. Adão também foi salvo pela penitência in fide mediatoris, o que não impediu que a maldição de seu pecado caísse sobre todos nós. Igualmente a infecção doutrinária surgida em Colônia propagou-se através de Tauler, do anônimo francofortense (autor da Theologia Deutsch) e de outros menores até Lutero, impregnando de um modo mais ou menos profundo a mentalidade do Ocidente, não só a protestante como a católica, e determinando a gravíssima crise espiritual representada pelo renascimento do paganismo no seio e no centro da Cristandade. Quais foram porém as idéias excogitadas e propagadas pelo Mestre Eckhart e seus discípulos?

Para dizer tudo em uma palavra, o que fez Eckhart foi reeditar a filosofia de Plotino em termos de cristianismo. E aqui será oportuno lembrar a judiciosa observação de E. Gilson, em sua excelente obra L’Etre e l’Essence (Paris, J. Vrin, 1972), a respeito do verdadeiro sentido dessa filosofia:

“Lê néoplatonisme n’est pás né du platonisme par voie de déduction logique. Si, en un certain sens, Plotin prolonge Platon, c’est au contraire pour avoir usé de certaines conclusions, que Platon posait comme ultimes, en vue de résoudre des problèmes essentiellement étrangers au platonisme. Parmi ces problèmes, l’un des principaux était précisément d’unifier l’ordre philosophique et l’ordre religieux, ou, plus exactement peut-être, le monde intelligible des principes et le monde sacré des dieux. On ne pouvait entreprendre pareille tâche sans faire subir au platonisme authentique un remaniement qui en affectât profondément la structure, et l’esprit même. Ériger les dieux en principles, ou les principes en dieux, c’était transformer la dialectique en cosmogonie et demander à la science de résoudre des problèmes qui, dans la pensée de Platon lui-même, relevaient exclusivement du mythe » 4.

Assim Plotino teria sido mais um teólogo do que um filósofo, o teólogo que procurava dar consistência doutrinária ao paganismo, ao tempo em que a teologia cristã se formava com Irineu, Hipólito, Tertuliano, Clemente, Orígenes. A escola que Plotino fundou em Roma, e onde lecionou durante 25 anos, constituiu-se mesmo num centro de oposição ao cristianismo. Não será sem interesse recordar que Juliano Apóstata, o malogrado restaurador do paganismo, era um neoplatônico, ainda que diretamente não se filiasse a Plotino mas a Jamblico. Aliás os neoplatônicos em geral foram os últimos defensores do paganismo em retirada, e só após o início do séc. IV passam a aderir ao cristianismo. Mas a filosofia antiga estava prestes a extinguir-se, sendo substituída pela Patrística, onde avulta a figura de Sto. Agostinho, um dos maiores pensadores da Humanidade, profundamente original, embora tenha aproveitado sagazmente os subsídios do platonismo e do neoplatonismo. Esse o sistema filosófico que reaparece na Renânia no início do séc. XIV. Contudo, já no séc. IX houvera uma tentativa de estabelecer o neoplatonismo no pensamento católico, ainda que seu autor, João Scot Erígena, não tivesse tido conhecimento direto das obras de Plotino e de Proclo. O seu neoplatonismo é de segunda mão e devido em grande parte à influência do pseudo-Dionísio. Sobre as relações entre Deus e o mundo no sistema de Erígena, De Wulf diz o seguinte:

“Qu’ils soient corporels ou incorporels, les êtres réalisés dans le temps en conformité avec leurs exemplaires éternels, sont présentés comme des participations de l’essence divina (assumptio), des distributions de dons divins. Ce sont aussi des théophanies du divin : la divinité court dans les entrailles du monde. Scot fait dériver théos de théo, courir. Ou encore il compare les multiformes apparences de Dieu aux reflets indéfiniment variés de la lumière sur les plumes du paon. Dieu est dans les choses particulières, sans rien perdre de son immutabilité ; il se saisit dans les êtres déterminés et émerge ainsi des profondeurs de son infinitude. Si bien qu’au fond de tout est l’unique substance, Dieu. »

E pouco depois o A. faz a seguinte observação :

« D’une part, tout être particulier n’est réel que par la vertu de son Logos ou de la causa primordialis, dont il est pénétré. Et comme celui-ci est d’ordre spirituel, il en résulte que les êtres sensibles sont suspendus au suprasensible. Ils tiennent de l’esprit, et en fin de compte du divin ; leur état corporel n’est pas leur véritable réalité, mais une ilusion, un non être, un reflet – ce qui donne à la conception de Scot une saveur platonicienne et néoplatonicienne très accentuée, sur laquelle nous reviendrons» 5.

É de se notar no primeiro dos textos transcritos a comparação entre as coisas singulares e os reflexos variegados da luz na plumagem do pavão, o que aproxima bastante a concepção de Erígena às mônadas de Leibniz. O sistema do filósofo da corte de Carlos o Calvo, apesar de suas expressões menos ousadas, não foi objeto de qualquer condenação. Apenas o papa Nicolau I queixou-se das audácias de Scot Erígena em seu livro principal, De divisione naturae. O mesmo não aconteceu a outros, influenciados por suas idéias, e que acabaram por ser condenados pela Igreja, como Beregário de Tours, Abelardo, Amaury de Bènes. De qualquer forma, no entanto, o neoplatonismo não conseguiu desta vez radicar-se na cultura cristã, que prosseguiu sendo fiel a Sto. Agostinho, e mais tarde se inclinaria para o sadio realismo de Aristóteles. Com o Mestre Eckhart contudo foi o contrário que aconteceu, não obstante a sua condenação cabal pelo Magistério. Mas os Papas em Avinhão perdiam sempre mais prestígio e autoridade, preludiando o futuro Grande Cisma. Os alemães não davam grande importância aos papas franceses, e haviam mesmo apoiado a efêmera república romana de Cola di Rienzo. Já vimos que a Ordem Franciscana estava ao lado de Luis da Baviera contra João XXII. Além disso o occamismo, com seu contínuo progresso, havia por assim dizer destruído as bases da filosofia e da teologia autênticas. Por tudo isto, o plotinismo de Eckhart encontrou o caminho aberto e se estabeleceu firmemente na Cristandade, corroendo-a por dentro, de maneira que até hoje faz valer a sua influência, sob a forma de uma profunda crise do senso da transcendência divina, que afeta indiscriminadamente a mentalidade de católicos e protestantes, mesmo que o ignorem, viciando a fé nos corações. Assim se verifica o que foi dito por S. Lucas (18:8): “Verumtamen Filius hominis veniens, putas, inveniet, fidem in terra?”. O postulado básico e implícito desta perversão espiritual consiste em crer que há uma religiosidade intrínseca e natural ao homem, que o liga ontologicamente a Deus, a qual as religiões positivas nada mais fazem do que completar, e às vezes deformar. E assim todas as “confissões” seriam ao mesmo tempo boas e passíveis de aperfeiçoamento, “de acordo com as necessidades dos tempos”.

  1. 1. Tischreden, 6419 V653. Apud. R. Garcia Villoslada, Martin Lutero, B.A.C., Madrid, 1973, vol. I, pg. 71.
  2. 2. Apud R. Garcia-Villoslada, o.c., I, pg. 211, nota 30.
  3. 3. Denz.- Schön., pgs. 291-295.
  4. 4. O.c., pg. 41.
  5. 5. De Wulf, Histoire de la Philosophie Médievale, J. Vrin, 1934, pgs. 132-133.

Origem e sentido do neoplatonismo

O CAMINHO PARA A RUÍNA

- Origem e sentido do neoplatonismo -

Pacheco Salles  

Mas que disse Eckhart? Para bem compreendê-lo será mister recordar a grande crise de pensamento que marcou a instauração da metafísica. Os primeiros filósofos, chamados físicos, procuravam explicar as coisas dizendo que tudo era, em última análise, feito de água, ou de ar, ou de algo ilimitado. Depois Pitágoras, o matemático, dizia que tudo vinha do número. Até que apareceu Parmênides de Eléia que fez uma descoberta sensacional: nem água, nem ar, nem matéria ilimitada, nem número; a realidade das coisas é o Ente, e de Ente é que tudo é feito. Descoberta sensacional e luminosa, mas também perigosa, pois como já dissemos não há conceito mais difícil de ser elaborado e determinado que o de Ente. E aí naufragou Parmênides, o descobridor da metafísica. Para ele o Ente é, e o não-Ente não é, e entre ambos não há meio termo, mas uma oposição absoluta, uma contrariedade radical. Além disso, ser e conhecer são o mesmo. Se fora do Ente não há nada, então tudo é Ente, ou seja, tudo o que é, é plenitude de Ente, sem qualquer negação que seria não-Ente. Seguem-se daí duas conseqüências descomunais: 1) a mudança e o movimento tornam-se impossíveis, pois toda mudança é o vir a ser do que não era, e o deixar de ser do que era; em outros termos, um Ente sai do não-Ente e outro Ente cai no não-Ente escandaloso conúbio, como se vê, do Ente com o não-Ente. Assim, tudo o que muda e se move não passa de ilusão dos sentidos, e Aquiles jamais alcançará a tartaruga. 2) Toda pluralidade também se torna impossível, porque o ente de cada coisa particular importa na negação de todos os entes que ela não é. Com efeito, para que haja verdadeira pluralidade, é preciso que cada indivíduo singular não seja nenhum dos outros, estabelecendo-se assim uma mistura de Ente com o não-Ente. A conclusão é que o Ente é perfeitamente homogêneo, único, imutável, imóvel e eterno. O Ente não pode surgir, pois proviria do nada, e "ex nihilo nihil fit". E também não pode ser destruído, pois não há nele nenhuma aptidão para o nada, sendo o contrário absoluto do nada; e fora dele nada poderia destruí-lo, pois nada há fora dele. Parmênides, ao descobrir o Ente, sofreu o seu curto-circuito, dando-se o bloqueio do pensamento.

 No fundo Parmênides tinha razão. O que aconteceu é que, queimando etapas, ele radicalizou a sua tese, chegando a um conceito de Ente que, na realidade era o conceito de Deus. Ora, com o conceito de Deus não é possível pensar o mundo. Este é o risco de quem lida com o Ente e o Ser: de repente o tema dá de crescer desmesuradamente, escapa a todo controle e se transforma num estafêrmo solene e sagrado, plantado nos caminhos da razão. Como reduzir o Ente a proporções mais manipuláveis, mais plásticas e adaptadas às condições da realidade em que vivemos? Como desobstruir as vias do conhecimento? A resposta a este problema marcou o desenvolvimento ulterior da filosofia grega. Heráclito substituiu o Ente pelo movimento: todas as coisas estariam num contínuo fluxo e numa contínua luta, uma vez que os contrários coexistiriam. O princípio fundamental seria o fogo, concebido como vivo, inteligente e divino, o logos que tudo pervade e governa. Já Empédocles divide o Ente nos quatro elementos, a água, o ar, o fogo e a terra, e das diversas combinações deles, meramente extrínsecas, surgiriam todas as coisas; mas no fundo tudo seria sempre o mesmo, como num caleidoscópio em que todas as combinações já estão dadas de antemão. Mas para Anaxágoras, o que os eleatas atribuíam ao Ente é transferido ao nous, à mente, princípio puramente espiritual e intelectual, que organiza o mundo, o cosmos, dando ordem, movimento e sentido aos infinitos elementos, que jaziam inertes e confundidos no caos primevo. Foi Platão, porém, quem percebeu a insuficiência destas soluções, uma vez que o conceito de Ente é insubstituível; tudo o que pensamos refere-se a algo que é, pois o não-Ente não é pensável em si mesmo. O mais que conseguimos ao querer substituir o conceito de Ente é retirá-lo da consideração explícita, tornando-o implícito: procedimento muito pouco filosófico uma vez que a finalidade da Filosofia é explicitar o nosso discurso, esclarecendo as suposições e postulados sobre que se constrói o pensamento quotidiano. Portanto Platão admitiu o Ente como princípio fundamental. Entretanto, como torná-lo viável? Pareceu-lhe que era a sua unidade que o tornava inteiriço e atravancador. Que faz então? Retira-lhe esta unidade, e dela faz um princípio ainda mais alto, mais nobre e mais poderoso: o Um. Sem a unidade, que lhe impunha uma absoluta identidade consigo mesmo, podia o Ente multiplicar-se neste mundo sub-lunar, e também podia mudar e mover-se, pois se havia atenuado a sua oposição ao não-Ente. Com efeito, entre os dois Platão introduziu a matéria, como privação capaz de vir a receber uma forma e participar de uma essência. Pela primeira vez o não-Ente, a privação obteve um estatuto na Filosofia.

Parecia-lhe tudo resolvido. Na verdade as dificuldades apenas começavam. Se o Um não é ente, que é então? Não-Ente? Por seu lado, o Ente precisa do Um como seu fundamento, sob pena de perder a identidade e não ser mais nada. Então será mister combinar o Um com o Ente, para termos o Um que é, e o Ente que é Um, mas em lugar da unidade teremos um conjunto com dois elementos, cada um dos quais deverá ser sub-dividido ao infinito pela mesma razão. Já na República, Platão havia apelado para um outro princípio, superior ao Ente e mais dinâmico do que o Um, o Bem. No começo do livro VII (517-BC), após referir a conhecida alegoria da caverna, assim o Bem é apresentado:

"Pois não é assim que se nos manifestam as coisas acessíveis ao nosso conhecimento, isto é, que no mundo intelectual o limite supremo é a idéia do Bem, cuja percepção é penosa, mas que, uma vez percebida, devemos todos considerá-la como a causa de tudo quanto é bom e belo? E no mundo visível não é ela que produz a luz da qual é a senhora? E no mundo inteligível ela mesma não é a senhora que produz a verdade e a inteligência? E que é necessário contemplá-la àquele que quer proceder com sabedoria quer particular, quer publicamente?"

O Bem transcende o Ente e o não-Ente, o movimento e o repouso, o mesmo e o outro. Todos estes supremos arquétipos participam do Bem; e assim o Bem é mais universal do que eles e a todos engloba. Deste modo, sem sacrificar o Ente com suas exigências, Platão encontrou um lugar para a realidade empírica com sua pluralidade e suas constantes mudanças. O Bem se encarregava de harmonizar e unificar as duas faces do real, o Ser e o vir-a-ser, o um e o múltiplo. Baseado nas profundas investigações de Platão, Aristóteles veio a dar a solução correta ao problema eleático, ao introduzir a distinção entre o ato e a potência, que será tão importante quanto a descoberta do próprio Ente, pois permitirá pensá-lo de acordo com seus requisitos metafísicos. Só assim pôde o Ente ser recolocado em sua situação dominante, sem os inconvenientes de Parmênides. Mas a solução de Platão deixava em aberto a possibilidade de um outro caminho. E foi este o caminho trilhado por Plotino. E não nos iludamos com o fato de Plotino também falar em ato e potência. Porque para ele estas noções tinham uma conotação diferente e não ocupavam o lugar central que as caracterizam no sistema aristotélico, como fica bem claro na Enneada II, 5, onde o assunto é tratado ex professo, exatamente com o fito de criticar a escola peripatética, e voltar ao Platão do Timeu.

Vimos que Platão apelara vez por vez para dois princípios mais altos que do que o Ente: o Um e o Bem. Plotino reúne os dois num só: o Bem é uma propriedade ou aspecto do Um, enquanto este engendra todas as coisas, o Ente é o seu primogênito fórmula que se tornou clássica no neoplatonismo, e passou para a Escola através do livro De Causis, com a significação agora de que só Deus é a causa do ser dos entes. Mas se o Um transcende o Ente, então é um não-Ente, o nada. Plotino aceita sem receio a conseqüência: o primeiro princípio, o Um, é não-Ente. Mas é não-Ente não por deficiência ou privação, mas porque é muito mais do que o Ente, e assim, não sendo nada, é o poderoso produtor de tudo. Que é então? É o inefável, o inexprimível, o que está além de todo conhecimento. Aqui aparece um dos aspectos mais notáveis do plotinismo: "É porque nada há no Um que tudo vem dele, e, para que o Ente seja, é preciso que o próprio Um não seja Ente, mas aquilo que o engendra. O Ente é portanto como seu primogênito."1 Assim, a produção das coisas, a partir do Um até os limites da mais baixa materialidade, tem a índole de uma decadência progressiva, em que as sucessivas causas produzem o que elas não são, mas é inferior a elas. E esta decadência, que leva a marca do mal, é contudo necessária à plena manifestação de toda a realidade. Ainda voltaremos ao assunto. Agora, porém, é mister salientar a diferença radical entre a Metafísica do Ente e da verdade, e a Metafísica do Um e do Bem.

Aristóteles reconhecia certamente que o Ente era dotado de unidade. Tratava-se porém da unidade dos entes individuais, que são indivisos em si mesmos e divididos de todos os outros. mas o Um de Plotino é uma unidade total e ideal, uma verdadeira unicidade que paira acima e além do Ente, em face da qual a individualidade dos entes concretos representa uma antinomia e uma degradação uma vez que estabelece a pluralidade, e esta resulta da influência negativa e maléfica da matéria, o lado sombrio das emanações. mas tal proliferação de indivíduos singulares será detida e reabsorvida de novo na perfeita unidade do Um. este é o supremo objetivo que transcende o Ente e a verdade, os quais deverão ficar para trás a fim de que todas as distinções, desigualdades e particularismos sejam reassumidos na mesma vontade geral de tornar ao Um. Em política esta idéia do Um (que já vimos ter origem em Platão) fez surgir a primeira utopia no diálogo A República, onde se defende a posse comum dos bens e das mulheres, e a criação e a educação dos filhos pelo poder público. Assim se extinguiria todos os particularismos e seria obtida a perfeita homogeneidade social, considerada como o maior bem. No livro II de sua Política (1263b 30 ss.) Aristóteles faz a crítica adequada desta ideologia, restabelecendo os direitos dos indivíduos e das diferenças sociais contra o totalitarismo idealista. Tudo, diz o Estagirita, tem a unidade que lhe compete. Assim a sociedade deve ter uma certa unidade, mas não total; porque se se quiser aumentar o grau desta unidade, de modo que todos tenham a mesma profissão ou habitem na mesma casa, e assim por diante, já não haverá mais sociedade. Deste modo, se a unidade aumentar muito, poderá chegar próxima da destruição da sociedade, que assim se tornará pior, pois quanto mais uma coisa se aproxima de seu aniquilamento pior fica. Como se alguém quisesse que, num coro, todos cantassem com uma só voz, ou que, num poema, todos os versos constassem de um só pé. A unidade e a igualdade sem contrastes não são portanto o ideal da sociedade, mas a sua deturpação; pois tal unidade deve ser procurada no bem comum e no equilíbrio da justiça, que não excluem, antes supõem, a pluralidade e a diversidade. Estas verdadeiramente enriquecem a vida social, ao invés de prejudicá-la. Infelizmente vemos triunfar a primeira tendência hoje em dia, com a estatização progressiva das atividades humanas, sob a influência das idéias socialistas, que são sabidamente inspiradas nos princípios do idealismo platônico e neoplatônico.

Além desta conseqüência política, importa considerar um reflexo eclesiástico de não menor peso. A metafísica do Um leva a ver na unidade da Igreja o bem supremo. Não há dúvida de que a unidade é um dos atributos da verdadeira Igreja. Mas, segundo Sto. Tomás, tal unidade "causatur ex tribus", a saber, a unidade da fé, da esperança e da caridade. Sendo efeito destas, está naturalmente abaixo das mesmas [2]. 

(...)

Mas isto porque, para Sto. Tomás, o Ente e a verdade estão acima de todas as coisas. Porém esta posição estaria errada em face da metafísica do Um, e assim a unidade é que seria o supremo valor ao qual tudo o mais se sacrifica. E é o que também acontece nos regimes totalitários, de direita como de esquerda, em que toda a ênfase é dada à unidade e ao centralismo social e político. Resta notar ainda que a Revolução, que de um modo mais ou menos profundo modelou a mentalidade do homem atual, outra coisa não é senão a inconformidade com o real. O slogan das barricadas de 1968, "l'imagination au pouvoir", bem exprime este repúdio da realidade. O homem contemporâneo vive em busca de uma quimera, insatisfeito com os entes com que se defronta na vida quotidiana. Ele se revolta contra todas as diferenças objetivas, as de idade e sexo, aprova o homossexualismo, supervaloriza a juventude, degrada a inteligência e a linguagem. Ele quer fabricar a sua realidade ao sabor de ideais confusos. Na verdade ele tudo está destruindo, e caminha para o nihilismo. Mas é o que está na lógica do retorno plotiniano ao Um, que é o não-Ente. Para lá chegar é preciso de algum modo destruir o Ente, ou os entes. Eis o objetivo da Revolução.

Uma dúvida poderia surgir ainda. Vimos que Platão oscilou entre o Um e o Bem, e Plotino anexou o Bem ao Um. Assim a metafísica do Um é igualmente a metafísica do Bem, como já dissemos. Isto por ventura não seria o seu corretivo? A procura do Bem não seria o que mais devesse chamar a atenção nesta metafísica e torná-la digna de apreço? Entretanto devemos considerar que, neste sistema, o Bem, tanto quanto o Um, transcende o Ente, está além dele. De maneira que o Ente, por si mesmo, não seria bom, mas apenas participaria do Bem que lhe fica mais alto. E para Plotino o Ente já seria uma primeira degradação. para Aristóteles e Sto. Tomás é inteiramente o contrário: o Bem nada mais é do que o Ente perfeito, a plenitudo essendi, o ens secundum quid, isto é, segundo a sua enteléquia. Assim o Bem não transcende o Ente, que é bom enquanto mesmo que Ente, mas apenas exprime e acrescenta a razão de perfeição ou perfectibilidade. E o Bem assim considerado é a perfeição de indivíduos singulares, pois neste sistema o indivíduo é que é, é que tem o ser. É verdade que o Bem é diffusivum sui, tende a comunicar-se. Quanto mais alta é a perfeição, mais ela é universal e participável. A bondade de um indivíduo, seja qual for, sempre se espalha em torno dele, e tanto mais, quanto mais nobre for a bondade. Mas daí não se conclua que esta propriedade do Bem seja a sua razão formal, de maneira que a comunidade seja a causa da bondade, ou mesmo a própria bondade. Esta identificação do comum com o bem, e, a contrario sensu, do individual com o mal, é precisamente a tese do plotinismo solidamente estabelecido na mentalidade do Ocidente após a obra de Mestre Eckhart. Nessa concepção do Bem, com efeito, já predomina a idéia do Um totalizante. No entanto, até na própria Imitação de Cristo podemos encontrar alguns reflexos desta idéia, pois tudo o que é louvável é logo qualificado de comum, e tudo o que é criticável é taxado de privado. Naturalmente isto é verdade dentro de uma comunidade religiosa, mas não pode ser extrapolado sem riscos para outras esferas. Em Pascal esta idéia toma um grande vigor — e é inteiramente gratuito afirmar que ele visava apenas o individualismo moral, o egoísmo. Pois se o moi est haissable é por causa da fratura ontológica que ele torna efetiva e na qual vive. O fundo da doutrina jansenista consiste precisamente em afirmar que a natureza humana exige estar ligada a Deus para se achar completa em sua realidade. O pecado, que é o destaque de Deus pela manifestação do indivíduo, transformou a natureza humana, que já não é aquela criada por Deus, mas uma segunda natureza corrompida, que sequer é dotada de liberdade, estando à mercê do atrativo dominante. Deixemos falar o próprio Pascal:

"N'attendez pas, dit-elle (la Sagesse de Dieu), ni vérité, ni consolation des hommes. Je suis celle qui vous a formés, et qui puis seule vous apprendre qui vou êtes. Mais vous n'êtes plus maintenant en l'état òu je vous ai formés. J'ai créé l'homme saint, innocent, parfait; je l'ai rempli de lumière et d'intelligence; je lui ai communiqué ma gloire et mes merveilles. L'oeil de l'homme voyait alors la majesté de Dieu. Il n'était pas alors dans les ténèbres qui l'aveuglent, ni dans la mortalité et dans les misères qui l'affligent. Mais il n'a pu soutenir tant de gloire sans tomber dans la présomption. Il a voulu se rendre centre de lui-même, et indépendant de mon sécours. Il s'est soustrait de ma domination; et, s'égalant à moi par le désir de trouver sa félicité en lui-même, je l'ai abandonné a lui; et, révoltant les créatures, qui lui étaient soumises, je les lui ai rendues ennemies: en sorte qu'aujourd'hui l'homme est devenu semblable aux bêtes, et dans un tel éloignement de moi, qu'à peine lui reste-t-il une lumière confuse de son auteur: tant toutes ses connaissances ont été étenites ou troublées...

Voilá l'état où les hommes sont aujourd'hui. Il leur reste quelque instinct impuissant du bonheur de leur première nature, et ils sont plongés dans les misères de leur aveuglement et de leur concupiscence, qui est devenue leur seconde nature” 2.

Compare-se este pensamento com o início da Enneada V, cap. 1:

"De onde vem pois que as almas esqueceram Deus seu pai, e que, fragmentos vindos dele e completamente dele, elas se ignoram e o ignoram? O princípio do mal para elas é a audácia, a geração, a diferença primeira, e a vontade de existir para si mesmas. Alegres de sua independência, elas usam da espontaneidade de seu movimento para correr em direção oposta a Deus: chegadas ao ponto mais afastado, chegam a ignorar que veem dele, tais como crianças que, arrancadas a seu pai, e criadas muito tempo longe dele, ignoram-se a si mesmas e ignoram seus pais 3.

De fato o homem foi criado criado em graça, o que lhe dava possibilidades que iam infinitamente além de sua natureza. Mas de direito o homem poderia ter sido criado sem a colação da graça, só com a perfeição devida à sua natureza. Para Pascal, porém, sem o condicionamento da graça, a natureza humana como que se desagrega perdendo seus caracteres específicos e tornando-a semelhante aos outros animais. Com efeito, "la vraie nature étant perdue, tout devient sa nature; comme le véritable bien étant perdu, tout devient son véritable bien"4. Em conseqüência "la vraie nature de l'homme, son vrai bien, et la vraie vertu, et la vraie religion, sont choses dont la connaissance est inséparable” 5. Mas, e a razão? Não será sempre um traço distintivo?

Toute notre raisonnement se réduit à céder au sentiment.

Mais la fantasie est semblable et contraire au sentiment, de sorte qu'on ne peut distinguer entre ces contraires. L'un dit que mon sentiment est fantasie, l'autre que sa fantasie est sentiment. Il faudrait avoir une règle. La raison s'offre, mais elle est ployable à tous sens; et ainsi il n'y en a point 6.

Nem poderia deixar de dizer isto quem acha que "les choses sont vraies ou fausses, selon la face par où on les regarde"7. Assim a razão sempre encontrará meios para justificar a adesão a partidos contrários. Compreendem-se deste modo com facilidade os seguintes dois pensamentos:

422. Nature corrompue. — L'homme n'agit point par la raison, qui fait son être.

423. La corruption de la raison parait par tant de différentes et extravagantes moeurs. Il a fallu que la vérité soit venue, afin que l'homme ne véquit plus en soi-même.

Nesta última frase se manifesta o eleatismo de Pascal. Viver em si mesmo é a falsidade fundamental; ou, em termos plotinianos, a decadência ontológica. A individualidade é marcada pela chaga da amputação do todo, em cuja integração se encontra a verdadeira realidade da natureza humana. Daí a célebre apóstrofe pascaliana: "Humiliez-vous, raison impuissante; taissez-vous, nature imbécile: apprenez que l'homme passe infiniment l'homme, et entendez de votre maitre votre condition véritable que vous ignorez."8 Erro dos erros. Não é o homem que ultrapassa infinitamente o homem, mas a sua vocação divina e inteiramente gratuita, fruto da liberalidade incondicionada de Deus. Pois o homem cabe perfeitamente nas medidas de sua condição, cujas coordenadas não foram alteradas pelo pecado. E ainda que condenado, será a mesma natureza humana, e não outra, que ele levará para o inferno.

Esta mesma rejeição do indivíduo, que deve ser reabsorvido no todo, vamos encontrar nas teorias contratualistas da sociedade. Tanto em Hobbes como em Rousseau aparece a exigência de que, para a formação do corpo social, é mister a inteira abdicação dos indivíduos singulares. Para Rousseau especialmente, para quem o homem só se torna verdadeiramente homem no convívio social, todo e qualquer interesse privado se revela imediatamente como algo a ser extirpado. Aqui surge a famosa idéia da vontade geral, da qual se deve ter a correta caracterização: 

A vontade geral, insiste Rousseau em mais de uma passagem, é sempre reta; ela não se confunde, ademais, com a vontade da maioria ou mesmo com a vontade de todos. O que é, então, a vontade geral, termo emprestado por Rousseau à Enciclopédia, em particular a Diderot? Na verdade já a conhecemos: a vontade geral é o produto da conformação da vontade individual com a lei racional, ou, melhor ainda, é a própria vontade individual, quando organiza o particular em função do todo. Quando o homem sensível que somos se submete ao homem inteligível que também somos, triunfa em nós uma vontade genérica e a particularidade do impulso é dominada pela universalidade da razão. Por esse motivo (de outra forma tratar-se-ia de algo inexplicável) a vontade geral pode opor-se à vontade da maioria e até à vontade de todos: se, por hipótese, um povo inteiro, sem qualquer discrepância, decidisse, sem coação, propor um "pacto de submissão" a um monarca, como queria Hobbes, por acaso essa unanimidade exprimiria a vontade geral? É evidente que não, pois, na hipótese, livremente se decidiria pela extinção da liberdade — condição mesma do exercício da vontade geral. E é por não ser senão a expressão da moralidade que a vontade geral é sempre reta, que não pode errar (Livro II, cap. III), que é indestrutível (Livro IV, cap. I). Ela vive em cada um de nós, pois somos seres morais; mas pode emudecer, porque estamos sujeitos à "queda". "As leis eternas da natureza e da ordem existem" já o vimos no Emílio. A vontade geral é a sua expressão 9.

  1. 1. Enn. V, 2, 1. Ed. Bréhier, Paris, 1931, pg. 33.
  2. 2. Pensamento no. 483, ed. J. Chevalier.
  3. 3. Trad. Bréhier, "Les Belles Lettres", Paris, 1931, pg. 15.
  4. 4. N. 368.
  5. 5. N. 428.
  6. 6. N. 474.
  7. 7. N. 472.
  8. 8. N. 438.
  9. 9. R. S. Maciel de Barros, Meditação sobre Rousseau, in Ensaios sobre Educação, Ed. U.S.P., S. Paulo, 1971, pgs. 90-91.
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