O século XIV foi o sombrio e tumultuoso século da peste negra, da guerra de cem anos e da fragorosa ruína da civilização cristã. Nosso bravo século XX, em lugar da sombria nuvem pestífera que pairou cem anos sobre a cristandade agonizante, está sendo flagelado por uma outra nuvem, não menos sombria: a da estupidez satisfeita e otimista. Os físicos, matemáticos, biólogos e astrônomos que operam no nível de saber mais acessível e mais próprio para os trabalhos coletivos, e também para o efeito acumulativo dos resultados, por seus sucessos dificultam a exata apreciação do imenso progresso da burrice humana nas coisas que concernem a vida espiritual.
A multiplicação dos meios de informação em prejuízo dos meios de formação permite uma ilusão de saber, que é uma das formas mais impertinentes da tolice. Todo mundo pensa que sabe o que leu nas notícias ou viu na TV. Lendo a ida do homem à Lua, engolindo o fato, o farelo, a cinza, qualquer um se sente participante da coragem dos astronautas, quando na verdade ele não passa de um espectador que, de chinelo e pijama, engole voluptuosamente a informação que em nada eleva a sua inteligência nem purifica a sua vontade.
Nessa categoria de ineptos satisfeitos estão os milhões de pessoas que usam palavras filosóficas ou tecnológicas com a tranqüila convicção de que entendeu, e até esgotou todos os meandros do conceito designado por aquele termo. Ontem, por exemplo, ouvi no barbeiro a conversa entre um oficial e um barbeado. Dizia o oficial barbeiro que era evolucionista, provavelmente para com isto dizer que acolhe com sábia benevolência todas as transformações federais, municipais, militares ou religiosas. Porque tudo evolui. O barbeado, ou porque partilhasse a mesma fé, ou porque preferisse não discutir com quem tinha uma navalha à altura de sua carótida, grunhia de tempos em tempos em sinal de aprovação. Mas no termo de sua submissão, sacudindo o casaco e erguendo a cabeça com um olhar satisfeito de soslaio para o espelho, o nosso homem abriu-se: ele também era evolucionista. E ia desenvolver suas convicções quando o barbeiro desdobrou sua toalha ou alva no novo freguês que queria cabelo aparado. Eu também terminava minha dose de tranqüilizante, que é o barbeiro, principalmente quando ele arremata, com uma tesoura carinhosa, os pelos subversivos do pescoço e das orelhas.
Na rua voltou-me a idéia do evolucionismo professada em dois tons por dois bravos habitantes do século XX. E pus-me a interpelar barbeiros e barbeados invisíveis e evolucionistas. Saberão vocês todas as implicações, todas as conseqüências, todos os corolários e todas as decorrências da fé tão imprudentemente afiançada e concentrada num vocábulo? Provavelmente o que todos vocês já observaram, com admiração e veneração, é o comesinho e antiquíssimo fenômeno da transmutação das coisas: abertura do grão de semente, surgimento de um caule entre dois cotilédones, alongamento do dito caule e mais tarde a flor, o fruto e em torno desse digno mundo vegetal que se move com a vagareza recomendada por Aristóteles aos reis, o mais quieto e trepidante mundo animal empenhado no entredevoramento. No céu o Sol e a Lua, para os observadores superficiais que não prestam atenção às estrela, também se movem. A Lua muda de fase, mas o movimento dos corpos celestes mais convida a pensar na regularidade do que na evolução. Mas vejam os homens. Ah! Ah! e vejam as mulheres, porque a elas é que se bem se aplica o verbo ver, já que, enquanto nós homens perdemos tempo em catar palavras sábias, elas, na maioria dos casos, contentam-se em serem vistas. E os padres? Em resumo: tudo muda. Será que os evolucionistas do salão de barbeiro imaginam que todas essas variações passam despercebidas ao resto da humanidade? Saberão eles que o evolucionismo, levado às últimas conseqüências, incide não somente sobre as variações de vestidos e penteados de suas esposas, mas também traz uma suspeita sobre a existência delas. Saberão eles que nunca, duas noites seguidas, se deitam ao lado da mesma mulher, como dizia Heráclito, ou, o que ainda é mais inquietante, nunca elas se deitam duas noites ao lado do mesmo homem? Saberá o evolucionista de rua que, a rigor, se quiser ser coerente, deverá deixar sua religião, se é católico, e abordar qualquer outra mais vaporosa? E Deus? É a origem da vida? Nesse ponto bem sei que eles dizem tranqüilamente que os seres vivos surgiram por evolução. Pronto, que mais é preciso dizer? Mas em que consiste esse processo? Suponhamos a pergunta formulada. A resposta será imediata: o negócio passou-se devagarzinho, devagarzinho, imperceptivelmente, de pai para filho. Com o tempo, o que era terra úmida, virou minhoca. Ou então foi no fundo do mar que aconteceu o primeiro surgimento da vida. Estava eu neste ponto quando uma lembrança obsessiva começou a perseguir-me. Quem foi a pessoa que ainda ontem me dizia quase aos gritos: sou evolucionista! sou evolucionista! o invisível locutor escondia-se, talvez pela astúcia da memória que queria poupar-me o dissabor de mais uma controvérsia nesta idade. Idade. Ah! já sei. Foi o professor Alceu Amoroso Lima no seu livro Memórias Improvisadas, recentemente publicado. Na página 183 diz o seguinte: «A importância do catecismo holandês, tão mal recebido pelos conservadores, reside nas novas perspectivas que abre. Quaisquer que sejam as restrições ou condenações que lhe sejam impostas, continuarei a achá-lo digno de admiração e de estudo. O catecismo tradicional era baseado no ponto final. O holandês é baseado muitas vezes num ponto de interrogação. (sic) Há uma série de coisas que ele deixa em aberto, fora do que é tido como dogmático. Mas o que é o dogma? É apenas uma verdade que está para lá de nossa compreensão puramente racional. Ninguém pode discutir o Mistério da Santíssima Trindade, porque ninguém sabe o que é, está além de nossa compreensão. Então é dogma». E depois dessa algaravia que está além de minha compreensão, sem ser dogma, o Professor Alceu aventura-se a falar na sua evolução: «A minha evolução se processou através da passagem do evolucionismo espiritualista tipo bergsoniano à aceitação das bases fixistas antievolucionistas. Mais tarde, por influência da leitura da obra de Teilhard de Chardin, deu-se a minha volta ao evolucionismo mas já não de tipo naturalista nem de tipo espiritualista vago, mas de tipo teocêntrico».
O professor Amoroso Lima não explica que evolucionismo é esse, e tudo me leva a crer, pela leviandade com que apregoa sua nova religião, não mais católica, sem talvez se aperceber disso, que também como o barbeiro, o professor Alceu Amoroso Lima ignora todas as implicações de seu evolucionismo. Saberá ele que já não pode crer na origem do homem a partir de Adão? Saberá ele que não pode admitir para o homem o que os teólogos chamam geração unívoca, já que cada alma humana é criada por Deus e não pelos pais? Saberá o professor Alceu que a origem da vida pelo evolucionismo biológico implica problemas de improbabilidades expressas por números tão fantásticos que um Borel e um Boltzman não hesitaram em usar os termos de improbabilidades extracósmicas? Saberá o doutor Alceu que a obra científica de Teilhard de Chardin é de quinta ou sexta classe e não aparece em nenhum tratado sério de Antropologia, a não ser no grupo organizado para explorar editorialmente a obra do jesuíta que morreu em desobediência, já que deixou para uma senhorita a obra que a Companhia interditava? Saberá o professor Alceu o que é a lei de Clausius? Lembrar-se-á que Pio XII, numa alocução, recomendava a difusão do conceito de entropia que mostra a evolução do Universo físico num sentido oposto ao dos evolucionistas que pensam na ortogênese? Imagina o doutor Alceu que poderá manter razoavelmente a sua convicção na imortalidade da alma dentro da salada filosófica e teológica do fantasioso jesuíta? Esquece o doutor Alceu que Teilhard foi condecorado como pioneiro do diálogo com os comunistas pelo infortunado Roger Garaudy? Conhecerá o doutor Alceu o princípio metafísico: «nada passa de potência ao ato se não por algo que esteja em ato» que se opõe ao evolucionismo?
Volto à minha convicção. Se o doutor Alceu ainda tem fé, será a do carvoeiro; e seu evolucionismo não é muito melhor que o do meu barbeiro.
(1974)