Na semana atrasada o hebdomadário O Pasquim apareceu nas bancas ostentando na capa uma figura convencional de Jesus Cristo, e em letras garrafais o anúncio: Jesus é a Salvação. Mas logo na página 2 descobre-se a chave da pilhéria. Ao lado de outra figura convencional anuncia-se que o humour deve ter nascido da graça divina. E à esquerda, abaixo, lê-se uma entrevista com o padre Ítalo Coelho sobre o movimento turn on to Jesus, surgido nos Estados Unidos entre hippies. O Pasquim pergunta: “A revolução com Jesus pode ser levada a sério?”. E o padre Ítalo, agachado, responde com todo respeito (pelo O Pasquim): “Acho que ela encerra algo de existencial muito profundo (...) Acho que esse novo encontro com Jesus é a única busca válida”. (Grifo nosso).
Estamos no nível da sarjeta. Na página 3 temos um convencional e fingido respeito para desnortear os padres e bispos da anti-Igreja. Nas páginas 6 e 7 temos uma entrevista de Rogéria anunciando que suas (dela? dele?) memórias de alcova abalariam o Brasil. Este “Rogéria” é um travesti destinado a inculcar na mente dos moços brasileiros a idéia de que a pederastia é uma atitude “válida”, como diria o padre Ítalo. O redator de O Pasquim, de passagem, explica que Rogéria (o) é apenas “um garoto que trabalha para ajudar a família”.
Na página 10 novamente encontramos o mesmo truque: ao lado de uma figura convencional, outra de escárnio sobre Jesus e seus discípulos. Na página 15 prepara-se a blasfêmia contra a Ceia do Senhor. Nas páginas 18 e 19 temos finalmente o Pif-paf de Millôr Fernandes sobre a Ceia do Senhor. E a explicação da Graça Divina: “Cristo, no meio da refeição, diz alguma coisa irresistível e todos os apóstolos caem na mais desbragada gargalhada”. Quero ainda crer que Millôr Fernandes não sabe que na Santa Ceia Jesus anunciou a sua Paixão e celebrou antecipadamente o sacrifício de seu corpo e seu sangue, derramado para nossa redenção.
Neste ponto, recusando-me a acompanhar as intenções dos humoristas de O Pasquim, que já resvalavam para os esgotos, perdi-me em perplexidades. Ora parecia-me que não devia tomar conhecimento do fenômeno; ora parecia-me inadmissível deixar tamanho agravo sem nenhum protesto. No começo do século, um personagem de Chesterton, em A Esfera e a Cruz, quebra a bengaladas as vidraças do jornal que ofendia Nossa Senhora. Na Action Française, como “camelot du Roi”, antes de espancar meio mundo com a pena, Bernanos usou generosamente a bengala. Mas os tempos passaram, a bengala saiu de moda, como estão saindo o pudor, o caráter e o respeito. E eu mesmo, que há 50 anos fui esgrimista, só posso hoje gemer com o alexandrino de Corneille: “O rage, o desespoir, o vieillesse ennemie”.
Estava nesse estado de espírito, imaginando um apelo patético aos autores da torpeza, no qual lhes pediria que evocassem um ser amado e venerado vivo ou morto, sombra de mãe a desvanecer-se na memória, ou figura em flor de criança inocente a nos pedir a forma mais profunda de respeito; estava eu quase a pedir-lhes, a rogar-lhes, a suplicar-lhes que se detivessem numa linha divisória, que tirassem as sandálias antes de pisar um chão sagrado, quando me ocorreu um versículo do Novo Testamento relativo a perolas e a porcos. Imaginei então dirigir um apelo às autoridades eclesiásticas, e estava a imaginar os termos, quando vi na última pagina esta inacreditável declaração:
Todo o material publicado neste numero de O Pasquim sobre a redescoberta de Jesus Cristo pela juventude de nosso tempo — fenômeno que a Igreja Católica está estudando com o maior cuidado — foi lido pelas Autoridades Eclesiásticas da Guanabara e considerando matéria jornalística que não atenta contra os princípios cristãos de nosso povo.
J.A. de Castro Pinto
Rio, 19/07/1971.
Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro.
Vejo então que O Pasquim tem assistente eclesiástico, e nihil obstat para fazer chalaças com a Ceia do Senhor e, portanto, com o Sangue de nosso Salvador.
Dom Castro Pinto fala ostensivamente em nome das AUTORIDADES ECLESIÁSTICAS para aprovar a blasfêmia e para injuriar a juventude brasileira, cuja sensibilidade julga e mede pela sua própria. Não tendo ele sentido nenhuma repulsa, nenhuma cólera diante do escárnio feito a Nosso Senhor Jesus Cristo, imagina que ninguém o sentiu. E julga falar em nome da Autoridade para cobrir de vergonha e tristeza os católicos do Brasil e especialmente os da Guanabara. Valho-me eu de autoridade maior para dizer a D. Castro Pinto que repilo sua declaração e que me subtraio do domínio em que julga ter jurisdição para afirmar tranqüilamente que estão erradas as Sagradas Escrituras onde dizem: “Deus non irridetur”.
Não fiz nenhum voto de estupidez e de hipocrisia e não posso aceitar de nenhum degrau da hierarquia que me venha dizer que “é válido” blasfemar, que não há nenhum mal em zombar das coisas santas, já que tudo, uma vez impresso, vira “material jornalístico”. E lembro a epístola de São Paulo aos Gálatas: “Ainda que eu mesmo, ou um anjo descido dos céus, vos anunciasse outro evangelho e não este que vos anunciei, seja anátema”.
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Numa de suas alocuções no programa VOZ DO PASTOR, o cardeal Eugênio Salles, em tom de advertência, lembra que devemos todo o respeito e acatamento à CNBB. Eu perguntaria respeitosamente a Sua Eminência se este tópico se refere a mim ou aos membros da CNBB que a desmoralizaram. Conheço um que em sensacional entrevista nunca desmentida declarou admirar e amar com carinhoso fervor os rapazes que assassinam e roubam sob o pretexto de uma revolução que hoje só engana os imbecis. Conheço outro que celebrou o 450° aniversário da apostasia de Lutero, comparando-a “à independência do Brasil!!!” e que agora diz que as Autoridades Eclesiásticas da Guanabara aprovam o material jornalístico de O Pasquim.
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A conclusão que tiro de tudo isto é que somente A Cruz 1 e o autor destas linhas escrevem coisas reprováveis contra a Fé e os costumes. Esmague-se A Cruz, silencie-se o escritor e reinará na Guanabara a desejada paz dos pântanos, aonde, a perder de vista, se espraiará uma multidão de respeitosos e respeitosas, entremeados de muitos travestis “que trabalham para ajudar a família”.
(O GLOBO, de 05/08/1971)