Category: Santo Tomás de Aquino
Em seguida devemos tratar do estado ou da condição do primeiro homem. E, primeiro quanto à alma. Segundo, quanto ao corpo.
Sobre o primeiro ponto duas questões se discutem. Primeira da condição do homem quanto ao intelecto. Segunda, da condição do homem quanto à vontade.
Sobre a primeira questão quatro artigos se discutem:
Em seguida devemos considerar o fim ou termo da produção do homem, enquanto é tido como feito à imagem e semelhança de Deus.
E, sobre esta questão nove artigos se discutem.
O quarto discute–se assim. – Parece que a mulher não foi formada imediatamente por Deus.
1. – Pois nenhum indivíduo produzido pelo seu semelhante, especificamente, é feito imediatamente por Deus. Ora, a mulher foi feita do homem, que é da mesma espécie que ela. Logo, não foi feita imediatamente por Deus.
2. Demais. – Agostinho diz que os seres corpóreos são feitos por Deus, por intermédio dos anjos. Ora, o corpo da mulher é formado de matéria corpórea. Logo, foi feito pelo ministério dos anjos e não imediatamente, por Deus.
3. Demais. – As criaturas que preexistiam, pelas razões causais, são produzidas em virtude de alguma criatura e não, imediatamente, por Deus. Ora, o corpo da mulher foi produzido, segundo as razões causais, nas primeiras obras, como diz Agostinho. Logo, a mulher não foi produzida imediatamente por Deus.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Só Deus, por quem subsiste toda a natureza, podia formar ou produzir a costela, para que a mulher existisse.
SOLUÇÃO. – Como já se disse antes, a geração natural de cada espécie é mediante uma determinada matéria. Ora, a matéria da qual naturalmente é gerado o homem é o sémen humano, do homem ou da mulher. Por onde, de qualquer outra matéria um indivíduo da espécie humana não pode ser naturalmente gerado. Ora, só Deus, instituidor da natureza, pode, fora da ordem desta, dar o ser às coisas. E portanto só ele podia formar tanto o homem, do limo da terra, como a mulher, da costela do homem.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção procede quando um indivíduo é gerado do especificamente semelhante, por geração natural.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como diz Agostinho, não sabemos se os anjos prestaram o seu ministério a Deus, na formação da mulher; todavia, é certo que, assim como o corpo do homem não foi formado do limo da terra, pelos anjos, assim também nem o corpo da mulher, da costela de Adão, foi formado por eles.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como diz Agostinho, no mesmo livro, na condição primeira das causas não estava que a mulher, absolutamente, fosse assim feita; mas estava, que pudesse sê–Ia. E logo, nas suas razões causais, o corpo da mulher preexistia, nas primeiras obras, não pela potência ativa, mas só pela passiva, em ordem à potência ativa do Criador.
O terceiro discute–se assim. – Parece que a mulher não devia ter sido feita da costela do homem.
1. – Pois a costela do homem é muito menor que o corpo da mulher. Ora, do menor não se pode fazer o maior senão por adição; e se assim tivesse sido, havia de dizer–se que a mulher foi formada, antes, por essa adição, do que da costela. Ou pela rarefação, pois, como diz Agostinho, não é possível que um corpo cresça se não se rarefizer; ora, não parece que o corpo da mulher seja mais rarefeito que o do homem, pelo menos na proporção que tem a costela com o corpo de Eva. Logo, Eva não foi formada da costela de Adão.
2. Demais. – Nas obras primeiramente criadas nada havia de supérfluo. Logo, a costela de Adão lhe pertencia à perfeição do corpo. E portanto, faltando aquela, este ficou imperfeito. O que é inadmissível.
3. Demais. – A costela não pode ser separada do homem sem dor. Ora, esta não existia antes do pecado. Logo, a costela não devia ser separada do homem, para que, dela, a mulher fosse formada.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Da costela que tinha tirado de Adão formou o Senhor Deus a mulher.
SOLUÇÃO. – Era conveniente que a mulher fosse formada da costela do homem. – Primeiro, para significar que deve haver união entre o homem e a mulher. Pois, nem esta deve dominar aquele e, por isso, não foi formada da cabeça; nem deve ser desprezada pelo homem, numa como sujeição servil, c por isso não foi formada dos pés. – Segundo, por causa do sacramento; porque, – do lado de Cristo, dormindo na cruz, fluíram os sacramentos, isto é, o sangue e a água, com os quais foi a Igreja instituída.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Alguns dizem que, pela multiplicação da matéria, sem adição de mais nada, foi formado o corpo da mulher, do mesmo modo pelo qual o Senhor multiplicou os cinco pães. – Mas isso é absolutamente impossível. Pois, a multiplicação referida se deu ou pela transmutação da substância da própria matéria, ou pela transmutação das dimensões da mesma. Ora, não se deu pela transmutação da sobredita substância, quer porque a matéria, em si considerada, é absolutamente intransmutável, como potencial que é, e por ser essencialmente sujeito; quer porque a multiplicidade e a grandeza não se incluem na essência da matéria em si. Por onde, de nenhum modo se pode compreender a multiplicação da matéria, enquanto esta permanece sem adição, salvo se ela receber maiores dimensões. Mas, como diz o Filósofo, quando a mesma matéria recebe maiores dimensões, ela se rarefaz. Ora, admitir a multiplicação de uma mesma matéria, sem rarefacção, é afirmar a simultaneidade dos contraditórios, isto é, a definição sem o definido. – Por onde, como nas tais multiplicações não houve rarefação, necessário é admitir–se a adição da matéria, ou por criação, ou, o que é mais provável, pela conversão. E por isso. Agostinho diz que, Cristo saciou cinco mil homens, com cinco pães, do mesmo modo que, de poucos grãos produz a multidão das sementes; o que se dá pela conversão do alimento. E assim, diz–se que, com cinco pães, alimentou as turbas, ou que, da costela, formou a mulher, por ter sido feita adição à matéria preexistente da costela, ou dos pães.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A referida costela era da perfeição de Adão, considerado este, não como indivíduo, mas como princípio da espécie; assim como o sémen, que pertence à perfeição do gerador, põe–se em liberdade, com deleite, por operação natural. Por onde, com muito maior razão, o–corpo da mulher podia ter sido formado, pela virtude divina, da costela do homem, sem dor. E daí se deduz a resposta à terceira objeção.
O segundo discute–se assim. – Parece que a mulher não devia ter sido feita do homem.
1. – Pois, o sexo é comum ao homem e aos brutos. Ora, as fêmeas destes não são feitas dos machos. Logo, nem a do homem deveria tê–lo sido.
2. Demais. Seres da mesma espécie têm a mesma matéria. Ora, o macho e a fêmea são da mesma espécie. Portanto, se o homem foi feito do limo da terra, deste mesmo, e não daquele, devia a mulher ter sido feita.
3. Demais. – A mulher foi feita para adjutório do homem, na geração. Ora, o parentesco muito próximo torna uma pessoa inepta para tal; e por isso os parentes próximos são excluídos do matrimónio, como se vê na Escritura. Logo, a mulher não devia ter sido feita do homem.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Criou da sua mesma substância, isto é, ao homem, um ajuda semelhante a ele, a mulher.
SOLUÇÃO. – Foi conveniente na primeira instituição das coisas, a mulher, diferentemente dos brutos, ser formada do varão. – Primeiro, para que, assim, se conferisse a este uma certa dignidade; de modo que, semelhantemente a Deus, também ele fosse o princípio de toda a sua espécie, assim como Deus é o princípio de todo o universo. Por isso a Escritura diz, que De um só Deus fez todo o gênero humano. Segundo, para que o homem amasse mais a mulher e mais inseparavelmente se lhe unisse, quando soubesse que de si mesmo foi ela produzida. – E por isso diz a Escritura: De varão foi tomada: por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, – O que era sumamente necessário, na espécie humana, na qual o homem e a mulher permanecem unidos por toda a vida; o que não se dá com os brutos. – Terceiro, porque, como diz o Filósofo, na espécie humana, o varão e a mulher unem–se, não só pela necessidade da geração, como os brutos, mas também para a vida doméstica, na qual há uns atos próprios ao homem e outros, à mulher, sendo aquele a cabeça desta, Por onde convenientemente, a mulher foi formada do homem, como do seu princípio. A quarta razão, enfim, é sacramental. Pois, com essa formação está figurado que a Igreja tira de Cristo o seu princípio. Por isso diz a Escritura: Este sacramento é grande, mas eu digo em Cristo e na Igreja.
E daqui se deduz a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Matéria é aquilo de que alguma cousa se faz. Ora, natureza criada tem um determinado princípio; e como é determinada a um termo, também tem um determinado processo; por isso de determinada matéria, produz algo especificamente determinado. Mas, o poder divino, sendo infinito, pode fazer um mesmo ser, especificamente, de qualquer matéria; assim, o homem, do limo da terra, e a mulher, do homem.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Pela geração natural se contrai um certo parentesco, que impede o matrimônio. Ora, a mulher não foi produzida, do homem, por geração natural, mas pela só virtude divina; por isso Eva não é chamada filha de Adão. Portanto, a objeção não colhe.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a mulher não devia ter sido produzida na primeira produção das coisas.
1. – Pois, diz o Filósofo que a fêmea é o macho falho, Ora, nada de falho e deficiente devia existir na primeira instituição das coisas. Logo, nessa primeira instituição, a mulher não devia ter sido produzida.
2. Demais. – A sujeição e a diminuição foram subsequentes ao pecado. Pois, à mulher foi dito, depois do pecado: estará sob o poder de teu marido; e como diz Gregório; no que não delinquimos somos todos iguais. Ora, a mulher tem, naturalmente, menor virtude e dignidade que o homem; pois, como diz Agostinho, sempre é mais digno de honra o agente que o paciente. Logo, a mulher não devia ter sido produzida na primeira produção das coisas, antes do pecado.
3. Demais. – Devem–se evitar as ocasiões do pecado. Ora Deus tinha presciência que a mulher havia de ser, para o homem, ocasião de pecado. Logo, não devia tê–la produzido.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Não é bom que o homem esteja só, façamos–lhe um adjutório semelhante a ele.
SOLUÇÃO. – Era necessário que a mulher fosse feita para adjutório do homem. Não, certo, adjutório para qualquer outra obra, como alguns disseram; pois, nisso o homem pode ser ajudado, mais convenientemente, por outro homem, do que pela mulher; mas para o adjutório da geração. O que se pode compreender mais manifestamente, se se considerar o modo da geração, nos seres vivos. – Assim, certos têm conjuntamente 1) virtude da geração ativa e passiva, como acontece com as plantas, geradas da semente; pois, não há nelas nenhuma operação vital mais nobre que a geração e, por isso, a todo tempo e convenientemente, nelas, a virtude geratriz ativa vai junta com a passiva. – Porém os animais perfeitos têm a virtude gera triz ativa, no sexo masculino, e a passiva, no feminino. E como eles são capazes de alguma operação vital mais nobre que a geração, para cuja operação a vida se lhes ordena principalmente, por isso, o sexo masculino não se une com o feminino a todo o tempo, mas só no do coito. E assim podemos pensar que, pelo coito, constituem um só ser o macho e a fêmea, como na planta, a todo tempo, conjugam–se as virtudes masculina e feminina, embora em umas abunde mais uma dessas virtudes, e, noutras, a outra. – Ora, o homem se ordena a uma operação vital mais nobre, que é o inteligir. E por isso ne]e, com maior razão, devia haver a distinção entre uma e outra virtude, de modo que a fêmea fosse produzida separadamente do macho; e contudo, ambos se unissem, carnalmente, para a obra da geração. Por onde, logo depois da formação da mulher, diz a Escritura: Serão dois numa só carne.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Na sua natureza particular, a fêmea é um ser deficiente e falho. Porque a virtude ativa, que está no sémen do macho, tende a produzir um ser perfeito semelhante a si, do sexo masculino. Mas o facto de ser a fêmea a gerada provém da debilidade da virtude ativa, ou de alguma indisposição da matéria; ou ainda, de alguma transmutação extrínseca, p. ex., dos ventos austrais, que são úmidos, como diz Aristóteles. Mas, por comparação com a natureza universal, a fêmea não é um ser falho, pois está destinada, por intenção da natureza, à obra da geração. Ora, a intenção da natureza universal depende de Deus, universal autor da mesma. Por isso na instituição desta produziu não só o macho mas também a fêmea.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Há dupla sujeição. Uma servil, pela qual o superior usa do súdito, em sua utilidade, e essa sujeição foi introduzida depois do pecado. Outra é a sujeição econômica ou civil, pela qual o chefe usa dos súditos para o bem destes: e tal sujeição já existia antes do pecado. Pois faltaria o bem da ordem, na sociedade humana, se uns não fossem governados por outros, mais sábios. E assim, por essa sujeição, é que a mulher é naturalmente dependente do homem; porque este tem naturalmente maior discreção racional. Nem fica excluída a desigualdade dos homens, pelo estado da inocência, como a seguir se dirá.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Se Deus tirasse do mundo todas as coisas nas quais o homem haure ocasião de pecar, o universo ficaria imperfeito. Nem devia eliminar–se o bem comum a pretexto de evitar o mal particular; e sobretudo. Deus é de tal modo poderoso que pode fazer redundar qualquer mal, em bem.
O quarto discute–se assim. – Parece que na Escritura está inconvenientemente descrita a produção do corpo humano.
1. – Pois assim como o corpo humano foi feito por Deus, assim também, as outras obras dos seis dias. Mas, nessas outras, se diz: Disse Deus: Faça–se a luz e foi feita a luz. Logo, semelhantemente, também se devia–dizer, da produção do homem.
2. Demais. – O corpo humano foi feito imediatamente por Deus, como antes ficou estabelecido. Logo, está dito inconvenientemente: Façamos o homem.
3. Demais. – A forma do corpo humano é a alma mesma, que é o espiráculo da vida. Portanto, depois de se ter dito: Formou o Senhor Deus ao homem do barro da ferra, acrescentou–se inconvenientemente: E inspirou no seu rosto um sopro de vida.
4. Demais. – A alma, espiráculo da vida, está em todo o corpo e, principalmente, no coração. Logo, não se devia dizer que: E inspirou no seu rosto um sopro de vida.
5. Demais. – Os sexos masculino e feminino são a tributos do corpo; ao passo que a alma é a imagem de Deus. Ora, a alma, segundo Agostinho, foi feita antes do corpo. Logo, depois de se ter dito: Criou Deus o homem à sua imagem, inconvenientemente se acrescentou Macho e fêmea os criou.
Em contrário está a autoridade da Escritura.
RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz Agostinho, o homem tem preeminência sobre os outros seres, porque foi feito à imagem de Deus, e não, porque o próprio Deus tivesse feito só a ele e não aos outros. Pois, está escrito: Os céus são obras das tuas mãos, e: As suas mãos formaram a terra árida. Mas a Escritura usa, na produção do homem, de especial modo de falar, para mostrar que os outros seres foram feitos por causa do homem. Pois, o que queremos principalmente isso costumamos fazer com maior deliberação e esforço.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Não se deve entender que Deus disse aos anjos – Façamos o homem – como alguns perversamente entenderam. Mas essas palavras significam a pluralidade das Pessoas divinas, cuja Imagem se acha mais expressivamente no homem.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Alguns entenderam que o corpo do homem foi, primeiro, formado no tempo e, depois, Deus lhe infundiu a alma nele já formado. – Mas é contra a razão da perfeição da primeira instituição das coisas, que Deus tivesse feito o corpo sem a alma ou esta sem aquele; pois ambos fazem parte da natureza humana. E tal seria ainda mais inconveniente, do corpo, que depende da alma, do que inversamente. – E então, para excluir essa opinião, outros ensinavam que quando se diz: Criou Deus o homem, quer se significar a produção do corpo simultaneamente com a alma; e o que se acrescenta: E inspirou no seu rosto, um sopro de vida, entende–se do Espírito Santo, assim como o Senhor o insuflou nos Apóstolos, conforme o dito: Recebei o Espírito Santo. Mas tal exposição fica excluída, como diz Agostinho, pelas palavras da Escritura. Pois ela ao que antes disse acrescenta: E foi jeito o homem em alma vivente; o que o Apóstolo refere, não à vida espiritual, mas à animal. Logo, por espiráculo da vida entende–se a alma; de modo que quando se diz: Inspirou no sete rosto, um sopro de vida, isso é uma como exposição do que se dissera antes; pois, a alma é a forma do corpo.
RESPOSTA À QUARTA. – As operações da vida manifestam–se sobretudo na face do homem, por meio dos sentidos aí existentes; e por isso a Escritura diz que na face do homem foi inspirado o espiráculo da vida.
RESPOSTA À QUINTA. – Segundo Agostinho, todas as obras dos seis dias foram feitas simultaneamente. Por isso, a alma cio primeiro homem, que considera como produzida simultaneamente com os anjos, não a considera feita antes do sexto dia; mas, nesse mesmo sexto dia, diz que foi feita em ato a alma do primeiro homem, e o corpo do mesmo, pelas razões causais. Porém outros Doutores dizem que tanto a alma como o corpo do homem foram feitos em ato, no sexto dia.
O terceiro discute–se assim. – Parece que o corpo do homem não teve disposição conveniente.
1. – Sendo o homem o mais nobre dos animais, o seu corpo deveria ter sido disposto, do melhor modo, para a vida própria ao animal, a saber, a dos sentidos e a do movimento. Ora, há certos animais de sentidos mais agudos que os do homem, e de movimento mais veloz; assim, os cães têm melhor odor e as aves movem–se mais velozmente. Logo, o corpo do homem não está convenientemente disposto.
2. Demais. – Perfeito é o ser ao qual nada falta. Ora, falham ao corpo humano mais atributos que aos corpos cios outros animais, que têm tegumentos e armas naturais, para se protegerem, coisas que o homem não tem. Logo, o corpo humano está imperfeitissimamente disposto.
3. Demais. – O homem dista mais das plantas do que dos brutos. Ora, as plantas têm estatura ereta e os brutos, inclinada. Logo, o homem não devia ter estatura ereta.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Deus criou o homem reto.
SOLUÇÃO. – Todos os seres naturais foram produzidos pela arte divina; e por isso são de certo modo artificiados pelo próprio Deus. Ora, qualquer artífice procura dar a melhor disposição à sua obra, não absolutamente, mas por comparação com o fim. E se a tal disposição acompanhar algum defeito, disso não cura o artífice. Assim, o artífice que faz uma serra para cortar, fá–la de ferro, para ser capaz do corte; e não pensa em fazê–la de vidro, que é matéria mais bela, pois tal beleza seria impedimento para o fim. Assim Deus deu a cada ser natural a melhor disposição, não, certo, absolutamente, mas conforme a ordenação ao fim. E é o que diz o Filósofo: E por ser mais digno assim ; não, certo, absolutamente, mas para a substância de cada ser. Ora o fim próximo do corpo humano é a alma racional e as operações dela; pois, a matéria é para a forma e os instrumentos, para as ações do agente. Portanto, digo que Deus instituiu o corpo humano com ótima disposição, segundo a conveniência para determinada forma e determinadas operações. E se se manifesta algum defeito na disposição de tal corpo, devemos considerar que esse defeito resulta da necessidade da matéria, em relação às coisas necessárias, no corpo, para haver a proporção devida entre a alma e as suas operações.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O tato, fundamento dos outros sentidos, é mais perfeito no homem do que em qualquer outro animal. E, por isso, era necessário que o homem tivesse uma compleição mais homogênea que todos os outros animais. Pois precede a todos quanto às virtudes sensitivas inferiores, como resulta do que já foi dito. E, por uma certa necessidade é inferior aos outros animais, quanto a alguns sentidos exteriores. Assim, o homem tem um olfato péssimo relativamente ao de todos os animais. Por isso era forçoso, que em relação ao seu corpo, tivesse cérebro melhor que o deles todos. Quer para mais livremente realizar com perfeição as operações das virtudes sensitivas internas, necessárias à operação do intelecto, como já se disse antes; quer também para a frigidez do cérebro mitigar o calor do coração, que necessariamente deve abundar no homem, para ter estatura ereta. Ora, o desenvolvimento do cérebro impede, pela sua umidade, o de– olfato, que exige a secura. Semelhantemente, pode–se descobrir a razão por que certos animais têm visão mais aguda e audição mais subtil do que o homem, no impeçilho oposto a esses sentidos, que resulta necessariamente, o homem, da perfeita homogeneidade de compleição. E a mesma razão explica por que certos animais são mais velozes que o homem: é que a homogeneidade da compleição humana repugna a essa excelência na velocidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os chifres e as unhas, armas dos animais: a espessura da pele, a multidão dos pelos e das penas, que lhes são os tegumentos atestam a abundância do elemento terrestre, repugnante à homogeneidade e à delicadeza da compleição humana por isso tais atributos não convinham ao homem. Mas em lugar deles, tem a razão e as mãos, com as quais pode preparar para si, de infinitos modos, armas, cobertas e outras coisas necessárias à vida; e por isso, às mãos o Filósofo lhes chama órgão dos órgãos. E tal constituição convinha mais à criatura racional, capaz de infinitas concepções, para que tivesse a faculdade de preparar para si infinitos instrumentos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Ter estatura ereta era conveniente ao homem, por quatro razões. – Primeira, porque os sentidos lhe foram dados não só para buscar o necessário à vida, como fazem os outros animais, mas também para conhecer. Por onde, ao passo que os outros animais não se deleitam com os sensíveis, senão no tocante ao alimento e à geração, o homem e só ele se compraz com a beleza dos sensíveis em si mesma. Por isso, corno precipuamente no rosto é que os sentidos se manifestam, os outros animais têm o focinho inclinado para a terra, como para buscarem a comida e proverem–se de alimento. Ao contrário, o homem traz a fronte ereta, de modo que, pelos sentidos, e principalmente pela vista, que é o mais subtil e descobre mais diferenças nas coisas, possa, livremente e em toda parte, conhecer os objetos sensíveis, celestes e terrestres, e coligir de todos a verdade inteligível. – Segunda, para que as virtudes interiores exerçam mais livremente as suas operações por não ficar o cérebro, sede, de certo modo, das suas perfeições, deprimido, mas sobranceiro a todas as partes do corpo. – Terceira, porque seria forçoso, se o homem trouxesse a postura inclinada, usar das mãos como de patas anteriores isto e assim cessar–lhes–ia a utilidade para exercerem completamente as suas diversas atividades. – Quarta, porque, se tivesse a postura inclinada e usasse das mãos como de patas anteriores, teria necessariamente que tornar o alimento com a boca. E então têIa–ia oblonga, os lábios rígidos e grossos, a língua também áspera para não ser ferida pelos contatos externos, como se dá com os outros animais. Ora, tal disposição impediria, de todo, a locução, atividade própria da razão. – E contudo, tendo a estatura ereta, o homem dista maximamente das plantas. Pois traz a sua parte superior, que é a cabeça, dirigida para a parte superior do mundo; e a inferior, para a parte inferior do mesmo: e assim está otimamente disposto, relativamente à disposição do todo. Ao contrário, as plantas têm a parte superior dirigida para a parte inferior do mundo, pois as raízes são comparáveis ao rosto; enquanto que a parte inferior delas se dirige para a parte superior do mundo. Por fim, os brutos oferecem uma posição média; pois a parte superior do animal é a receptora do alimento; e a inferior, a emissora do supérfluo.
O segundo discute–se assim. – Parece que o corpo humano não foi produzido imediatamente por Deus.
1. – Pois, como diz Agostinho, os seres corpóreos são dispostos por Deus, por meio da criatura angélica. Ora, o corpo humano foi formado da matéria corpórea, como já se disse. Logo, tinha que ser produzido mediante os anjos e não imediatamente por Deus.
2. Demais. – O que é susceptível de ser feito pelo poder criado, não é necessário seja produzido imediatamente por Deus. Ora, o corpo humano pode ser produzido, pela virtude criada, do corpo celeste; assim como certos animais são gerados da putrefacção, pela virtude ativa do corpo celeste. E Albumazar diz, que nos lugares onde muito abunda o calor ou o frio, os homens não se geram, senão somente nos lugares temperados. Logo, não era necessário que o corpo humano fosse formado imediatamente por Deus.
3. Demais. – Nada se faz da matéria corpórea, senão por alguma transmutação material. Ora, toda transmutação corpórea é causada pelo movimento do corpo celeste, que é o primeiro dos movidos. Mas, como o corpo humano é produzido da matéria corpórea, resulta que, para a formação dele, o corpo celeste contribuiu com alguma operação.
4. Demais. – Agostinho diz que, nas obras dos seis dias, o homem foi feito, corporalmente, nas suas razões causais, que Deus inseriu na criatura corpórea só depois é que foi formado em ato. Ora, o que preexiste na criatura corpórea, pelas razões causais, pode ser produzido por uma virtude corpórea. Logo, o corpo humano foi produzido por alguma virtude criada, e não imediatamente por Deus.
Mas, em contrário, diz a Escritura: Deus criou o homem da ferra.
SOLUÇÃO. – A formação do corpo humano, no princípio, não podia ter sido por nenhuma virtude criada, mas, imediatamente, por Deus. Se bem ensinassem alguns, que as formas existentes na matéria corpórea são derivadas de certas formas imateriais.
Mas o Filósofo repele essa opinião, porque não convém às formas serem feitas, em si mesmas, mas ao composto, como já se expôs antes. E como, necessariamente, o agente há de ser semelhante ao seu efeito, não convém à forma pura e imaterial produzir uma forma material, que não é produzida senão porque o composto o é. E portanto, é forçoso, que a forma existente na matéria seja a causa de outra do mesmo modo existente, pois, o composto é gerado pelo composto. Porém Deus, embora absolutamente imaterial, é o único que, pela sua virtude, pode produzir a matéria, criando. Por onde, só dele é próprio produzir a forma na matéria, sem nenhum adminículo de qualquer forma material precedente. E por isso os anjos não podem transmutar os corpos, no atinente a qualquer forma, sem a cooperação de sementes, conforme Agostinho. Ora, como nunca foi constituído nenhum corpo humano, cuja virtude formasse, via de geração, outro, especificamente semelhante, necessariamente o primeiro corpo humano foi formado imediatamente por Deus.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Embora os anjos sirvam a Deus em certos ministérios, relativamente aos corpos, há porém determinadas operações que Deus exerce sobre a criatura corpórea, que os anjos não podem realizar de nenhum modo, como, ressuscitar os mortos e dar vista aos cegos. Ora, por esse poder é que Deus também formou o corpo do primeiro homem, do limo da terra. Contudo, podia ter–se dado que os anjos exercessem algum ministério, na formação do corpo do primeiro homem, assim como exercerão, na ressurreição última, o de coligir as cinzas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os animais perfeitos, gerados de semente, não podem ser produzidos só pela virtude do corpo celeste, como imagina Avicena; embora, para a geração natural deles coopere a virtude desse corpo, conforme o dito do Filósofo, segundo o qual o homem e o sol geram o homem, da matéria. E daí vem o ser necessário uma região temperada para a geração do homem e dos outros animais perfeitos. Ao passo que basta a virtude dos corpos celestes para gerar, da matéria já disposta, certos animais imperfeitos. Pois, é manifesto–que para a produção de um ser perfeito é necessário mais que para a de um imperfeito.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O movimento do céu é a causa das transmutações naturais; não porém das que se fazem fora da ordem da natureza e pela só virtude divina, como, a ressurreição dos mortos e a visão dos cegos. Ora, a isso é semelhante a formação do homem, do limo da terra.
RESPOSTA À QUARTA. – Pelas razões causais dizemos, de duplo modo, que al juma cousa preexiste nas criaturas. De um modo, pela potência ativa e passiva, de maneira que essa causa não só possa ser feita da matéria preexistente, mas também, que alguma criatura preexistente possa fazê–las. De outro modo, só pela potência passiva, isto é, que possa ser feita da matéria preexistente, por Deus. E, segundo Agostinho, deste modo é que o corpo do homem, pelas razões, causais, preexistia nas obras produzidas.