Natureza e extensão desses méritos
Não é somente no Céu que a Santíssima Virgem exerce suas funções de Medianeira universal pela intercessão e distribuição de todas as graças; ela as exerceu já sobre a Terra, segundo a expressão comum, “pela aquisição dessas graças”, cooperando com a nossa redenção pelo mérito e pela satisfação. Nisso esteve associada a Nosso Senhor, que foi inicialmente mediador durante sua vida terrena, sobretudo pelo sacrifício da Cruz. Essa associação é também o fundamento da mediação que Ele exerce no Céu, pela intercessão de Maria, para nos aplicar os frutos da redenção que Ele nos transmite. Vejamos qual é o ensinamento comum dos teólogos sobre os méritos de Maria para nós, partindo dos próprios princípios da teologia sobre os diferentes gêneros de mérito.
Três gêneros de mérito propriamente dito
O mérito em geral é um direito a uma recompensa; ele não a produz, mas a obtém; o ato meritório confere direito. O mérito sobrenatural que pressupõe o estado de graça e a caridade é um direito a uma recompensa sobrenatural. Distingue-se da satisfação, que tem por objetivo reparar, pela expiação, a ofensa cometida pelo pecado à majestade infinita de Deus e torná-lo favorável a nós. O mérito, que pressupõe o estado de graça, distingue-se também da oração que, por uma graça atual, pode existir no homem em estado de pecado mortal, e que se dirige não à justiça divina, mas à misericórdia. Até mesmo no justo, ademais, a força impetratória da oração distingue-se do mérito, e por isso a oração consegue obter graças que não podem ser merecidas, como a da perseverança final, que é a continuação do estado de graça no momento da morte.
Mas é preciso distinguir três gêneros de mérito propriamente dito.
Existe primeiro, em sumo grau em Cristo, o mérito perfeitamente digno de sua recompensa, ou mérito perfeito de condigno, porque o valor da obra ou do ato de caridade teândrica, que na alma de Jesus procede da divina pessoa do Verbo, iguala ao menos o valor da retribuição em estrita justiça. Os atos meritórios de Cristo que eram, em sua santa alma, atos de caridade ou inspirados por ela, têm um valor infinito e superabundante em virtude da pessoa do Verbo da qual derivam. E Ele pôde, em estrita justiça, merecer por nós as graças da salvação, porque foi constituído Cabeça da humanidade, pela plenitude de graça que devia derramar sobre nós para nossa salvação.
Em segundo lugar, é de fé1 que todo justo ou toda pessoa em estado de graça que tem o uso da razão e do livre arbítrio, e que está ainda em estado de viator, pode merecer o aumento da caridade e a vida eterna por um mérito real, comumente chamado mérito de condigno, porque é digno de sua recompensa. Não significa que o mérito do justo esteja em pé de igualdade com a recompensa, como no Cristo, mas que ele lhe é proporcional, enquanto procedendo da graça habitual, germe da vida eterna prometida por Deus àqueles que observam os Seus mandamentos. Esse mérito de condigno tem, todavia, um direito à recompensa em justiça distributiva, ainda que não seja, segundo todo o rigor da justiça, como o de Cristo. Por isso a vida eterna é chamada de coroa de justiça 2, uma retribuição que se deve fazer à obra realizada 3, a recompensa de um trabalho que a justiça divina não pode esquecer 4.
Mas o justo não pode merecer por um mérito de condigno baseado na justiça, a graça para um outro homem, a conversão de um pecador ou o aumento da caridade em outra pessoa; a razão é que não foi constituído cabeça da humanidade para regenerá-la e conduzi-la à salvação; isso pertence apenas a Cristo 5. Em outros termos, o mérito de condigno dos justos, e mesmo o mérito da Virgem Maria, contrariamente ao de Cristo, é incomunicável.
Não obstante, todo justo pode merecer a graça para os outros por um mérito de conveniência, de congruo proprie, que está fundado não na justiça, mas na caridade ou amizade que o une a Deus; os teólogos dizem que está fundado nos direitos da amizade, in jure amicabili. Santo Tomás o explica dizendo: “Pois o homem, constituído em graça, cumprindo a vontade de Deus, é congruente que Deus, por uma amizade proporcional, cumpra a vontade de um relativa à salvação de outro. Embora, às vezes, possa advir impedimento por parte daquele a quem esse justo desejava a justificação”, de tal modo que não se converterá de fato6. Em outros termos: se o justo cumpre a vontade de Deus, seu amigo, convém, segundo os direitos de amizade, que Deus, seu amigo, cumpra o desejo de seu bom servidor. Assim, uma boa mãe cristã pode, por suas boas obras, por seu amor a Deus e ao próximo, merecer de congruo proprie, com um mérito de conveniência, a conversão de seu filho; assim Santa Mônica obteve a conversão de Santo Agostinho, não somente por suas orações dirigidas à infinita Misericórdia, mas por esse gênero de mérito: “O filho de tantas lágrimas ― disse-lhe Santo Ambrósio ― não poderia perecer”.
Vemos aqui o que deve ser o mérito de Maria para nós; deve-se notar a esse respeito que esse terceiro gênero de mérito, chamado de congruo proprie, ou de conveniência, é também um mérito propriamente dito, baseado in jure amicabili, sobre os direitos da amizade divina, que pressupõe o estado de graça.
A razão é que a noção de mérito não é unívoca ou suscetível de ser tomada num só sentido, mas é análoga, ou seja, tem sentidos diversos, mas proporcionalmente semelhantes, que são ainda sentidos próprios e não somente metafóricos ou em sentido lato, da mesma maneira que a sabedoria dos santos, sem ser a de Deus, é também e em sentido próprio, uma verdadeira sabedoria; igualmente a sensação, sem ser um conhecimento intelectual, é, em sentido próprio, um verdadeiro conhecimento em sua ordem.
Assim, abaixo dos méritos infinitos de Cristo, que apenas em estrita justiça pôde nos merecer a salvação, abaixo do mérito de condigno do justo para si mesmo, que lhe dá o direito em justiça a um aumento da caridade e (se morre em estado de graça) para a vida eterna, existe o mérito de conveniência de congruo proprie, baseado nos direitos da amizade, que é ainda um mérito propriamente dito e que pressupõe o estado de graça e a caridade 7.
Há ainda um mérito impropriamente dito, que é aquele que se encontra na oração de um homem em estado de pecado mortal, oração que tem um valor impetratório e que se dirige não à justiça de Deus, mas à sua misericórdia, e que se funda não nos direitos da amizade divina de caridade, mas na graça atual que o leva a rezar. Esse último mérito é chamado de conveniência em sentido lato somente, de congruo improprie, não sendo um mérito propriamente dito.
Tais são, pois, os três gêneros de mérito propriamente dito: o de Jesus Cristo para nós, o do justo para si mesmo e o do justo para outro homem.
O mérito propriamente dito de conveniência de Maria para nós
Se tal é o ensino geral dos teólogos sobre os diferentes gêneros de mérito, se Santa Monica pôde merecer, propriamente falando, com um mérito de conveniência, de congruo proprie, a conversão de Agostinho, como a Santíssima Virgem, Mãe de todos os homens, pôde merecer por nós? Apresentada assim a questão à luz dos princípios já enunciados, é mister resolvê-la.
Não é, pois, de admirar que a partir sobretudo do século XVI, os teólogos ensinem comumente de forma explícita que isso que Cristo nos mereceu de condigno, a Santíssima Virgem nos mereceu por um mérito de conveniência, de congruo proprie.
Esse ensinamento foi explicitamente formulado por Suárez, que demonstra, pelos múltiplos testemunhos da Tradição, que Maria, embora não nos tenha nada merecido de condigno, porque não foi constituída cabeça da Igreja, cooperou, no entanto, para nossa salvação pelo mérito de conveniência, ou de congruo 8. João de Cartagena 9, Novatov, Cristóvão de Veja 10, Teófilo de Raynaud 11 e Jorge de Rhodes 12 reproduzem essa mesma doutrina.
O mesmo ensinamento é comumente dado pelos teólogos posteriores, notadamente nos séculos XIX e XX, como Ventura, Scheeben, Terrien, Billot, Lepicier, Campana, Hugon, Bittremieux, Merkelbach, Friethoff e todos os que têm escrito nos últimos anos sobre a mediação universal da Santíssima Virgem.
Finalmente, o Papa Pio X, na encíclica Ad diem illum, de 2 de fevereiro de 1904, diz: “Maria... porque supera todas as outras criaturas pela santidade e união a Cristo, e porque foi associada por Ele à obra de nossa salvação, nos mereceu por um mérito de conveniência, de congruo, como dizem, o que Ele mesmo nos mereceu por um mérito de condigno, e ela é a principal tesoureira das graças que são distribuídas” 13..
Como se observa14, há uma dupla diferença entre o mérito de conveniência de Maria e o nosso: a Santíssima Virgem pôde assim nos merecer não apenas algumas graças, mas todas e cada uma delas, e não só nos mereceu a aplicação, mas a aquisição, porque esteve unida a Cristo Redentor no ato mesmo da redenção aqui na Terra, antes de interceder por nós no Céu.
Essa conclusão, tal como foi aprovada pelo Papa Pio X, é simplesmente a aplicação à Maria da doutrina comumente admitida sobre as condições do mérito de conveniência, de congruo proprie, fundado in jure amicabili, na amizade que une o justo com Deus. Portanto, certos teólogos consideram essa conclusão como moralmente certa, outros como uma verdadeira conclusão teológica inteiramente certa, e outros até como uma verdade formal e implicitamente revelada e definível como dogma. É ao menos, pensamos, uma conclusão teológica certa. Voltaremos a esse assunto no cap. III, art. III.
Qual é a extensão desse mérito de conveniência de Maria para nós?
Como a Virgem tem sido associada à totalidade da obra redentora de Cristo, e como os teólogos que acabamos de citar dizem geralmente que tudo o que Cristo nos mereceu de condigno Maria nos mereceu de congruo, e como, enfim, o Papa Pio X, ao sancionar essa doutrina, não colocou nenhuma restrição, bastará recordar o que Cristo nos mereceu 15.
Jesus nos mereceu em justiça todas as graças suficientes necessárias para que todos os homens possam realmente observar os preceitos, ainda que não os observem de fato 16, todas as graças eficazes com seu efeito conseqüente, ou seja, que alcançam o cumprimento efetivo da vontade divina e, finalmente, mereceu para os eleitos todos os efeitos da sua predestinação: a vocação cristã, a justificação, a perseverança final e a glorificação ou a vida eterna 17.
Segue-se daqui que Maria nos mereceu por um mérito de conveniência todas essas graças, e que no Céu pede a aplicação das mesmas e as distribui 18.
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Tudo isso nos mostra em que sentido tão elevado, tão íntimo e tão extenso Maria é nossa Mãe espiritual, a Mãe de todos os homens, e, por conseguinte, quanto deve velar pelos que não só a invocam às vezes, mas que se consagram a ela, para serem conduzidos por ela à intimidade de Cristo, como explicou admiravelmente São Luís Grignion de Montfort 19: “Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu fim último”. A devoção à Virgem não é, pois, superrogatória, como a que se pode ter por este ou aquele santo; ela é necessária e, quando verdadeira, fiel e perseverante, é um sinal de predestinação. Essa devoção “é ainda mais [necessária] para aqueles que são chamados a uma perfeição particular; nem creio ― diz São Luís ― que uma pessoa possa adquirir uma união íntima com Nosso Senhor e uma perfeita fidelidade ao Espírito Santo, sem uma grande união com a Santíssima Virgem e uma grande dependência de seu socorro... Disse ― acrescenta ― que isso aconteceria particularmente no fim do mundo... porque o Altíssimo e Sua Santa Mãe devem suscitar grandes santos... Essas grandes almas, cheias de graça e de zelo, serão escolhidas em contraposição aos inimigos de Deus a borbulhar em todos os cantos, e elas serão especialmente devotas da Santíssima Virgem, esclarecidas por sua luz, alimentadas de seu leite, conduzidas por seu espírito, sustentadas por seu braço e guardadas sob sua proteção, de tal modo que combaterão com uma das mãos e edificarão com a outra... Isso lhes há de atrair inimigos sem conta, mas também vitórias inumeráveis e glória para o único Deus”.
Essa sublime doutrina espiritual, cujos frutos veremos pouco a pouco, aparece a partir do cume da contemplação e da união íntima com Deus como a conseqüência natural dessa verdade admitida por todos os teólogos e afirmada hoje em todas as suas obras: Maria nos mereceu por um mérito de conveniência tudo o que Nosso Senhor nos mereceu em estrita justiça e, em particular para os eleitos, os efeitos de sua predestinação.
Cf. Santo Tomás, IIIª, q. 19, a. 4: “O mérito de Cristo se estende aos demais, como membros seus; assim como num homem a ação da cabeça de certo modo pertencente a todos os membros, pois, não sente só para si, mas por todos eles”.
Não podemos merecer por nós mesmos a graça da perseverança final, e nossa predestinação — segundo Santo Agostinho e Santo Tomás — não depende da previsão divina de nossos méritos, porque esses, sendo o efeito da predestinação, não podem ser a sua causa. Cf. santo tomás, Iª,q. 23, a. 5, Iª IIae, q. 114, a. 9.
Mas se não podemos merecer, propriamente falando, nossa perseverança final (que só pode ser obtida através da oração, cujo valor é diferente do mérito), Nosso Senhor mereceu-a em justiça para aqueles que perseverarem e a Santíssima Virgem mereceu-a também com mérito de conveniência. Os tomistas costumam dizer: “Praedestinatio nostra non est ex praevisis nostris meritis, sed effectus ejus sunt ex praevisis meritis Christi”. Em outras palavras, Cristo é a causa meritória da nossa salvação e Maria está sempre associada a Ele.