A Igreja aprovou, sob o pontificado de Bento XV, a 21 de janeiro de 1921, o Ofício e a Missa próprios de Maria Medianeira de Todas as Graças 1, e muitos teólogos consideram essa doutrina como suficientemente contida no depósito da Revelação para ser, um dia, solenemente proposta como objeto de fé pela Igreja infalível; ela é ensinada, de fato, pelo magistério ordinário que se manifesta pela liturgia, encíclicas e cartas pastorais dos bispos, pela pregação universal e pelas obras dos teólogos aprovados pela Igreja.
Veremos o que se deve entender por essa mediação e como ela é confirmada pela Tradição e fundamentada pela razão teológica.
O que se deve entender por essa mediação?
Santo Tomás nos diz ao falar da mediação do Salvador 2: “É ofício próprio do mediador unir aqueles entre os quais se interpôs”. Quer dizer, como explica mais adiante3, o mediador deve oferecer a Deus as orações dos homens e sobretudo o sacrifício, o ato principal da virtude da religião; e deve também distribuir aos homens os dons de Deus que santificam: a luz divina e a graça.
Há, portanto, uma dupla mediação: uma ascendente, em forma de oração e de sacrifício; outra descendente, pela distribuição dos dons divinos aos homens.
Esse ofício de mediador convém com absoluta perfeição somente a Jesus Cristo, o Homem-Deus, o único que pôde nos reconciliar com Deus, oferecendo-lhe, por toda a humanidade, um sacrifício de valor infinito, o da cruz, que é perpetuado substancialmente no sacrifício da Missa; somente Ele, também, como Cabeça da humanidade, pode nos merecer, com justiça, as graças necessárias para a salvação, e as distribui a todos os homens que não se afastam de sua ação santificadora. É, portanto, mediador como homem, enquanto a sua humanidade está pessoalmente unida ao Verbo e recebeu a plenitude da graça, a graça capital, que deve derramar-se sobre nós. Diz também São Paulo: “Porque há um só Deus, e há um só Mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem, o qual se deu a si mesmo para redenção de todos, (tal é o) testemunho (dado por Deus) no tempo devido” 4.
“Mas nada impede ― diz Santo Tomás5 ― certos outros serem, de algum modo, considerados mediadores entre Deus e os homens; isto é, se cooperam para a união dos homens com Deus, por via de preparação ou de ministério”, quer dizer, que disponham os homens a receber a influência do mediador principal ou que a transmitam, mas sempre em dependência dos méritos de Cristo.
Assim, no Antigo Testamento, os profetas e os sacerdotes da ordem levítica eram os mediadores para o povo eleito, anunciando o Salvador e oferecendo sacrifícios que eram figura do grande sacrifício da Cruz. Os sacerdotes do Novo Testamento podem também ser chamados de mediadores entre Deus e os homens, tanto que são ministros do Mediador supremo, pois oferecem o santo Sacrifício e administram os sacramentos em nome de Jesus Cristo.
Pergunta-se então se Maria, de forma subordinada e em dependência dos méritos de Cristo, é Medianeira universal para todos os homens desde a vinda de Nosso Senhor e para a obtenção e distribuição de todas as graças em geral, e até mesmo em particular. Não o é precisamente na qualidade de ministro, mas como associada à obra redentora de seu Filho, segundo a expressão de Santo Alberto Magno “non in ministerium, sed in consortium et in adjutorium” 6.
Os protestantes negam essa mediação. Pelo contrário, à questão assim apresentada, o senso cristão dos fiéis educados desde muitos séculos pela liturgia católica, que é expressão do Magistério ordinário da Igreja, está inclinado a responder de imediato: Maria, em sua qualidade de Mãe de Deus, Redentor de todos os homens, está totalmente designada para ser a Medianeira universal, pois é verdadeiramente intermediária entre Deus e os homens, mais particularmente entre seu Filho e nós.
Com efeito, por ser uma criatura, ela permanece sempre inferior a Deus e a Cristo, mas está elevada muito acima de todos os homens pela graça da Maternidade Divina, que é de ordem hipostática por seu fim, pela plenitude de graça, recebida no instante da sua concepção imaculada e que não cessou de crescer depois e, finalmente, pelo privilégio da preservação de toda falta.
Vê-se então o que se deve entender por essa mediação que a liturgia e o senso cristão dos fiéis atribuem à Maria. Trata-se, propriamente falando, de uma mediação subordinada, e não coordenada, à mediação do Salvador, de modo que ela depende inteiramente dos méritos de Cristo, o Redentor universal; trata-se também de uma mediação não necessária (pois a de Jesus é já superabundante e não precisa de complemento), mas preparada e querida pela Providência como uma irradiação da do Salvador, e de todas as irradiações a mais excelente. A Igreja considera-a como muitíssimo útil e eficaz para obter-nos de Deus tudo o que pode conduzir-nos direta ou indiretamente à perfeição e à salvação. Trata-se, por fim, de uma mediação perpétua, que se estende a todos os homens e a todas as graças, sem exceção alguma, como se verá em seguida.
É nesse sentido preciso que a Mediação universal é atribuída à Santíssima Virgem pela liturgia na Festa de Maria Medianeira e pelos teólogos que têm recentemente publicado numerosos trabalhos sobre esse ponto.
O testemunho da Tradição
Essa doutrina é afirmada de uma maneira geral e implícita desde os primeiros séculos. Tanto que Maria tem sido chamada desde o século II de a nova Eva, a Mãe dos viventes, como dissemos anteriormente, e ainda mais porque esse título sempre foi reconhecido, não só porque ela fisicamente concebeu e deu à luz ao Salvador, mas também porque cooperou moralmente com a sua obra redentora, sobretudo ao unir-se intimissimamente ao sacrifício da Cruz 7.
A partir do século IV e sobretudo do século V, os Padres afirmam claramente que Maria intercede por nós e que todos os benefícios e auxílios convenientes para a salvação nos vêm por ela, por sua intervenção e proteção especial. Desde a mesma época, ela é chamada de medianeira entre Deus e os homens, ou entre Cristo e nós.
Estudos recentes lançam uma grande luz sobre esse ponto 8.
A antítese entre Eva, causa da morte, e Maria, causa da salvação para toda a humanidade, é reproduzida por São Cirilo de Jerusalém 9, Santo Epifânio 10, São Jerônimo 11, e São João Crisóstomo 12. Convém citar esta oração de Santo Efrém: “Ave Dei et hominum Mediatrix optima. Ave totius orbis conciliatrix efficacissima”, e “post mediatorem mediatrix totius mundi”. Ave, Medianeira admirável de Deus e dos homens. Ave, conciliadora eficacíssima da Terra, e Medianeira depois do Medianeiro supremo 13.
Em Santo Agostinho, Maria é chamada Mãe de todos os membros de nossa Cabeça, Jesus, e diz que ela “cooperou por sua caridade para o nascimento espiritual dos fiéis, que são os membros de Cristo” 14. São Pedro Crisólogo diz que “Maria é a mãe dos que vivem pela graça, enquanto que Eva é a mãe dos mortais por natureza” 15 e vê-se que, para ele, Maria foi associada ao plano divino de nossa redenção.
No século VIII, São Beda falou no mesmo sentido 16; Santo André de Creta chamou Maria de Medianeira da graça, dispensadora e causa da vida 17, São Germano de Constantinopla disse que ninguém foi resgatado sem a cooperação da Mãe de Deus 18. São João Damasceno deu também a Maria o título de Medianeira e afirmou que lhe devemos todos os bens que nos são concedidos por Jesus Cristo 19.
No século XI, São Pedro Damião ensinou que na obra da nossa redenção nada é realizado sem Maria 20.
No século XII, Santo Anselmo 21, Eadmero 22 e São Bernardo expressaram-se da mesma maneira. Este chamou Maria de gratiae inventrix, mediatrix salutis, restauratrix saeculorum 23.
A partir da metade do século XII e sobretudo do século XIV, é freqüente a afirmação muito explícita da cooperação de Maria em nossa redenção, consumada por seu próprio sacrifício oferecido no momento da Anunciação e realizado no Calvário. Encontra-se esse testemunho em Santo Alberto Magno24, Arnaldo de Chartres, Ricardo de São Lourenço e Ricardo de São Vítor. Santo Tomás 25 indicou essa cooperação e a afirmam, de modo cada vez mais claro, São Bernardino de Sena, Santo Antonino 26, Suárez 27, Bossuet 28, e Santo Afonso. No século XVIII, São Luís Grignion de Montfort foi um dos que mais propagaram essa doutrina, mostrando todas as conseqüências práticas da mesma 29. Desde então é um ensinamento comum dos teólogos católicos.
O Papa Pio X disse na encíclica Ad diem illum, de 02 de fevereiro de 1904, que Maria é a poderosíssima Medianeira e reconciliadora de toda a Terra perante seu Filho Unigênito: “Totius orbis terrarum potentissima apud Unigenitum Filium suum mediatrix et conciliatrix”. O título está doravante consagrado pela Festa de Maria Medianeira, instituída em 21 de janeiro de 1921.
Razões teológicas dessa doutrina
As razões muitas vezes invocadas pelos Padres e mais explicitamente pelos teólogos são as seguintes:
Maria merece o nome de Medianeira universal subordinada ao Salvador se é a intermediária entre Deus e os homens, apresentando suas súplicas e obtendo-lhes os benefícios de seu Filho.
Ora, tal é precisamente, em relação a nós, o papel da Mãe de Deus, que, permanecendo uma criatura, alcançou por sua divina maternidade as fronteiras da Divindade e recebeu a plenitude de graça que deve derramar sobre nós. Ela de fato cooperou para a nossa salvação ao consentir livremente em ser a Mãe do Salvador e em unir-se o mais intimamente possível ao sacrifício de seu Filho. Veremos mais tarde que ela mereceu e satisfez com Ele por nós.
Finalmente, segundo a doutrina da Igreja, ela continua intercedendo para obter-nos todas as graças necessárias à salvação; com isso exerce sua maternidade espiritual, da qual falamos antes.
Cristo permanece, dessa forma, o mediador principal e perfeito, pois é somente em dependência de seus méritos que a Virgem Maria exerce sua mediação subordinada, que não é absolutamente necessária, uma vez que os méritos do Salvador são superabundantes30, mas que foi desejada pela Providência por causa da nossa debilidade e para comunicar a Maria a dignidade da causalidade na ordem da santificação e da salvação.
Assim, a obra redentora é totalmente de Deus como causa primeira da graça; é totalmente de Cristo como mediador principal e perfeito, e é totalmente de Maria, como medianeira subordinada. São três causas, não parciais e coordenadas, como três homens puxando um barco, mas totais e subordinadas, de modo que a segunda não age senão pelo influxo da primeira e a terceira pelo influxo das outras duas. Assim, o fruto de uma árvore é, por distintos motivos, inteiramente de Deus, autor da natureza, e inteiramente da árvore e do ramo que o sustenta. Não há parte do fruto que seja parte da árvore e parte do ramo, e também no caso de que falamos 31.
Acrescentemos que era conveniente que Maria ― por ter sido resgatada pelo Salvador por uma redenção soberana e preservadora de toda falta original e atual ― cooperasse dessa forma em nossa salvação, quer dizer, em nosso resgate das cadeias do pecado, em nossa justificação e em nossa perseverança até o fim.
Sua mediação supera assim em muito a mediação dos santos, pois somente ela nos deu o Salvador, somente ela esteve intimamente unida com um coração de Mãe ao sacrifício da Cruz, somente ela é a medianeira universal para todos os homens e, como veremos adiante, para todas as graças, não só em geral, mas em particular, até na mais particular de todas, que é para cada um de nós a graça do momento presente, que assegura nossa fidelidade de minuto a minuto.
Compreendemos melhor essa universalidade depois de ter demonstrado que Maria nos mereceu por um mérito de conveniência tudo o que Jesus Cristo nos mereceu por estrita justiça, que satisfez com Ele por nós com uma satisfação de conveniência, e que depois, pela aplicação dos frutos da redenção, continua intercedendo em favor de cada um de nós, mais especialmente por aqueles que a invocam, e que todas as graças particulares dadas a cada um de nós, de fato, somente o são por sua intervenção mediadora.