Vejamos qual foi o objeto primeiro da predestinação da Santíssima Virgem e em que sentido foi absolutamente gratuita.
Maria foi predestinada à Maternidade Divina antes de sê-lo à plenitude de glória e de graça.
Esse ponto da doutrina pode parecer muito elevado para ser exposto no início desta obra, mas é relativamente fácil de compreender, está geralmente admitido, ao menos implicitamente, e ilumina desde o alto tudo o que diremos na seqüência.
Como efetivamente o disse S.S. o Papa Pio IX, em sua bula Ineffabilis Deus, ao proclamar o dogma da Imaculada Conceição, por um mesmo decreto eterno Deus predestinou Jesus à filiação divina natural, imensamente superior à filiação divina adotiva, e Maria para ser a Mãe de Deus; porque a predestinação eterna de Cristo influi não somente na Encarnação, mas também nas circunstâncias em que se deveria realizar, em tal tempo e em tal lugar, em particular sobre isto: “Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine”, como diz o símbolo Niceno-Constantinopolitano1. Por um mesmo decreto eterno, Jesus foi predestinado para ser o Filho do Altíssimo e Maria para ser a Mãe de Deus2.
Daqui decorre que, como Jesus foi predestinado à filiação divina natural antes (in signo priori) de sê-lo ao grau mais alto de glória, e depois à plenitude de graça, o germe da glória, da mesma maneira a Bem-aventurada Virgem Maria foi predestinada primeiro à Maternidade Divina e, como conseqüência, a um grau muito alto de glória celeste, e depois à plenitude da graça, para que fosse plenamente digna de sua missão de Mãe do Salvador, tanto que, como Mãe, deveria estar mais intimamente associada que ninguém à obra redentora de seu Filho, com a conformidade mais absoluta de vontade. Isso diz, em substância, S.S. o Papa Pio IX na Ineffabilis Deus 3.
E, pois, como em Jesus a dignidade de Filho de Deus, ou do Verbo feito carne, o eleva imensamente sobre a plenitude de graça criada, de caridade e da glória que recebeu sua santa alma como conseqüência da Encarnação ou da união hipostática das duas naturezas n’Ele, da mesma maneira em Maria, a dignidade de Mãe de Deus a eleva sobre a plenitude de graça, de caridade, e até sobre a plenitude de glória celeste que recebeu em virtude da sua predestinação excepcional a essa divina maternidade.
Segundo a doutrina admitida por Santo Tomás e muitos outros teólogos sobre o motivo da Encarnação (para a redenção da humanidade), a predestinação de Maria para ser Mãe de Deus depende da previsão e permissão do pecado de Adão. E essa falta foi permitida por Deus para o maior bem, como explica Santo Tomás4, para que “ali onde abundou o pecado, superabundou a graça”5, pela Encarnação redentora 6.
Como Deus quer o corpo do homem para a alma, e esta para vivificar o corpo, de maneira que não seria criada se o corpo não estivesse disposto para recebê-la, da mesma maneira Deus permitiu o pecado para repará-lo por esse grande bem que é a Encarnação redentora, e desejou-a para a regeneração das almas, de tal forma que, no plano atual da Providência, não teria tido lugar a Encarnação sem ter existido o pecado. Mas, nesse plano, tudo fica subordinado a Cristo e a sua santíssima Mãe, e é sempre muito certo dizer com São Paulo7: “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus”8.
A grandeza de Cristo e a de sua Mãe não ficam em nada diminuídas.
Maria foi, portanto, predestinada primeiro à Maternidade Divina. Essa dignidade aparece ainda maior se notarmos que a Santíssima Virgem, que pôde merecer a glória ou o Céu, não pôde merecer a Encarnação nem a Maternidade Divina, porque a Encarnação e essa divina maternidade superam a esfera do mérito dos justos, que está ordenada à visão beatífica como a seu fim último9.
Resta ainda uma razão verdadeiramente apodítica: o princípio do mérito não pode ser merecido; ora, a Encarnação é, depois do pecado original, o princípio supremo de todas as graças e até mesmo de todos os méritos dos justos; não pode ser, portanto, merecida. Pela mesma razão, Maria não pôde merecer nem de condigno nem de congruo proprie sua divina maternidade, pois isso teria sido merecer a Encarnação10.
Como diz muito exatamente Santo Tomás, o que Maria pôde merecer, pela plenitude inicial de graça que havia recebido gratuitamente pelos méritos futuros de seu Filho, foi o aumento da caridade e um grau superior de pureza e santidade que era conveniente para que fosse a digna Mãe de Deus 11. E, como diz Santo Tomás em outro lugar: “Maria não mereceu a Encarnação (nem a Maternidade Divina), mas o decreto da Encarnação estando pressuposto, ela o mereceu com mérito de conveniência que esta se fizesse por ela”12, quer dizer, mereceu o grau de santidade que convinha à Mãe de Deus, grau que nenhuma outra virgem mereceu de fato e não poderá merecer, porque nenhuma outra recebeu nem receberá a plenitude inicial de graça e de caridade que foi o princípio de tal mérito.
Essa primeira razão da eminente dignidade da Mãe de Deus, derivada de sua predestinação a esse título, o mais elevado entre todos, é de uma clareza surpreendente. Contém três verdades que são como estrelas de primeira magnitude no Céu da teologia: 1ª, por um mesmo decreto, Deus predestinou Jesus à filiação divina natural e Maria à Maternidade Divina; 2ª, Maria foi predestinada a essa divina maternidade antes de sê-lo à glória e a um alto grau de glória e de graça, que Deus quis para ela, para que fosse a digna Mãe de Deus; 3ª, embora Maria tenha merecido de condigno, ou de maneira condigna, o Céu, não pôde merecer a Encarnação13 nem a Maternidade Divina, porque esta ultrapassa absolutamente a esfera e o fim último do mérito dos justos que somente está ordenado para a vida eterna dos eleitos.
Muitos teólogos consideram essa razão como concludente; contém virtual e ainda implicitamente as razões que exporemos no artigo seguinte e que não são mais que seu desenvolvimento, como a história de um predestinado é o desenvolvimento de sua eterna predestinação14.
A gratuidade da predestinação de Maria
Algumas considerações sobre a eminente predestinação de Maria permitirão compreender melhor a gratuidade.
É preciso notar que Cristo é, entre todos os homens, o primeiro predestinado, pois sua predestinação é o exemplar e a causa da nossa; ele nos mereceu de fato todos os efeitos da nossa predestinação, como o demonstra Santo Tomás15.
Ora, Cristo, enquanto homem, foi predestinado, acabamos de dizer, à filiação divina natural, imensamente superior à filiação adotiva, antes de ter sido à glória e à graça. Sua predestinação primeira não é outra, certamente, que o próprio decreto da Encarnação, e esse decreto eterno, como vimos, abarca não só a Encarnação abstratamente considerada, ou por assim dizer, a substância da Encarnação, mas também as circunstâncias da Encarnação que deveria realizar-se hic et nunc, aqui e agora, de modo que o Verbo deveria encarnar-se no seio da Virgem Maria, “desposada com um varão, que se chamava José, da casa de Davi”16.
A predestinação de Jesus à filiação divina natural implica, pois, a de Maria à Maternidade Divina. Certamente, a predestinação de Maria a essa divina maternidade é manifestamente anterior a sua predestinação à glória, uma vez que Cristo é o primeiro dos predestinados. Com isso se confirma grandemente o que dizíamos nas páginas anteriores17.
É evidente também que a predestinação de Maria, como a de Cristo, é gratuita. É claro, com efeito, que Jesus foi predestinado à filiação divina natural independentemente de seus méritos, porque seus méritos pressupõem sua Pessoa divina de Filho de Deus, e Jesus, como homem, foi precisamente predestinado a ser o Filho de Deus por natureza. Esse é o princípio de todos os seus méritos e esse princípio não pôde ser merecido; seria, ao mesmo tempo, causa e efeito, sob o mesmo aspecto, e se causaria a si mesmo18.
Igualmente, a predestinação de Maria à Maternidade Divina é gratuita ou independente dos méritos da Santíssima Virgem, porque, como vimos, ela não pôde merecer essa divina maternidade, pois teria sido merecer a própria Encarnação, que é o princípio fundamental de todos os méritos dos homens após o pecado original. Por isso diz Maria no Magnificat: “Minha alma glorifica o Senhor... porque se dignou olhar a pequenez (ou humilde condição) de sua serva”.
Também a predestinação de Maria à glória e à graça é manifestamente gratuita, como conseqüência moralmente necessária de sua predestinação inteiramente gratuita à Maternidade Divina19. E, não obstante, Maria mereceu o Céu, pois foi predestinada a obtê-lo por seus méritos20.
Vê-se, pois, a ordem do plano divino: 1º, Deus quis manifestar sua bondade; 2º, Ele quis a Cristo e sua glória de Redentor, o que supõe a permissão simultânea do pecado original, para o maior bem; 3º, quis a Santíssima Virgem Maria como Mãe de Deus Redentor; 4º, quis, como conseqüência, a glória de Maria; 5º, quis a graça e os méritos pelos quais ela obteria essa glória; 6º, quis a glória e a graça dos outros eleitos.
A predestinação de Maria aparece, assim, em toda a sua elevação. E compreende-se porque a Igreja lhe aplica, por extensão, estas palavras do livro dos Provérbios: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. Desde a eternidade fui constituída, e desde o princípio, antes que a Terra fosse criada. Ainda não havia os abismos, e eu estava já concebida; ainda as fontes das águas não tinham brotado; ainda se não tinham assentado os montes sobre a sua pesada massa; antes de haver outeiros, eu já tinha nascido. Ainda ele não tinha criado a Terra nem os rios, nem os eixos do mundo. Quando ele preparava os Céus, eu estava presente; quando, por uma lei inviolável, encerrava os abismos dentro dos seus limites; quando firmava lá no alto a região etérea, e quando equilibrava as fontes das águas; quando circunscrivia ao mar o seu termo, e punha lei às águas, para que não passassem os seus limites; quando assentava os fundamentos da Terra, eu estava com ele, regulando todas as coisas; e cada dia me deleitava, brincando continuamente diante dele, brincando sobre o globo da Terra, e achando as minhas delícias em estar com os filhos dos homens. Agora, pois, filhos, ouvi-me: Bem-aventurados os que guardam os meus caminhos. Ouvi as minhas instruções, e sede sábios, e não queirais rejeitá-las. Bem-aventurado o homem que me ouve, e que vela todos os dias à entrada da minha casa, e que se conserva à porta da minha casa. Aquele que me achar, achará a vida, e alcançará do Senhor a salvação”21.
Maria foi misteriosamente anunciada como aquela que triunfará da serpente infernal22, como a Virgem que gerará o Emanuel23, e foi figurada pela Arca da Aliança, pela casa de ouro, pela torre de marfim. Todos esses testemunhos demonstram que foi predestinada primeiro a ser a Mãe de Deus, a Mãe do Redentor; e a razão pela qual a plenitude da glória e da graça lhe foi conferida, foi precisamente para que fosse a digna Mãe de Deus, “ut redderetur idonea ad hoc quod esset mater Christi”, como disse Santo Tomás24.
Esse ponto da doutrina parecia-lhe muito certo, pois disse25: “A Bem-aventurada Virgem Maria aproximou-se mais que ninguém da humanidade de Cristo, uma vez que ela recebeu sua natureza humana. E por isso Maria deveria receber de Cristo uma plenitude de graça que ultrapassa a dos demais santos”.
Pio IX fala da mesma maneira na bula Ineffabilis Deus: “Deus, desde o princípio e antes de todos os séculos, escolheu e preparou para seu Filho unigênito a Mãe pela qual haveria de nascer, ao encarnar-se na ditosa plenitude dos tempos; amou-a mais que todas as criaturas, prae creaturis universis, e com amor tal, que colocou nela, de modo especial, todas as suas complacências. E por isso cumulou-a tão maravilhosamente com os tesouros de sua divindade, mais que a todos os espíritos angélicos, mais que a todos os santos, com a abundância de todos os dons celestiais, e foi sempre isenta completamente de todo pecado e, bela e perfeita, apareceu com tal plenitude de inocência e de santidade que não se pode conceber maior, excetuando a de Deus, e nenhum entendimento que não seja o do próprio Deus, pode medir tamanha grandeza”.
Citamos esse texto antes em latim e mais longamente no cap. II, art. IV.
Mas há algo muito especial em Maria: sua predestinação à Maternidade Divina foi uma mesma coisa com a predestinação de Cristo à filiação divina natural, quer dizer, com o decreto eterno da Encarnação. Isso se deduz claramente do texto de Pio IX que acabamos de citar.
Desde toda a eternidade, Deus, o Pai, ao predestinar Cristo à filiação divina natural, amou também e escolheu (dilexit, elegit et praedestinavit) Maria como sua Mãe, à qual, como conseqüência, deu a plenitude da glória e da graça. Como diz a Bula Ineffabilis Deus: “E certamente era de todo conveniente que uma mãe tão venerável refulgisse sempre adornada dos esplendores da santidade mais perfeita”.
Santo Tomás, in Epist. ad Romanos, lect. 5, ed. Marietti, p. 118, diz: “Post Christum habuit Maria maximam plenitudinem gratiae, quae ad hoc est electa, ut esset Mater Dei”.
A predestinação da Maternidade Divina de Maria encerra, como conseqüência, a da glória e a da graça, porque essa maternidade tem uma relação tão íntima com Deus que exige ou postula a participação da natureza divina. É inconcebível a Mãe de Deus privada da graça. Cf. hugon, De Maria Virgine Deipara, 1926, p. 734. A Maternidade Divina implica a confirmação na graça e a impecabilidade, porque exige um mútuo e perpétuo amor da Mãe de Deus e de Seu Filho; Deus devia a si mesmo o preservar a sua mãe de toda falta que a houvesse separado de si. Cf. hugon, ibid., p. 736.
Os molinistas separam-se dos tomistas em sua teoria geral da predestinação, embora pareça, como observa o Pe. Merkelbach, Mariologia, p. 101, que deveriam fazer uma exceção para Maria, pois ao fato de que tenha sido predestinada gratuitamente à Maternidade Divina, segue-se que foi predestinada também gratuitamente, como conseqüência, à glória; não podendo Deus permitir a perda eterna de sua Mãe, deveu querer efetivamente conduzi-la à salvação e suscitar nela os méritos que a deveriam conduzir à salvação.