Skip to content

Category: Jean MadiranConteúdo sindicalizado

Jean Madiran (1920-2013), editor de Itinéraires, jornalista e ensaísta, foi uma inteligências mais lúcidas do século XX.

O acordo Roma-Moscou

O artigo seguinte trata de uma das páginas mais tristes de nossa história, o acordo Roma-Moscou firmado em 1962. Ele nos ajuda a compreender o porquê do Vaticano ter se calado sobre o comunismo no Concílio, bem como as origens da atual política de simpatia por políticos e personalidades de esquerda. 

  

Revelado inicialmente pela imprensa comunista, foi confirmado posteriormente por publicações progressistas e comentado no periódico católico "Itinéraires". Mas ninguém leu, ou se leu, não acreditou, ou se acreditou, deu ao acordo uma interpretação complacente que não mais se pode manter. (Leia mais)

 

A civilização na perspectiva da piedade

Jean Madiran

 

1. — Civilização é um termo recente, não tem dois séculos. Mas a idéia é antiga, pois os inimigos da civilização têm um nome bem antigo: BÁRBAROS. Esse nome foi dado pela civilização grega, e designava os estrangeiros. Nas primeiras páginas da Política de Aristóteles já encontramos referência aos bárbaros, os quais estarão presentes no pensamento desde os primórdios da filosofia e por toda a parte. Assim, desde o início, a civilização está presente na reflexão dos pensadores.

“Os bárbaros são definidos como povos que não vivem sob as leis”[1]. Há a lei eterna, a lei natural, as leis positivas e suas relações conhecidas ou desconhecidas:

“A lei natural, que deve ser a norma de todas as nossas leis humanas, pode ser definida como uma participação da lei eterna, que é Deus. É claro que o reconhecimento público da lei natural não gerará automaticamente a observância dessa lei — a história está aí para prová-lo, tanto na experiência dos indivíduos como na das nações. Mas, uma coisa é reconhecer que não observamos uma lei que sabemos ser preciso observar, outra coisa é pretender que não há nenhuma lei imutável e comum, e agir como se ela não existisse. Com esta atitude, instituímos a barbárie mais universal que pode haver. Os bárbaros, com efeito, eram definidos como homens que não viviam sob leis. Ora, os bárbaros da antigüidade jamais negaram a lei natural em toda a sua generalidade. O homem, para fazê-lo, e tornar-se o pessimum omnium animalium (Santo Tomás, in I Pol., lect. I) numa medida tão draconiana, precisaria esperar pelo século das luzes.”[2]

Por onde se vê que a civilização se define antes de mais nada por sua relação com a lei natural. Sob um primeiro enfoque, a civilização identifica-se com a lei natural. Sob um segundo enfoque, verifica-se o que a distingue: a lei natural é universal e imutável, enquanto as civilizações são particulares, com seus progressos e declínios, com sua história. As civilizações decaem ou desaparecem sob o peso da barbárie interior ou exterior; ou ainda, desmoronam após acontecimentos aparentemente fortuitos, sem relação visível com o bem ou o mal, ou com a oposição entre o homem civilizado e o bárbaro. Elas também conhecem ressurgimentos inesperados. A civilização de Cnossos e de Festo[3] desapareceu completamente por algum motivo desconhecido, como um inútil empecilho ao gênero humano; desde outro ponto de vista, ela sobreviveu por sua influência sobre Micenas e, por intermédio de Homero, talvez ela ainda nos diga algo sem que o saibamos. Há casos em que a decadência se dá de modo tranqüilo, com a civilização apodrecendo lentamente e de pé, sem que o ferro do bárbaro venha do exterior para dar cabo da sua vida. Decadências quase hermeticamente fechadas em si mesmas, peças de laboratório, porém misteriosas. Que os filósofos, ao menos os maiores, surjam de preferência no declínio das civilizações e não no seu alvorecer ou no apogeu, apenas aumenta o mistério.

 

2. — A lei natural foi inscrita por Deus na natureza das coisas e dos seres, gravada por Ele no coração dos homens e finalmente revelada no Decálogo. Ela é de si mesma acessível à razão humana, mas não sem dificuldades imensas e um grande risco de erro. Ela relaciona-se com a história, foi inscrita, enunciada e promulgada em vista de uma história: com efeito, a civilização é a lei natural e sua história entre os homens. O fluxo e refluxo de civilização e barbárie, é a história do modo com que a lei natural é recebida, conhecida, acatada e praticada pelo gênero humano.

A lei natural é conhecida de três maneiras. Na sua mais ampla generalidade, “é preciso fazer o bem e evitar o mal”[4], é a primeira evidência imediata da razão prática. A esse respeito, já é para nós inseparável de uma história, aquela que marca mais fortemente o ser humano: a história dos seus primeiros anos. Uma vez que o despertar da razão é posterior ao nascimento físico, esse despertar é favorecido, guiado, retardado ou paralisado pela educação. A lei natural “está inscrita no coração dos homens e nenhuma iniqüidade a pode apagar”[5], mas “é eclipsada quando se trata de uma ação particular a ser realizada, na qual a razão é impedida de aplicar o princípio geral ao caso particular do qual se trata, por causa da concupiscência ou de alguma paixão qualquer”[6]. Cabe à educação formar o homem para o domínio das paixões e concupiscências e, por isso, se não cumprir seu papel, será em parte responsável pelos eclipses que poderão ocorrer à lei natural mesmo na sua mais ampla generalidade.

Em segundo lugar, a lei natural é conhecida nos seus preceitos secundários por uma atividade discursiva da razão (ou ainda por conaturalidade). Ora, a lei natural comporta não apenas “princípios gerais conhecidos por todos”, mas também “princípios secundários mais particulares, que são como que as conclusões que decorrem dos princípios gerais”[7]. Sob esse aspecto, a educação intelectual e moral é muito importante para o conhecimento da lei natural. E esse conhecimento é bem mais frágil: “Quanto aos preceitos secundários, a lei natural pode ser apagada do coração dos homens, seja em razão de propagandas perversas[8], (…) seja por conseqüência de costumes depravados e hábitos de corrupção moral”[9].

Em terceiro lugar, a lei natural é conhecida como verdade revelada, pois além de acessível à razão ela nos foi dada por Deus no Decálogo: “Os Mandamentos do Decálogo são os primeiros preceitos da lei, e sua absoluta evidência os impõe facilmente ao assentimento da razão natural”[10]. Os domínios da razão e da fé não são tão estanques que uma mesma verdade não possa pertencer a um e outro domínio sob diferentes pontos de vista. “Mesmo no que se refere àquilo que a razão humana é capaz de conhecer acerca de Deus, era preciso que o homem fosse instruído pela revelação divina. Caso contrário, apenas poucos alcançariam o conhecimento de Deus, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros. No entanto, a salvação do homem depende do conhecimento dessa verdade… Logo, para que a salvação adviesse aos homens de modo mais conveniente e seguro, cumpria que eles fossem, por divina revelação, ensinados nas coisas divinas”[11]. A lei natural foi expressamente recebida de Deus num dado momento da história do povo hebreu e, por meio dele, transmitida a toda a humanidade.

O conhecimento da lei natural aparece assim sob a dependência de uma educação, de uma transmissão e de uma história. Sua dependência é menor, sua sobrevivência é mais fortemente assegurada sob o primeiro aspecto, pois, uma vez que foi gravada por Deus no coração do homem, não pode ser arrancada dali. Contudo, isso não a põe inteiramente ao abrigo das particularidades da história individual ou coletiva. — Na medida em que comporta conclusões tiradas pela razão, sua dependência aumenta. Enquanto ela é a transmissão de uma revelação feita uma única vez, ela está inteiramente engajada nas vicissitudes da história.

O conhecimento natural da lei, “depois de longo tempo e de mistura com muitos erros”, foi a obra do pensamento grego, e nós recolhemos sua herança em Ésquilo e Sófocles, Platão e Aristóteles. A revelação sobrenatural da lei foi confiada ao povo hebreu e nos foi transmitida pela “história santa” e pela Igreja. O nascimento da civilização pode portanto ser situado no tempo e no espaço — ela nos vem da Grécia e da Palestina, e não de outra parte. No entanto, se é verdade que a civilização é a história da lei natural por entre os homens, existem claramente outros focos de civilização: contudo, estão eles não apenas privados do Decálogo, como chegaram muito aquém do pensamento grego no conhecimento racional da lei natural. Por analogia com os “preambula fidei”, poderíamos com maior exatidão chamá-las de “preâmbulos de civilização”.

 

3. — Vê-se, pois, a que ponto o homem é devedor:

“Nós nos tornamos obrigados para com os outros, segundo a excelência diversa deles e os benefícios diversos que nos fizeram. Ora, em ambos os casos o lugar supremo pertence a Deus, por ser perfeitíssimo e o princípio primeiro que nos deu o ser e nos governa. Mas, em segundo lugar, os princípios que nos governam e nos dão o ser são os pais e a pátria, em que e de quem nascemos, e que nos educaram. Portanto, depois de Deus, somos obrigados sobretudo aos pais e à pátria.”[12]

Este célebre texto de Santo Tomás, bem como a seqüência a que nos referiremos adiante, deveria estar no centro de todo pensamento sobre a civilização. Ele assinala a etapa inevitável, e fundamental, de uma reflexão sobre o assunto; a saber, escrutar a condição essencialmente devedora do homem: uma dívida que, não importa o seu talento, nem as suas ações, ele jamais poderá quitar. No tocante a Deus compreende-se claramente, mas isso também vale ao que se refere “aos pais e à pátria”. Essa dívida está além da justiça, pois esta última “implica render a outrem o que lhe é devido, de maneira a restabelecer uma igualdade”. Ora, por um lado “o homem não pode dar nada a Deus que não lhe seja devido, de modo que jamais quitará a sua dívida” e, por outro lado, "não podem os pais ser pagos, com igualdade, o que lhes é devido”[13]. Aristóteles já havia indicado: “É impossível quitar inteiramente as dívidas em todas as circunstâncias, como é o caso no que se refere às honras que rendemos aos deuses e aos pais… é justo que o beneficiário retribua os serviços que recebeu: o filho, contudo, faça o que fizer, jamais quitará os benefícios de que seu pai o cumulou e sua dívida subsistirá para sempre.”[14]

Essa condição devedora é o ponto de partida da reflexão de Charles Maurras sobre a civilização:

“O indivíduo que vem ao mundo numa 'civilização' recebe incomparavelmente mais do que dá. Uma desproporção que podemos chamar de infinita se estabelece entre o valor próprio de cada indivíduo e o acúmulo de valores no meio do qual surge.

“Quanto mais uma civilização prospera e se sofistica, mais crescem estes últimos valores (…) segue-se daí que uma civilização tem dois suportes. Ela é antes de mais nada um patrimônio, e é em seguida um patrimônio transmitido (…).

"O indivíduo é esmagado por uma quantidade de bens que não são seus e dos quais, contudo, tira proveito em maior ou menor medida. Rico ou pobre, nobre ou camponês, ele se banha numa atmosfera que absolutamente não é da natureza bruta, mas da natureza humana, que não é fruto das suas mãos, senão o resultado da grande obra dos seus predecessores diretos e próximos, ou antes, da sua associação fecunda e da sua útil e justa comunidade (…).

“De todos esses indivíduos, o mais insolvente é sem dúvida aquele que pertence à civilização mais rica e preciosa (…) Deveríamos, segundo penso, protestar contra um erro de linguagem muito comum. Falamos indistintamente a civilização ou as civilizações. Não se trata de coisas iguais, absolutamente. Na China, há uma civilização: quer dizer, um patrimônio material e moral que se transmite. Há indústrias, artes, ciências, costumes. Há riquezas, monumentos, doutrinas, opiniões, qualidade adquiridas, favoráveis à vida do ser humano. Mesmo fenômeno na Índia, Peru (…). Contudo, por mais desenvolvidas que forem essas diferentes civilizações, não são propriamente dizendo a civilização.

"A civilização só será definível pela história. Houve um momento, nos fastos do mundo, onde, mais inventivo e industrioso do que jamais fora, o homem percebeu, contudo, que tanta arte se consumia em vão. Com efeito, de que adianta aumentar o número de bens e a quantidade das riquezas? Toda quantidade é suscetível de novos acréscimos, e todo número, de um aumento indefinido. O maravilhoso, o sublime, o grandioso, o enorme, tudo o que depende da quantidade ou do número de elementos utilizados, não pode prometer à avidez do homem mais do que decepção. Uma torre ou uma coluna de cem pés pode ser aumentada em outros cem pés, que também podem ser aumentados em outro tanto. De que valem, pois, esses progressos meramente materiais? Nem nas ciências, nem nas artes, nem mesmo nas simples comodidades da vida, esse amontoado de coisas vale alguma coisa. Quanto mais incham, mais excitam nossos desejos, desesperando-nos (…).

"Sim, o desejo sempre crescerá e, com ele, a dor, a decepção e a inquietude. As civilizações, ao impor ao homem uma dívida, prometeram-lhe apenas uma corrida absurda e sem fim, rumo ao sentimento da ‘infinita vaidade de tudo’, como dizia o desventurado Leopardi.

“Os gregos, porém, ao perceberem a vaidade das buscas, não quiseram permitir que fosse infinita. Buscaram um termo à incessante corrida. Um instinto maravilhoso, muito mais do que a reflexão, ou antes, se quisermos, um brilho da razão sobre-humana ou divina, fez com que compreendessem que o bem não estava nas coisas, mas na ordem das coisas; que o bem não estava no número, mas na composição; e que o bem não se referia absolutamente à quantidade, mas à qualidade. Eles introduziram a forte noção dos limites, não apenas na arte, mas no pensamento e na ciência dos costumes. Em moral, ciência, arte, sentiram que o essencial não estava no lado da matéria e, mesmo utilizando os materiais mais preciosos, aplicavam-lhes a sua medida. A idéia do “ponto de perfeição e de maturidade” dominou esse grande povo pelo tempo em que seguiu fiel a si mesmo.

"O Rei Salomão julgava fazer ciência compilando a nomenclatura das plantas, desde a mais pequena até a mais alta. Um grego, Aristóteles, nos ensinou que esse catálogo de conhecimentos é apenas o ponto de partida, que não há absolutamente ciência verdadeira sem ordem e que a ordem da ciência não é aquela da grandeza ou da pequenez. Assim também, os artistas do Egito e da Ásia enviaram para lá amostras da sua arte: desenvolvendo-se nesta terra e nesta raça favorecida, os modelos orientais testemunharam que a arte não consiste em fazer colossos, nem em deformar a natureza em caretas monstruosas, nem em copiar ao máximo ou até à perfeição da semelhança: a arte grega inventou a beleza. Do mesmo modo, no governo de si mesmo, os moralistas ensinaram que a felicidade não consiste na multiplicidade dos bens de que nos apropriamos, nem tampouco na avareza ressecada da alma que se furta ao contato e se isola; é importante que a alma seja mestra de si mesma, mas também convém que saiba encontrar o seu bem e cultivá-lo, aperfeiçoando-se num esforço feliz. A filosofia grega abordou assim a virtude.

"Esta civilização toda voltada para a qualidade foi chamada simplesmente, nos seus belos dias, de Grécia. Coube a Roma difundi-la pelo universo, de início com as legiões dos seus soldados e colonos, em seguida com os missionários da fé cristã. As duas Romas conquistaram assim quase todo o mundo conhecido…”[15]

O pensamento maurrasiano segue, ao menos neste ponto, inteiramente alheio à idéia de uma civilização cristã: a Roma católica, do ponto de vista da civilização, não teria feito mais do que recolher e transmitir o capital inegável da civilização grega.

Trata-se seguramente de uma função histórica que a Igreja realizou de fato, da qual se honra de ter realizado e que há sempre de realizar: a Igreja não é indiferente à sabedoria dos Antigos[16]. Por outro lado, é verdade que o pensamento grego é aquele que iniciou a humanidade em um conhecimento natural da ORDEM, da BELEZA e da VIRTUDE. Mas, na época em que escrevia sua análise da civilização, que se tornou clássica, Maurras não conhecia claramente dívidas maiores do homem: ter recebido o Decálogo e a Fé católica. Mas não se enganava absolutamente ao assinalar que o homem é irremediavelmente constituído devedor, que não poderá jamais quitar sua dívida, e que quão mais civilizado for, mais devedor é.

Qual é, portanto, o dever em tal situação? Não se trata de um dever de justiça, estritamente falando, visto que não poderíamos satisfazer a justiça “que implica retribuir o que é devido de maneira a restabelecer uma igualdade”. Trata-se de um dever de piedade.

Mas, a piedade, dir-se-á, não é própria da religião, das “obras piedosas”, da atitude perante Deus? De modo algum! A virtude de piedade não é a virtude da religião. No entanto, clandestina, anônima, deixou-se levar e perdeu seu nome: assim como ocorreu com a virtude da prudência e outras, a linguagem fez delas o que bem quis. As palavras não esperam muito tempo para serem desfiguradas com a dissolução das realidades por elas designadas.

*

4. — Definamos:

A virtude da piedade não diz respeito ao culto devido a Deus, de que trata a virtude da religião. A virtude de piedade é a virtude da “piedade filial” e, por extensão, da “piedade nacional”. Ela é, como a virtude de religião, anexa à virtude principal da justiça. Ensina Santo Tomás:

“Nas virtudes anexas a uma virtude principal, devemos considerar dois elementos: primeiro, que essas virtudes hão de convir de algum modo com a principal; segundo, que, por outro lado, hão de se afastar da noção perfeita da principal. (…) Ora, a justiça, por natureza, consiste em dar a outrem o que lhe é devido, de modo a se restabelecer uma igualdade (…) Mas, tudo o que o homem retribui a Deus lhe é devido; logo, não pode haver aí igualdade, de modo que lhe retribua o quanto deve (…) Tampouco podem os pais ser pagos, com igualdade, do que lhes é devido.”[17]

Nessa situação, em que a justiça está fora do nosso alcance, a religião define nossa atitude com respeito a Deus; a piedade define nossa atitude com respeito aos homens, ela é a "manifestação de amor que temos para com os pais e a pátria”[18]; "a religião, que presta culto a Deus, é uma virtude diferente da piedade, que reverencia os pais e a pátria”[19]. A piedade nacional não esgota nossos deveres para com a pátria, pois é nosso dever para com a pátria enquanto “princípio conatural que nos deu o ser e nos governa”[20], e não enquanto é o lugar de um bem comum a ser promovido, defendido ou distribuído: “a piedade se estende à pátria, enquanto princípio da nossa existência; ao passo que a justiça legal visa ao bem da pátria, enquanto bem comum. Logo, a justiça legal tem, mais que a piedade, a natureza de virtude geral”[21]. Logo, "assim como o fim da religião é prestar culto a Deus, assim, em segundo grau, o objeto da piedade é reverenciar os pais e a pátria”[22].

O dever de piedade decorre dos primeiros princípios da lei natural, e está contido no Quarto Mandamento do Decálogo. O Mandamento ordena “honrar o pai e a mãe”, mas ele certamente concerne a toda a família, os ancestrais, a pátria inteira, conforme ensina Santo Tomás: "Os nossos deveres para com os pais têm prevalência sobre o que devemos à pátria e aos que nos são próximos pelo sangue; pois é por termos recebido de nossos pais a vida, que também temos consangüíneos e pátria. Portanto, como os preceitos do decálogo são os primeiros preceitos da lei, eles nos obrigam antes para com os pais do que para com a pátria e os demais consangüíneos. Nem por isso, porém, devemos deixar de entender que o preceito de honrar os pais também nos manda cumprir os nossos deveres para com qualquer outra pessoa, assim como o secundário está incluído no principal”[23].

Que a “piedade” tenha recebido na linguagem corrente um sentido religioso provém, muito provavelmente, da confusão entre a “virtude da piedade” e o “Dom de Piedade”. Este último é um dom do Espírito Santo, ou seja, uma das “disposições habituais da alma, que fazem com que ela se deixe facilmente mover por Ele”, e nos inspira, em particular, “um afeto filial para com Deus, conforme às palavras do Apóstolo (Rom 8, 15): Recebestes o espírito de adoção de filhos, segundo o qual chamamos, dizendo: Abba! Pai![24]. A analogia explica por que a virtude e o dom receberam o mesmo nome: assim como a virtude de piedade nos faz render aos nossos pais a honra que lhes devemos, do mesmo modo, o Dom de Piedade nos incita a prestarmos culto e reverência a Deus como a um Pai[25]; assim, “A piedade pela qual prestamos reverência aos pais carnais é uma virtude; mas a piedade, como dom, presta culto a Deus, como Pai”[26]. Por outro lado, o Dom de Piedade é distinto da virtude de religião, pois esta presta culto a Deus como Criador e Senhor, enquanto aquele o cultua como Pai[27]. Ademais, o Dom de Piedade não se encerra em Deus, mas estende-se a todos os homens inquantum pertinent ad Deum, isto é, "a todos os homens, enquanto filhos de Deus”. Pelo Dom de Piedade somos introduzidos na família de Deus.

Comenta João de Santo Tomás:

“O Dom de Piedade exige essencialmente estender-se aos homens enquanto filhos de Deus (…) é impossível que uma virtude ou um dom incline ao culto filial para com Deus e não incline, por via de conseqüência, à piedade no tocante a tudo o que é do Pai e concerne a seus filhos enquanto tais. E assim como todas as criaturas espirituais, salvo os condenados, são filhos de Deus, ou podem vir a se tornar, a todos se estende o Dom de Piedade.”[28]

 

5. — Um conhecimento não obscurecido da lei natural e uma observância habitual dela se formam e crescem em nós normalmente pela educação recebida no seio da família e da pátria ou nação[29]. A essa dívida, que não podemos quitar, corresponde, ou deveria corresponder, nossa piedade: assim, a civilização passa pela pátria, pela família e pela virtude de piedade.

(Parêntesis sobre o amor à pátria. O que aflige atualmente é não o vermos colocado em seu devido lugar na vida moral, é não ser chamado pelo seu nome, é ser incerta sua natureza exata. Devemos falar em “patriotismo”, “nacionalismo”, “civismo”? Trata-se de um sentimento, uma atitude política, um dever? Todo mundo admite o termo “civismo”, mas ele não designa exatamente o amor à pátria. “Nacionalismo" designou, sobretudo em França, desde Barrès, e Maurras, várias doutrinas políticas que, em todo caso, e seja qual for o julgamento que delas fizermos, situam-se aquém ou além da piedade nacional. “Patriotismo" é um termo geralmente admitido, mas o vemos em todas as cores: desde os “patriotas" jacobinos até os “patriotas" comunistas. Os deveres para com a pátria têm necessidade de ser ordenados numa ética explícita, de encontrar o seu lugar numa filosofia moral abrangente. O amor à pátria pode inspirar, de modo legítimo ou aberrante, sentimentos, paixões, doutrinas e sistemas em todos os níveis. Seria útil compreender e ensinar que se trata, antes de mais nada, de uma virtude[30], e que esta virtude é primeiramente uma piedade, a piedade nacional; e que se trata em seguida de outra virtude, que é uma justiça, a justiça social ou geral, a qual ordena ao bem comum os atos das outras virtudes. As virtudes, definidas e praticadas em seu lugar, numa ética de virtudes gerais e conexas, resistem mais fortemente aos contágios ideológicos, aos desvios práticos e ao desuso.)

Mas as definições clássicas da piedade filial e nacional correm o risco de não deixar ver o seu alcance num primeiro olhar mais apressado: “Honrar pai e mãe” soa protocolar, mesmo se tratando de um protocolo sagrado. “Honrar”, “render homenagens”, manifestar “uma certa expressão de amor”, isto é certamente devido, certamente bom, mas parece desprovido de impacto sobre a marcha do mundo. A piedade não parece inicialmente essencial à civilização: ela se apresenta como um fruto ou mesmo como um epifenômeno da civilização, não como uma condição da sua sobrevivência. Não reconhecer o que recebemos, ou não conceber nenhuma gratidão por isso, seguramente não é nobre, mas não impede o dom de ter sido realizado. O homem civilizado pode eventualmente não ser piedoso; será um erro não sê-lo, mas não será por isso menos civilizado.

É este o ponto.

O homem ímpio pode até ser um homem civilizado, mas é um homem que interrompe a civilização. Indiferente ou negligente acerca do que recebeu, ingrato no que concerne àqueles que o beneficiaram, será especialmente impróprio para transmiti-lo por sua vez. Influente por suas ações mais do que por seu discurso, difundirá ao redor de si a mesma indiferença, a mesma negligência, a mesma ingratidão. Ele respirará e inspirará um clima, um espírito de menoscabo, de ignorância do patrimônio moral da civilização.

Vamos mais longe. O homem ímpio tem toda probabilidade de não ser civilizado senão na aparência. Poderá conservar da civilização todo o exterior: a linguagem refinada, modos polidos diante dos demais, gestos e palavras benevolentes, um respeito literal pelas regras recebidas. Ele será um fariseu da civilização. Se, ao contrário, tivesse entrado no espírito da civilização, que é a formação para o conhecimento seguro e refinado da lei natural e uma prática habitual desta lei, teria normalmente, correlativamente, talvez sem saber o nome nem cultivar todas as suas delicadezas, o espírito de piedade. Exceções podem existir, por razões acidentais, boas ou más — mas não passam de exceções.

O homem civilizado é invariavelmente o homem piedoso. Inversamente, a impiedade é sinal certo e causa de uma interrupção na civilização. Para a transmissão dos valores civilizacionais é indispensável a atitude de coração e de espírito que desenvolve a virtude da piedade.

 

6. — Atitude de espírito e de coração pela qual se honra aquilo que se recebe, a virtude da piedade pode parecer um freio ao progresso da civilização, ao “progresso autêntico que é a vocação da sociedade civil”[31]. Atitude mais conservadora do que inovadora, que nos leva a recolher e a transmitir, que é tradicional e tradicionalista — é, apesar de ter seu valor, limitada, acostumada à rotina e inimiga da inovação. Se Aristóteles tivesse apenas uma atitude de piedade por seu mestre Platão, jamais teria realizado aquilo que o axioma resume: Amicus Plato, sed magis amica veritas. Os pensadores do tradicionalismo têm de convir aqui com Maurras: “Em toda tradição, como em toda herança, o ser racional tem de procurar suprimir o passivo. A verdadeira tradição é crítica, e sem estas distinções, o passado não serve mais para nada, seus êxitos deixam de ser exemplos e suas falhas deixam de servir de lição”[32]. Não é tudo: iniciativa, invenção e inovação são necessidades quotidianas da vida individual e coletiva, das quais a civilização se beneficia; podemos mesmo dizer que jamais teria havido espécie alguma de civilização sem elas. Essa é a objeção que nos fazem.

A linguagem, que tanto maltratou a piedade, vem em nosso socorro. Se dissermos que o professor corrigiu  o aluno piamente, isso não significa de modo algum que teria corrigido pouco. A piedade concorda com o amicus Plato, sed magis amica veritatis, e é fecunda: Aristóteles não teria sido quem foi se tivesse menosprezado a herança intelectual de Sócrates e Platão, ou se tivesse oposto a todo o pensamento que lhe precedeu uma negação universal e radical, como a negação cartesiana ou a negação kantiana. E aqui podemos sonhar com o que o gênio de Descartes teria produzido sem essa negação; ou com o que representaria contra Rousseau e os Enciclopedistas o talento de Voltaire, se fosse homem piedoso…

Particularmente desde o ponto de vista mais amplo e fundamental, que é também o primeiro em matéria de civilização, ou seja, no que se refere ao conhecimento e ao respeito da lei natural, a piedade não é má conselheira. Não é desejável, nem sensato, nem justo, reconstruir a lei moral a cada manhã ou a cada geração. O conhecimento que temos dela é certamente tributário das vicissitudes históricas. Mas existe um conhecimento adquirido e seguro no que se refere à natureza, ao fundamento e ao conteúdo da lei natural. Ele aponta o lugar onde podemos construir, o ponto a partir do qual poderemos progredir. Recolocar tudo em questão pode ser útil de modo acidental, mas não é essencialmente a via ou a condição do progresso; e se os questionamentos se renovam ou mesmo se multiplicam sistematicamente a cada geração, conforme a experiência feita pelo mundo moderno a partir de Descartes, chegamos ao caos no pensamento e nos costumes, chegamos ao nada.

O progresso está em outra parte. Uma vez firmemente sustentada a lei natural, suas implicações, conseqüências e aplicações descobrem-se pouco a pouco à humanidade. Se implicações novas são descobertas isoladamente, sem referência ao lugar que devem tomar no conjunto do patrimônio sólido da humanidade, tornam-se loucas, engendrando um turbilhão de ideologias e revoluções.

Porém, que a humanidade não tenha descoberto imediatamente todo o conteúdo da lei natural, e que seja sua vocação aprofundar e refinar o conhecimento e a prática que dela possui, isso sim é o progresso fundamental. Maritain percebeu isto:

“Abraão era um grande santo, um santo de estatura incomparável. Mas não sabia que certas ações que condenamos hoje estavam proibidas pela lei natural (…). O conhecimento preciso das leis morais naturais — exceção feita ao primeiro princípio, de si evidente, 'é preciso fazer o bem e evitar o mal' — é adquirido lentamente, com maior ou menor dificuldade (…).

"Nosso conhecimento das leis morais é progressivo por natureza. O senso de dever e de obrigação sempre esteve presente, mas o conhecimento explícito das diversas normas da lei natural cresce com o tempo. E algumas dessas normas, como a lei da monogamia, foram conhecidas mais tardiamente na história da humanidade, pelo que nossa investigação pôde alcançar. Podemos igualmente crer que o conhecimento dos preceitos particulares da lei natural, em todas as suas exigências e em todas as suas nuances, continuará a crescer até o fim da história humana.

“Penso que este progresso da consciência moral quanto ao conhecimento explícito da lei natural oferece um dos critérios menos duvidosos de progresso na humanidade. Bem entendido, não tenho absolutamente em vista um progresso no comportamento humano (ou um progresso na pureza e na santidade da consciência, pois Abraão, repitamo-lo, era um grandíssimo santo, com um coração absolutamente puro). O que tenho em vista é um progresso da consciência moral no tocante ao conhecimento dos preceitos particulares da lei natural. Esse progresso no conhecimento pode se dar ao mesmo tempo em que ocorre uma deterioração na conduta efetiva de muitos, mas isto é outra questão.

“Tomemos, por exemplo, a noção de escravidão. Temos hoje consciência do fato de que a escravidão é contrária à dignidade humana[33]. E, no entanto, vimos nos nossos dias o surgimento de Estados totalitários que reduzem sistematicamente o homem à escravidão. De resto, eles não querem reconhecer a coisa, precisamente porque é muito comumente reconhecido hoje que a escravidão é contrária à dignidade do homem; e é por isso que a propaganda lhes é tão necessária.”[34]

Certamente, o conhecimento da lei moral e o comportamento moral não são o mesmo. “Não basta possuir uma boa filosofia moral para ser um homem de bem”; e, inversamente, seria errôneo dizer: “Se você é um homem de bem, conhece a filosofia moral e essa filosofia é boa”[35]. É, em revanche, muito menos certo que uma “deterioração da conduta” não exerça, tanto no nível individual como no coletivo, alguma influência sobre o conhecimento mesmo da lei moral: ela certamente degrada o conhecimento moral por conaturalidade (que tem um lugar capital na vida quotidiana de cada um de nós, e mesmo na reflexão do filósofo), e é suscetível de manchar o conhecimento moral discursivo. Por outro lado, houve na história recuos no conhecimento moral — como é o caso atualmente — bem como progressos. De resto, podemos dizer que esse progresso, como os outros, e este talvez mais que os outros, é próprio da vocação das sociedades humanas. Feitas estas ressalvas, que Maritan provavelmente não contradiria, podemos continuar a seguir seu pensamento:

“Durante séculos e séculos, e mesmo em tempos cristãos, considerava-se inteiramente normal matar prisioneiros de guerra. Não se distinguia o combatente inimigo do prisioneiro. Quando se poupava a vida de um prisioneiro de guerra, tratava-se de um favor que se retribuía pela escravidão. Mas, hoje em dia, temos uma compreensão completamente diferente de nossas obrigações no que se refere aos prisioneiros de guerra. Outro exemplo se refere ao trabalho infantil. No início da idade industrial, o trabalho infantil era considerado inteiramente legítimo. Temos atualmente outras idéias nesta matéria, e são elas certamente mais conformes à lei natural. Outro exemplo ainda: este lida com a noção mesma do trabalho humano. A idéia de que o trabalho das massas é impossível sem o chicote da miséria — idéia largamente difundida no século XIX — parecia então em conformidade com a lei natural (…) Enfim, posso dizer que ainda estamos na obscuridade a respeito do papel que devem normalmente desempenhar, nas coisas temporais e políticas, as leis que se referem diretamente à vida espiritual, como a lei do perdão mútuo?”[36]

Esse progresso é tanto mais incerto quando é realizado fora da perspectiva da piedade. Um progresso isolado do conhecimento moral pode ser um fator de desordem e de imoralidade pelo tempo em que não estiver integrado no seu devido lugar no conjunto da vida moral. Os surtos violentos em prol da liberdade ou da dignidade do trabalho manual produziram ideologias devastadoras e perturbações sangrentas. O espírito de descoberta e de inovação, o espírito de progresso, o gênio mesmo, separados da virtude da piedade, julgam necessário derrubar todo o patrimônio da humanidade para impor nos espíritos e nos costumes mudanças que de si mesmas são benéficas: mas então, não se trata mais de um aporte, nem de um progresso, mas de uma revolução, uma inversão dos valores, um obscurecimento correlativo das consciências, um desencadeamento das paixões. É pouco evitável, com efeito, que isso não se produza periodicamente, ainda que por escleroses, incompreensões ou farisaísmo. Mas não é a via normal, nem a melhor. O esforço dos homens, quando consciente, quando equilibrado, não tende à revolução, que é a tentação ímpia e satânica, mas à reforma, à renovação e ao aperfeiçoamento.

 

7. — Desse modo, a piedade é útil: “a piedade para tudo é útil, tendo a promessa da vida presente e da futura”[37]. A piedade que tem a promessa também da vida presente, “a fim de viver longamente”, é bem aquela do Quarto Mandamento. Santo Tomás interpreta assim:

"A longevidade é prometida aos que honram os pais, não só na vida futura, mas também nesta, segundo aquilo do Apóstolo: 'A piedade para tudo é útil, tendo a promessa da vida presente e da futura'. E é razoável. Pois, quem demonstra gratidão por um benefício merece, por conseqüência, que se lhe conserve o benefício; e quem foi ingrato merece perdê-lo. Ora, o benefício da vida corporal, é dos pais que o temos, depois de Deus. Por isso, quem honra os pais, como agradecido a um benefício, merece a conservação da vida; e o que não os honra merece, como ingrato, ser dela privado.”[38]

É uma conveniência justa e racional: isso se dá rationabiliter. Mas o contrário também se dá, e é o mistério da história, a misteriosa (oculta) sabedoria dos julgamentos divinos. Santo Tomás acrescenta:

"Ora, os bens ou os males da vida presente não são meritórios ou demeritórios senão enquanto ordenados à remuneração futura, como dissemos. Por isso, às vezes, por uma razão oculta dos juízos divinos, que visam sobretudo à remuneração futura, alguns, embora tivessem sido pios para com os pais, são privados cedo da vida; ao passo que outros, que não o foram, vivem mais longamente.”[39]

Ocorre o mesmo na vida das civilizações. Dissemos que a ausência de piedade é sinal e causa de uma interrupção na civilização. Contudo, não possuímos o conhecimento pelas causas do fenômeno da decadência, que permanece misterioso. Por um lado, a relação entre a piedade e sua utilidade é uma relação que se dá rationabiliter, mas não automaticamente. Por outro, qual é a causa da impiedade? Pode ser o farisaísmo que se introduz na civilização. O farisaísmo é causa de impiedade, e a impiedade é causa do farisaísmo. As causas estão aqui ordinariamente numa relação recíproca de interdependência e intercausalidade. O mistério da história é finalmente aquele dos julgamentos de Deus, cuja sabedoria nos permanece escondida (occulta).

 

8. — Até aqui falamos de civilização, mas não de civilização católica. A lei natural, e a virtude de piedade que é parte dela, foram conhecidas e praticadas antes da vinda de Cristo. Elas podem ser conhecidas e praticadas fora do catolicismo, mas sob duas reservas.

Primeiro, a situação da humanidade não é a mesma antes da vinda de Cristo e depois. Segundo uma fórmula de Henri Charlier, “desde a Ressurreição o pensamento divino, a cada instante, nos confronta com o Filho morto por nós e que nos abriu as portas da Vida”. A situação não é a mesma para os que não conheceram Cristo e para os que, tendo-O conhecido, recusaram-No. A civilização grega não pôde conhecer o Cristo. A civilização dos chineses ou dos indianos, também elas anteriores à Incarnação, prolongaram-se ignorando a vinda de Cristo porque não lhes deram de conhecer. A civilização judaica, na qual veio Cristo, O recusou. O Islamismo a um tempo surgiu depois de Cristo e O recusou. O comunismo, sob este aspecto, é um segundo islamismo. Cada um desses casos é distinto, e deixa subsistir diversamente possibilidades bastante distintas de conhecer e de respeitar a lei natural.

Segundo, o homem abandonado a suas próprias forças não pode conhecer a lei natural de modo fácil, seguro, isento do risco de erro. Não pode tampouco respeitá-la normalmente e habitualmente sem a graça (mas o Espírito sopra onde quer, e é por isso que podem existir, e existiram, casos individuais de muçulmanos que respeitaram admiravelmente a lei natural).

 

9. — Depois de Cristo, a civilização é normalmente a civilização católica. Mas uma civilização pode ser dita católica sob diferentes aspectos (ao menos, quanto à diversidade dos critérios imediatos de apreciação). Uma civilização que, seja qual for o estado da sua cultura, das suas instituições e dos seus costumes, deixa à Igreja de Cristo a liberdade de transmitir as palavras e os sacramentos da salvação, pode ser dita católica.

Há uma eventualidade que é teórica, ou provisória, pela dupla razão da fecundidade da Igreja e da malícia humana: uma sociedade que fosse materialista e atéia por um lado, e que de outro deixasse a Igreja, por indiferença, ceticismo ou tática, a liberdade de realizar plenamente sua missão, não poderia permanecer por muito tempo num equilíbrio tão instável; rapidamente seria conduzida, seja à conversão, seja à perseguição. E é sem dúvida essa a razão de a Igreja não temer definir por vezes a civilização católica de modo meramente negativo:

“A vida de um povo, de uma nação, transcorre num domínio bastante variado que ultrapassa o da atividade propriamente religiosa. Desde que, em toda a extensão deste vasto domínio, uma sociedade respeitosa dos direitos de Deus interdiz a si mesma de transgredir os limites demarcados pela doutrina e moral da Igreja, ela pode legitimamente se dizer cristã e católica.”[40]

Definição gramaticamente negativa, mas cujo conteúdo real e cujas implicações necessárias estendem-se à toda vida individual e social.

Observemos que uma sociedade materialista e atéia não é uma sociedade civilizada. É por um abuso de linguagem que se fala hoje em civilização materialista, civilização atéia, civilização comunista. Jamais houve na história uma civilização materialista e não poderia haver; é uma não-civilização, é a barbárie mais completa: “uma barbárie certamente mais pavorosa do que aquela em que a maioria das nações se encontrava antes da vinda do divino Redentor”[41]. Outrora, eram chamados de bárbaros, sem que houvesse um nome para a civilização. Atualmente, só temos o nome de civilização, e atribuímo-lo a qualquer sociedade, de modo que o conceito e o termo de barbárie aparentemente perderam-se. Com efeito, o nome “bárbaro” sobreviveu na linguagem com o sentido de “cruel”. E civilização designa assim o conjunto de características particulares de uma sociedade, independente de todo critério referente à civilização e à barbárie. Fala-se em civilização técnica, civilização marxista, civilização moderna.

Ora, o desconhecimento da lei natural e, por mais forte razão, a sua negação radical, são o contrário da civilização. Não há civilização marxista. Não há civilização materialista. Mas ninguém tem a coragem intelectual — ainda que a sós com seus pensamentos — de chamá-la de barbárie: barbárie materialista, barbárie marxista. Tampouco há quem perceba que um cristão, ou seja, um homem que crê que Jesus Cristo é o Filho de Deus, pode ser em maior ou menor medida um bárbaro se recusa ou desconhece a constância, a universalidade, a obrigação da lei natural. Quanto à “civilização moderna”, ela coloca uma questão muito mais complexa, pois é uma mistura: mistura de um espírito moderno essencialmente bárbaro naquilo que tem de próprio; de uns resquícios e de diversos ressurgimentos do espírito católicos; e de algumas outras coisas.

Assim como a civilização é a história da lei natural entre os homens, a civilização católica é essa mesma história ajudada, elevada e transfigurada pela religião católica. Assim como aprendemos normalmente a conhecer e a observar a lei natural graças a uma educação recebida no seio de uma família e de uma pátria, assim aprendemos normalmente a conhecer e praticar a religião católica. De nossos pais e da pátria nos vêm a vida física, a vida moral e a vida religiosa.

Não escolhemos a fé católica: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi a vós[42]. A fé é um dom livre que recebemos livremente; mas nossa liberdade é exercida, mesmo aqui, segundo a condição humana, e não segundo a condição angélica; ou seja, ela é exercida no interior e por intermédio de um estatuto histórico e social; pelos pais, que têm a liberdade, o direito e a responsabilidade de decidir o batismo. Existiram, existem e existirão muitos batismos de homens adultos: mas estes mesmos não adiam o batismo de seus filhos até a idade adulta. Isso faz com que a maioria dos católicos tenha se tornado tal pela vontade livre e responsável de seus pais. A fé pede uma adesão livre: mas normalmente trata-se, antes de mais nada, da livre adesão dos pais.

A fé é transmitida de qualquer maneira pela onipotência e misericórdia de Deus; mas a maneira que é conforme à nossa condição humana, e que é incomparavelmente mais freqüente, é, segundo a expressão de Pio XII, aquela em que “a religião é uma herança viva dos ancestrais”. De resto, todo dia nascem homens que hão de ser os ancestrais da vida espiritual. O batismo de um adulto é o início de uma família católica que transmitirá a fé pelos séculos.

A virtude da piedade, que concerne a “nossos pais e nossa pátria, pelos quais e no seio da qual recebemos a vida e a educação”, também lhes concerne no tocante à vida espiritual e à educação religiosa. Aqui também encontramos a piedade e a impiedade, a história, o progresso, o aperfeiçoamento ou a revolução numa relação equivalente ou análoga ao que encontramos no que se refere à lei natural. Com a ressalva de que a Revelação encerrou-se e o Magistério da Igreja é o seu guardião e intérprete infalível, a virtude da piedade tem aqui as mesmas exigências e, segundo a palavra de São Paulo, a mesma “utilidade”.

 

10. — A lei natural e a religião de Cristo são universais. A sua transmissão, o seu conhecimento, o seu cumprimento até aos extremos do universo, constituem a essência da civilização católica.

Não inventemos falsos problemas. A unicidade da civilização católica não uniformiza mais os indivíduos e as nações do que a unidade da Igreja uniformiza os indivíduos. Claro que, pela estupidez dos homens ou pela sua malícia, tudo é sempre possível: e assim como podemos imaginar, sob as cores de apostolado, uma imprensa de massa e organizações de massa transformando os indivíduos em robôs (mas isto iria na contra-mão da religião católica), podemos conceber, do mesmo modo, sob o pretexto de civilizar, um Imperialismo totalitário (mas isto iria na contra-mão da civilização católica). Em todo caso, seria tão absurdo recusar a unicidade da civilização católica em nome da vocação particular das nações, quanto seria recusar a unidade da Igreja em nome da vocação de cada alma em particular.

O helenista mais fervoroso não chegará a ponto de impor à sua mulher o uso do peplo e, se for francês, é provável que não faça uso da culinária grega salvo em caso de absoluta necessidade. Tampouco saudará as pessoas na rua dizendo Kyrié.

Respeito pelos costumes, pelas particularidades étnicas e pelos idiomas? Sem dúvida. Mas é impossível, por um lado, escrutar a universalidade da lei natural e da religião de Cristo e, de outro lado, as condições sociais e históricas normais da sua transmissão, sem perceber certas necessidades.

O latim, o grego e o hebraico seguirão até o final do mundo línguas privilegiadas, as “três línguas”. Mediterrâneas? Sim, mas são estudadas e ensinadas nas Américas. E é bom que seja assim: não poderia ser diferente. Como as elites intelectuais dos povos não mediterrâneos que vieram ao cristianismo poderão se dispensar de vir ao latim, ao grego e ao hebraico? Sem isso, estes povos estariam desamparados: incapazes de estudar diretamente o texto das Escrituras, da teologia e da filosofia, seriam eternamente tributários de traduções estabelecidas e eternamente refeitas pelos outros. A justa autonomia intelectual de um povo católico requer que suas elites estejam em medida de compulsar elas mesmas as fontes da filosofia, da teologia e da fé. É inevitável que, ao mesmo tempo, em maior ou menor medida, de uma maneira ou outra, esse patrimônio cultural e essas línguas exerçam sua influência no interior de culturas não mediterrâneas.

Não é possível que os povos que vieram ao Cristianismo e entraram na Igreja considerem São Gregório Magno e São Pio X como estrangeiros, como pontífices “greco-latinos” ou “ocidentais”, e Santo Tomás como uma particularidade específica da cultura mediterrânea. É impossível que a piedade que tenham por eles, e por todos os ancestrais na fé desde São Pedro e São Paulo, não seja um fator de influência cultural.

É bem provável que a influência não se dê num sentido único: os povos mediterrâneos herdeiros das velhas culturas podem encontrar matéria para aprender em toda parte deste vasto mundo. Mas é inconcebível que não haja influência; e que esta influência não seja principalmente no sentido de uma extensão a todo o orbe do patrimônio a que o latim, o grego e o hebreu dão acesso.

Interrompamos aqui nosso ensaio, que poderemos desenvolver, ou que outros desenvolverão, numa outra oportunidade. A universalidade da verdade natural e sobrenatural, a condição histórica do homem, a virtude da piedade têm implicações necessárias. Podemos sair delas. Mas então não será uma outra civilização, mas a barbárie.

 

[Tradução: Permanência. La civilisation dans la perspective de la pieté, Revue Itinéraires

 


[1] Charles de Koninck, “Deux tentatives de contourner par l’art les difficultés de l’action”, Laval théologique et philosophique, vol. XI, nº 2, 1955, p. 205.

[2] Ibid.

[3] Cnossos e Festo, grandes sítios arqueológicos na ilha de Creta, pertenciam à extinta civilização minóica. [N. do E.]

[4] Santo Tomás, S. T, Ia. IIae, q. 94, a. 2.

[5] Santo Agostinho, Confissões, II, 4.

[6] S. T., Ia. IIae, q. 94, a. 6.

[7] Ibid.

[8]Malas persuasiones” no original. A tradução “propagandas perversas” restringe um pouco o sentido, mas, em contrapartida, é muito apropriada para os dias de hoje.

[9] Ibid.

[10] S. T., IIa. IIae, q. 122, a. 1.

[11] S. T. Ia. q. 1, a. 1.

[12] S. T., IIae IIae, q. 101, a. 1.

[13] S. T., IIae IIae, q. 80.

[14] Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, 14, 4.

[15] Charles Maurras, “Qu’est-ce que la civilisation?” publicado na Gazette de France, 9 de setembro de 1901 — texto recolhido no livro Mes idées politiques, Fayard, 1937, reedição de 1948, pp. 71-84.

[16] Ver, entre outros, o início da Constituição apostólica Veterum sapientia, 22 de fevereiro de 1962.

[17] S. T., IIa IIae, q. 80.

[18] S. T., IIa IIae, q. 101, a. 3, ad 1.

[19] Ibid, ad 2.

[20] Ibid, corp.

[21] Ibid, ad 3.

[22] S. T., IIa IIae, q. 101, a. 1.

[23] S. T., IIa IIae, q. 122, a. 5.

[24] S. T., IIa IIae, q. 121, a. 1.

[25] Ibid.

[26] Ibid., ad 1.

[27] Ibid, ad 2.

[28] João de Santo Tomás, Les dons du Saint-Esprit, Téqui, 1950.

[29] De direito e de fato, os termos “pátria" e “nação" são distintos. Não os distinguimos aqui, tomando-os no sentido lato, em que sua significação é comum, e não no sentido estrito, em que sua significação é distinta.

[30] Isto pressupõe, claro está, o que mais falta, na ordem natural, ao pensamento e ao mundo modernos: uma ética e uma vida moral que sejam uma doutrina e uma prática das virtudes.

[31] Enc. Div. Red., §7.

[32] Maurras, op. cit., p. 67.

[33] No original, “dignité de la personne humaine”. Optamos pela tradução acima por ser mais fiel, se não ao pensamento do autor, ao menos à doutrina católica de sempre. Reconhecemos a dignidade da natureza humana criada por Deus, mas negamos o desvario de uma dignidade inalienável da pessoa humana, idéia que decorre do personalismo do mesmo Maritain, já muitas vezes refutado por grandes autores. "Quanto à idéia de 'dignidade' da pessoa humana", escreveu Júlio Fleichman, "lembremos que uma pessoa concreta e real que singulariza uma natureza humana, será digna ou indigna conforme seu comportamento moral” (http://permanencia.org.br/drupal/node/674). [N. do T.]

[34] Maritain, Pour un philosophie de l’histoire, Éd. du Seuil 1959, pp. 115-116.

[35] Charles de Koninck, “Liberté des consciences et droit naturel”, Revista Itinéraires, número 66, p. 212 e p. 214.

[36] Maritain, op. cit., pp. 117-118.

[37] 1 Tim 4, 8.

[38] S. T., IIa IIae, q. 122, a. 5 ad 4.

[39] Ibid.

[40] Pio XII, Discurso pela canonização de Nicolau de Flüe, 16 de maio de 1947.

[41] Pio XI, Encíclica Divini Redemptoris, §2.

[42] Jo 15, 16.

A reforma intelectual e moral

Jean Madiran

 

A política moderna é essencialmente uma estratégia sem fé nem lei para a tomada do poder e para sua exploração; é portanto um despotismo sistemático e não acidental. Não está mais a serviço do bem comum temporal. É por isto que a palavra “política” e o fato político estão desacreditados, como estava desonrada a profissão das armas quando nasceu a cavalaria.

A reforma intelectual não visa a tomado do poder nem mesmo do poder cultural. Ela quer outra coisa: quer a restauração do aprendizado.

O homem é votado à aprendizagem e ao aperfeiçoamento, isto é, ao esforço de adquirir aquilo que é superior a ele mesmo: superior na ordem do saber, na ordem do saber fazer e na ordem da sabedoria. Quando, por princípio, se imagina que não há nada superior ao eu individual, à própria consciência e à própria vontade livre, o aprendizado não tem mais sentido, não há mais aperfeiçoamento. Estamos atualmente neste ponto. Todos os graus de ensino estão fundados na crença de que tudo se pode saber sem nada se ter aprendido. A isto se chama respeitar e cultivar a criatividade de cada um. Maurras caracterizou bem as duas atitudes mentais:

“Um moço que quer amadurecer pode dizer a si mesmo:

Com quem parecerei? Comigo mesmo? Com o que tenho de mais ‘eu-mesmo’? Acentuarei a minha personalidade, reforçando todos os traços de meu natural?

Como pode dizer também:

Tornar-me-ei parecido com alguma coisa de melhor e mais alta do que eu?”

Prender-se ao que há de mais “eu-mesmo” ou a “qualquer coisa de melhor e de mais alta do que eu”? Estas duas atitudes mentais poderíamos chamá-las, uma, moderna, outra, clássica, ou melhor natural. A reforma intelectual consiste em subir da primeira para a segunda. A modernidade consiste em descer da segunda para a primeira: neste caso já se suprime, de saída, a idéia de aprendizado porque não trata de tornar-se melhor mas de tornar-se cada vez mais “eu-mesmo”, sem se compreender que o verdadeiro modo, a única possibilidade de se tornar cada vez mais “eu-mesmo” é justamente se tornando melhor. No fundo existe aí, portanto, um qüiproquó diabólico, um infernal mal-entendido, como houve desde o princípio com o eritis sicut dii (“sereis como deuses”). Perseverar  e crescer no ser que se é, eis a mais legítima aspiração; a aspiração natural do ser. O caminho aparentemente curto, o caminho enganador recusa reconhecer superioridades, submeter-se a elas, instruir-se, adaptar-se, conformar-se por elas, como se estas restrições de boa ordem infligissem uma diminuição à pessoa. Mas o desabrochar da personalidade não é a finalidade suprema: ela não será encontrada por acréscimo em lugar algum senão no final do caminho da humildade.

A história da humanidade mostra um progresso geral quase constante, quase contínuo: o progresso do poder do homem sobre a matéria. Este progresso não é, em si mesmo, uma ilusão. Mas ilude. Faz esquecer o outro aspecto da história da humanidade, também constante, que é a inconstância de seu valor intelectual e moral; inconstância de um século para outro, de uma época para outra, e até de uma idade para outra de uma mesma vida, como mostra a história do Santo rei David e ainda mais a do rei Salomão. Mas nenhuma história mostra mais nada quando se deturpa tanto o que ela conta quanto os critérios de julgamento. Hoje, na França, o recurso às lições da história é inoperante. A história que vem sendo ensinada aos franceses há um século foi pensada, fabricada, escrita com uma intenção passionalmente hostil à sua pátria e à sua religião. Henri Charlier foi educado sem fé nem batismo, num espírito perfeitamente maçônico. Passando pela primeira vez diante de Notre-Dame de Paris, conclui imediatamente que lhe tinham mentido, que os homens, a sociedade, a época que tinham construído a Igreja de Notre-Dame não estavam mergulhados no obscurantismo com lhe haviam dito. Ele pode formular para si mesmo, com certeza, tal conclusão porque tinha uma verdadeira percepção clássica; viu que da época da construção de Notre-Dame para a nossa não tinha havido progresso mas recuo. Progresso houve, sem dúvida, como sempre, mas do poder do homem sobre a matéria; recuo intelectual e moral. Mais ou menos no mesmo momento, a percepção política ou especulativa de Péguy, de Maurras, levavam-nos a observações análogas. Percepções raras, percepções excepcionais. Pois o olhar moderno foi preparado, habituado, condicionado para procurar no passado não mais o exemplo de realizações do bem comum temporal, mas precedentes revolucionários revelando as primeiras revoltas da pessoa individual em marcha para a conquista de sua autonomia moral. Disto se compõe um outro universo mental: o universo cultural e político que a televisão de cada dia ilustra, instala, impõe. A autonomia moral da pessoa é uma mentira. O homem moderno pensa que vai achar a liberdade nesta autonomia; acha a escravidão. Sua libertação depende de uma reforma intelectual e moral, a reforma de Péguy, de Maurras, de Henri Charlier.

 

“Itinéraires” n° 216 — Set—Out 1977 (Trad. De ANNA LUIZA FLEICHMAN)

Permanência, n° 112/113, Mar-Abr 1978.

As duas democracias

Jean Madiran

I. A clássica e a moderna

Existem duas democracias, uma que nós designamos como clássica, outra moderna. Desta distinção reivindiquei, há mais de vinte anos, não tanto a propriedade, pois as idéias são de quem as adota e ninguém é dono delas, mas a responsabilidade inicial. Essa distinção foi proposta em nossos escritos anteriores, mas queremos completar alguns pormenores e retificá-la aqui e ali. 

A reflexão sobre esse tema tem nos acompanhado desde a mocidade, como também o tem a todos os da nossa geração que, se por um lado conheceram a democracia desde o berço, nunca a consideraram um fenômeno natural, um imperativo categórico, um fato definitivamente encerrado, mas antes como um estímulo incômodo ao pensamento político e à reação. Essa reflexão não ficou inerte, mas, desde o momento em que começamos a expô-la, as sucessivas modificações que sofreu não consistiram em variações doutrinais no tocante aos princípios, mas em desenvolvimentos mais ou menos empíricos quanto à sua formulação. 

Clássica é a democracia que sempre ou quase sempre existiu, e que igualmente poderíamos chamar, num sentido relativo, de eterna: ela é um modo de designação dos governantes. A designação dos governantes pelos governados, segundo diversos sistemas eleitorais, é algo que figura em todas as épocas da histórica, com maior ou menor extensão. Variam os tempos e os lugares, e sempre se elegeram bispos, reis, magistrados, presidentes, ditadores. O número e a qualidade dos eleitores variavam, pois sempre existiram regimes “mistos”, combinando em proporções diversas o sistema democrático com o sistema aristocrático. Quando aparece sem mistura, a democracia clássica consiste em não haver nenhuma autoridade política na cidade cujo titular não seja, direta ou indiretamente, designado por um tempo limitado pelos cidadãos, que são os eleitores. 

A democracia moderna funciona como a democracia clássica. Aparenta ser a mesma coisa, mas não é:

Em primeiro lugar, a escolha dos governantes pelos governos é tido como o único modo justo: sendo assim, os regimes não democráticos são tidos por imorais. Uma democracia assim não é mais um regime entre outros, que se pode preferir por razões de técnica, de oportunidade, de conveniência política, e que se pode consertar, limitar ou suprimir por razões da mesma ordem. Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino, por exemplo, que só conheceram a democracia clássica, concebem facilmente a possibilidade de ela ser suprimida, e não vêem nisso qualquer problema de natureza moral: 

"Agostinho dá o exemplo seguinte no seu Tratado do Livre Arbítrio (I, 6). Se um povo for moderado, sério e zeloso da utilidade comum, a lei é justamente feita para que a tal povo seja lícito estabelecer os seus magistrados, que administrem a república. Mas se esse povo se torna paulatinamente depravado, a ponto de tornar o seu sufrágio venal e entregar o governo a homens escandalosos e criminosos, é justo cassar-lhe o poder de distribuir as honras, e transferi-lo ao arbítrio de uns poucos bons.”

Algo assim é tido como moralmente absurdo e contraditório para a democracia moderna, que se apresenta como um direito imprescritível, que não se poderia abolir sem grave injustiça. A democracia clássica, ao contrário, era uma instituição revogável, que se estabelecia ou se suspendia conforme os tempos, os lugares e as circunstâncias.

Para a democracia moderna, a justiça política é definida pela democracia, e a injustiça, pela ausência de democracia.

Em segundo lugar, a designação dos governantes pelos governados é o único fundamento da legitimidade. Sobretudo, é essa a razão por detrás daquilo que se disse antes. “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação” e “a lei é a expressão da vontade geral”, estipula a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ato de nascimento da democracia moderna. Toda soberania, toda lei que invocar outro fundamento que não este, é tirânica. Nenhuma soberania, nenhuma lei, portanto, jamais poderá existir se não se fundar na vontade geral.

Assim, a democracia moderna pretende ser idêntica à democracia clássica, disfarça-se dela e recusa-se a distinguir-se dela — ela seria a verdadeira democracia. A designação dos governantes confunde-se com a sua legitimidade: a legitimidade funda-se na designação (democrática) e é uma só com ela.

Em terceiro lugar, a consequência: o poder democrático, na democracia moderna, se torna um poder ilimitado. Ele se torna assim de direito. Quando a legitimidade do poder tira todo o seu fundamento unicamente da designação de quem é chamado a exercê-lo, um tal poder é ilimitado de direito: quem ou o quê poderá limitá-lo? De fato, ele mantém certos limites, é contido pelos hábitos, pelas tradições, pelas realidades, pelas idéias contrárias, mas essas coisas são todas estranhas ao direito democrático (moderno), e tendem a ser suprimidas por uma contínua democratização da sociedade.

A sociedade é por natureza familiar, profissional, hierárquica. Na democracia moderna, o direito (novo) entra em conflito com a natureza: a democratização ilimitada é o progresso indefinido do direito, por uma evolução que desqualifica, desacredita e finalmente destrói as sociedades naturais.

*

Que a “lei” seja a “expressão da vontade geral” e nada mais, é uma grande novidade na história do mundo. A proclamação de 1789 não inventou a democracia, ela lhe deu um outro conteúdo. Ela impôs na vida política uma nova moral e um novo direito.

Sempre, em todas as civilizações até 1789 (e mesmo depois, mas então por sobrevivência cada vez mais frágil, cada vez mais implícita), a lei era a expressão de uma realidade superior ao homem, de um bem objetivo, de um bem comum que o homem traduzia, interpretava, codificava livremente mas não arbitrariamente. O legislador fazia o que estava ao seu alcance, nem sempre o que devia fazer: mas a sua função reconhecida era a de formular os grandes imperativos que não estavam para ser inventados, mas descobertos ou recebidos, como Moisés no Monte Sinai. A lei era a expressão humana da vontade de Deus sobre os homens, conforme à natureza que lhes deu, ao destino que quis para eles. Mesmo quando Deus era desconhecido, ou não reconhecido, a lei ainda era a expressão de uma justiça, de uma razão, de uma ordem superior às vontades humanas:

“Os teus decretos, ó Creonte”, declara Antígona, “não têm força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!”

Assim, a legitimidade da lei, do poder e dos governantes residia na sua conformidade a essa ordem superior, e não numa designação regular dos magistrados e dos legisladores. Essa regularidade é uma legalidade que tem sua importância. Mas a legitimidade, isto é, a justiça, funda-se no bem comum, ou seja, no Decálogo ou, em outras palavras, em Deus. Os próprios pagãos, mesmo não possuindo um conhecimento muito claro, tinham ao menos um vivo sentimento disso. Foi uma dia terrível na história do mundo o dia em que os homens decidiram que, a partir de então, a lei seria “a expressão da vontade geral”, ou seja, a expressão da vontade dos homens; dia em que os homens decidiram dar-se a si mesmos a sua lei; data em que declinaram no plural o pecado original.

Pois, no singular, o pecado de Adão consistiu em querer ser para si mesmo a origem da própria lei, segundo a descrição clássica: “Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, se abrirão os vossos olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn 3, 5). Santo Tomás comenta: “[O] primeiro homem pecou, principalmente, desejando assemelhar–se a Deus pela ciência do bem e do mal, à sugestão da serpente. De modo que, por virtude da própria natureza, determinasse para si o que fosse bom e mau no agir…”; “… a fim de que, como Deus, que pela luz da sua natureza rege a todas as coisas, o homem, pela luz da sua natureza, e sem o socorro de uma luz exterior, pudesse reger-se a si mesmo…”.

Pecado fundamental; revolta essencial pela qual o homem quer estabelecer para si mesmo a lei moral, pondo de lado a que recebeu de Deus. Em 1789, essa apostasia tornou-se coletiva. Ela se tornou o fundamento do direito político. A democracia moderna é a democracia clássica em estado de pecado mortal.

 

II. A natural e a totalitária

Que os legisladores ou os governantes sejam designados pelo conjunto dos cidadãos, que estes adotem ou rejeitem, por sufrágio direto ou por meio de representantes eleitos, as leis positivas, isso não está em questão neste nível, que é o da justiça e da moralidade: pode-se proceder de um jeito ou de outro; pode-se discutir a esse respeito e mesmo lutar por isso, em nome de todas as particularidades históricas, geográficas, circunstanciais. Mas, quando se procede assim, é preciso ter clara consciência dos poderes que se reconhecem ao corpo eleitoral:

— ou bem se lhe pede designar os homens ou aprovar as leis positivas que lhes pareçam mais conformes à vontade de Deus — seja Ele direta, implícita ou mesmo inconscientemente invocado na procura por uma conformidade ao bem comum objetivo e superior aos homens;

— ou bem se lhe pede escolher os homens ou editar as leis mais conformes à sua própria vontade declarada universalmente soberana, e única soberana legítima.

A aparência pode ser a mesma, e é por isso que se confundem as duas condutas. Mas a realidade é bem distinta, e mesmo oposta.

*

Para passar da democracia clássica à democracia moderna, falou-se aos povos mais da aparência clássica do que da realidade moderna. Começou-se a lhes falar da democracia como se ela fosse apenas uma forma de governo mais evoluída, mais agradável ou mais digna que as outras. E ainda em nosso tempo, o dicionário Larousse define assim a democracia: “Forma de governo na qual o povo é considerado como exercendo a soberania”. Há uma nuance de ceticismo: “considerado como. Mas não se trata apenas de exercer (mais ou menos) a “soberania”, ou a “autoridade suprema”, não se trata apenas do exercício do poder, mas do seu novo princípio. O artigo 3º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 diz: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação.” A democracia não é apenas uma forma de governo, mas a única; ela não é mais uma oportunidade, uma garantia, uma comodidade, uma concordância, objeto de uma preferência variável segundo os tempos, lugares e circunstâncias. O artigo 3º acrescenta: “Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer a autoridade se ela não emanar expressamente dela.” O que suprimia de direito até mesmo a autoridade paterna. Nós vivemos, cada vez mais de fato, nesse tipo de democracia; mas em nome da outra. Após essa doce definição de democracia, o Larousse apresenta um exemplo igualmente dulçoroso, um só: “a democracia ateniense”. Como se a Declaração dos Direitos de 1789 jamais tivesse existido, ou como se ela não tivesse mudado coisa alguma.

Nenhum progresso ocorreu na lexicografia mais recente. Segundo o Petit Larousse illustré, a democracia ainda é “o governo em que o povo exerce a soberania”. E segundo o Petit Robert, editado no mesmo ano: “doutrina política segundo a qual a soberania deve pertencer ao conjunto dos cidadãos; organização política (ordinariamente, a república) na qual os cidadãos exercem essa soberania.” Um e outro definem assim a “soberania" em questão: “autoridade suprema; qualidade do poder político de um Estado ou de um organismo que não está submetido ao controle de nenhum Estado ou organismo”; em direito constitucional, o “soberano” é a “pessoa física ou moral na qual reside a soberania”; em direito público francês, a “soberania nacional” é o “princípio segundo o qual a soberania outrora exercida pelo rei é atualmente exercida pelo povo, personificado na nação.” A verdadeira questão moderna é escamoteada. 

Ninguém tem poder sobre o vocabulário. Se fosse possível, seria melhor usar dois nomes diferentes para cada uma das duas democracias. Poderíamos talvez chamar a primeira de “república” (mas isso não exclui uma monarquia à inglesa). É o que em suma fazia Aristóteles (politeia), empregando ordinariamente a palavra democratia no sentido pejorativo, como demagogia. O Larousse universal em dois volumes citado acima define a república como idêntica à democracia: “Estado no qual o povo exerce a sua soberania pelo intermédio de homens por ele eleitos para um certo tempo.”

Nossa terminologia, democracia clássica e democracia moderna, possui a vantagem da precisão científica. Ela possui o inconveniente psicológico de que o termo “clássico” soa anacrônico, sobretudo uma vez que as letras clássicas, a poesia clássica, as filosofias clássicas não são mais estudadas em classe, e são tidas como remanescentes de idades obscuras, de uma pré-história a ser deixada no esquecimento; enquanto isso, o termo “moderno” sugere progresso. O moderno, enquanto tal, prevalece espontaneamente sobre o clássico no espírito do público porque o homem tem sempre a tendência de crer no que vê, e ele vê que as máquinas e motores de hoje são mais avançados que os de anteontem. No entanto, não ocorre assim com as árvores: a mais nova, que mal foi plantada, não é a melhor, pois elas precisam crescer e, portanto, só são úteis quando antigas; é verdade que, após um certo ponto, elas envelhecem. O progresso indefinido não é contraditório nem necessariamente impossível no domínio das ciências da matéria e das suas aplicações mecânicas; mas ele o é no domínio da política, da moral, da vida (mesmo vegetal): os álamos não crescem até o céu e não há nada entre os seres vivos que cresça sempre mais e mais, salvo o cumprimento no tempo e para a eternidade do número dos eleitos de Deus. Nós não vivemos mais no meio das árvores, do seu movimento imóvel, da sua lição silenciosa. No que diz respeito aos motores, é o mais jovem e o mais novo, é o último a ser lançado que é o bom — salvo defeito de fabricação. Ninguém preferirá as mecânicas clássicas às mecânicas modernas; nem quererá trocar automóveis modernos pelos veículos de Luís XIV. “Democracia clássica” faz pensar em coisas velhas, em ruínas inúteis. “Democracia moderna” evoca invenção, progresso técnico, um espírito moderno e voltado para o futuro. Ressonâncias afetivas de vocábulos e influência do novo conformismo sociológico forjado pelas máquinas de fabricar opiniões. Os termos “clássico” e “moderno” possuem aqui a vantagem de serem referências históricas exatas: mas hoje a história, quando não foi esquecida, como ocorre normalmente, está completamente viciada. Será melhor falar, portanto, com o benefício de um maior rigor doutrinal, em democracia natural e democracia totalitária.

Totalitária? A democracia poderá ser totalitária? Blasfêmia! Horror! Sacrilégio! Nós vimos, nos fins do ano 1976, o general Pinochet, presidente do Chile, declarar numa entrevista à televisão colombiana que pretendia fundar em seu país uma “democracia autoritária”. Por acaso ou malícia, jornais como o Le Monde de 23 de dezembro imprimiram as manchetes: “democracia totalitária”, e os intelectuais debocharam em uníssono, dizendo que o general era decididamente um ignorante, um imbecil, e que lhes custava crer que ainda pudesse existir na superfície da terra, em pleno século XX, alguém tão retardado, tão desprovido de instrução laica e obrigatória, a ponto de ser capaz, o coitado, de falar em círculo quadrado, de submarino alado, e de não compreender que totalitarismo e democracia são coisas tão incompatíveis entre si quanto a água e o fogo, o branco e o preto, o sim e o não. A Rádio Vaticano distinguiu-se, tanto quanto o Le Monde, nesse tipo de divertimento. No entanto, eles mesmos têm o partido comunista por um partido democrático, gozando direito de existência legal em toda verdadeira democracia (enquanto que os partidos fascistas devem ser interditos), os mesmos por vezes confessam que esse partido ainda segue um pouco totalitário demais, mas não tem problema, falar em “democracia totalitária” é que é um absurdo.

Nós usaremos o termo democracia totalitária, pois entendemos que ela o é. O totalitarismo comunista não é uma anomalia no universo democrático, mas a sua conclusão lógica; a conclusão necessária; a conclusão inevitável se, para impedi-lo, não intervier algo a mais do que a política e a moral democráticas. Pois a democracia moderna traz consigo o totalitarismo como a semente carrega consigo a colheita. Ela é totalitária desde a origem, não necessariamente em todas as suas formas sucessivas: ela o é no seu princípio. Ela só se limita por uma declaração de direitos ditos “imprescritíveis”, mas proclamados por uma autoridade que pode perfeitamente mudá-los, decretar outros ou aboli-los. Ela já os mudou muitas vezes, bem como já decretou novos direitos “imprescritíveis”. Ela já os suspendeu ou os aboliu. Não são mais direitos. Não existe, na democracia moderna, nenhum direito que possa ser democraticamente garantido e mantido contra a vontade geral.

Essa realidade é mais ou menos velada pelo artifício da constituição. A “constituição" era inicialmente uma garantia contra arbitrariedades do príncipe. A monarquia mesma, sob condição de ser uma monarquia constitucional, poderia sobreviver nos tempos novos. A Declaração dos Direitos de 1789 diz em seu artigo 16: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação de poderes determinada, não possui uma constituição”. A garantia de direitos assegurada, mas por quem? Substitui-se uma liberdade tida como arbitrária, a do príncipe, por uma arbitrariedade tida como liberdade, a vontade geral. Não se conhecem mais os LIMITES definidos — e que são os únicos reais — que a ordem antiga impingia ao poder temporal do príncipe. Esses limites eram religiosos. Eram os da religião natural, do decálogo, da piedade filial e nacional, do respeito aos costumes, da franqueza e da palavra dada. Os da religião revelada, do poder espiritual da Igreja que educava a consciência religiosa da nação. Não era suficiente? Era frágil? Não se criou nada de mais sólido. Contra a arbitrariedade pessoal, estabeleceram-se garantias constitucionais que tiveram por conseqüência direta instituir a arbitrariedade coletiva, que não é menor, e pode ser pior, como é o caso mais freqüente, conforme notava Santo Tomás no capítulo quinto da primeira parte de De regno.

Uma vez que a garantia contra o rei se tornou “constitucional”, a constituição deveria ser hoje uma garantia contra a tirania da vontade geral: mas ela não quer sê-lo. Garantia contra os governantes, ela se apresenta, superiora a eles, como um conjunto de leis intangíveis. Sempre existe, nas nossas democracias ocidentais, alguma assembléia superior, alguma corte suprema tendo a função de proferir julgamento sobre a “constitucionalidade” das leis e decretos: pode-se apelar aí das decisões da assembléia legislativa e do governo, que são no entanto um e outro designados pela maioria soberana. Assim se restabelece a idéia de valores permanentes e superiores, de princípios, de direitos aos quais seja impossível tocar. Mas é assim só na aparência.

Essas regras constitucionais não podem ser ditas sagradas senão por uma analogia enganadora. Como as outras, foram fundadas apenas sobre a soberania popular: que pode corrigi-las, abrogá-las, substituí-las. A soberania popular, no direito democrático moderno, é uma soberania absoluta, onipotente, totalitária e ilimitada. Por complicado e inacessível que seja o modo de revisão das constituições, elas são perfeitamente revisáveis. Nossas democracias têm se orgulhado de garantir constitucionalmente a independência da justiça, o direito à propriedade privada e as liberdades fundamentais segundo a idéia que delas fazem. Mas essas garantias são meramente constitucionais. A vontade popular pode, amanhã ou depois de amanhã (como já calhou de ocorrer ontem ou ante-ontem), decretar que o justo é injusto, que o bem é o mal, proibir o que é lícito, tornar obrigatório o que é monstruoso e retocar nesse sentido até mesmo a constituição: contra a vontade popular não há nenhum recurso democraticamente legal ou legítimo. O importante, numa democracia moderna, não é que ela reconheça hoje esse ou aquele “direito do homem” codificados numa “declaração”: o importante é que ela possa, legitimamente, segundo a sua própria legitimidade, não os reconhecer amanhã. Todas as constituições, todas as declarações de direitos são revisáveis pela vontade superior da maioria que as decretou. O decálogo não é revisável, nem mesmo por Deus. Mas a democracia moderna não reconhece mais o decálogo: mesmo quando se conforma às suas estipulações práticas, ela pretende tirar de si mesma, e não dele, a fonte e a legitimidade da obrigação moral. A democracia moderna se pretende a única legisladora, e só respeita o decálogo na medida, e no sentido, e quando ela mesma o promulgou soberanamente.

Sed contra, protesta o catolicismo: Pio IX ensinava na Quanta Cura que é falso dizer que a vontade do povo, manifestada pela opinião pública ou por qualquer outro modo, constitua uma lei suprema, livre de todo direito divino ou humano. — Essa é a doutrina comum da Igreja, doutrina imutável e de alcance universal.

Quando os homens decidem que não há mais nada de superior à soberania popular e à lei do número, eles fazem bem mais do que mudar a constituição política: eles fazem uma revolução moral e religiosa, e não uma revolução qualquer, mas A revolução, a única, a da criatura que recusa, desde Adão, sua condição de dependência. No lugar dos deuses de Antígona, das Tábuas da Lei do Sinai, do Deus dos cristãos, só restou o homem, coletivamente emancipado, senhor de seu destino, único juízo do bem e do mal: dobrado sobre si mesmo e vazio; esmagado, alienado, apagado para desaparecer na noite sem fim do comunismo.

A democracia natural é política, pode ser boa ou má politicamente. Sistema de designação dos governantes pelos governados, ela não contradiz no seu princípio nenhuma das leis da criação e do Criador; sua adoção aponta para um julgamento circunstancial ou uma preferência sentimental. A democracia natural respeita o direito: a democracia totalitária arroga-se o poder de criá-lo.

A democracia moderna é religiosa: ela substitui as religiões pela religião do homem que coletivamente se faz deus. Sem reconhecer nenhum limite que lhe seja exterior, nenhum valor que lhe seja superior, nenhum outro direito que lhe possa resistir, ela suscita uma extensão indefinida do Estado totalitário e encontra no comunismo, ou seja, no domínio do partido comunista, a conclusão da sua lógica interna mais fundamental. Freada de fato pela existência de costumes e pensamentos cristãos, que ela só suporta provisoriamente, a título de excrescências condenáveis à luz da evolução dos espíritos e do progresso dos costumes, só ela pode em direito decidir sobre o bem e o mal, o justo e o injusto; só ela admite as liberdades e garantias que outorga e de bom-grado suspende. Ela proíbe até mesmo que o princípio democrático seja posto em questão: o adversário da democracia é um sacrílego a quem se subtrai, ao menos virtualmente, todo direito de cidadania; os Estados não democráticos são sempre ameaçados de serem banidos das nações. A Europa de 1977 aceitou que a Espanha estivesse na Europa, sob a condição de que a democratização espanhola realmente avançasse. No denominado mundo livre — que é apenas o mundo ainda livre do domínio comunista — a democracia mais plenamente moderna, a mais radicalmente laica, a mais separada de Deus, é sem dúvida a democracia francesa. As democracias anglo-saxãs, imperfeitamente laicas, são temperadas e limitadas por algum resquício de religião natural: e nessa medida, resistem melhor ao comunismo. No entanto, também elas estão ameaçadas. A lei do número é, como o Deus do Antigo Testamento, um deus ciumento, mas ela não o confessa facilmente; ela consente entrar no panteão, aceita um lugar humilde e discreto na assembléia das outras leis. Por natureza, contudo, ela não tolera nem superiores, nem pares, nem semelhantes. Ela não se apressa, dá tempo ao tempo até devorar tudo.

 

III. A liberal e a popular

É num sentido inteiramente distinto do nosso que se fala ordinariamente de duas democracias, segundo uma outra distinção: a democracia liberal e a democracia popular. Em 1941, tendo Hitler enviado suas tropas para se atolarem na Rússia, as democracias anglo-saxãs não se contentaram em conceder aos soviéticos uma significativa ajuda tecnológica e militar: elas fizeram com que a URSS ingressasse no “campo das democracias”, dando assim, no nível ideológico e moral, uma caução burguesa ao comunismo. Desde então se admitem duas formas de democracia, duas concepções democráticas — ambas próximas uma da outra, e dignas de se chamarem assim. 

Na seqüência, durante os tempos da “guerra fria”, que era a guerra política do mundo dominado pelo comunismo contra o mundo ainda livre dessa dominação, cada uma das duas concepções pretendeu ser a única “democracia verdadeira”. No mundo não comunista, dizia-se que a democracia soviética, sem pluralidade de partidos concorrentes e sem eleições livres, era totalitária. No mundo comunista, respondia-se que a democracia capitalista, imperialista e colonialista, era uma falsa figura de democracia. Os liberais tornaram então a recusar ao comunismo a qualidade de democracia, assegurando, como François Mauriac o fez, que não se pode incarnar ao mesmo tempo a revolução marxista e o Estado democrático, pois a democracia repousa sobre os próprios princípios que a fé do partido comunista obriga derrubar e destruir, e que o partido comunista não pode crescer sem que a democracia diminua.

A tradição doutrinal do catolicismo opõe-se a essa distinção (duas formas diferentes de democracia, a liberal e a popular) e a esta exclusão (a democracia marxista não é a verdadeira democracia).

Pode-se tomar por testemunho Leão XIII na Encíclica Graves de communi de janeiro de 1901. Um parêntesis, foi essa a Encíclica que autorizava os católicos a usar o nome “democracia cristã”, com a condição expressa de não se dar a esse termo nenhum sentido político, mas apenas o significado de uma ação caridosa com respeito ao povo; as democracias cristãs receberam essa permissão sob condição murmurando: “o papa acaba de engolir a palavra, em breve engolirá a coisa”; nisso, a sua manobra seria bem sucedida, mas não imediatamente; primeiro tiveram de dobrar a cerviz sob o reino de São Pio X, em seguida lançar fora o pensamento e a herança do papa, acusando-os de “integrismo”. 

Ora, em Graves de communi encontramos a seguinte advertência contra uma forma de democracia autenticamente democrática, assim definida:

“Desaparecendo as classes sociais e estando todos os cidadãos reduzidos ao mesmo nível de igualdade, isso seria o encaminhamento para a igualdade dos bens; o direito de propriedade seria abolido e todas as fortunas que pertencem aos particulares, os instrumentos mesmos de produção, seriam vistos como bens comuns.”

Quando Leão XIII nomeava um regime assim, chamava-o pelo seu nome: democracia social; ou seja, a aplicação às estruturas econômicas e sociais dos princípios mesmos que a democracia política aplica às estruturas políticas. Democracia social, democracia integral, verdadeira democracia — o marxismo-leninismo não está errado em reivindicar esse nome.

Reconhecer a identidade subjacente do princípio fundamental não é se recusar a perceber as grandes diferenças que se verificam entre a democracia liberal e a democracia marxista. Essas diferenças giram em torno das liberdades individuais: mas estas não pertencem à essência da democracia moderna e não são o critério para se avaliar se há mais ou menos democracia ou uma democracia mais verdadeira. Segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o direito novo, o direito democrático consiste em que a soberania reside doravante na nação (personificando o povo), e que nenhum corpo ou indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dele: a única diferença democrática (ou seja, a única que tem valor na perspectiva da democracia moderna) entre a democracia liberal e a democracia marxista é que, para a primeira, a lei majoritária do primado do número restringe-se ao funcionamento governamental e legislativo, enquanto que, para a segunda, toda a organização social é submetida a isso. Tanto para o marxista como para o liberal, a lei suprema é a mesma: o primado do número. Eles só se opõem sobre a extensão (ou a velocidade) da aplicação. Ambas estão de acordo com a filosofia política que Leão XIII descrevia nestes termos:

“Hoje em dia vê-se que foi além; um grande número dos nossos contemporâneos, seguindo as pegadas daqueles que no século passado deram a si mesmos o nome de filósofos, afirmam que todo poder vem do povo. Por conseguinte, aqueles que exercem o poder não o exercem como coisa própria, mas sim como mandatários ou emissários do povo; e por essa própria regra a vontade do povo pode a qualquer momento retirar de seus mandatários o poder que lhes foi delegado.” (Encíclica Diuturnum Illud, junho de 1881.)

A autoridade do pai de família, do professor na sua classe, do patrão na sua firma, do bispo na sua diocese são heterogêneas à luz do princípio democrático moderno, e contrárias à Declaração dos Direitos de 1789. Essas autoridades, que são liberdades, não podem ser mantidas senão limitando-se a expansão do princípio democrático. O que faz a democracia liberal não é tanto limitar, mas meramente frear essa expansão, enquanto gaba-se de salvaguardar o que seria democraticamente normal destruir. Essas autoridades, essas liberdades, fundadas na ordem natural anterior à democracia, a democracia liberal as abala aos poucos, ela as dissolve lentamente, as diminui sem cessar. A diferença é de grau, não de natureza, com a democracia marxista, que as suprime ou as subjuga.

Existe uma democracia mais lógica que a outra: a que remete ao poder da vontade popular não apenas a composição do governo e da assembléia legislativa, mas ainda os bens, as pessoas, a educação, a cultura, os trabalhos, as informações, confiando tudo ao novo deus como o homem na cristandade confiava tudo a Deus. 

Existe também uma democracia menos lógica: a que, tendo admitido que todo poder e todo direito vêm da vontade popular, deixa sobreviver na sociedade direitos e poderes que não vêm dessa vontade; a democracia liberal é por vezes dita ocidental, e a outra oriental, como se Robespierre tivesse nascido numa aldeia do Cáucaso e a Convenção de 1793 tivesse se dado em Moscou.

*

Objeta-se que a democracia soviética é, na realidade, uma mentira; uma hipocrisia; ela invoca a lei do número na teoria, mas a contradiz na prática; ela fala em nome da vontade popular, mas obedece às vontades de um tirano rodeado de pretorianos que, com o nome de “partido”, constituem uma casta privilegiada de políticos e policiais. 

A objeção confunde os pontos de vista. Se nos dizem que existem dois conceitos fundamentalmente diferentes de democracia, a soviética e a ocidental, nós examinamos esses conceitos em si mesmos, e verificamos que ambos estão de acordo no fundamental, que é situar a vontade popular como fonte de toda legitimidade; uma levou esse conceito até as suas últimas conseqüências; o outro não se joga no despenhadeiro por considerações que não possuem fundamento democrático. 

Falar da maneira com que essas concepções são executadas é levantar outra questão. Elas se chocam com a realidade que tanto mais lhes resiste quanto mais utópicas se mostram. A teoria democrática pressupõe a igualdade: a lei do número seria intrinsecamente contraditória se os cidadãos, todos contados por uma unidade, não fossem tidos por tão iguais quanto possível. Ao mesmo tempo, o impulso mais potente que as revoluções democráticas utilizam é a aspiração à igualdade, exacerbada e manipulada. Há muito se sabe que a igualdade social entre os homens é uma quimera: jamais foi realizada, nem na democracia ateniense nem na república romana; nem durante a revolução de 1793; não foi realizada nem no país dos soviéticos nem nas Américas. Por maior que seja o esforço feito pelos governos, pela legislação ou pela ideologia no poder, as desigualdades sempre renascem entre homens e mulheres, pais e filhos, ricos e pobres, proprietários ou não, patrões e empregados, artistas e assalariados, trabalhadores e camponeses, mestres e aprendizes, clero e leigos. Não é nem mesmo certo que os partidários da igualdade a tenham realmente desejado: o sentimento que os tem animado ao longo da história é antes o desejo de suprimir uma superioridade que os desfavorece (ou que parece desfavorecê-los); há muito de inveja na sua suposta justiça e nas suas proclamações de amor. A aspiração democrática à igualdade é sobretudo o ódio das superioridades que temos de suportar. Os aristocratas que renunciam espontaneamente aos seus privilégios e se tornam revolucionários, normalmente o fazem para suplantar os seus pares ou porque foram rejeitados por eles. Mirabeau e Barras, que eram nobres, elegeram-se em 1789 como deputados do terceiro estado porque a sua ordem não os havia designado; eles apoiaram a abolição dos antigos privilégios dos quais estavam sendo privados, mas nenhum escrúpulo os impediu de se atribuírem novos privilégios na sociedade revolucionária. De resto, diga-se o que se quiser do desejo de igualdade da parte dos democratas, o projeto de uma sociedade igualitária contradiz a inclinação natural dos homens e das coisas. Por mais que se tente, por mais que se esforce, para o estabelecimento da igualdade sempre foi preciso usar da mais terrível coação. De Robespierre a Lênin, os partidários da igualdade foram os tiranos mais implacáveis, porque a igualdade pode, numa certa medida, ser imposta às sociedades humanas pela força, mas nunca pela persuasão, e menos ainda por uma evolução natural.

Os fanáticos da lei do número são inevitavelmente inclinados a promover uma repressão universal para levar os homens ao estado de nivelamento em que a lei do número poderia funcionar logicamente. Uma tirania desse gênero só pode ser exercida com sua coorte de funcionários e políciais, de oligarcas e privilegiados; mas ela está a serviço do ideal igualitário. Nem Robespierre nem Lênin foram infiéis à lei do número nisso; antes, são fanáticos dela, fazendo tudo o que está em seu alcance para a impor, mesmo quando o número não quer; e essa coação, essa tirania, tiveram por estandarte a Liberdade, ficando subentendido que não há liberdades contra a Liberdade; e que a Liberdade em maiúsculas consiste, para a humanidade, numa recusa coletiva de toda dependência moral no tocante ao que quer que seja de moralmente superior à sua autonomia.

A ideologia liberal se limita a uma igualdade limitada, que é a de colocar o voto na urna eleitoral em toda liberdade e em segredo absoluto. Ela protesta que essa igualdade, restrita mas específica, e que essa liberdade não existem nos regimes comunistas. As “democracias populares” pretendem ser regimes eletivos: está claro que o “funcionamento normal” da democracia eletiva está falseado aqui pela onipotência do partido único. Sem dúvida. E mesmo bem mais do que os liberais imaginam ordinariamente, como escrevi no livro La vieillesse du monde. Mas, nas democracias ocidentais, esse funcionamento normal foi por muito tempo falsificado pela plutocracia, ou seja, pela prepotência do dinheiro, antes de alcançarmos os processos atuais de socialização, nos quais os mais ricos se arranjam e continuam sendo os mais bem posicionados. A democracia soviética é a abominável ditadura do partido, a democracia liberal é a abominável dominação da riqueza anônima e vagabunda.

Essas duas abominações não possuem o mesmo peso. Para qualquer um, mesmo para os apparatchiks do partido comunista, é inequivocamente preferível viver numa democracia liberal que numa democracia marxista. Mas não é assim porque a primeira seria mais democrática ou a única verdadeira democracia. A sua superioridade sobre a segunda vem de realidades estrangeiras ao dogma democrático: ela deixa sobreviver, ainda que cada vez menos, valores, usos, direitos, princípios realmente bons, amigos do homem, apesar de suspeitos para um verdadeiro democrata, pois tiram a sua origem e seus fundamentos em outro lugar do que no princípio democrático — no decálogo e na revelação católica.

 

( Les deux democraties, N.E.L., Paris, 1977.  / Tradução: Permanência / Revista Permanência 296 – TEMPO DO NATAL )

AdaptiveThemes