Christopher Ferrara
Este artigo, adaptado de uma conferência dada no simpósio de 2018 do Forum Romano em Lago di Garda, Itália, examina a atual crise sem precedentes na Igreja em sua origem: o levante neo-modernista durante o período entre guerras, culminando na catástrofe conhecida como a “abertura ao mundo” no Vaticano II.
A “abertura ao mundo” conciliar foi ajudada poderosamente por dois iludidos visionários “conservadores” cujos papéis foram absolutamente decisivos: Jacques Maritain e seu discípulo Papa Montini, cujo relacionamento e conexão mútua com ninguém menos que Saul Alinsky são o foco deste trabalho.
Não é mais possível negar de boa-fé que o resultado do Concílio tenha sido a propagação de uma enfermidade eclesial que afeta agora praticamente cada região do Corpo Místico, enfermidade essa que ambos Maritain e Montini deploraram ruidosamente em seus estágios iniciais, ao mesmo tempo em que se recusavam resolutamente a admitir sua própria participação, e a do Concílio, no crescente desastre.
Por mais de cinqüenta anos, autores e comentadores tradicionalistas, observando o óbvio, documentaram o declínio eclesial que se espalhava em cada setor da Igreja e alertaram incessantemente que a mania reformista que o Concílio desencadeou — sob os aplausos de ambos Maritain e Montini e de seus iludidos reformadores “conservadores” — terminaria num desastre final para o elemento humano da Igreja. O desastre final chegou com o irrefreável papado de Jorge Mario Bergoglio e seu círculo de colaboradores homossexuais e simpatizantes do movimento homossexual, que ele tem elevado sistematicamente a posições de poder a serviço de sua verdadeira ditadura sobre a Igreja.
Admitindo precisamente aquilo que observadores tradicionalistas vêm dizendo sobre Bergoglio nos últimos cinco anos e meio, o padre Thomas Rosica, ferrenho apoiador do movimento homossexual, declara: “O papa Francisco rompe com as tradições católicas sempre que quer, porque ele está ‘livre de apegos desordenados’. Nossa Igreja entrou realmente numa nova fase: com o advento do primeiro papa jesuíta, ela é agora governada abertamente por um indivíduo, mais do que apenas pela autoridade da Escritura ou mesmo pelos preceitos de Tradição mais Escritura.”
O que Rosica está louvando não é nada menos que a tentativa de impor um culto de personalidade sobre a Igreja universal, livre de qualquer doutrina ou prática que o chefe do culto considere inaceitável. A “nova fase” é, de fato, o estágio terminal da revolução pós-conciliar na Igreja.
A próxima fase na história da Igreja será uma restauração total de cada elemento da Tradição que a revolução derrubou. Mas parece agora que essa inevitável restauração terá de envolver uma intervenção divina das mais dramáticas, porque salvo umas poucas comunidades tradicionalistas remanescentes, o elemento humano da Igreja, da cabeça aos pés, tornou-se incapaz de se afastar definitivamente do que foi feito ou do que se permitiu fazer em nome do mais desafortunado concílio ecumênico da história da Igreja. Para lembrar a profecia de Nossa Senhora do Bonsucesso:
Para a libertação da escravidão dessas heresias, aqueles a quem o amor misericordioso de meu Filho Santíssimo destinará para essa restauração necessitarão de grande força de vontade, constância, valor e muita confiança em Deus. Para pôr à prova essa fé e confiança dos justos, haverá ocasiões em que tudo parecerá perdido e paralisado. Será, então, o feliz princípio da restauração completa.
[…]
Durante esse tempo desafortunado, a injustiça entrará até aqui, no meu jardim reservado. Disfarçada sob o nome de uma falsa caridade, ela causará estragos nas almas. O rancoroso demônio tentará semear discórdia, valendo-se de membros putrefatos, que, mascarados pela aparência de virtude, serão como sepulcros apodrecidos emanando a pestilência da putrefação, causando a morte moral em alguns e a tibieza em outros.
[…]
A atmosfera saturada do espírito de impureza, à maneira de um mar imundo, correrá pelas ruas, praças e logradouros públicos… Quase não haverá almas virgens no mundo.
[…]
Como a Igreja sofrerá naquela ocasião a noite escura da falta de um Prelado e Pai para olhar sobre ela com amor paternal, gentileza, força e prudência! Muitos sacerdotes desanimarão, colocando suas almas em grande perigo. Ora com instância, clama sem cansar e chora com lágrimas amargas, pedindo ao Pai Celeste que, por amor do Coração Eucarístico de seu Santíssimo Filho e de seu Precioso Sangue derramado com tanta generosidade, e pela profunda amargura e sofrimentos de sua cruel Paixão e morte, compadeça-se de seus ministros e ponha termo quanto antes a tempos tão nefastos, enviando a esta Igreja o Prelado que deverá restaurar o espírito de seus sacerdotes.
Apesar de ter vivido para se arrepender da ruína eclesiástica que ele mesmo provocou e que, então, buscou desesperadamente reparar — muito pouco, muito tarde — o Papa Montini foi um revolucionário formado pelo Modernismo “conservador” de outro revolucionário: Jacques Maritain. Como Montini famosamente admitiu: “Sou um discípulo de Maritain. Chamá-lo-ei de meu mestre.” O livro de Maritain, Humanismo Integral (1936), não foi nada menos que o “‘petit livre rouge’ (‘pequeno livro vermelho’ ) de toda uma geração de cristãos” , isto é, católicos liberais como Montini, filhos dos “patriotas” da alta burguesia do Estado italiano criado pela violência revolucionária do chamado Risorgimento. Como o próprio Maritain, Montini foi seduzido pelo fogo fátuo de uma Nova Era da humanidade na qual a Igreja, alegremente reconciliada com a democracia pluralista e a concepção moderna de direitos, seria o fermento de uma Nova Cristandade, livre das incapacitantes estruturas do que Maritain repudiava como a ultrapassada “idade sacra” da Cristandade medieval para a qual jamais poderia haver qualquer tipo de retorno. Montini e Maritain foram figuras típicas dos falsos profetas da modernidade que não conseguiam enxergar, mesmo enquanto tudo acontecia diante de seus olhos, o que os Papas pré-conciliares previram que aconteceria caso a Igreja tentasse acomodar seu ensinamento ao espírito da época com sua inegociável exigência de extinção do estado confessional católico.
“O Primeiro Papa Moderno” , o discípulo iludido de um leigo iludido, levaria a Igreja a um desastroso desvio do caminho de todos os seus predecessores, apenas para encontrar-se, ao final, “diante do projeto, que jaz destruído, de todo o seu pontificado.” . Em seu O Camponês do Garona, publicado em 1966, Maritain uniu-se a Montini ao lamentar o que se seguiu ao Concílio Vaticano II, embora absolvendo o Concílio de qualquer culpa pelo levante neomodernista pós-conciliar, ainda que seu próprio “pensamento”, que espalhou um culto internacional de Maritainismo ao qual Montini pertencia, tenha contribuído para facilitar aquele levante durante e após o Vaticano II.
Maritain e Alinsky
Em O Camponês, Maritain escreve sobre seu próprio relacionamento com um companheiro revolucionário, Saul Alinsky: “entre os meus contemporâneos ainda vivos enquanto escrevo essas linhas, só consigo ver três revolucionários que fazem jus ao nome: Eduardo Frei no Chile, Saul Alinsky na América, e eu mesmo na França, sendo porém um peso-leve ao lado desses outros, já que minha vocação como filósofo encobriu completamente qualquer talento que pudesse ter como agitador.... Saul Alinsky, grande amigo meu, é um corajoso e admiravelmente dedicado organizador de ‘comunidades do povo’ e um líder anti-racista cujos métodos são tão efetivos quanto heterodoxos.”
Muito inexplicavelmente, Maritain ficou encantado com o judeu agnóstico organizador de comunidades e fumante de charutos, a quem conheceu pela primeira vez em 1945 durante sua permanência temporária nos Estados Unidos ao final da guerra. Bernard Doering, especialista em estudos sobre Maritain, observa que sempre que Maritain e Alinsky se encontravam, “passavam longas horas explorando o sonho democrático de um povo que fizesse seu próprio destino. Ambos aceitavam a democracia como a melhor forma de governo.”
A alardeada carreira de Alinsky como paladino da justiça social em Chicago, onde desenvolveu profundas conexões com os padres e prelados progressistas da arquidiocese de Chicago, produziu pouco ou nada em termos de verdadeira justiça. Entretanto, instado por ninguém menos que Maritain, Alinsky viria a produzir alguns livros influentes sobre como ser um efetivo agitador de turbas e inescrupuloso ludibriador político na promoção de causas socialistas. Desde “seus primeiros dias de amizade na América nos tempos da guerra,” escreve Doering, “Maritain vinha insistindo, para não dizer incitando incansavelmente, Alinsky a publicar uma explicação sobre seus métodos de organização de comunidades; um tipo de manual para uma autêntica revolução.”
Alinsky escreveu o seu Reveille for Radicals (Convocação para Radicais) especificamente a pedido de Maritain, cedendo-lhe os direitos exclusivos para a tradução francesa. Numa carta de recomendação para uma bolsa de financiamento para Alinsky, Maritain o descreve como um “tomista prático” — exemplo do quão elástico era o assim chamado Tomismo de Maritain. Na mesma carta, ele descreve Alinsky como “uma nobre alma, um homem de profunda pureza moral...”
Foi também Maritain quem estimulou a publicação da última obra de Alinsky, o infame Rules for Radicals (Regras para Radicais), de 1971, que influenciaria ambas as carreiras de Barack Obama e Hillary Clinton. Aparentemente, ou Maritain não leu ou decidiu negligenciar boa parte do conteúdo do livro cuja publicação ele iria depois enaltecer. O livro é dedicado “ao primeiro radical que o homem conheceu; aquele que se rebelou contra o establishment e o fez tão efetivamente que pelo menos ganhou o seu próprio reino — Lúcifer.” Em suas páginas, Alinsky declara: “O dogma é o inimigo da liberdade humana. O dogma tem de ser vigiado e detido a cada volta e reviravolta do movimento revolucionário.” Ato contínuo, contradiz a si mesmo estabelecendo um dogma após o outro, incluindo:
1) O “direito sagrado” à revolução.
2) A máxima de que “a humanidade foi e é dividida em três partes: os que têm, os que não têm, e os que têm pouco e querem mais.” “A vida espiritual dos que têm”, diz Alinsky, é meramente “uma justificação ritualista de suas posses.”
3) Várias regras éticas para o paladino da justiça social, incluindo o direito de empregar chantagem e outros meios imorais se realmente necessários para alcançar o seu fim: a chamada justiça social.
De acordo com as regras éticas de Alinsky, “a única e real questão sobre a ética dos meios e dos fins é e sempre foi: ‘Esse fim particular justifica esse meio particular?’” “Padrões éticos”, diz Alinsky, “têm de ser elásticos para serem ampliados com os tempos.” “Dizer que meios corruptos corrompem os fins é acreditar na imaculada conceição de fins e princípios”, declara ainda.
Alinsky chega a citar Maritain — desonestamente e fora de contexto — para sustentar sua posição de que não jogar sujo por “medo de macular a nós mesmos diante do contexto histórico não é uma virtude, mas uma forma de fugir da virtude.” Os julgamentos éticos, diz Alinsky, “têm de ser feitos no contexto da época na qual a ação ocorreu, e não a partir de qualquer outro ponto de vista cronológico”, e “quanto menos importante for o fim desejado, mais deve-se aceitar se envolver nas avaliações éticas dos meios.”
Eis um exemplo da “pureza moral” de Alinsky, retirado das páginas de Rules for Radicals:
Sempre acreditei que controle de natalidade e aborto são direitos pessoais a serem exercidos pelo indivíduo. Se lá no meu começo, quando eu organizava a vizinhança do bairro Back of the Yards em Chicago, que era 95% católico-romana, eu tivesse tentado passar essa idéia, mesmo considerando a experiência dos residentes, cuja difícil situação econômica era agravada por famílias grandes, isso teria sido o fim do meu relacionamento com a comunidade.
Alguns anos depois, após estabelecer relacionamentos sólidos, fiquei livre para falar sobre qualquer coisa, incluindo controle de natalidade. Lembro de conversar sobre isso com o então chanceler da cúria católica. Naquele ponto, o assunto não estava mais limitado a perguntas como, “Por quanto tempo ainda você acredita que a Igreja Católica pode se agarrar a essa noção arcaica e ainda sobreviver?”
Isso foi escrito na mesma época em que a oposição neo-modernista ao ensinamento da Igreja sobre matrimônio e procriação impelia Montini a produzir o documento que viria a se tornar a Humanae Vitae. Apesar de tudo isso, Maritain escreveu ao seu amado amigo Alinsky em 1971, uma de suas últimas cartas, para elogiar Rules for Radicals como: “Um grande livro, admiravelmente livre, absolutamente destemido, radicalmente revolucionário.... Considero o livro um marco histórico. Se as pessoas da classe média puderem se organizar e desenvolver um senso de bem comum e um desejo por esse bem — e se Saul estiver lá para inspirá-las — elas serão capazes de mudar o cenário social inteiro em prol da liberdade.” Após umas poucas e tímidas objeções ao posicionamento amoral e à ética utilitarista de Alinsky, objeções pelas quais se desculpa, Maritain conclui sua epístola elegíaca ao agitador agnóstico judeu: “Sabes que estou contigo com todo o meu coração e alma. Reza por mim, Saul. E Deus te abençoe. A ti, a fervente admiração e o permanente amor de seu velho Jacques.”
Numa entrevista que deu à uma revista de má reputação muito pouco antes de morrer de ataque cardíaco em 1972 aos 63 anos, o homem a quem Maritain pediu orações declarou que escolheria sem hesitar o inferno ao céu:
REVISTA: Tendo aceitado sua própria mortalidade, você acredita em algum tipo de vida após a morte?
ALINSKY: Às vezes me parece que a pergunta que as pessoas deviam fazer não é se existe vida após a morte, mas se existe vida após o nascimento. Eu não sei se há ou não alguma coisa depois disto. Jamais vi evidências para um lado ou para o outro e não acho que mais alguém tenha visto. Mas o que sei é que a obsessão do homem com a pergunta vem de sua recusa teimosa em encarar sua própria mortalidade. Digamos que se existe uma vida após a morte, e se eu tenho de dizer algo sobre ela, escolho sem reservas ir para o inferno.
REVISTA: Por quê?
ALINSKY: O inferno seria o céu para mim. Durante toda a minha vida estive com os que não têm nada. Por aqui, se você é um dos que não têm nada, é porque lhe falta dinheiro. No inferno, se você é um dos que não têm nada, é porque lhe falta virtude. Assim que eu chegar ao inferno, começarei a organizar os que não têm nada por lá.
REVISTA: Por que eles?
ALINSKY: Eles são meu tipo de gente.
Alinsky e Montini
A íntima amizade de 30 anos entre o “velho Jacques” e Alinsky deu origem a uma conexão entre Alinsky e o principal discípulo de Maritain, o futuro Papa Paulo VI. Montini era então Arcebispo de Milão, posto ao qual havia sido enviado sem ter sido criado cardeal, após Pio XII ter perdido a confiança nele por conta de suas tendências modernistas.
Em seu estudo The Radical Vision of Saul Alinsky (A Visão Radical de Saul Alinsky), P. David Finsk observa que “por anos Jacques Maritain falou com aprovação para Montini sobre as organizações de comunidades democráticas fomentadas por Saul Alinsky.” Em conseqüência, em 1958 Maritain arrumou uma série de encontros entre Alinsky e o Arcebispo Montini em Milão. Antes dos encontros, Maritain tinha escrito a Alinsky para contar-lhe que, como narra Finsk: “o novo cardeal estava lendo os livros de Saul e o contataria em breve.”
Houve três encontros entre Montini e Alinsky em Milão durante a primavera de 1958. Em 20 de junho de 1958, Alinsky escreveu a Maritain: “Tive três maravilhosos encontros com Montini e estou certo de que você já teve notícias dele desde então.” Entre os assuntos discutidos, de acordo com Nicholas Hoffman, conversaram sobre como enfrentar o aumento da influência comunista no norte industrial da Itália sem “reforçar os elementos reacionários que têm menos interesse na democracia do que em esmagar o trabalhador.” Em outras palavras, o velho jogo liberal de usar a ameaça de uma armadilha política para dirigir o povo às garras de outra: opor ao comunismo o socialismo moderado, do mesmo jeito que se enfrentou o socialismo com o Parti de l'Ordre na França. E, de fato, o socialismo moderado tornou-se a política italiana sob o governo de Aldo Moro, eleito numa aliança com os socialistas em 1963.
Jamais saberemos exatamente o que se passou entre Montini e Alinsky durante aqueles “três maravilhosos encontros” em Milão, mas sabemos o que Alinsky, em Chicago, tendo retornado da Itália, escreveu para George Shuster dois dias antes do conclave que elegeu João XXIII: “Não, eu não sei quem será o próximo Papa, mas se for Montini, as bebidas serão por minha conta nos próximos anos.”
O que Alinsky sabia? O que aprendeu em seus “três maravilhosos encontros” com o homem que logo se tornaria o Primeiro Papa Moderno? Ele aprendeu aquilo que Maritain já sabia sobre seu discípulo: que se e quando Montini se tornasse Papa, haveria uma revolução na Igreja.
E assim aconteceu. Seria Montini quem declararia após o Concílio, nas páginas de L’Osservatore Romano (3 de julho de 1974): “As palavras importantes do Concílio são novidade e atualização... A palavra novidade nos foi dada como uma ordem, como um programa.” Nunca na história da Igreja um Papa havia proferido tal disparate num pronunciamento público para a Igreja universal.
Cegueira Intencional, Contenção Desesperada
Como observa Doering: “Cada uma das realizações do Concílio Vaticano II listadas por Maritain na primeira parte de O Camponês do Garona havia sido proposta 30 anos antes em Humanismo Integral” como “pré-requisito para uma revolução radical e uma transformação cristã da ordem temporal.”
Mas a Igreja pós-conciliar testemunhou, não uma “transformação cristã da ordem temporal”, mas antes o que o próprio Maritain, escrevendo em 1966, observava com assombro como “uma completa temporalização do cristianismo!” — acompanhada por um acelerado colapso da fé e da disciplina católicas sem precedentes na história da Igreja. Ambos Montini e Maritain ficaram se perguntando por quê. É claro, esse desastre absoluto não poderia de forma alguma ter algo a ver com aquilo que Maritain e seu discípulo haviam ajudado a desencadear no Concílio, cujos documentos, particularmente Gaudium et Spes, Dignitatis Humanae e Apostolicam Actuositatem (Sobre o Apostolado dos Leigos), respiram ao “fino” Modernismo de Maritain — exatamente aquilo que Pio XI havia reprovado na Ubi Arcano Dei, apenas 14 anos antes da aparição de Humanismo Integral:
Porque quantos são os que admitem a doutrina católica acerca da autoridade civil e o dever de obedecer-lhe, o direito de propriedade, os direitos e deveres dos trabalhadores agrícolas e industriais, as relações do poder religioso com o civil, os direitos da Santa Sé e do Romano Pontífice, os privilégios dos bispos; finalmente, os direitos de Cristo, Criador, Redentor e Senhor sobre todos os homens e sobre todos os povos?
No entanto, esses mesmos católicos falam, escrevem e obram como se os ensinamentos e as ordens dadas em tantas ocasiões pelos Sumos Pontífices, especialmente por Leão XIII, Pio X e Bento XV, houvessem perdido seu vigor nativo ou estivessem já completamente obsoletas.
Essa maneira de agir constitui uma espécie de modernismo moral, jurídico e social. Nós o condenamos com a mesma solenidade com que condenamos o modernismo dogmático.
Em O Camponês, Maritain expõe a delirante linha social modernista da nova era, proposta por Cavour, de “uma Igreja livre num Estado livre”, que de fato significa uma Igreja subjugada num Estado tirânico. “No Concílio”, vangloria-se Maritain em sua arrebatada prosa francesa, “a Igreja rompeu as amarras que fingiam protegê-la e livrou-se dos fardos que as pessoas costumavam pensar que a equipavam melhor para a obra de salvação. Livre doravante desses fardos e dessas amarras, ela espelha melhor a verdadeira face de Deus, que é Amor, e para si pede apenas liberdade. Ela abre suas asas de luz.”
Sendo o visionário iludido que era, Maritain não reconhece a realidade histórica que os Papas pré-conciliares deploraram unanimemente. A Igreja não havia sido libertada dos seus assim chamados “fardos e amarras” no Estado confessional católico da assim chamada “idade sacra”; antes, tinha visto os seus direitos serem roubados pela força e pela violência, levados por rios de sangue à medida que um Papa após o outro condenava os destruidores da civilização cristã e os erros fatais sobre os quais sua nova ordem se baseava. Aquilo que Maritain saudava, então, era a rendição formal da Igreja à modernidade política.
E apesar disso, no mesmo livro, publicado apenas um ano após o encerramento do Concílio, Maritain lamentava um desenvolvimento eclesial que ele nunca havia observado antes do Concílio. Parecia que a Igreja estava repentinamente se ajoelhando diante do mundo: “A presente crise tem muitos e diversos aspectos. Um dos mais curiosos espetáculos que ela nos oferece é um tipo de ajoelhamento diante do mundo, que se revela de milhares de formas.”
Apenas quatro anos antes, na época da abertura do Concílio, Maritain não teria conseguido observar tal ajoelhamento, mas não consegue ou não quer fazer qualquer ligação entre a situação emergente e a alardeada “abertura” do Concílio ao próprio mundo diante do qual tantos homens da Igreja Católica estavam de repente dobrando o joelho. Pelo contrário, ele se apressa em isentar o Concílio:
Se houver profetas da vanguarda ou da retaguarda que imaginem que nossos deveres para com o mundo, tais como trazidos à luz sob a graça do Espírito Santo pelo Concílio Vaticano II, apagam o que o próprio Senhor Jesus e seus Apóstolos disseram sobre o mundo — o mundo me odeia, o mundo não pode receber o Espírito da verdade, se alguém ama o mundo o amor do Pai não está nele, e todos os outros textos que lembrei antes — eu sei o que deve ser dito de tais profetas... eles estão furando os próprios olhos com o dedo de Deus.
Não é possível evitar razoavelmente a conclusão de que ambos Maritain e seu discípulo Papa Montini fecharam voluntariamente seus próprios olhos ao inegável fato de que essa repentina postura de se ajoelhar diante do “mundo moderno” estava conectada com o próprio Concílio, cujo inexplicável (para não dizer estulto) otimismo sobre o mesmo mundo impedia estritamente qualquer admissão de que o mundo odiava Cristo mais do que nunca; que mais do que nunca o mundo rejeitava a sua Palavra; que mais do que nunca o amor do mundo estava excluindo o amor do Pai.
Apesar de sua insistência em absolver o Concílio de qualquer cumplicidade com a repentina “temporalização do cristianismo”, Maritain tinha admitido anteriormente, mesmo durante o Concílio, que havia algo seriamente errado com os seus procedimentos. Escrevendo no início de 1964 para outro de seus amigos íntimos, o novelista franco-americano e homossexual enrustido Julien Green, Maritain confiou o seguinte sobre o que estava acontecendo na aula conciliar:
Soltar as rédeas como fez João XXIII era absolutamente necessário, mas ao mesmo tempo um risco e tanto. Tudo o que é profissionalmente intelectual (professores, universidades, seminários) me parece estar ou deteriorado ou numa posição muito perigosa. Uma certa exegese enlouqueceu e tornou-se estúpida.
Há um novo modernismo cheio de orgulho e rebeldia que me parece mais perigoso do que aquele do tempo de Pio X. (Afinal de contas, foi um espetáculo bem estranho ver todos os bispos do Concílio — a Igreja Docente — cada um flanqueado por seu especialista, professor ou erudito pedante da Igreja Discente, dos quais um bom número estava fora de sua especialidade intelectual, e entre os quais quase nenhum possuía qualquer sabedoria.) Então, é no meio de todo esse burburinho que a obra do Espírito Santo é realizada.
O “burburinho” que Maritain descreveu, esse repentino “novo modernismo” emergente, foi uma catástrofe eclesial iniciada bem no meio do Concílio. Ele, como seu estudante Montini, simplesmente se recusou a ver isso.
Talvez tenha vindo a calhar que ninguém menos que a dupla Maritain e Montini tenha corrido para resgatar o legado de seu precioso Concílio por meio do Credo do Povo de Deus, de Paulo VI. Como Sandro Magister revela num importante ensaio, em 1967, logo após a publicação de O Camponês, Maritain, então com 85 anos, ouviu do Cardeal Journet que este estava para ter uma reunião com o Papa sobre o já caótico estado pós-conciliar da Igreja, o que incluía a publicação do radicalmente herético Catecismo Holandês. Maritain escreveu de volta para dizer que tinha tido uma idéia: “O Soberano Pontífice devia redigir uma profissão de fé completa e detalhada, na qual tudo o que está realmente contido no Símbolo de Nicéia seria explicitamente apresentado. Isso será, na história da Igreja, a profissão de fé de Paulo VI.”
Journet apresentou a sugestão de Maritain ao Papa em sua reunião em janeiro de 1968, durante a qual disse a Paulo VI que o estado da Igreja era “trágico”, a ponto de os holandeses ousarem “substituir uma ortodoxia por outra na Igreja, trocando a ortodoxia tradicional pela ortodoxia moderna”, como a comissão papal que havia avaliado o Catecismo Holandês havia alertado. Em meio ao que já se constituía como uma emergência doutrinal, o primeiro Sínodo dos Bispos, que havia se reunido em Roma em setembro de 1967, já havia apresentado ao Papa “uma declaração dos pontos essenciais da fé”, aconselhando-o a reafirmá-los. Paulo VI reuniu-se novamente com Journet e lhe disse que o cardeal e Maritain (!) deviam “preparar para mim um esboço do que vocês acham que deve ser feito”.
Maritain redigiu então uma profissão de fé baseada no Credo Niceno, enviando-a a Journet, que a entregou a Montini. A redação de Maritain, quase sem emendas, tornou-se o Credo do Povo de Deus, solenemente proclamado por Paulo VI em 30 de junho de 1968. Ao ler o texto do Credo no jornal, Maritain se deu conta de que Paulo VI havia usado essencialmente a sua redação.
Considere as impressionantes implicações: menos de três anos após o encerramento do grandioso Concílio Vaticano II, infinitamente enaltecido por ter se abstido de uma mera confirmação da doutrina e do dogma católicos em favor de uma nova e vital formulação da Fé que, agora sim, apelaria ao comichão dos ouvidos do “homem contemporâneo”, Montini teve de publicar um texto emergencial que era precisamente uma confirmação da doutrina e do dogma católicos — redigido pelo leigo que havia sido seu mentor!
Nas imortais palavras do Arcebispo Dom Marcel Lefebvre após ter visto uma demonstração da Missa Nova fabricada pelo Consilium de Bugnini: “Isto é real?”
Conclusão: a Amarga Colheita de uma Amizade Revolucionária
O relacionamento entre Maritain, Montini e Alinsky foi um reflexo inicial da fusão de facto do elemento humano da Igreja com o mundo — a “temporalização do cristianismo” que Maritain foi forçado a reconhecer — que desde então vem caracterizando a crise pós-conciliar como um todo. Por isso o New York Times foi capaz de observar logo no início do pontificado bergogliano que ninguém menos que Barack Obama tinha “se adequado perfeitamente numa paisagem urbana católica dos anos 80 forjada pelo espírito do Vaticano II, pela influência da teologia da libertação e pelo progressismo do Cardeal Joseph L. Bernardin, arcebispo de Chicago, que clamava por uma ‘ética de vida consistente’ que tecesse vida e justiça social numa ‘veste sem costura’.”
O Times observa que Obama, o jovem organizador comunitário no ambiente católico progressista de Chicago, ambiente cuja criação deveu muito a Alinsky, teve como mentor Gregory Galluzzo, “um ex-padre jesuíta e discípulo do organizador Saul Alinsky.” Obama chegou a “ter um pequeno escritório com duas janelas de vidro canelado no andar térreo da paróquia do Santo Rosário, um belo edifício de tijolos vermelhos no lado Sul, de onde ele podia descer pelo corredor até o escritório do Pe. William Stenzel, levar um cigarro até a boca e perguntar, ‘vamos almoçar?’.”
Como o Times observa adiante, ao operar sob as asas da Arquidiocese de Chicago, “Obama tornou-se um rosto familiar nas paróquias de maioria negra no lado Sul. Na Igreja dos Santos Anjos, considerada um centro da vida católica negra, ele conversava com o padre e com o filho adotado do padre sobre como encontrar famílias dispostas a adotar crianças problemáticas. Em Nossa Senhora dos Jardins, assistia a Missas dedicadas à paz e à história dos negros e consultava o Pe. Dominic Carmon sobre programas para combater o desemprego e a violência. Na neogótica Santa Sabina, começou uma amizade com o Pe. Michael L. Pfleger, o atiçador [isto é, ultramodernista dissidente da doutrina e do dogma] padre branco de uma das maiores paróquias negras da cidade.”
Como Senador do Estado de Illinois, Obama, o paladino da justiça social oriundo da Chicago de Alinsky e da arquidiocese de Bernardin, por sua vez corrupta e infestada de homossexuais, recusaria seu apoio ao Born Alive Protection Act, apresentado ao legislativo do estado quando foi revelado que os bebês sobreviventes de abortos feitos em mulheres com gravidez avançada em hospitais de Chicago eram abandonados para morrer após terem nascido. Como Presidente dos Estados Unidos, ele defenderia o “aborto de nascimento parcial”, o subsídio compulsório de contracepção exigido de freiras católicas, e “orientações” federais para “banheiros transgêneros” em escolas públicas. E hoje em dia, os bispos católicos da América, muitos dos quais provavelmente votaram em Obama, estão unidos na convicção de que Donald Trump, usurpador da Nova Ordem Mundial, precisa ser impedido.
Contemple a mais recente e amarga colheita de uma amizade revolucionária entre homens da Igreja Católica e o mundo, exemplificada desde cedo pela ligação entre Jacques Maritain, Saul Alinsky e “o Primeiro Papa Moderno”.
(The Remnant. Traduzido e publicado na Revista Permanência 296)
Jean Madiran
I. A clássica e a moderna
Existem duas democracias, uma que nós designamos como clássica, outra moderna. Desta distinção reivindiquei, há mais de vinte anos, não tanto a propriedade, pois as idéias são de quem as adota e ninguém é dono delas, mas a responsabilidade inicial. Essa distinção foi proposta em nossos escritos anteriores, mas queremos completar alguns pormenores e retificá-la aqui e ali.
A reflexão sobre esse tema tem nos acompanhado desde a mocidade, como também o tem a todos os da nossa geração que, se por um lado conheceram a democracia desde o berço, nunca a consideraram um fenômeno natural, um imperativo categórico, um fato definitivamente encerrado, mas antes como um estímulo incômodo ao pensamento político e à reação. Essa reflexão não ficou inerte, mas, desde o momento em que começamos a expô-la, as sucessivas modificações que sofreu não consistiram em variações doutrinais no tocante aos princípios, mas em desenvolvimentos mais ou menos empíricos quanto à sua formulação.
Clássica é a democracia que sempre ou quase sempre existiu, e que igualmente poderíamos chamar, num sentido relativo, de eterna: ela é um modo de designação dos governantes. A designação dos governantes pelos governados, segundo diversos sistemas eleitorais, é algo que figura em todas as épocas da histórica, com maior ou menor extensão. Variam os tempos e os lugares, e sempre se elegeram bispos, reis, magistrados, presidentes, ditadores. O número e a qualidade dos eleitores variavam, pois sempre existiram regimes “mistos”, combinando em proporções diversas o sistema democrático com o sistema aristocrático. Quando aparece sem mistura, a democracia clássica consiste em não haver nenhuma autoridade política na cidade cujo titular não seja, direta ou indiretamente, designado por um tempo limitado pelos cidadãos, que são os eleitores.
A democracia moderna funciona como a democracia clássica. Aparenta ser a mesma coisa, mas não é:
Em primeiro lugar, a escolha dos governantes pelos governos é tido como o único modo justo: sendo assim, os regimes não democráticos são tidos por imorais. Uma democracia assim não é mais um regime entre outros, que se pode preferir por razões de técnica, de oportunidade, de conveniência política, e que se pode consertar, limitar ou suprimir por razões da mesma ordem. Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino, por exemplo, que só conheceram a democracia clássica, concebem facilmente a possibilidade de ela ser suprimida, e não vêem nisso qualquer problema de natureza moral:
"Agostinho dá o exemplo seguinte no seu Tratado do Livre Arbítrio (I, 6). Se um povo for moderado, sério e zeloso da utilidade comum, a lei é justamente feita para que a tal povo seja lícito estabelecer os seus magistrados, que administrem a república. Mas se esse povo se torna paulatinamente depravado, a ponto de tornar o seu sufrágio venal e entregar o governo a homens escandalosos e criminosos, é justo cassar-lhe o poder de distribuir as honras, e transferi-lo ao arbítrio de uns poucos bons.”
Algo assim é tido como moralmente absurdo e contraditório para a democracia moderna, que se apresenta como um direito imprescritível, que não se poderia abolir sem grave injustiça. A democracia clássica, ao contrário, era uma instituição revogável, que se estabelecia ou se suspendia conforme os tempos, os lugares e as circunstâncias.
Para a democracia moderna, a justiça política é definida pela democracia, e a injustiça, pela ausência de democracia.
Em segundo lugar, a designação dos governantes pelos governados é o único fundamento da legitimidade. Sobretudo, é essa a razão por detrás daquilo que se disse antes. “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação” e “a lei é a expressão da vontade geral”, estipula a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ato de nascimento da democracia moderna. Toda soberania, toda lei que invocar outro fundamento que não este, é tirânica. Nenhuma soberania, nenhuma lei, portanto, jamais poderá existir se não se fundar na vontade geral.
Assim, a democracia moderna pretende ser idêntica à democracia clássica, disfarça-se dela e recusa-se a distinguir-se dela — ela seria a verdadeira democracia. A designação dos governantes confunde-se com a sua legitimidade: a legitimidade funda-se na designação (democrática) e é uma só com ela.
Em terceiro lugar, a consequência: o poder democrático, na democracia moderna, se torna um poder ilimitado. Ele se torna assim de direito. Quando a legitimidade do poder tira todo o seu fundamento unicamente da designação de quem é chamado a exercê-lo, um tal poder é ilimitado de direito: quem ou o quê poderá limitá-lo? De fato, ele mantém certos limites, é contido pelos hábitos, pelas tradições, pelas realidades, pelas idéias contrárias, mas essas coisas são todas estranhas ao direito democrático (moderno), e tendem a ser suprimidas por uma contínua democratização da sociedade.
A sociedade é por natureza familiar, profissional, hierárquica. Na democracia moderna, o direito (novo) entra em conflito com a natureza: a democratização ilimitada é o progresso indefinido do direito, por uma evolução que desqualifica, desacredita e finalmente destrói as sociedades naturais.
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Que a “lei” seja a “expressão da vontade geral” e nada mais, é uma grande novidade na história do mundo. A proclamação de 1789 não inventou a democracia, ela lhe deu um outro conteúdo. Ela impôs na vida política uma nova moral e um novo direito.
Sempre, em todas as civilizações até 1789 (e mesmo depois, mas então por sobrevivência cada vez mais frágil, cada vez mais implícita), a lei era a expressão de uma realidade superior ao homem, de um bem objetivo, de um bem comum que o homem traduzia, interpretava, codificava livremente mas não arbitrariamente. O legislador fazia o que estava ao seu alcance, nem sempre o que devia fazer: mas a sua função reconhecida era a de formular os grandes imperativos que não estavam para ser inventados, mas descobertos ou recebidos, como Moisés no Monte Sinai. A lei era a expressão humana da vontade de Deus sobre os homens, conforme à natureza que lhes deu, ao destino que quis para eles. Mesmo quando Deus era desconhecido, ou não reconhecido, a lei ainda era a expressão de uma justiça, de uma razão, de uma ordem superior às vontades humanas:
“Os teus decretos, ó Creonte”, declara Antígona, “não têm força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!”
Assim, a legitimidade da lei, do poder e dos governantes residia na sua conformidade a essa ordem superior, e não numa designação regular dos magistrados e dos legisladores. Essa regularidade é uma legalidade que tem sua importância. Mas a legitimidade, isto é, a justiça, funda-se no bem comum, ou seja, no Decálogo ou, em outras palavras, em Deus. Os próprios pagãos, mesmo não possuindo um conhecimento muito claro, tinham ao menos um vivo sentimento disso. Foi uma dia terrível na história do mundo o dia em que os homens decidiram que, a partir de então, a lei seria “a expressão da vontade geral”, ou seja, a expressão da vontade dos homens; dia em que os homens decidiram dar-se a si mesmos a sua lei; data em que declinaram no plural o pecado original.
Pois, no singular, o pecado de Adão consistiu em querer ser para si mesmo a origem da própria lei, segundo a descrição clássica: “Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, se abrirão os vossos olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn 3, 5). Santo Tomás comenta: “[O] primeiro homem pecou, principalmente, desejando assemelhar–se a Deus pela ciência do bem e do mal, à sugestão da serpente. De modo que, por virtude da própria natureza, determinasse para si o que fosse bom e mau no agir…”; “… a fim de que, como Deus, que pela luz da sua natureza rege a todas as coisas, o homem, pela luz da sua natureza, e sem o socorro de uma luz exterior, pudesse reger-se a si mesmo…”.
Pecado fundamental; revolta essencial pela qual o homem quer estabelecer para si mesmo a lei moral, pondo de lado a que recebeu de Deus. Em 1789, essa apostasia tornou-se coletiva. Ela se tornou o fundamento do direito político. A democracia moderna é a democracia clássica em estado de pecado mortal.
II. A natural e a totalitária
Que os legisladores ou os governantes sejam designados pelo conjunto dos cidadãos, que estes adotem ou rejeitem, por sufrágio direto ou por meio de representantes eleitos, as leis positivas, isso não está em questão neste nível, que é o da justiça e da moralidade: pode-se proceder de um jeito ou de outro; pode-se discutir a esse respeito e mesmo lutar por isso, em nome de todas as particularidades históricas, geográficas, circunstanciais. Mas, quando se procede assim, é preciso ter clara consciência dos poderes que se reconhecem ao corpo eleitoral:
— ou bem se lhe pede designar os homens ou aprovar as leis positivas que lhes pareçam mais conformes à vontade de Deus — seja Ele direta, implícita ou mesmo inconscientemente invocado na procura por uma conformidade ao bem comum objetivo e superior aos homens;
— ou bem se lhe pede escolher os homens ou editar as leis mais conformes à sua própria vontade declarada universalmente soberana, e única soberana legítima.
A aparência pode ser a mesma, e é por isso que se confundem as duas condutas. Mas a realidade é bem distinta, e mesmo oposta.
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Para passar da democracia clássica à democracia moderna, falou-se aos povos mais da aparência clássica do que da realidade moderna. Começou-se a lhes falar da democracia como se ela fosse apenas uma forma de governo mais evoluída, mais agradável ou mais digna que as outras. E ainda em nosso tempo, o dicionário Larousse define assim a democracia: “Forma de governo na qual o povo é considerado como exercendo a soberania”. Há uma nuance de ceticismo: “considerado como”. Mas não se trata apenas de exercer (mais ou menos) a “soberania”, ou a “autoridade suprema”, não se trata apenas do exercício do poder, mas do seu novo princípio. O artigo 3º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 diz: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação.” A democracia não é apenas uma forma de governo, mas a única; ela não é mais uma oportunidade, uma garantia, uma comodidade, uma concordância, objeto de uma preferência variável segundo os tempos, lugares e circunstâncias. O artigo 3º acrescenta: “Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer a autoridade se ela não emanar expressamente dela.” O que suprimia de direito até mesmo a autoridade paterna. Nós vivemos, cada vez mais de fato, nesse tipo de democracia; mas em nome da outra. Após essa doce definição de democracia, o Larousse apresenta um exemplo igualmente dulçoroso, um só: “a democracia ateniense”. Como se a Declaração dos Direitos de 1789 jamais tivesse existido, ou como se ela não tivesse mudado coisa alguma.
Nenhum progresso ocorreu na lexicografia mais recente. Segundo o Petit Larousse illustré, a democracia ainda é “o governo em que o povo exerce a soberania”. E segundo o Petit Robert, editado no mesmo ano: “doutrina política segundo a qual a soberania deve pertencer ao conjunto dos cidadãos; organização política (ordinariamente, a república) na qual os cidadãos exercem essa soberania.” Um e outro definem assim a “soberania" em questão: “autoridade suprema; qualidade do poder político de um Estado ou de um organismo que não está submetido ao controle de nenhum Estado ou organismo”; em direito constitucional, o “soberano” é a “pessoa física ou moral na qual reside a soberania”; em direito público francês, a “soberania nacional” é o “princípio segundo o qual a soberania outrora exercida pelo rei é atualmente exercida pelo povo, personificado na nação.” A verdadeira questão moderna é escamoteada.
Ninguém tem poder sobre o vocabulário. Se fosse possível, seria melhor usar dois nomes diferentes para cada uma das duas democracias. Poderíamos talvez chamar a primeira de “república” (mas isso não exclui uma monarquia à inglesa). É o que em suma fazia Aristóteles (politeia), empregando ordinariamente a palavra democratia no sentido pejorativo, como demagogia. O Larousse universal em dois volumes citado acima define a república como idêntica à democracia: “Estado no qual o povo exerce a sua soberania pelo intermédio de homens por ele eleitos para um certo tempo.”
Nossa terminologia, democracia clássica e democracia moderna, possui a vantagem da precisão científica. Ela possui o inconveniente psicológico de que o termo “clássico” soa anacrônico, sobretudo uma vez que as letras clássicas, a poesia clássica, as filosofias clássicas não são mais estudadas em classe, e são tidas como remanescentes de idades obscuras, de uma pré-história a ser deixada no esquecimento; enquanto isso, o termo “moderno” sugere progresso. O moderno, enquanto tal, prevalece espontaneamente sobre o clássico no espírito do público porque o homem tem sempre a tendência de crer no que vê, e ele vê que as máquinas e motores de hoje são mais avançados que os de anteontem. No entanto, não ocorre assim com as árvores: a mais nova, que mal foi plantada, não é a melhor, pois elas precisam crescer e, portanto, só são úteis quando antigas; é verdade que, após um certo ponto, elas envelhecem. O progresso indefinido não é contraditório nem necessariamente impossível no domínio das ciências da matéria e das suas aplicações mecânicas; mas ele o é no domínio da política, da moral, da vida (mesmo vegetal): os álamos não crescem até o céu e não há nada entre os seres vivos que cresça sempre mais e mais, salvo o cumprimento no tempo e para a eternidade do número dos eleitos de Deus. Nós não vivemos mais no meio das árvores, do seu movimento imóvel, da sua lição silenciosa. No que diz respeito aos motores, é o mais jovem e o mais novo, é o último a ser lançado que é o bom — salvo defeito de fabricação. Ninguém preferirá as mecânicas clássicas às mecânicas modernas; nem quererá trocar automóveis modernos pelos veículos de Luís XIV. “Democracia clássica” faz pensar em coisas velhas, em ruínas inúteis. “Democracia moderna” evoca invenção, progresso técnico, um espírito moderno e voltado para o futuro. Ressonâncias afetivas de vocábulos e influência do novo conformismo sociológico forjado pelas máquinas de fabricar opiniões. Os termos “clássico” e “moderno” possuem aqui a vantagem de serem referências históricas exatas: mas hoje a história, quando não foi esquecida, como ocorre normalmente, está completamente viciada. Será melhor falar, portanto, com o benefício de um maior rigor doutrinal, em democracia natural e democracia totalitária.
Totalitária? A democracia poderá ser totalitária? Blasfêmia! Horror! Sacrilégio! Nós vimos, nos fins do ano 1976, o general Pinochet, presidente do Chile, declarar numa entrevista à televisão colombiana que pretendia fundar em seu país uma “democracia autoritária”. Por acaso ou malícia, jornais como o Le Monde de 23 de dezembro imprimiram as manchetes: “democracia totalitária”, e os intelectuais debocharam em uníssono, dizendo que o general era decididamente um ignorante, um imbecil, e que lhes custava crer que ainda pudesse existir na superfície da terra, em pleno século XX, alguém tão retardado, tão desprovido de instrução laica e obrigatória, a ponto de ser capaz, o coitado, de falar em círculo quadrado, de submarino alado, e de não compreender que totalitarismo e democracia são coisas tão incompatíveis entre si quanto a água e o fogo, o branco e o preto, o sim e o não. A Rádio Vaticano distinguiu-se, tanto quanto o Le Monde, nesse tipo de divertimento. No entanto, eles mesmos têm o partido comunista por um partido democrático, gozando direito de existência legal em toda verdadeira democracia (enquanto que os partidos fascistas devem ser interditos), os mesmos por vezes confessam que esse partido ainda segue um pouco totalitário demais, mas não tem problema, falar em “democracia totalitária” é que é um absurdo.
Nós usaremos o termo democracia totalitária, pois entendemos que ela o é. O totalitarismo comunista não é uma anomalia no universo democrático, mas a sua conclusão lógica; a conclusão necessária; a conclusão inevitável se, para impedi-lo, não intervier algo a mais do que a política e a moral democráticas. Pois a democracia moderna traz consigo o totalitarismo como a semente carrega consigo a colheita. Ela é totalitária desde a origem, não necessariamente em todas as suas formas sucessivas: ela o é no seu princípio. Ela só se limita por uma declaração de direitos ditos “imprescritíveis”, mas proclamados por uma autoridade que pode perfeitamente mudá-los, decretar outros ou aboli-los. Ela já os mudou muitas vezes, bem como já decretou novos direitos “imprescritíveis”. Ela já os suspendeu ou os aboliu. Não são mais direitos. Não existe, na democracia moderna, nenhum direito que possa ser democraticamente garantido e mantido contra a vontade geral.
Essa realidade é mais ou menos velada pelo artifício da constituição. A “constituição" era inicialmente uma garantia contra arbitrariedades do príncipe. A monarquia mesma, sob condição de ser uma monarquia constitucional, poderia sobreviver nos tempos novos. A Declaração dos Direitos de 1789 diz em seu artigo 16: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação de poderes determinada, não possui uma constituição”. A garantia de direitos assegurada, mas por quem? Substitui-se uma liberdade tida como arbitrária, a do príncipe, por uma arbitrariedade tida como liberdade, a vontade geral. Não se conhecem mais os LIMITES definidos — e que são os únicos reais — que a ordem antiga impingia ao poder temporal do príncipe. Esses limites eram religiosos. Eram os da religião natural, do decálogo, da piedade filial e nacional, do respeito aos costumes, da franqueza e da palavra dada. Os da religião revelada, do poder espiritual da Igreja que educava a consciência religiosa da nação. Não era suficiente? Era frágil? Não se criou nada de mais sólido. Contra a arbitrariedade pessoal, estabeleceram-se garantias constitucionais que tiveram por conseqüência direta instituir a arbitrariedade coletiva, que não é menor, e pode ser pior, como é o caso mais freqüente, conforme notava Santo Tomás no capítulo quinto da primeira parte de De regno.
Uma vez que a garantia contra o rei se tornou “constitucional”, a constituição deveria ser hoje uma garantia contra a tirania da vontade geral: mas ela não quer sê-lo. Garantia contra os governantes, ela se apresenta, superiora a eles, como um conjunto de leis intangíveis. Sempre existe, nas nossas democracias ocidentais, alguma assembléia superior, alguma corte suprema tendo a função de proferir julgamento sobre a “constitucionalidade” das leis e decretos: pode-se apelar aí das decisões da assembléia legislativa e do governo, que são no entanto um e outro designados pela maioria soberana. Assim se restabelece a idéia de valores permanentes e superiores, de princípios, de direitos aos quais seja impossível tocar. Mas é assim só na aparência.
Essas regras constitucionais não podem ser ditas sagradas senão por uma analogia enganadora. Como as outras, foram fundadas apenas sobre a soberania popular: que pode corrigi-las, abrogá-las, substituí-las. A soberania popular, no direito democrático moderno, é uma soberania absoluta, onipotente, totalitária e ilimitada. Por complicado e inacessível que seja o modo de revisão das constituições, elas são perfeitamente revisáveis. Nossas democracias têm se orgulhado de garantir constitucionalmente a independência da justiça, o direito à propriedade privada e as liberdades fundamentais segundo a idéia que delas fazem. Mas essas garantias são meramente constitucionais. A vontade popular pode, amanhã ou depois de amanhã (como já calhou de ocorrer ontem ou ante-ontem), decretar que o justo é injusto, que o bem é o mal, proibir o que é lícito, tornar obrigatório o que é monstruoso e retocar nesse sentido até mesmo a constituição: contra a vontade popular não há nenhum recurso democraticamente legal ou legítimo. O importante, numa democracia moderna, não é que ela reconheça hoje esse ou aquele “direito do homem” codificados numa “declaração”: o importante é que ela possa, legitimamente, segundo a sua própria legitimidade, não os reconhecer amanhã. Todas as constituições, todas as declarações de direitos são revisáveis pela vontade superior da maioria que as decretou. O decálogo não é revisável, nem mesmo por Deus. Mas a democracia moderna não reconhece mais o decálogo: mesmo quando se conforma às suas estipulações práticas, ela pretende tirar de si mesma, e não dele, a fonte e a legitimidade da obrigação moral. A democracia moderna se pretende a única legisladora, e só respeita o decálogo na medida, e no sentido, e quando ela mesma o promulgou soberanamente.
Sed contra, protesta o catolicismo: Pio IX ensinava na Quanta Cura que é falso dizer que a vontade do povo, manifestada pela opinião pública ou por qualquer outro modo, constitua uma lei suprema, livre de todo direito divino ou humano. — Essa é a doutrina comum da Igreja, doutrina imutável e de alcance universal.
Quando os homens decidem que não há mais nada de superior à soberania popular e à lei do número, eles fazem bem mais do que mudar a constituição política: eles fazem uma revolução moral e religiosa, e não uma revolução qualquer, mas A revolução, a única, a da criatura que recusa, desde Adão, sua condição de dependência. No lugar dos deuses de Antígona, das Tábuas da Lei do Sinai, do Deus dos cristãos, só restou o homem, coletivamente emancipado, senhor de seu destino, único juízo do bem e do mal: dobrado sobre si mesmo e vazio; esmagado, alienado, apagado para desaparecer na noite sem fim do comunismo.
A democracia natural é política, pode ser boa ou má politicamente. Sistema de designação dos governantes pelos governados, ela não contradiz no seu princípio nenhuma das leis da criação e do Criador; sua adoção aponta para um julgamento circunstancial ou uma preferência sentimental. A democracia natural respeita o direito: a democracia totalitária arroga-se o poder de criá-lo.
A democracia moderna é religiosa: ela substitui as religiões pela religião do homem que coletivamente se faz deus. Sem reconhecer nenhum limite que lhe seja exterior, nenhum valor que lhe seja superior, nenhum outro direito que lhe possa resistir, ela suscita uma extensão indefinida do Estado totalitário e encontra no comunismo, ou seja, no domínio do partido comunista, a conclusão da sua lógica interna mais fundamental. Freada de fato pela existência de costumes e pensamentos cristãos, que ela só suporta provisoriamente, a título de excrescências condenáveis à luz da evolução dos espíritos e do progresso dos costumes, só ela pode em direito decidir sobre o bem e o mal, o justo e o injusto; só ela admite as liberdades e garantias que outorga e de bom-grado suspende. Ela proíbe até mesmo que o princípio democrático seja posto em questão: o adversário da democracia é um sacrílego a quem se subtrai, ao menos virtualmente, todo direito de cidadania; os Estados não democráticos são sempre ameaçados de serem banidos das nações. A Europa de 1977 aceitou que a Espanha estivesse na Europa, sob a condição de que a democratização espanhola realmente avançasse. No denominado mundo livre — que é apenas o mundo ainda livre do domínio comunista — a democracia mais plenamente moderna, a mais radicalmente laica, a mais separada de Deus, é sem dúvida a democracia francesa. As democracias anglo-saxãs, imperfeitamente laicas, são temperadas e limitadas por algum resquício de religião natural: e nessa medida, resistem melhor ao comunismo. No entanto, também elas estão ameaçadas. A lei do número é, como o Deus do Antigo Testamento, um deus ciumento, mas ela não o confessa facilmente; ela consente entrar no panteão, aceita um lugar humilde e discreto na assembléia das outras leis. Por natureza, contudo, ela não tolera nem superiores, nem pares, nem semelhantes. Ela não se apressa, dá tempo ao tempo até devorar tudo.
III. A liberal e a popular
É num sentido inteiramente distinto do nosso que se fala ordinariamente de duas democracias, segundo uma outra distinção: a democracia liberal e a democracia popular. Em 1941, tendo Hitler enviado suas tropas para se atolarem na Rússia, as democracias anglo-saxãs não se contentaram em conceder aos soviéticos uma significativa ajuda tecnológica e militar: elas fizeram com que a URSS ingressasse no “campo das democracias”, dando assim, no nível ideológico e moral, uma caução burguesa ao comunismo. Desde então se admitem duas formas de democracia, duas concepções democráticas — ambas próximas uma da outra, e dignas de se chamarem assim.
Na seqüência, durante os tempos da “guerra fria”, que era a guerra política do mundo dominado pelo comunismo contra o mundo ainda livre dessa dominação, cada uma das duas concepções pretendeu ser a única “democracia verdadeira”. No mundo não comunista, dizia-se que a democracia soviética, sem pluralidade de partidos concorrentes e sem eleições livres, era totalitária. No mundo comunista, respondia-se que a democracia capitalista, imperialista e colonialista, era uma falsa figura de democracia. Os liberais tornaram então a recusar ao comunismo a qualidade de democracia, assegurando, como François Mauriac o fez, que não se pode incarnar ao mesmo tempo a revolução marxista e o Estado democrático, pois a democracia repousa sobre os próprios princípios que a fé do partido comunista obriga derrubar e destruir, e que o partido comunista não pode crescer sem que a democracia diminua.
A tradição doutrinal do catolicismo opõe-se a essa distinção (duas formas diferentes de democracia, a liberal e a popular) e a esta exclusão (a democracia marxista não é a verdadeira democracia).
Pode-se tomar por testemunho Leão XIII na Encíclica Graves de communi de janeiro de 1901. Um parêntesis, foi essa a Encíclica que autorizava os católicos a usar o nome “democracia cristã”, com a condição expressa de não se dar a esse termo nenhum sentido político, mas apenas o significado de uma ação caridosa com respeito ao povo; as democracias cristãs receberam essa permissão sob condição murmurando: “o papa acaba de engolir a palavra, em breve engolirá a coisa”; nisso, a sua manobra seria bem sucedida, mas não imediatamente; primeiro tiveram de dobrar a cerviz sob o reino de São Pio X, em seguida lançar fora o pensamento e a herança do papa, acusando-os de “integrismo”.
Ora, em Graves de communi encontramos a seguinte advertência contra uma forma de democracia autenticamente democrática, assim definida:
“Desaparecendo as classes sociais e estando todos os cidadãos reduzidos ao mesmo nível de igualdade, isso seria o encaminhamento para a igualdade dos bens; o direito de propriedade seria abolido e todas as fortunas que pertencem aos particulares, os instrumentos mesmos de produção, seriam vistos como bens comuns.”
Quando Leão XIII nomeava um regime assim, chamava-o pelo seu nome: democracia social; ou seja, a aplicação às estruturas econômicas e sociais dos princípios mesmos que a democracia política aplica às estruturas políticas. Democracia social, democracia integral, verdadeira democracia — o marxismo-leninismo não está errado em reivindicar esse nome.
Reconhecer a identidade subjacente do princípio fundamental não é se recusar a perceber as grandes diferenças que se verificam entre a democracia liberal e a democracia marxista. Essas diferenças giram em torno das liberdades individuais: mas estas não pertencem à essência da democracia moderna e não são o critério para se avaliar se há mais ou menos democracia ou uma democracia mais verdadeira. Segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o direito novo, o direito democrático consiste em que a soberania reside doravante na nação (personificando o povo), e que nenhum corpo ou indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dele: a única diferença democrática (ou seja, a única que tem valor na perspectiva da democracia moderna) entre a democracia liberal e a democracia marxista é que, para a primeira, a lei majoritária do primado do número restringe-se ao funcionamento governamental e legislativo, enquanto que, para a segunda, toda a organização social é submetida a isso. Tanto para o marxista como para o liberal, a lei suprema é a mesma: o primado do número. Eles só se opõem sobre a extensão (ou a velocidade) da aplicação. Ambas estão de acordo com a filosofia política que Leão XIII descrevia nestes termos:
“Hoje em dia vê-se que foi além; um grande número dos nossos contemporâneos, seguindo as pegadas daqueles que no século passado deram a si mesmos o nome de filósofos, afirmam que todo poder vem do povo. Por conseguinte, aqueles que exercem o poder não o exercem como coisa própria, mas sim como mandatários ou emissários do povo; e por essa própria regra a vontade do povo pode a qualquer momento retirar de seus mandatários o poder que lhes foi delegado.” (Encíclica Diuturnum Illud, junho de 1881.)
A autoridade do pai de família, do professor na sua classe, do patrão na sua firma, do bispo na sua diocese são heterogêneas à luz do princípio democrático moderno, e contrárias à Declaração dos Direitos de 1789. Essas autoridades, que são liberdades, não podem ser mantidas senão limitando-se a expansão do princípio democrático. O que faz a democracia liberal não é tanto limitar, mas meramente frear essa expansão, enquanto gaba-se de salvaguardar o que seria democraticamente normal destruir. Essas autoridades, essas liberdades, fundadas na ordem natural anterior à democracia, a democracia liberal as abala aos poucos, ela as dissolve lentamente, as diminui sem cessar. A diferença é de grau, não de natureza, com a democracia marxista, que as suprime ou as subjuga.
Existe uma democracia mais lógica que a outra: a que remete ao poder da vontade popular não apenas a composição do governo e da assembléia legislativa, mas ainda os bens, as pessoas, a educação, a cultura, os trabalhos, as informações, confiando tudo ao novo deus como o homem na cristandade confiava tudo a Deus.
Existe também uma democracia menos lógica: a que, tendo admitido que todo poder e todo direito vêm da vontade popular, deixa sobreviver na sociedade direitos e poderes que não vêm dessa vontade; a democracia liberal é por vezes dita ocidental, e a outra oriental, como se Robespierre tivesse nascido numa aldeia do Cáucaso e a Convenção de 1793 tivesse se dado em Moscou.
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Objeta-se que a democracia soviética é, na realidade, uma mentira; uma hipocrisia; ela invoca a lei do número na teoria, mas a contradiz na prática; ela fala em nome da vontade popular, mas obedece às vontades de um tirano rodeado de pretorianos que, com o nome de “partido”, constituem uma casta privilegiada de políticos e policiais.
A objeção confunde os pontos de vista. Se nos dizem que existem dois conceitos fundamentalmente diferentes de democracia, a soviética e a ocidental, nós examinamos esses conceitos em si mesmos, e verificamos que ambos estão de acordo no fundamental, que é situar a vontade popular como fonte de toda legitimidade; uma levou esse conceito até as suas últimas conseqüências; o outro não se joga no despenhadeiro por considerações que não possuem fundamento democrático.
Falar da maneira com que essas concepções são executadas é levantar outra questão. Elas se chocam com a realidade que tanto mais lhes resiste quanto mais utópicas se mostram. A teoria democrática pressupõe a igualdade: a lei do número seria intrinsecamente contraditória se os cidadãos, todos contados por uma unidade, não fossem tidos por tão iguais quanto possível. Ao mesmo tempo, o impulso mais potente que as revoluções democráticas utilizam é a aspiração à igualdade, exacerbada e manipulada. Há muito se sabe que a igualdade social entre os homens é uma quimera: jamais foi realizada, nem na democracia ateniense nem na república romana; nem durante a revolução de 1793; não foi realizada nem no país dos soviéticos nem nas Américas. Por maior que seja o esforço feito pelos governos, pela legislação ou pela ideologia no poder, as desigualdades sempre renascem entre homens e mulheres, pais e filhos, ricos e pobres, proprietários ou não, patrões e empregados, artistas e assalariados, trabalhadores e camponeses, mestres e aprendizes, clero e leigos. Não é nem mesmo certo que os partidários da igualdade a tenham realmente desejado: o sentimento que os tem animado ao longo da história é antes o desejo de suprimir uma superioridade que os desfavorece (ou que parece desfavorecê-los); há muito de inveja na sua suposta justiça e nas suas proclamações de amor. A aspiração democrática à igualdade é sobretudo o ódio das superioridades que temos de suportar. Os aristocratas que renunciam espontaneamente aos seus privilégios e se tornam revolucionários, normalmente o fazem para suplantar os seus pares ou porque foram rejeitados por eles. Mirabeau e Barras, que eram nobres, elegeram-se em 1789 como deputados do terceiro estado porque a sua ordem não os havia designado; eles apoiaram a abolição dos antigos privilégios dos quais estavam sendo privados, mas nenhum escrúpulo os impediu de se atribuírem novos privilégios na sociedade revolucionária. De resto, diga-se o que se quiser do desejo de igualdade da parte dos democratas, o projeto de uma sociedade igualitária contradiz a inclinação natural dos homens e das coisas. Por mais que se tente, por mais que se esforce, para o estabelecimento da igualdade sempre foi preciso usar da mais terrível coação. De Robespierre a Lênin, os partidários da igualdade foram os tiranos mais implacáveis, porque a igualdade pode, numa certa medida, ser imposta às sociedades humanas pela força, mas nunca pela persuasão, e menos ainda por uma evolução natural.
Os fanáticos da lei do número são inevitavelmente inclinados a promover uma repressão universal para levar os homens ao estado de nivelamento em que a lei do número poderia funcionar logicamente. Uma tirania desse gênero só pode ser exercida com sua coorte de funcionários e políciais, de oligarcas e privilegiados; mas ela está a serviço do ideal igualitário. Nem Robespierre nem Lênin foram infiéis à lei do número nisso; antes, são fanáticos dela, fazendo tudo o que está em seu alcance para a impor, mesmo quando o número não quer; e essa coação, essa tirania, tiveram por estandarte a Liberdade, ficando subentendido que não há liberdades contra a Liberdade; e que a Liberdade em maiúsculas consiste, para a humanidade, numa recusa coletiva de toda dependência moral no tocante ao que quer que seja de moralmente superior à sua autonomia.
A ideologia liberal se limita a uma igualdade limitada, que é a de colocar o voto na urna eleitoral em toda liberdade e em segredo absoluto. Ela protesta que essa igualdade, restrita mas específica, e que essa liberdade não existem nos regimes comunistas. As “democracias populares” pretendem ser regimes eletivos: está claro que o “funcionamento normal” da democracia eletiva está falseado aqui pela onipotência do partido único. Sem dúvida. E mesmo bem mais do que os liberais imaginam ordinariamente, como escrevi no livro La vieillesse du monde. Mas, nas democracias ocidentais, esse funcionamento normal foi por muito tempo falsificado pela plutocracia, ou seja, pela prepotência do dinheiro, antes de alcançarmos os processos atuais de socialização, nos quais os mais ricos se arranjam e continuam sendo os mais bem posicionados. A democracia soviética é a abominável ditadura do partido, a democracia liberal é a abominável dominação da riqueza anônima e vagabunda.
Essas duas abominações não possuem o mesmo peso. Para qualquer um, mesmo para os apparatchiks do partido comunista, é inequivocamente preferível viver numa democracia liberal que numa democracia marxista. Mas não é assim porque a primeira seria mais democrática ou a única verdadeira democracia. A sua superioridade sobre a segunda vem de realidades estrangeiras ao dogma democrático: ela deixa sobreviver, ainda que cada vez menos, valores, usos, direitos, princípios realmente bons, amigos do homem, apesar de suspeitos para um verdadeiro democrata, pois tiram a sua origem e seus fundamentos em outro lugar do que no princípio democrático — no decálogo e na revelação católica.
( Les deux democraties, N.E.L., Paris, 1977. / Tradução: Permanência / Revista Permanência 296 – TEMPO DO NATAL )