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Category: Pe. Bertrand LaboucheConteúdo sindicalizado

Padre da FSSPX, leciona no seminário de La Reja.

A verdade do Evangelho no filme "A Paixão de Cristo"

Pe. Bertrand Labouche - FSSPX

 

[Nota da Permanência: o texto seguinte é a transcrição de uma conferência dada pelo autor em um evento da Permanência ocorrido muitos anos atrás, sobre o filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson]

“‘Quem a ti me entregou tem maior pecado’ (Jo 19, 11). Essa frase, em que Jesus relativiza a culpa de Pilatos, só aparece no Evangelho de João, o mais místico e peculiar dos quatro. Para os historiadores, as fontes mais fidedignas são os escritos de Mateus, Marcos e Lucas”, afirma Isabela Boscov na revista “Veja" de 03/03/04.

Dois outros versículos do Evangelho são postos em dúvida, senão negados, especialmente pelos judeus que até exigiram que fossem tiradas por serem anti-semitas: 

“Os seus não O receberam” (Jo 1, 11).

“Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos” (Mt 27,25). Aliás, Mel Gibson teve de aceitar, para acalmar os espíritos, que este versículo não aparecesse traduzido na tela, embora seja pronunciado em hebreu.

Estas objeções, dúvidas, críticas sobre um texto evangélico não dizem respeito diretamente ao realizador do filme “A Paixão de Cristo”, mas bem ao santo Evangelho. A polêmica não é cinematográfica mas exegética, quer dizer, trata da interpretação da Sagrada Escritura. 

Portanto, é oportuno reafirmar a autenticidade e a veracidade dos Evangelhos: 

• pela razão, por meio da apologética, que é a defesa racional da fé. 

• pela fé, que nos obriga a acreditar firmemente que o Autor da Sagrada Escritura é o próprio Deus, que não se pode enganar, nem enganar-nos. 

Estudaremos especialmente o evangelho de S. João, por ser o alvo principal de vários ataques a propósito do filme de Mel Gibson, “A Paixão de Cristo”. Mas é claro que a nosso argumentação valeria também para os sinópticos (Mt., Mc., Lc.)  (Continue a ler)

Fátima e o dever de estado

Pe. Bertrand Labouche - FSSPX

Na aparição de 13 de setembro, Nossa Senhora de Fátima pediu aos três pastorinhos para não usarem a corda à noite. Para converter os pobres pecadores, eles tinham decidido oferecer o sacrifício de trazer uma corda amarrada sobre os rins dia e noite, mas Nossa Senhora lhes lembrou que a noite foi feita para descansar.

“O dever antes de qualquer outra coisa, por mais santa que seja", dizia o Pe. Pio.

O dever de estado é um grande meio de santificação. Irmã Lúcia escreveu numa carta de 1943 o que Nosso Senhor lhe revelou sobre o assunto:

Esta é a penitência que o bom Deus agora pede: o sacrifício de cada um para impor a si mesmo uma vida de justiça na observância da Sua lei.Ele deseja que se faça conhecer com clareza este caminho às almas; pois muitas, julgando que o sentido da palavra ‘penitência' restringe-se às grandes austeridades, por não sentirem forças nem generosidade para elas, desanimam e descansam numa vida de tibieza e pecado.

“[…] estando na capela, com licença de meus superiores, às 12 da noite, me dizia Nosso Senhor: 'O sacrifício que o cumprimento do seu próprio dever e a observância da minha lei exige de cada um, é a penitência que agora peço e exijo.” (Continue a ler)

O retorno

Pe. Bertrand Labouche, FSSPX

O portal manuelino da igrejinha da Madalena chamou a atenção de Domingos nesta manhã: “Quando alguém tomará a iniciativa de restaurá-lo! Está preto como uma chaminé!”, murmurou o sacristão ao girar a velha chave na porta aferrolhada. “Só enxergam a catedral e os Jerônimos! E preferiram construir a Caixa Geral!”  Continuando essas reflexões sobre a gestão arbitrária do “dinheiro dos contribuintes e portanto do meu”, adentrou Domingos na igreja sombria. Chegando ao fim do corredor central, ensaiara uma genuflexão; a lâmpada do Santíssimo Sacramento vacilava um pouco. Da sacristia a luz se projetava sobre a nave e as imagens dos santos. Mais uma jornada se iniciava para o sacristão, zelador diante de Deus e do senhor cura.

Tudo parecia decorrer como de costume. CONTUDO...

O bom e velho Domingos não percebera a sombra ereta e imóvel que sobressaía do lado duma coluna, ao fundo da igreja, no eixo do batistério. Não era uma imagem. Estava ajoelhada no sítio destinado aos fiéis que, sobretudo nos dias atuais, são geralmente o contrário das imagens: remexem-se, distraem-se por um nada, chegam mesmo a tagarelar e, acima de tudo, não permanecem por muito tempo. Era cerca de meio-dia quando Domingos notara a presença do orante.

Dona Catarina viera à sacristia pedir uma Missa, se possível para aquele dia mesmo: fazia exatamente um ano que o marido falecera. Respondeu-lhe o bom sacristão que o Senhor Cura já tinha uma intenção para a Missa daquele dia. “Talvez o outro padre pudesse celebrá-la?” disse a paroquiana. “Outro padre? Que outro padre?”, perguntou Domingos, meio irritado. “Aquele que está rezando na igreja, talvez conheça o Padre João e queira celebrá-la?” Domingos olhou de soslaio pela porta da sacristia e percebeu de fato a silhueta meditativa dum padre de batina.

Nesse momento soou o Ângelus da catedral, abafando um pouco o surdo vai-e-vem dos motores que, sem interrupção, vinha da rua.

“Nunca o vi; com certeza é um estranho de passagem; de todo modo, se ele celebra a Missa, deve pedir permissão ao Padre João”.

“Vou ao menos perguntar-lhe se pode dizer a Missa pelo meu marido”...

Mal pronunciara essas palavras, Dona Catarina se dirigiu ao padre. Já perto dele, impressionou-a o seu recolhimento: os olhos estavam fechados, e uma paz profunda lhe emanava do nobilíssimo semblante. Uma curta barba negra lhe acentuava a palidez das feições macilentas. Toda a sua pessoa transpirava a austeridade e a pobreza dos missionários d’outrora; a batina era feita dum tecido grosseiro, e um terço de madeira lhe pendia do cinturão – uma simples faixa de tecido de um palmo de largura. As mãos, finíssimas, estavam juntas, apoiadas sobre o banco da frente. Parecia não pertencer ao mundo exterior. Era todo oração.

“Senhor Padre...” Catarina teve a impressão de falar com uma imagem de santo. “Senhor Padre...”, insistiu ela à meia voz. Algumas pessoas rezavam na igreja, mas não prestavam atenção à cena que se passava atrás delas, meio distante. Pacificada pelo silêncio do orante, dirigiu-se a ele interiormente, como que sem querer: “Tenho algo de importante a lhe pedir, por que o senhor não me responde?”

Então, suavemente, o padre abriu os olhos; o seu olhar cheio de bondade repousou sobre ela; nele lia-se uma alegria inefável, de mistura com uma extrema tristeza. “Perdoai-me, senhor Padre”, sussurrou Catarina, incomodada, e fascinada: o rosto do padre irradiava luz.

Ela retornou à sacristia. “E aí, a senhora falou com ele?”, perguntou Domingos que, intrigado, observara-a de longe. “Não ouso incomodá-lo, está tão absorto na oração”... Pensativa, sentindo uma dulcíssima alegria, Dona Catarina voltou para casa.

O desconhecido rezou naquela mesma atitude por toda a tarde. Domingos notara que ele ainda estava na igreja quando o Senhor Pároco, o Padre João, saiu da sacristia para dizer a Missa das 18h30m. Contudo, mal o celebrante pronunciara as palavras de acolhimento aos fiéis, o padre de súbito desapareceu. O lugar onde estava ficara vazio; a nave inteira parecia vazia. O tráfego exterior pareceu redobrar de intensidade.

Todos os dias da semana, lá estava ele, até as 18h30m. O valoroso sacristão não ousava aproximar-se; depois de abrir a porta da igreja, sempre o achava no mesmo lugar. Como entrava? Como saía? Donde vinha? Aonde ia? Mistério... Já muitos paroquianos o haviam notado. Dona Catarina retornava todos os dias, e permanecia pelo tempo dum rosário; ela não lhe desgrudava os olhos.

De qualquer modo, ninguém ia chamar a polícia. Que mal fazia ele? O Senhor Pároco quis falar-lhe, mas não obteve resposta. Sequer abriu os olhos. Só as crianças, confiantes, se aproximavam dele: elas não lhe tinham medo. Muitos se ajoelhavam perto dele, com os rostos voltados para o mesmo lugar – o tabernáculo. Juntavam as mãos, como ele, e ficavam bem quietos, comportados como estátuas.

O bairro inteiro agora comentava sobre ele; muitos vinham vê-lo. No sábado de manhã, a igreja se encheu de fiéis e curiosos. Reinava um silêncio profundo. Quem zombava ao chegar (“deve ser doido”), já não zombava quando o via. Apelidavam-no de “o santo”. Parecia em êxtase. Uns sacerdotes também adentraram a igreja da Madalena. Desprendia-se desse padre tal autoridade, que ninguém ousava tocá-lo. Ele inspirava um profundo respeito.

Um detalhe impressionara os mais observadores: ele estava descalço. Durante uma conversa, a respeito dele, entre vários membros do clero, um cônego da catedral observou: “Talvez não seja padre mas um simples religioso, não?” Comentando essas palavras, um padre espanhol, que acompanhava os peregrinos à igreja de Santo Antônio, bem perto dali, e que depois entrou na da Madalena, surpreso por ver nela tanta gente, afirmou: “Creio que ele se parece incrivelmente com São Francisco Xavier, segundo a sua representação tradicional; demais, carrega um crucifixo à cintura, ao estilo dos jesuítas do passado”. De fato, esse padre guardava uma estranha semelhança com o grande taumaturgo do século XVI, o Patrono Celeste das Missões.

De súbito, exclamou o sacristão: “A terça-feira passada, quando o vi pela primeira vez, caiu em 3 de dezembro, FESTA DE SÃO FRANCISCO XAVIER!”

Uma massa de fiéis, na manhã de 8 de dezembro, invadiu a igreja da Madalena. A solenidade da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal, coincidia nesse ano com o domingo. Quem viera sobretudo por causa do “santo” se decepcionou pois ele não comparecera. Não ocuparam, todavia, “o seu” lugar, “caso ele viesse”...

No exato momento em que o organista dedilhava as primeiras notas, espalhou-se pela igreja um movimento de espanto: eis que de repente apareceu “ele”, lá de joelhos no lugar habitual, rezando intensamente. Um burburinho se alastrou pelo povo: “Ele está chorando!”

Com efeito, o seu corpo se mantinha numa postura serena, mas o seu rosto se raiava de lágrimas.

Uma religiosa ao microfone tentava em vão fazer a assembléia cantar; o que conseguiu foi um solo: “O Cristo está vivo, ressuscitou”... A atenção dos fiéis à cerimônia estava tão dissipada que o diácono permanente, encarregado das leituras, teve de intervir: “Irmãos, qual seja o motivo da vossa distração, permiti que a palavra de Deus entre nos vossos corações e vos interpele; sentai-vos, por favor”. Todos os olhares se fixavam nele. O diácono terminou as leituras no meio da indiferença geral. A religiosa entoou um versículo do salmo, a que só ela respondeu. Quando o celebrante anunciou a leitura do Evangelho, a assembléia se levantou. O “santo” também ficou de pé, mas conservou fechados os olhos; já não derramavam lágrimas. O seu semblante ficou sério. No final do Evangelho, ajoelhou-se de novo. Os fiéis foram convidados a sentar-se para escutar a homilia, feita nessa ocasião pelo reitor do seminário diocesano: 

“Irmãos, testemunhas da mensagem do Cristo – o pregador se aproximou do microfone – voltemos os nossos espíritos àquela que hoje festejamos na Igreja: Maria, Mãe de Jesus, que também é a nossa Mãe, a Mãe de todos os homens, qualquer que seja a nação, a condição e a religião. Como proclamou o Bispo de Roma, na memorável reunião interconfessional do Jubileu do ano 2000, no Sinai, o Cristo se uniu ao homem para que ele participasse, mesmo sem o seu conhecimento, da Redenção Universal. Ora, Maria sofreu com Jesus; portanto, ela é a Mãe da humanidade, resgatada duma vez por todas. Por isso, irmãos, a Igreja não tem inimigos. Aqueles que, aparentemente, a contradizem são na realidade pessoas salvas que se ignoram: budistas, hinduístas, muçulmanos, animistas, protestantes, católicos – somos todos irmãos numa só Igreja, que é Vida...”

“BLASFEMADOR!” Uma voz estentórea reboou de pronto, estourando como um vergaste de chibata na Igreja da Madalena. O santo estava de pé, com o índex apontado ao pregador, e o rosto exangue de indignação.

“Sai desta igreja, lobo disfarçado de pastor!” “Mas, mas...”, balbuciou o pregador. “Silêncio! Assassino dos irmãos, SAI DAQUI, JÁ TE DISSE!”. Rápido como um raio, o homem de Deus varou a massa boquiaberta, e abriu a porta dupla da igreja, enquanto a voz melíflua ao microfone se tornou raivosa e agitada: “Quem és tu que ousas fazer isto?”... “Sou Francisco Xavier, filho de Inácio de Loiola, apóstolo de Nosso Senhor Jesus Cristo; cá estou com a Sua Divina Permissão e em Seu Santo Nome para te ordenar a ti, e também a todos esses impostores que ocupam o Santuário, a abandonar imediatamente este lugar!” Todos seguravam o fôlego dentro da nave. Os ministros da partilha e da palavra, a religiosa cantora, o diácono permanente, de início estupefatos como ladrões pegos em flagrante delito, caminharam em seguida, lentamente e depois cada vez mais rápido, terrificados, para a saída.

Eis que São Francisco Xavier subiu ao púlpito e se dirigiu aos fiéis:

“A Vontade de Deus, meus caríssimos irmãos, é a vossa santificação. Mas não podeis santificar-vos fora da graça do único Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo. A ilusória dignidade do homem, decaído, não é capaz de ser o caminho da vossa salvação, como, infelizmente, apregoam-vos os falsos pastores, desafiando a advertência do Nosso Divino Mestre: ‘Sine Me, nihil’, ‘sem Mim, nada podeis fazer’. Por isso, a missão da Igreja é dar-vos Jesus Cristo; se o homem não quiser conhecer a Jesus, e Jesus Crucificado, corre para a perdição, e com ele a sociedade inteira. ELE DEVE REINAR!

“O Coração da Nossa Santa Madre Igreja é o Altar do Santíssimo Sacrifício, e não esta mesa miserável, erigida diante de vós pelos ímpios inovadores. Subirei ao Altar de Deus, como o fiz cá em Portugal, depois na África, na Índia e no Japão, há quatro séculos ‘ad majorem gloriam Dei et salutem animarum’ e celebrarei a Santa Missa nesta imutável intenção da Glória da Santíssima Trindade e da salvação eterna das almas. Assim, nesta igreja, a cristandade reflorescerá, e depois conquistará todos os santuários da vossa pátria, que merecerá de novo o título de ‘nação fidelíssima’”.

“Dai graças a Deus, caríssimos fiéis; que nesta adorável Festa da Imaculada Conceição de Nossa Mãe Celeste, eleve-se dos nossos corações um hino de reconhecimento ao Altíssimo que, na Sua Infinita Misericórdia, dignou-se a vos convocar para uma reconquista tão nobre. Amém.”

“Amém!” responderam os fiéis.

O santo, então, caminhou até a sacristia onde Domingos, com o coração inundado de alegria, lhe preparou os mais belos paramentos.

... “E foi isso, Padre, era apenas um sonho, infelizmente; quando acordei, dei de cara com a realidade!”...

“Ânimo, meu amigo. A realidade, no fim das contas, não é tão diferente: Deus e todos os santos não estão conosco? São Francisco Xavier intercede por nós, e os santos do Céu nos invejam! Se Deus permitisse, eles estariam na linha de frente, ao nosso lado!”

Essas palavras reconfortaram o moço, enquanto o padre, meditativo, contemplando o crucifixo, surpreendeu-se fazendo esta oração: “Ainda assim, Senhor, se Vós permitísseis a vinda de um ou dois, dum São Paulo, ou dum São Vicente Ferrer!”...

 

Irmão Nuno de Santa Maria, o Condestável invencível

Pe. Bertrand Labouche, FSSPX

 

Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço

(Lusíadas, canto 1, 12)

 

No dia 6 de novembro, é festejado em Portugal e na Ordem do Carmelo, Nuno Álvares Pereira, herói português e santo do século XV, nomeado aos 25 anos general-em-chefe do reino, vencedor de todas as suas batalhas, um homem de oração e de união com Deus.

Certamente, todos vocês que já estiveram em Fátima notaram as belas estátuas de santos que se erguem sobre a grande colunata em frente à basílica do santuário.

Estes santos distinguiram-se pela devoção a Nossa Senhora (São Bernardo, São Luís Maria, São João Bosco...) ou/e fazem parte das glórias de Portugal: Santo António de Lisboa, Santa Beatriz, Beato Nuno Álvares etc. Retenhamos esse nome.

Beatificado por Bento XV em janeiro de 1918, sua missão era semelhante à de Santa Joana D'Arc: salvar a independência da pátria, sob a bandeira dos santos nomes de Jesus e de Maria, e pelo exemplo católico levado ao heroísmo.

Morreu no mesmo ano em que ela, no dia 1 de novembro de 1431. Suas armas foram a oração e a espada.

Sim, este homem, cavaleiro armado aos 13 anos, vencedor de todas as batalhas, ilustre estrategista da "Batalha dos Atoleiros", nomeado aos 25 anos general-em-chefe do reino, aquele que possuía, após as suas vitórias , a maior fortuna da época em termos de terras e bens, era essencialmente um homem de oração, de união com Deus.

A 15 de agosto de 1423, a Ordem Carmelita deu-lhe as boas-vindas em Lisboa, aos cinquenta anos, como humilde irmão porteiro; tornar-se-á irmão Nuno de Santa Maria (imagine um Foch, um Duguesclin com o hábito de irmão leigo para sempre).

Exatamente, a ação desse homem foi compatível com sua oração. Foi um verdadeiro homem de ação, porque a sua ação, alimentada, engendrada pela oração, foi aquela desejada por Deus “que tudo faz com ordem, peso e medida”.

ORAÇÃO, AÇÃO: o mundo vê entre ambas não mais que um contraste ridículo; enquanto, na realidade, o que há é harmonia, uma maravilhosa harmonia, que conquista o próximo ... Pensemos o que poderia ser a união da oração com a ação em Nosso Senhor Jesus Cristo!

Na biografia do Beato Nuno, lemos que os soldados inimigos vinham à noite ao acampamento do grande general português, simplesmente "para ver quem ele era!" "quem era aquele que não hesitava em distribuir trigo ... ao inimigo faminto!...”

À pergunta: "Por que você nunca perde uma batalha?" Respondia: "Para me derrotar, basta impedir-me de receber antes a Comunhão! "

Um dia, no auge da batalha, quando tudo parecia perdido, Nuno Alvares desapareceu por detrás de algumas pedras e começou a rezar. Quando um soldado perturbado veio procurá-lo, saiu como um leão e, arrastando seus homens, derrotou o inimigo.

A ação (poderíamos substituir: o exemplo, o apostolado, o cumprimento do dever do Estado) exige necessariamente a oração, senão se transforma em agitação, enfraquecemos a nós mesmos.

E a verdadeira oração, por exemplo, o nosso Rosário quotidiano, engendra um “bom trabalho”, uma ação profunda, benéfica, duradoura, mais rica, porque então é Deus que age como quer.

São Francisco de Sales, prevendo que teria um dia seria particularmente agitado, aumentava o tempo da oração matinal.

Hoje, o homem destrói e não edifica, porque não reza; uma alma que não reza condena sua ação à esterilidade, perde seu tempo, antes de se perder. A oração é exatamente o oposto de perder tempo.

“Batalha de Aljubarrota”: foi o combate decisivo que o nosso santo cavaleiro venceu, salvando Portugal da colonização espanhola. D. João I mandou erigir então um ex-voto, segundo a sua promessa, no mesmo local, um magnífico mosteiro, dedicado à Nossa Senhora da Vitória: trata-se do mosteiro da "Batalha", ao lado do qual se encontra a imponente estátua equestre do invencível Condestável. A vitória foi conquistada a poucos quilómetros de Fátima, onde Nossa Senhora do Rosário, "mais forte que um exército alinhado em batalha", veio, 500 anos depois das lutas do Beato Nuno para suscitar outros cavaleiros...

As missões guaraníticas

A expressão “REDUÇÕES GUARANÍTICAS” designa as Missões de evangelização dos índios guaranis organizadas pelos missionários jesuítas no século XVII inicialmente no Paraguai e que se estenderam até o Brasil, na região do atual Rio Grande do Sul. Estes religiosos não se contentaram com um apostolado em pontos de catequese longínquos, isolados uns dos outros. Em vez disso, reuniram os índios em “mini-cristandades”, dedicando-se a uma evangelização profunda, protegida de uma possível má vontade dos colonizadores em relação aos índios.

Infelizmente, a cobiça, conflitos políticos europeus, e a influência da maçonaria provocaram o trágico desaparecimento dessas admiráveis Missões, mas a boa semente, cujos frutos Deus conhece, foi plantada e o exemplo dos missionários ficou como testemunho perene da caridade apostólica da Igreja.

Percorramos um pouco essa página da história...

I – Origem das Reduções

Em 1603, o governador Hernandarias reuniu em sínodo os prelados do território de Assunção (atual capital do Paraguai) e lhes anunciou sua intenção de:

  • pedir ao Conselho das Índias e ao Rei da Espanha a vinda de missionários jesuítas para evangelizar 150.000 indígenas guaranis
  • promulgar leis proibindo a escravização dos índios, praticada por espanhóis.

Seu desejo foi atendido, pois em 1608, o Rei enviou 13 jesuítas europeus decididos a empregar sua fé e suas forças a serviço deste nobre ideal: a conquista espiritual dos guaranis. Além disso, um visitador, Francisco de Alfaro, foi enviado para investigar sobre a situação miserável dos aborígines nas províncias. Como conseqüência dessa visita foram promulgadas Ordens visando melhorar a situação dos índios.

Os missionários estrangeiros aprenderam o guarani e reuniram os indígenas em Missões ou “Reduções” para melhor promover sua evangelização. Eles tiveram de enfrentar o ressentimento dos chefes das províncias e mais tarde as incursões dos bandeirantes de São Paulo, que fizeram calúnias e intrigas contra os missionários sob o pretexto de que eles “super-protegiam” os índios. O conhecido filme “A Missão” nos dá, sobre este ponto, uma idéia exata do terrível conflito em que os religiosos se tornaram corajosos advogados de defesa dos guaranis.

           

II – Os índios guaranis

Na época da descoberta da América, os povos guaraníticos se distribuíam de maneira descontínua por praticamente toda parte sul do continente americano. Eles são descendentes dos índios caraíbas que viviam ao norte da América do Sul. Alguns pesquisadores crêem que os caraíbas são de origem fenícia, outros afirmam que eles são de raça amarela, e muitos situam seus ancestrais na Polinésia. O certo é que provêm de regiões longínquas.

Ao longo de suas migrações, os guaranis se dividiram em diversos grupos, cujos nomes se originavam numa característica de seu território ou de seu chefe, o cacique. Por exemplo: os que viviam na região de Assunção, os índios cariós devem sua denominação ao cacique Caracará.

Alguns se cobriam com um manto de pele de onça ou com um avental de algodão adornado de plumas em toda volta, mas a maioria vivia praticamente nua. Os homens se enfeitavam com penachos e as mulheres com colares e pulseiras de garras e dentes de macacos. Todos andavam descalços.

A palavra “guarani”  significa “guerreiro”. De índole belicosa, eles estavam sempre em guerra uns contra os outros, por motivo de rivalidades de caça ou pesca. Entretanto, o historiador Werner Hoffman afirma que “o povo guarani foi o mais dócil e o mais receptivo à educação entre todos os índios sul-americanos”!

Bem proporcionados, eles eram robustos, de altura mediana e rosto redondo. Seus olhos eram muito escuros, o cabelo negro e liso e a pele de tom amarronzado. Eles não exteriorizavam seus sentimentos com gritos ou choros; seus sentimentos interiores nunca apareciam em seus rostos.

Era a murros e socos, jamais com uma arma, que resolviam os litígios entre parentes e amigos. Os homens se ocupavam da guerra e da caça, as mulheres, da tecelagem, do cultivo da terra e da cozinha.

Na guerra, eram fiéis ao chefe e se mostravam ferozes, corajosos e infatigáveis no combate.

Para se orientar, utilizavam o Ñandú-Pisá, o Cruzeiro do Sul. Esse povo nômade não era apegado a um solo e ignorava o patriotismo e a economia. Filhos de uma floresta rica em frutos e animais que lhe serviam de alimento, eles eram indolentes, aproveitavam o momento presente sem medo do futuro e não desconfiavam dos estrangeiros.

Os guaranis viviam pobremente, na dependência das semeaduras, da caça e da pesca. Para semear, guiavam-se pela posição das estrelas, depois de abater as árvores esperavam a chuva umedecer a terra e então plantavam as sementes. Obtinham colheitas abundantes de milho, mandioca. Sua alimentação era completa e equilibrada, suficiente para lhes assegurar uma boa saúde. Conhecendo perfeitamente o mundo animal e vegetal que os rodeava, eles apreciavam em particular a infusão de ‘mate’.

O sentimento religioso do guarani era interior. Eles ignoravam os ídolos. Seu templo era a natureza. Acreditavam em Tupã, o deus bom, o Ser supremo do universo que se encontrava na brisa e nos sons da floresta. Espiritual,Tupã não podia ser representado. Esse deus criou primeiro os animais e a floresta; depois, de muitas luas, criou o homem, a quem deu inteligência para dominar a natureza e vencer as feras. Um dia deus se retirou para ir viver no sol, que anuncia a alegria, a força e a saúde.

O ser mau é “Añá” e seu astro, a lua minguante, anúncio de desgraças e doenças.

Os guaranis acreditavam na imortalidade da alma e achavam que passariam a uma vida mais feliz, junto às estrelas do céu. Eles eram muito supersticiosos: sempre usavam um saco de couro sobre o ombro contendo três amuletos que o feiticeiro lhes dava, e que deviam lhes trazer felicidade: algumas garras, dentes e pedaços de pele de jaguar para obter uma caça abundante, espinhas de peixe para uma boa pesca e o “payé” para o amor: penas de caburé de irresistível poder.

Seus mitos vinham da natureza que os rodeava: havia o deus do raio, do trovão, da tempestade, das planícies, das águas e outros gênios tropicais. O “Caáyary”, espírito da erva, o “Caagüi-porá”, senhor da floresta, o “Chochí”, pássaro-bússola na imensidão da natureza. Recitavam cantos simples em que os personagens eram o macaco, o papagaio, a raposa, a tartaruga, o jaguar... e a lenda do peregrino branco que percorreu estas regiões, ensinando o cultivo do milho, transformada com o tempo na lenda cristã de “Pai-Zumé”, São Tomás, cujos passos ficaram gravados principalmente no Paraguai.

O guarani contava o tempo em luas que equivaliam aos meses, e em invernos que representavam os anos. Ele conhecia as estações e algumas estrelas como o Cruzeiro do Sul e as Sete Cabras.

Tinham bons conhecimentos de botânica, zoologia e medicina. O médico, na realidade, era o feiticeiro, um homem que se consagrava aos cuidados dos doentes, e transmitia sua ciência de geração a geração. Os mais experientes eram tidos como sábios. O bruxo usava analgésicos e praticava a cirurgia, abria os abscessos, usava cataplasmas, ventosas, utilizava a argila para as fraturas. A flora da região lhes oferecia numerosos remédios naturais para qualquer tipo de doença. Respeitado, o feiticeiro facilmente recebia presentes de sua escolha: peles de jaguar e alimentos variados. Rico, ele podia ter várias mulheres, a exemplo do chefe da tribo.

Os guaranis não sabiam ler nem escrever; seu maior patrimônio cultural era a própria língua, e eles se mostravam orgulhosos disso, esforçando-se por falar com fineza e eloqüência. O padre Lozano escreveu em 1754: “Esta língua é uma das mais ricas e eloqüentes do mundo. Ela foi o francês da América antiga, a língua de referência entendida por todas as tribos”. O guarani dizia que sua língua fazia murmurar as águas e as florestas, porque tinha sido criada pelos ventos. A língua guarani, de fato, sobreviveu à contingências históricas posteriores ao descobrimento e perpetuou-se até nossos dias, no Paraguai e no nordeste argentino.

Gostavam de dança e de música.

Os guaranis dançavam desde os tempos mais remotos; com a dança eles expulsavam os castigos, a tempestade, o inimigo e triunfavam do mal.

Gostavam muito de cantar. Cantavam em honra de “Tupã”, pedindo-lhe uma vida longa; cantavam também uma espécie de “melisma” antes de sair de casa, para encontrar numerosos javalis. Eles cantavam para que “Tupã” diminuísse a ferocidade dos ventos que arrancam as árvores onde as abelhas guardam o mel. Seu único instrumento musical era uma simples flauta de bambu, com a qual eles imitavam os sons da floresta.

Mais tarde, os missionários acharam na música um aliado precioso para atrair e conquistar os guaranis. É claro que precisariam também, sobretudo, de paciência, de bondade e abnegação para civilizar a cristianizar essas almas pagãs. As Reduções constituirão o campo fértil e privilegiado de sua ação.

 

III ― As primeiras Reduções guaraníticas

Os primeiros jesuítas chegaram ao Paraguai em 1609. Os R.P. Roque Gonzáles de Santa Cruz e Vicente Griffi foram designados para o trabalho junto aos guaycurués, os R.P. Marcial Lorenzana e Francisco San Martin junto aos Paranaés e os R.P. José Cataldino e Simon Masseta foram enviados a Guayrá. O governador Hernadarias fez de tudo para facilitar a instalação dos missionários, oferecendo-lhes guias guaranis e o material necessário; foi oferecida até mesmo uma soma de dinheiro correspondente ao que podia receber um “Cura nas Índias”.

A primeira redução jesuíta foi a de “San Ignácio-Guazú” (Santo Inácio o Grande), fundada no Paraguai em 1609 pelos padres Lorenzana e San Martin. Os aborígines paranaés mostraram-se muito receptivos à ação dos missionários, que conseguiram lhes mostrar as vantagens de ter uma família e um lugar estável para viver. Suas paixões selvagens foram vencidas pela força da convicção, da paciência, da bondade e exemplo dos jesuítas.

Infelizmente o mesmo não ocorreu com os índios guaycurués: depois de dois anos de intensos esforços para civilizá-los, o zelo do Padre Roque, futuro mártir, ainda não tinha dado resultados. Nem mesmo a música foi capaz de movê-los. O missionário juntou-se então à redução de “San Ignácio-Guazú”, onde substituiu o P. Lorenzana no comando da missão.

Em Guayrá, os Padres Cataldino e Masseta fundaram, em 1610, as reduções de Loreto e San Ignácio-Mini, que reuniram várias tribos; o Padre Montoya, eleito mais tarde superior da missão, fundará as missões de San Javier de Tayatí, Encarnacion de Nantinguin, San José de Tucutí, Concepcion e San Pedro de Gualacós, Siete Angeles de Tayaobá, Santo Tomás, San Pablo, San Antonio e Jesus e Maria.

Os esforços sobre-humanos dos missionários foram recompensados espiritual e materialmente: as missões eram tão prósperas que as tribos vizinhas por pouco não as atacavam para pilhá-las; os jesuítas criaram então um pequeno exército de guaranis comandados pelo cacique Maracanã que destacou-se em famosos combates.

O bem-aventurado Roque Gonzáles de Santa Cruz

Nascido em Assunção em 1507, esse padre trabalhou no Paraguai, no Brasil, na Argentina e no Uruguai, especialmente junto dos indígenas mais humildes. Jesuíta enérgico e culto, cognominado o “Demóstenes paraguaio”, compôs inúmeros escritos em guarani, assim como numerosas orações aprovadas por todas as reduções (antes disso, o Padre Bolaños, franciscano, tinha composto um catecismo em guarani, cuja capa vemos aqui). Ignorando o repouso, ele percorreu distâncias consideráveis, afrontando os feiticeiros e os chefes de províncias espanhóis. Venerado pelos indígenas, foi agricultor, criador de gado, mineiro, pedreiro, lenhador, médico, artesão... Ensinou o canto, a pintura e o comércio, edificou as igrejas e moradias para o bem-estar de seus guaranis. A redução de San Ignácio-Guazú brotou de suas mãos. Seus habitantes viviam felizes sob sua paternal direção. Ele fundou a missão de Itapuã em 1615, logo depois a de Yaguapuá em 1618 onde os guaranis formaram uma grande comunidade; atacado pela peste, o Pe. Roque conseguiu curar-se preparando um licor à base de plantas da região.

Por ordem de seu superior, ele explorou em uma piroga o rio Paraná, depois fundou, em 1620, a redução de Conceição num afluente do Uruguai. Os habitantes da região eram conhecidos por sua ferocidade; o Pe. Roque não temia a morte, trazendo sempre consigo um quadro da Virgem Maria, a Conquistadora, ao qual ele atribuía seus sucessos apostólicos.

Mais tarde, em 1626, atravessou o Uruguai e fundou a missão de São Nicolau, em terra brasileira.

Depois, ele iniciou a missão de Yapeyú, destinada a ligar as reduções a Buenos Aires; após essa fundação, organizou a de Santa Maria Del Iguazú, nas proximidades do magnífico espetáculo das cataratas. Ele fundará em seguida, perto da embocadura do rio Ibicuy, a vila de Purificação. Os indígenas da região, nômades, não gostavam de cultivar a terra e, aproveitando-se de uma ausência de seu pai espiritual, eles fugiram em direção ao norte. O missionário partiu a procura deles e explorou em sua companhia a região, atualmente os estados brasileiros de Rio Grande do Sul e Santa Catarina, famosos por suas florestas exuberantes e suas terras ricas em pedras preciosas. O Pe. Roque fundou então a redução de Candelária, onde os indígenas finalmente acharam seu equilíbrio.

Em seus últimos anos de vida, o Pe. Roque teve como colaboradores dois jovens jesuítas: os Padres Alonso Rodriguez e Juan de Castillo. Ele penetou com eles as florestas de Caaró, ricas em flores de perfumes exóticos, povoadas de pássaros esplêndidos mas também de animais ferozes. Reinava nessa região Ñezú, cacique poderoso, chefe de 500 famílias. O Pe. Roque os catequizou e reuniu-os numa vila antes de confia-los ao Pe. Juan de Castillo que construiu sua cabana perto da de Ñezú. O cacique era rebelde e orgulhoso. Arrependendo-se de ter prometido deixar suas numerosas esposas, ele negou a religião cristã e resolveu eliminar os jesuítas.

Os Padres Roque e Alonzo, longe de suspeitar das intenções do cacique, tinham-se afastado das redondezas de Ñezú para construir, com a ajuda dos indígenas, uma nova vila. Ñezú, com o coração cheio de ódio, procurava livrar-se dos jesuítas, que passou a considerar como rivais. Ele encarregou os caciques Cuniaracuá, Carupé e Caaburá de matar os religiosos, de incendiar a capela e de atirar ao fogo os corpos para que nenhum vestígio de cristianismo ficasse em sua vila. Ñezú, em pessoa, se encarregaria de fazer desaparecer o Pe. Juan Del Castillo.

Seu plano foi realizado: no dia 15 de novembro de 1628, quando o Pe. Roque instalava o sino da nova capela, um aborígine bateu violentamente em sua cabeça; o Pe. Rodriguez foi morto da mesma maneira enquanto recitava seu breviário. Os indígenas arrastaram os corpos até a capela, incendiaram-na e destruíram a estátua de Nossa Senhora Conquistadora, o cálice e o crucifixo. Um cacique, catecúmeno, tendo repreendido os assassinos, também foi morto imediatamente.

No dia seguinte, eles constataram que os corpos dos missionários tinham sido poupados pelas chamas e do coração do Pe. Roque elevou-se subitamente uma voz: “Vocês mataram aquele que os amava e que queria seu bem; mas vocês só mataram o corpo porque minha alma está no céu. O castigo não tardará a vir, meus filhos virão puni-los por terem maltratado a imagem da mãe de Deus. Mas eu voltarei para os ajudar porque vocês hão de sofrer muito por causa de minha morte”. Trinta e três testemunhas assistiram a esse prodígio. Ouvindo esta voz, os assassinos encolerizados arrancaram o coração, transpassaram-no com uma flecha e lançaram de novo os restos mortais dos padres no fogo. O coração do Pe. Roque ainda permaneceu intacto.

Na sexta-feira, 17 de novembro, às 15 horas, começou o martírio do Padre Juan Del Castillo, que tinha acabado de rezar vésperas. Os emissários de Ñezú amarraram-lhe os braços, alguns índios cobriram-no de golpes enquanto o empurravam em direção à floresta. O missionário, surpreso, perguntou: “Meus filhos, o que estão fazendo?” Eles responderam que iam matar todos os missionários e que os padres Roque e Alonzo já estavam mortos. “Nesse caso, conduzam-me para perto deles e matem-me em sua companhia”, respondeu oreligioso que foi imediatamente jogado por terra. Seu corpo, ferido pelas pedras e espinhos, tornou-se rapidamente, da cabeça aos pés, uma só ferida. O mártir repetia: “Tupanrekê”. “seja por amor de Deus”, em guarani, e “Jesus, Maria”; um testemunho ouviu-o dizer também: “Prendei-me! Vós matareis meu corpo; mas eu irei para o céu!” Depois de ter transpassado seu corpo com flechas, eles lapidaram-no às margens do Ijui e abandonaram-no dizendo: “Que as onças o devorem!” Estas feras, numerosas naquela região, foram menos cruéis que os homens e respeitaram o seu corpo. Mais tarde, alguns índios queimaram o cadáver. Eles entraram também na cabana do jesuíta, destruíram seu cálice e paramentos. Ñezú, triunfante, vestiu-se com a alva e a casula do mártir e, enfeitado de penas, dirigiu-se ao povo: “Doravante, todos vocês serão felizes, suas plantações prosperarão e vocês poderão viver segundo os costumes de seus antepassados. Sou eu quem agora batizará seus filhos”. Fez então que se aproximassem alguns batizados, raspou-lhes a língua para tirar o sabor do sal bento, raspou-lhes a cabeça para eliminar a unção do Santo Crisma, e por fim, lavou-lhes a cabeça, pretendendo assim poder arrancar-lhes todas as graças batismais.

O superior dos religiosos, O Padre Romero, rapidamente informado, enviou duzentos guerreiros a Caaró para recolherem os restos mortais dos mártires. Eles combateram e venceram os indígenas rebeldes. Ñezú teve um trágico fim, seus cúmplices (doze dos principais assassinos, dentre os quais onze se converteram) foram condenados à morte pela justiça espanhola, mesmo tendo os religiosos pedido indulgência. A profecia do coração do Pe. Roque realizou-se ao pé da letra. Esta insigne relíquia foi colocada em seguida num relicário e encontra-se hoje no Paraguai, em Assunção, na Igreja de Cristo Rei, onde muitos milagres lhe são atribuídos.

No dia 22 de janeiro de 1934, o Papa Pio XI declarou bem-aventurados os “Três Mártires das Missões”. O local do martírio, perto da Missão de São Miguel, tornou-se rapidamente um centro de peregrinação, inaugurado pelos próprios guerreiros do Padre Romero.

 

IV ― A organização e a vida nas missões

As Reduções, compostas de três ou mais jesuítas e mais ou menos 4.000 indígenas, eram sempre construídas segundo um mesmo plano.

A planta (abaixo) da Missão de São Miguel mostra muito bem o esquema de uma Redução: uma praça central (com 130m de extensão) em torno da qual se encontrava a igreja, com a casa das viúvas e órfãos (“cotiguaçu”) de um lado e a escola, a casa dos missionários e os ateliês do outro; atrás da igreja se estendiam o pomar e a horta. As moradias dos guaranis se erguiam do outro lado da praça. Nos outros dois lados situavam-se o conselho da Missão, uma portaria, uma hospedaria, capelas, um relógio de sol e mais adiante, uma prisão. No centro erguia-se uma imagem da Santíssima Virgem  ou do santo padroeiro da Missão. A praça servia para as grandes festas religiosas ou civis.

As casas eram de pedra, retilíneas, separadas por corredores largos; os tetos eram de telha, os muros tinham um metro de espessura. Essas habitações tinham uma chaminé e, às dependências principais juntavam-se outros aposentos. Mais além, ao redor da Missão, trincheiras e um muro de defesa a protegiam contra os indígenas selvagens e os bandeirantes.

A igreja era o único luxo da vila. Os talentos artísticos dos guaranis e suas aptidões manuais permitiram a edificação de verdadeiras obras primas de pedra talhada. O altar mor era dourado, os cálices ornados de pedras preciosas brasileiras, os sinos fundidos na redução de ‘Apóstolos’ com o cobre da região. As imagens de madeira pintada também eram feitas por escultores indígenas, sob a direção dos jesuítas.

Os altares eram abundantemente ornados de flores, muito numerosas na região durante todo o ano. Cerimônias esplêndidas, com coros e orquestras embelezavam as festas solenes. A Semana Santa era acompanhada de representações da Paixão; Natal e festas de Nossa Senhora eram particularmente solenizadas, assim como Corpus Christi, com uma magnífica procissão, e também a festa de Santo Inácio, padroeiro ilustre das Reduções. Depois da missa da manhã, seguiam-se uma procissão e alguns exercícios militares na praça, assim como provas de cavalaria e um simulacro de luta. Ao meio dia, todos se reuniam para uma grande refeição. À tarde, uma peça de teatro, alusiva ao acontecimento, era interpretada; seguiam-se danças coreográficas acompanhadas de uma orquestra; nos entreatos, artistas recitavam poesias ou tocavam música com instrumentos de sopro ou de corda.

A perfeição artística era tal que as representações podiam ser dignamente feitas diante de reis e imperadores.

E quando a noite estendia seu manto estrelado, fogos de artifício multicolores concluíam essas horas de alegria e de luzes.

O Governo Civil era exclusivamente indígena: era constituído de um conselho (“cabildo”) composto pelo cacique ― a maior autoridade ― por três oficiais reais, três administradores, alguns almotaceis e pelos representantes dos bairros da Missão. O cargo do cacique era hereditário, mas em certos casos o governo civil de Buenos Aires e do Paraguai o designava, sob a recomendação dos padres jesuítas. Todos os outros membros do conselho eram eleitos por votos (o novo Conselho era eleito pelo anterior) ao fim de cada ano. Outros dois cargos eram importantes: o de “Carapiraracuara” (porteiro) e o de “Tuparerecuara” (sacristão). A execução da justiça era atribuição dos jesuítas: a pena era um autocastigo ou chicotadas; algumas vezes a prisão. Certas fontes falam do exílio como pena suprema.

Se eram os jesuítas que davam as instruções, eram os próprios guaranis que asseguravam a organização e o cumprimento dos trabalhos. Assim reinavam a harmonia e a disciplina sob a presença da silhueta amiga do missionário. O sino chamava às atividades: orações, catecismo, escola, trabalho...; ir à Missa durante a semana era voluntário. O trabalho durava seis horas por dia. A partir de sete anos, a criança participava da vida civil e religiosa da Redução. Completava sua educação cristã e sua instrução musical e coreográfica num atelier se tivesse dons artísticos. Caso contrário, trabalhava nos campos. As escolas tinham bons professores indígenas que ensinavam os pequenos a ler, escrever, contar, assim como as bases da doutrina cristã. As mulheres aprendiam também a cozinhar e a costurar. Os mais jovens trabalhavam, colhiam frutos, cuidavam das flores do jardim, caçavam os insetos e animais nocivos, treinavam o arco e flecha.

Cada família dispunha de partes de terra, uma chamada “Tupambae” (propriedade de Deus), a outra “abambae” (propriedade do guarani), que ela devia trabalhar e cultivar para mais tarde passar a seus descendentes.

As primeiras culturas eram a de milho, mandioca, batata, legumes, árvores frutíferas e erva mate, muito consumida na Redução. Como falamos acima, esses tipos de trabalho eram novos para os guaranis, especialmente o de fazer provisões.

A “propriedade de Deus” era destinada à comunidade e para as necessidades de base da Missão: pagamento de impostos , trocas, vendas, etc. O indígena devia trabalhar nesse local dois dias por semana, três horas pela manhã e três pela tarde. A “propriedade do indígena” era destinada ao seu próprio consumo.

Além do mais, os guaranis consagravam-se também à extração de pedras para o trabalho de construção. Faziam pontes de pedra, moinhos hidráulicos, subterrâneos, canais de irrigação e fontes de água pura (fotos).

Aprimoravam também a criação de gado, sobretudo na atual região de Corrientes. Em 1768, contavam-se 656.333 cabeças, sem falar dos outros animais que completavam sua economia.

Faziam trocas entre eles mesmos e com as Reduções vizinhas. Vendiam também nos centros urbanos espanhóis de Santa Fé, Córdoba, Buenos Aires e exportavam para outros países. O mercado central das Reduções situava-se em Santa Fé (Bs. As.). Os padres procuradores, ecônomos da Companhia de Jesus nas Reduções, faziam as trocas comerciais e defendiam os interesses da ordem face às autoridades. Iam também à Europa para vender o couro. Podiam levar numa só viagem 30.000 vacas, o que era uma fortuna. Os navios voltavam carregados de papel, livros, seda, telhas, pinturas, ferramentas, instrumentos de cirurgia, metais e sal em abundância...

A capital das trinta Reduções era Candelária e a sede principal de todas elas encontrava-se em Córdoba.

 

Atividades do dia

4h00: O hebdomadário tocava o sino para o despertar.

4h30: Oração mental.

5h00: O porteiro abre as portas para os sacristãos, os cozinheiros e os tocadores de tambor acordam as crianças. Os padres do setores são informados.

5h30: O sino chama para a Missa.

6h00: Missa.

7h00: Os trabalhos do dia são distribuídos de acordo com a autoridade civil. O café da manhã é servido às crianças. Ensaio de orações.

8h00: Visita aos doentes, cerimônia de enterros. Depois tomam mate, antes de se aplicarem ao trabalho.

8h30: As crianças vão para a escola. Os professores dirigem seus trabalhos.

9h00: Confissão dos adultos, controle de atividades escolares e dos trabalhos nos ateliês.

11h00: Os cozinheiros levam o almoço aos doentes.

12h00: Almoço.

13h00: Descanso.

14h00: Retomada dos trabalhos.

16h00: Catecismo.

18h00: Oração, colação, acompanhamento dos defuntos.

19h00: Recitação do Ofício; cada um volta para sua casa.

20h00: Jantar.

20h30: “Apaga-se a fogueira”

A vida artesanal e cultural

Os artesãos e artistas guaranis: tecelãos, escultores, pintores, metalúrgicos, impressores, historiadores rivalizavam em competência, segundo o testemunho de numerosa peças que chegaram até nós.

O mais surpreendente foi, talvez, a criação da primeira gráfica na Redução de Loreto em 1700 pelos padres Serrano e Neuman; a de Buenos Aires é posterior. Lá foram feitos um ‘Martirológio romano” (a obra impressa mais antiga, conservada na Argentina, realizada em 1705 pelo indígena Juan Yapai), “A diferença entre o temporal e o eterno”, de Juan José Nieramberg e numerosos outros livros como calendários, tabelas astronômicas, partituras de canto...

As Missões possuíam geralmente uma boa biblioteca (Loreto, mais de 300 livros, Corpus por volta de 400, Santiago mais de 180, Candelária, 4724).

No colégio aprendia-se a ler e escrever em três línguas: guarani, espanhol e latim. Aplicavam-se particularmente à música. Em San Ignacio, funcionou um dos primeiros conservatórios de música (a foto mostra a entrada da sala de música), com seus próprios cantores e instrumentalistas: violinistas, violonistas, flautistas e organistas. As orquestras guaraníticas eram compostas de violinos, trompetes, címbalos, harpas, violões, etc., e não tinham rival no Rio da Prata nem no Paraguai. Sua competência era tal que os governadores os convidavam para apresentarem-se em Buenos Aires, na festa de San Ignacio. Pouco a pouco os indígenas começaram a fabricar seus próprios instrumentos ( o melhor artesão foi um índio de São Miguel, Ignacio Paira ), sob a direção de grandes profissionais jesuítas, como o Pe. Sepp, que construiu em Candelária o primeiro órgão de madeira da América. Fez igualmente, em Yapeyu, as primeiras harpas indígenas que obtiveram grande sucesso. O primeiro mestre de orquestra foi o padre belga Juan Vaseo, antigo músico da corte.

O teatro ocupava também um lugar importante. Os índios mais dotados interpretavam vidas de santos ou de personagens célebres. Certas obras, vindas da Europa, eram traduzidas para o guarani, outras eram escritas na própria Redução. A língua Guarani, com muitas nuances, exprimia perfeitamente o pensamento e os sentidos. Quase sempre os grupos de teatro eram convidados para ir interpretar obras clássicas.

No século VIII os aborígines forneceram intelectuais e artistas de valor, como Nicolás  Yapuguay, cacique e músico da Redução de Santa Maria. Ele escrevia em guarani com grande clareza e elegância, tendo dois de seus livros sido levados à gráfica. O índio Melchor  escreveu a história de sua cidadezinha Corpus Christi. O índio Vásquez de Loreto era também um bom escritor. O guarani Kabiyú era um excelente pintor, que por volta de 1618 fez maravilhas, como uma Virgem das Dores, que hoje em dia se encontra em Buenos Aires. Em São Tomé vivia o ourives e escultor Gabriel Quiri; ele trabalhava com ouro, prata, pedras preciosas (ametista e topázio) e quartzo como os melhores especialistas europeus.

Com os metais extraídos das minas (ouro, cobre, prata, ferro) os indígenas faziam verdadeiras obras de arte destinadas principalmente à ornamentação das igrejas. Fabricavam também utensílios e armas.

O trabalho na madeira suscitou também artistas talentosos,  autores de numerosas estátuas policromadas. Dentre eles destacamos o índio José, que fez em 1780 uma estátua do “Senhor da humildade e da paciência”, conservada na Igreja de São Francisco de Buenos Aires, e considerada um dos marcos iniciais da arte nacional argentina.

Numerosos jesuítas que chegaram às missões já eram conhecidos na Europa por sua habilidade num ou noutro domínio técnico ou artístico. Contribuíram muito para a excelente formação dos guaranis. A tal ponto que a cultura geral das missões jesuítas ultrapassava aquela de algumas cidadezinhas espanholas! Eis alguns nomes destes jesuítas, entre os mais famosos:

―    Juan Primoli (que construiu a igreja de São Miguel, cuja maquete vemos ao lado) e Andrés Blanqui, arquitetos.

―    José Brassanelli, arquiteto, pintor e escultor.

―    Luis Verger e José Grimau, pintores.

―    Carlos Frank, carpinteiro e engenheiro mecânico.

―    Cristián Mayer, relojoeiro.

―    Buenaventura Suárez, fundidor de sinos e astrônomo, que ficou célebre até na Ásia por seu lunário publicado na Europa.

―    Antônio Sepp, considerado o pai da siderurgia argentina.

E outros geógrafos, botânicos, médicos, especialistas em armas e zoólogos, chamados pelos jesuítas para ensinar os guaranis. Todos estes mestres se fizeram guaranis com os guaranis para civilizá-los. Merece menção à parte a estátua de São Miguel, da missão de mesmo nome, representando o Arcanjo tendo sob os pés o demônio... com os traços e vestimentas dos bandeirantes, cuja crueldade e cupidez foram uma das causas do fim das Reduções

 

V ― Os bandeirantes

Os jesuítas fundaram cerca de 60 missões, mas somente 30 (com mais de 100.000 aborígines) alcançaram um verdadeiro desenvolvimento: 8 no Paraguai, 7 no Brasil e 15 na Argentina (4 na província de Corrientes e 11 na de Misiones) – ver mapa abaixo. De fato, muitas sofreram ataques incessantes dos bandeirantes, cujo objetivo era caçar guaranis e vendê-los como escravos. Em 4 anos eles destruíram 4 vilas das Missões e capturaram 60.000 aborígines. Porque essa terrível caça ao ser humano e esse obstáculo ao apostolado da Igreja? Quem eram esses bandeirantes?

A Companhia de Jesus, instalada em Guayrá, começou a procurar um caminho através do Brasil que conduzisse ao Atlântico. Apesar de viverem mais ao norte, em São Paulo, os bandeirantes interditaram qualquer avanço jesuíta ou espanhol. Eles reagiram violentamente ao impulso missionário e à tentativa de colonização espanhola, atacando as reduções e capturando os indígenas civilizados. No começo, os jesuítas tentaram resistir a essas agressões, não hesitando a partilhar a sorte dos indígenas quando não conseguiam livrá-los do cativeiro. Desse modo chegou-se a ver os Padres Masseta, Mansilla e Ruiz acompanharem os guaranis acorrentados para pedir  justiça às autoridades de São Paulo.

Os missionários escreveram relatórios ao Conselho das Índias sobre esses ataques assim como sobre as intromissões dos mestiços bandeirantes ― filhos de portuguesas e de índios ― até em regiões pertencentes à Espanha.

A Coroa portuguesa, sensível a esses pedidos, tinha ordenado que os escravistas fossem castigados e os aborígines, libertados. Foi em vão. Os paulistas utilizaram como pretexto um documento do rei de Portugal, Dom Sebastião, datado de 1570, que autorizava pegar como escravos os indígenas prisioneiros de guerra; legitimavam dessa maneira todo abuso, aproveitando-se de que os escravos tinham sido capturados em território português. O Guayrá era espanhol, mas porque privar-se de ir lá e capturar aborígines bastante úteis para trabalhar no campo e nas minas? Além disso, os indígenas civilizados pelos jesuítas eram mais capazes e menos agressivos do que os indígenas selvagens!

Os famosos bandeirantes Antônio Raposo Tavares e Manuel Pires atacaram o Guayrá com 2.000 índios tupis (tribo do leste do Brasil dominada pelos paulistas). O assalto foi extremamente violento, um padre jesuíta foi morto, os outros maltratados e, apesar de sua bravura, 30.000 indígenas guaranis foram aprisionados e conduzidos algemados a São Paulo.

Os padres Masseta  e Mansilla acompanharam-nos a pé até São Paulo e depois foram ao Rio de Janeiro para pedir justiça. Mas os ricos bandeirantes lusitano-brasileiros não quiseram ouvir nada, afirmando que as Reduções guaraníticas eram “um império cultivado, mas tirânico e injusto, uma república infame, um órgão perverso”. Em Portugal, repetiam-se as mesmas mentiras: “Os jesuítas acusavam Portugal de roubar indígenas catequizados nas Reduções para fazê-los trabalhar como animais, mas, na realidade, as missões eram, elas próprias, um império de índios escravizados” ou “os religiosos incitavam os índios a uma resistência armada, dando-lhes boas armas e ensinando-lhes as estratégias e táticas modernas”. Os bandeirantes detestavam as Reduções construídas no Guayrá, nas terras meridionais do Brasil, porque elas lhes impediam de alcançar a fronteira oeste até o rio Paraguai, limite geográfico pretendido de seu país.

É verdade que o imenso Brasil deve sua amplitude geográfica e uma boa parte de sua configuração atual às “realizações” dos bandeirantes, mas é igualmente evidente que eles foram a causa mais direta da ruína das Missões do Guayrá e do Tapé.

Essas contrariedades acabaram por vencer os jesuítas que, de comum acordo com os caciques guaranis, decidiram abandonar para sempre as treze Missões do Guayrá, fundadas com tanto sacrifício e abnegação. Foi o grande êxodo de 1631.

 

O grande êxodo

Essa migração lenta e dolorosa de 12.000 indígenas guaranis teve por chefe o jesuíta Antônio Ruiz de Montoya, seguido pelos padres Suarez, Martinez, Espinosa, Contreras, Masseta, Cataldino e outros ainda. A perda nas cataratas no Iguaçu de várias pirogas com o carregamento de provisões, chuvas torrenciais, insetos de incrível voracidade, os obstáculos naturais, a peste e outras tantas dificuldades consideráveis fizeram do Padre Montoya um verdadeiro herói que, como um pai, conduziu os guaranis sãos e salvos até as Reduções argentinas.

Os nomes das antigas Reduções foram conservados; o mapa (abaixo) nos mostra o lugar definitivo das Missões jesuítas. Deve-se notar que as sete Reduções brasileiras se estabeleceram definitivamente depois da vitória de Mborore, que impediu por muito tempo ataques posteriores de bandeirantes paulistas.

 

A batalha de Mborore

Em 1639, os bandeirantes atacaram a vila de Xerez, em terra paraguaia, e ameaçaram Assunción, sempre com o pretexto de chegar até o rio Paraguai, limite geográfico, diziam eles, do Brasil. O governador do Paraguai, Don Pedro Lugo de Navarra, pediu ajuda a 4.000 indígenas das Missões guaraníticas. A administração colonial espanhola tinha dado autorização aos guaranis para utilizar armas de fogo, autorização que será, em 1643, confirmada pela coroa espanhola.

Numa manhã de março de 1641, chegaram ao rio Mborore 450 paulistas, acompanhados de 2700 índios tupis, navegando 300 pirogas.

O general guarani Ignacio Abiaurú, ajudado pelos irmãos leigos Domingo Torres e Antonio Bernal, reuniu seus 4.200 soldados, munidos de flechas, lanças, canhões e de 250 arcabuzes. A luta, de uma violência extrema, durou três dias. Os paulistas foram vencidos e vários índios tupis passaram para  lado dos guaranis civilizados.

O general Abiaurú tornou-se uma figura célebre entre os heróis guaranis. Outras vitórias se seguiram em 1647, 1651 e 1655. Depois disso, as tropas paulistas não ousaram mais avançar por longo tempo na direção oeste, onde as sete reduções brasileiras de São Francisco Borja (1682), São Nicolau (1687), São Miguel (1687), São João Batista (1697) e Santo Anjo da Guarda (1706) alcançaram um pleno florescimento até 1750, ano do Tratado de Madri.

 

VI ― O FIM DAS REDUÇÕES

O tratado de Madri (1750)

Uma novidade surpreendente chegou um dia às Missões: “Um tratado de permuta”, um tratado de troca, tinha sido assinado em Madri entre Espanha e Portugal em favor dos interesses portugueses. A colônia de Sacramento (o Uruguai) e as ilhas Filipinas tornavam-se espanholas, enquanto que as sete Reduções do Rio Grande do Sul (chamadas “Os Sete Povos das Missões”) tornavam-se portuguesas. Tinha sido decidido que os índios sairiam das Reduções e o governo português daria 4.000 pesos a cada vila. Esse tratado pode ser explicado pelo parentesco entre Fernando VI de Espanha, casado com Bárbara de Bragança, e o monarca português, pai de Bárbara, mas também pela poderosa influência da maçonaria portuguesa, da qual era membro ativo o tristemente célebre ministro português, Marquês de Pombal, inimigo ferrenho dos jesuítas...

 

A guerra guaranítica

Os 3.104 guaranis das sete Reduções se recusaram a deixar suas terras, suas casas, suas igrejas. Os padres jesuítas não conseguiram convencê-los a ir embora... Eles consideravam injusta a ordem do rei, a quem eles tinham sempre servido fielmente. Iam eles deixar para os bandeirantes, seus terríveis inimigos, os frutos de tantos anos de trabalho? Impossível; preferiam desobedecer, com armas na mão, à ordem injusta do rei.

Seu chefe era o general de cavalaria Tiarayu, muito popular, conhecido pelo nome de Sepé. Era considerado, pela sua coragem e sua habilidade no combate, como o mais terrível guerreiro da época. Não muito longe, as tropas espanholas e portuguesas aguardavam prontas para o combate, caso as ordens reais não fossem respeitadas.

A guerra durou de 1753 a 1756.

O primeiro assalto terminou com a vitória dos espanhóis e dos portugueses, fortemente armados. Por ocasião de um segundo combate, Sepé foi feito prisioneiro, conseguindo fugir. Em 1756, ele chefiou novamente um exército guarani, agora mais forte do que nunca. Mas o exército espanhol-lusitano obteve a vitória e Sepé, a alma de seus soldados, foi morto em combate. A piedade popular conta que os indígenas viram então um cavalheiro montado num cavalo de fogo entrar no céu...

O número de guaranis mortos em combate foi enorme; entre os corpos sem vida estendidos sobre o campo de batalha, contavam-se vários jesuítas que tinham tentado proteger seus filhos revoltados.

O general Nicolas Languirú sucedeu Sepé. Mas ele também sucumbiu durante a sangrenta batalha de Caybaté. Com sua morte, os guaranis, vencidos, tiveram de deixar suas terras. Assim terminaram as guerras guaraníticas.

É claro que essas guerras são conseqüências das manobras do Marquês de Pombal, desejoso de acabar com o poder militar indígena que punha obstáculo, sob a proteção e o controle do inimigo jesuíta, à expansão territorial portuguesa no Brasil. Além do mais, os adversários dos jesuítas eram numerosos, poderosos e cobiçavam a riqueza das Reduções guaraníticas, cuja organização era admirada da Europa...

 

A expulsão dos jesuítas e o fim das Reduções

Uma campanha de difamação foi lançada contra os jesuítas na Europa e na América. Os missionários eram acusados de suscitar a guerra guaranítica e de conspirar contra a monarquia  para instaurar uma república independente. Os ministros liberais Aranda, Floridablanca e Campomanes acusavam particularmente os jesuítas de frear o desenvolvimento da população da América, proibindo os indígenas de trabalhar nas comendas (das quais conhecemos os métodos); eles os acusavam também de não exigir dos indígenas o uso da língua espanhola e de fazê-los trabalhar de maneira excessiva para poder enviar milhões de pesos ao Superior Geral da Companhia , etc., etc....

O ímpeto dos detratores foi tal que o Imperador espanhol Carlos III terminou por escutá-los e assinou o decreto de expulsão dos jesuítas, aprovado pelo papa Clemente XIV, no dia 27 de fevereiro de 1767. O Papa depois arrepender-se-á amargamente dessa decisão. Carlos III, sem querer, legalizou as conquistas portuguesas e fixou os limites atuais das fronteiras do Brasil naquela região.

Carlos III, em 1761, tinha assinado o Tratado do Pardo que anulava o de Madri e ordenava os guaranis a voltar a suas terras, agora espanholas. Mas suas queridas Missões estavam em ruínas e eles tiveram de escolher entre duas opções: ou aceitar um novo sistema  que suprimia a organização comunitária dos jesuítas e impunha uma língua e um estilo de vida europeu, ou abandonar a vila. Os guaranis escolheram, evidentemente, a segunda opção. A decadência instalou-se rapidamente, com seu triste cortejo de miséria, fome, doenças e vícios.

As ruínas das Missões dos guaranis fazem, infelizmente, parte do Patrimônio Mundial da Humanidade. Se os olhos do turista as admiram, seu coração geralmente permanece indiferente porque não compreende a razão de ser dessas Missões. O próprio turista tornou-se um selvagem munido de computador, afastado de Deus e do doce Reino de Cristo Rei.

Os missionários jesuítas tinham compreendido que se deve “Tudo restaurar em Cristo (Ef 1,10), OMNIA INSTAURARE IN CHRISTO”: as almas, as famílias, a sociedade política, a economia, as artes. As Reduções guaraníticas foram a realização dessa divisa de São Paulo, que também foi a de São Pio X, e é a da Igreja. Saibamos combater por esse ideal.

 

Bibliografia:

 

―    Las reducciones guaraníticas, Ana Maria Galleano.

―    Las Misiones Jesuíticas, San Ignacio Miní, César Omar Balbuena.

―    São Miguel das Missões, Secretaria Municipal de turismo e cultura de São Miguel, Brasil.

―    Santos Mártires das Missões, Estanislau  A. Kreutz.

―    Missões jesuíticas dos guaranis, CD-ROM da Associação Amigos das Missões

 

(Publicado originalmente no jornal "Guarde a Fé", da FSSPX no Brasil)

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