Category: Pe. Davide Pagliarani
Superior Geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X desde o ano de 2018.
Pe. Davide Pagliarani - FSSPX
Revmo. Pe. Pagliarini - Superior Geral, eventos importantes deverão ocorrer até o final do ano, como o Sínodo da Amazônia e a reforma da Cúria Romana, que terão uma repercussão histórica na vida da Igreja. Em sua opinião, que lugar eles ocupam no pontificado do Papa Francisco?
A impressão que muitos católicos tem atualmente é a de que a Igreja está à beira de uma nova catástrofe. Se fizermos uma retrospectiva, o próprio Concílio Vaticano II só foi possível porque foi o resultado de uma decadência que afetou a Igreja nos anos que precederam sua abertura: uma barragem se rompeu sob a pressão de uma força que já operava há algum tempo. É isso que permite o sucesso das grandes revoluções, porque os legisladores apenas aprovam e sancionam uma situação que já é um fato consumado, pelo menos em parte.
Assim, a reforma litúrgica foi apenas o resultado de um desenvolvimento experimental que remonta ao período entreguerras e que já havia penetrado em grande parte do clero. Mais próximos de nós, neste pontificado, a Encíclica Amoris lætitia foi a ratificação de uma prática, infelizmente, já presente na Igreja, especialmente no que diz respeito à possibilidade de comunhão às pessoas que vivem em estado de pecado público. Hoje a situação parece madura para outras reformas de extrema gravidade. (Continue a ler)
O Pe. Davide Pagliarani, Superior Geral da Fraternidade São Pio X, concedeu uma entrevista exclusiva ao site oficial do Distrito Francês da FSSPX, La Porte Latine, na qual relembra a fecundidade da Cruz para as vocações e as famílias. Ele enfatiza particularmente a necessidade de guardar o espírito autêntico do fundador, Dom Marcel Lefebvre, “um espírito de amor pela fé e pela verdade, pelas almas e pela Igreja”, em face da recente canonização de Paul VI e da promoção da sinodalidade na Igreja.
Faz agora cinco meses que o senhor foi eleito Superior Geral da Fraternidade São Pio X, para um mandato de doze anos. Estes cinco meses certamente lhe permitiram uma primeira visão geral sobre a obra fundada por Dom Marcel Lefebvre, em complemento à sua já rica experiência pessoal. Qual a sua impressão e quais as prioridades para os próximos anos?
A Fraternidade é uma obra de Deus, e quanto mais a conhecemos, mais a amamos. Duas coisas mais me impressionaram. Primeiro, o caráter providencial da Fraternidade: ela é o resultado de escolhas e decisões de um santo guiado unicamente por uma prudência sobrenatural e “profética”, cuja sabedoria apreciamos mais e mais à medida que os anos passam e a crise da Igreja se agrava. Depois, pude constatar outra vez que não temos a regalia de sermos poupados: o Bom Deus santifica todos os nossos membros e fiéis mediante os fracassos, as provas, as decepções, em uma palavra, pela cruz e não por outros meios. (Continue a ler)
INTRODUÇÃO
No último sábado, 15 de dezembro de 2018, o Superior Geral da Fraternidade São Pio X, Padre Davide Pagliarani, concedeu uma admirável entrevista ao jornal austríaco Salzburger Nachrichten, que é classificado pelos especialistas em veículos de comunicação européia como um diário de tendência “cristã e liberal”.
PERMANÊNCIA apresenta aqui a tradução dessa entrevista, na qual o leitor facilmente perceberá duas coisas. A primeira é que cada pergunta do entrevistador, cioso do caráter liberal do periódico austríaco, é uma tentativa de retratar a Tradição como um ajuntamento de teimosos e ingratos, que não sabe corresponder às benevolentes concessões vindas de Roma. Mas também notará a maestria do entrevistado, com respostas tão firmes quanto curtas: simples como a pomba, e prudentes como a serpente.
Para nós é um bálsamo constatar que a obra fundada por Dom Marcel Lefebvre há quase 50 anos, no alvorecer do turbilhão pós-conciliar, segue sendo hoje, como jamais deixou de ser ― apesar do que digam os seus detratores ― o baluarte de defesa da fé sobrenatural, essa fé católica que é afirmada logo no início da entrevista do superior geral.
Peçamos a Nosso Senhor a graça imensa de jamais perder essa mesma fé, há meio século espezinhada por aquela mesma hierarquia constituída para guardá-la e transmiti-la.
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O fundador da Fraternidade São Pio X, Dom Marcel Lefebvre, foi excomungado em 1988 por ter ordenado quatro bispos sem permissão. No ano de 2009, Bento XVI levantou estas excomunhões. O que isso significa para o senhor?
Para nós não mudou nada, pois jamais consideramos que essas excomunhões tivessem fundamento. No entanto, algumas pessoas sentiram-se encorajadas a juntar-se a nós, coisa que até então não ousavam fazer. Isso facilitou igualmente nossas relações com alguns bispos e com parte do clero, sobretudo com os padres mais jovens.
Francisco também fez algumas concessões. O que o senhor ainda espera?
Esperamos aquilo que todo católico pede à Igreja no seu batismo: a fé. A revelação divina está encerrada, é dever do Papa transmitir fielmente o depósito da fé. O Papa deve, pois, pôr um fim à terrível crise que agita a Igreja há 50 anos. Esta crise foi desencadeada por uma nova concepção da fé centrada sobre a experiência subjetiva de cada um: julga-se que o indivíduo é o único responsável pela sua fé e pode livremente optar por qualquer religião, sem distinção entre o erro e a verdade. Ora, isso contradiz a lei divina objetiva. (Continue a ler)
texto tirado do site oficial da FSSPX Brasil:
“ESSA MISSA, NOSSA MISSA, DEVE SER REALMENTE PARA NÓS COMO A PÉROLA DO EVANGELHO PELA QUAL TUDO RENUNCIAMOS, PELA QUAL ESTAMOS PRONTOS A VENDER TUDO.”
Caros membros e amigos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X,
O motu proprio Traditionis custodes e a carta que o acompanha causaram uma agitação profunda no ambiente dito ‘tradicionalista’. Pode-se notar, com boa lógica, que a era da hermenêutica da continuidade — com seus equívocos, ilusões e esforços impossíveis — acabou tragicamente, sendo posta de lado. Essas medidas, tão claras e nítidas, não tocam diretamente a Fraternidade São Pio X, mas devem ser para nós ocasião de uma reflexão profunda. Para fazer isso, é necessário elevar-nos aos princípios e colocarmo-nos uma questão simultaneamente antiga e nova: por que a Missa tridentina é o pomo da discórdia depois de cinquenta anos?
Antes de tudo, devemos nos lembrar que a santa Missa é a continuação, nos tempos, da luta mais renhida que há: a batalha entre o Reino de Deus e o reino de Satanás, essa guerra que chegou ao ápice no Calvário, com o triunfo de Nosso Senhor. Foi para essa luta, e essa vitória, que Ele se encarnou. Visto que a vitória de Nosso Senhor foi obtida pela cruz e por seu sangue, é compreensível que sua perpetuação aconteça, também, por meio de lutas e contrariedades. Todo cristão é chamado a esse combate: Nosso Senhor nos chama porque disse que “veio à terra para trazer a espada” (Mt 10, 34). Não é surpreendente que a Missa de sempre, que exprime perfeitamente a vitória definitiva de Nosso Senhor sobre o pecado, por seu sacrifício expiatório, seja ela mesma um sinal de contradição.
Contudo, por que essa Missa se tornou sinal de contradição dentro da própria Igreja? A resposta é simples, e cada vez mais clara. Depois de cinquenta anos, os elementos da resposta são evidentes para todos os católicos de boa vontade: a Missa tridentina expressa e veicula uma concepção da vida cristã — e, consequentemente, uma concepção de Igreja — que é absolutamente incompatível com a eclesiologia que procede do Concílio Vaticano II. O problema não é simplesmente litúrgico, estético, ou meramente formal. O problema é simultaneamente doutrinal, moral, espiritual, eclesiológico e litúrgico. Em poucas palavras, é um problema que toca todos os aspectos da vida da Igreja, sem exceção: é uma questão de fé.
De um lado encontra-se a Missa de sempre, estandarte de uma Igreja que enfrenta o mundo e que está certa de sua vitória, porque sua batalha não é outra que a continuação daquela que Nosso Senhor realizou para destruir o pecado e o reinado de Satanás. É pela Missa, e através da Missa, que Nosso Senhor alista as almas cristãs no seu próprio combate, fazendo que participem tanto de sua cruz como de sua vitória. De tudo isso decorre uma ideia fundamentalmente militante da vida cristã. Duas notas a caracterizam: o espírito de sacrifício e uma esperança inabalável.
Do outro lado ergue-se a Missa de Paulo VI, expressão autêntica de uma Igreja que busca estar em harmonia com o mundo, que dá ouvidos às exortações do mundo; uma Igreja que, em última instância, não tem mais de combater o mundo porque não tem mais nada a repreender; uma Igreja que não tem mais o que ensinar porque escuta os poderes desse mundo; uma Igreja que já não precisa do sacrifício de Nosso Senhor porque, tendo perdido a noção de pecado, não tem mais nada a expiar; uma Igreja que não tem mais como missão restaurar o reinado universal de Nosso Senhor, porque ela quer dar sua contribuição à construção de um mundo melhor, mais livre, mais igualitário, mais ecologicamente responsável; e tudo isso com recursos puramente humanos. À essa missão humanista a que se entregaram os homens da Igreja deve corresponder uma liturgia igualmente humanista e dessacralizada.
A batalha desses últimos cinquenta anos — que no dia 16 de julho teve um momento certamente significativo — não é a guerra entre dois ritos: é tão simplesmente a guerra entre duas concepções diferentes e opostas da Igreja e da vida cristã, absolutamente irredutíveis e incompatíveis entre si. Parafraseando Santo Agostinho, podemos dizer que duas Missas construíram duas cidades: a Missa de sempre construiu a cidade cristã, a nova Missa busca construir a cidade humanista e laica.
Se Deus permite tudo isso, é certamente por um bem maior. Antes de tudo para nós mesmos, que temos a oportunidade imerecida de conhecer a Missa tridentina e dela nos beneficiarmos; possuímos um tesouro a que nem sempre damos o devido valor, e que poderíamos vir, talvez, a guardar por hábito. Ora, quando algo de grande prezo é atacado ou desprezado, apreciamos melhor seu valor. Possa esse “choque”, provocado pela dureza dos textos oficiais de 16 de julho, servir para que nosso amor pelo rito tridentino se renove, se aprofunde, seja redescoberto; essa Missa, nossa Missa, deve ser realmente para nós como a pérola do Evangelho pela qual tudo renunciamos, pela qual estamos prontos a vender tudo. Aquele que não está pronto para derramar seu próprio sangue por essa Missa não é digno de celebrá-la. Aquele que não está disposto a tudo renunciar para protege-la não é digno de assistir a ela.
Eis no que deve consistir nossa primeira reação perante os eventos que acabaram de sacudir a Igreja. Que nossa própria reação, padres e fiéis católicos, sobrepuje de longe — por sua profundidade e valor— os comentários de todo o tipo, cheios de inquietação e muitas vezes sem esperança.
Deus certamente visa outro objetivo ao permitir esse novo ataque contra a Missa tridentina. Ninguém pode duvidar que durante esses últimos anos, muitos padres e fiéis descobriram essa Missa, e que através dela se aproximaram de um novo horizonte espiritual e moral, que lhes abriu o caminho da santificação de suas almas. As últimas medidas que foram tomadas contra a Missa obrigarão tais almas a tirarem todas as consequências do que elas descobriram: cabe a elas, agora, escolherem — com os elementos de discernimento que têm à disposição — o que se impõe a toda consciência católica bem formada. Muitas almas encontrar-se-ão diante de uma escolha importante concernente à fé, porque — repetimos — a Missa é a expressão suprema de um universo doutrinal e moral. Trata-se, portanto, de escolher a fé católica em sua integridade, e por ela Nosso Senhor Jesus Cristo, sua cruz, seu sacrifício, sua realeza. Trata-se de escolher seu sangue, de imitar o Crucificado e de segui-lo até o fim por uma fidelidade total, radical, firme.
A Fraternidade São Pio X tem o dever de ajudar todas as almas que se encontram, atualmente, consternadas e confusas. Em primeiro lugar, temos o dever de oferecer-lhes, pelos próprios
fatos, a certeza que a Missa tridentina não poderá jamais desaparecer da face da terra: trata-se de um sinal de esperança extremamente necessário.
Ademais, é preciso que cada um de nós, padre ou fiel, estenda para essas almas uma mão amiga, porque aquele que não tem o desejo de partilhar dos bens com que se beneficia é, de fato, indigno deles. É somente desse modo que se amará verdadeiramente as almas e a Igreja. Porque cada alma que ganhemos para a cruz de Nosso Senhor, e para o amor imenso que manifestou por seu sacrifício, será uma alma verdadeiramente ganha para sua Igreja, para a caridade que a anima e que deve também ser nossa, especialmente neste momento.
Confiamos essas intenções à Mãe das Dores, é a ela que dirigimos nossas orações, afinal ninguém mais do que Ela penetrou no mistério do sacrifício de Nosso Senhor e de sua vitória na Cruz. Ninguém mais do que Ela esteve tão intimamente associada a seus sofrimentos e a seu triunfo. Foi em suas mãos que Nosso Senhor colocou a Igreja inteira; portanto, é a Ela que foi confiado o que a Igreja tem de mais precioso: o testamento de Nosso Senhor, o santo sacrifício da Missa.
Menzingen, 22 de julho de 2021
Na Festa de Santa Maria Madalena
Dom Davide Pagliarani, Superior-Geral
Faz já um tempo - bastante grande, na verdade - que o Diretor desta revista pediu-me um artigo sobre o Seminário onde desempenho o cargo de reitor, deixando-me a maior liberdade na escolha da abordagem do referido artigo.
Durante certo tempo busquei qual seria o ponto de vista mais interessante para os leitores da Permanência e terminei concluindo que, talvez, a maneira mais original e viva para conhecer um seminário por dentro fosse através dos olhos, das ilusões, das aspirações e dos sentimentos dos próprios seminaristas. Pedi então a três diáconos que escrevessem o que os senhores lerão na continuação.
Quando eu mesmo li estas reflexões dos referidos diáconos concluí que não me havia enganado ao deixar-lhes a redação do artigo: este permite não somente entrar no coração de um seminário católico, como diz o título, mas também no coração mesmo de um rapaz que quer doar-se totalmente a Nosso Senhor e que se deixa amoldar, pouco a pouco, pela graça de Deus, passando, no entanto, por algumas provas.
Enfim, atrevo-me a dar a sugestão aos que vão ler estas páginas, de não limitarem-se somente a lê-las, mas de também meditá-las. Lembrem-se, também, destes rapazes nas suas orações, para que sejam sacerdotes segundo o coração de Jesus.
Padre Davide Pagliarani, Reitor
Introdução
A enorme e espantosa crise da Igreja dos últimos cinquenta anos afunda cada vez mais no esquecimento a noção profunda e verdadeira do que é um seminário católico.
À falta de vocações se agrega a perda do sentido do sacerdócio, o que necessariamente leva à corrupção aqueles institutos cujo fim é justamente a formação sacerdotal.
Que jovem, ou que família pode, hoje em dia, formar-se uma idéia reta e suficiente sobre um seminário carecendo de exemplos concretos e próximos? Pior ainda, os exemplos que eventualmente possa conhecer lhe dão uma imagem totalmente distorcida ou desfigurada!
Frente a esta dolorosa falta de referências sólidas, vem este artigo, sem maiores pretensões, dar alguma noção sobre a vida do seminário Nª Srª Corredentora, de la Reja, no sentido, não tanto de uma descrição material e cronológica, mas de uma narração mais profunda das realidades que fundam e vivificam nosso seminário no mais íntimo do seu “coração”.
As Primeiras impressões
As primeiras impressões de um jovem recém chegado ao seminário são daquelas que não se apagam nunca mais da memória. A alegria das “boas vindas” dadas como a um bom amigo por longo tempo esperado o surpreende!
Por quê tanta alegria? Em certo sentido, pode ser comparado ao gozo de uma família ao receber um novo membro.
Mas o jovem candidato ainda não está em condições de entender que um seminário é uma família, e que, cada jovem que nele ingressa, aumenta o número de seus membros. Esta é uma realidade que só compreenderá dentro de algum tempo.
Passam os primeiros dias, e ainda não sabe explicar o que há de especial em sua nova vida. A simplicidade de vida é tal, e a rotina tão repetitiva, que se assombra da felicidade que reina neste lugar, não encontrando sua causa.
Levantam-se praticamente todos os dias à mesma hora, rezam os mesmos ofícios, fazem os mesmos trabalhos, assistem suas aulas todas as manhas e pela tarde estudam. Comem sempre à mesma hora, e às dez da noite, rezada a oração de Completas, todas as luzes se apagam.
No entanto, a monotonia é apenas aparente. O entusiasmo de todos é contagiante, e aquele que se entrega com generosidade à vida comum não vê o tempo passar.
A rotina semanal é radicalmente quebrada pelo esplendor da missa dominical! A liturgia católica cativa pelo seu brilho a todo o que por primeira vez dela participa. Ao som dos sinos, todos, sem exceção, se dirigem com respeitoso silêncio à Igreja, onde, dado o sinal, todos em uníssono contam as glórias de Deus. Enquanto ao longe se ouvem os ecos do barulhento mundo pagão, no íntimo do seminário, não com menos vigor, fazem-se ouvir as vozes dos filhos de Deus que intercedem pelos seus irmãos extraviados.
Mas a profunda meditação do nosso jovem deve ser interrompida para dar lugar às exigências da humana condição corporal. Os trabalhos da comunidade o chamam. Todos colaboram, cada um segundo a função que lhe é designada, o que ensina ao recém-chegado o valor da generosidade, que garante, pelo esforço em comum, o bem estar necessário a cada um dos membros.
Esta compreensão mais profunda do trabalho lança uma primeira luz às dúvidas sobre o modo alegre e generoso de viver uma rotina quotidiana, que vai se transformando, aos poucos de monotonia repetitiva em alegria sempre renovada.
Mas o trabalho não constitui a característica principal de um seminário. Os estudos, exigentes, ocupam uma boa parcela do dia. As matérias estudadas requerem dedicação, esforço e atenção: filosofia, teologia, latim, espiritualidade, catecismo e Sagrada Escritura são alguns exemplos do alto nível cientifico que se oferece a um seminarista.
No entanto, a fadiga intelectual é compensada pelas duas tardes semanais de esporte, nas quais o futebol, o vôlei, o tênis ou o cooper se encarregam do equilíbrio entre corpo e alma. Além dos desejados passeios mensais, que variam entre visitas à igrejas, museus ou uma tarde de jogos e caminhadas em algum parque ou fazenda próximas.
Todas estas impressões iniciais são de grande importância, ainda que não suficientes para uma verdadeira compreensão de um seminário. É necessário uma distinção purificadora entre o que é puramente humano e o que é divino. Distinção que costuma ocorrer na metade dos seis anos de formação de um seminarista.
O “meio-dia”
Assim como o sol do meio-dia faz sentir seus ardores sobre os já fatigados corpos dos que voltam do trabalho matinal, aumentando as suas penas, assim também os três primeiros anos de estudos, trabalhos e orações continuas pesam sobre o já não tão novato seminarista.
O entusiasmo inicial, mais humano que divino, perde seu impulso e vigor, deixando a inteligência e vontade, já sem a ajuda dos sentimentos, sozinhas no campo de batalha. É chegado o momento de viver o seminário não somente levado pelo exemplo dos companheiros, mas principalmente por uma convicção interior profunda, enraizada não na inconsistente areia dos sentimentos, mas na terra firme da graça de Deus.
Processo tanto mais doloroso quanto maior a alegria de seu desenlace final. Doloroso porque a rotina continua a mesma, não assim seu encanto. Os trabalhos supõem abnegação e sacrifício. O silencio, próprio de religiosos, exige um continuo esforço. A vida comum, ainda que proporcione muitas alegrias, igualmente traz suas dificuldades, desentendimentos, incompreensões.
O seminarista se pergunta: “vale a pena tudo isto?” Aparentemente não se produz nada útil. Os estudos não parecem estar direcionados a uma brilhante carreira no futuro, mas somente à contemplação e transmissão das verdades de fé. Há uma desconexão quase total das noticias do mundo exterior...
Mas justamente aqui está o ponto central que caracteriza uma vida de seminário: uma vez passado o que era mais humano que divino, começa o incrível drama do que é mais divino que humano.
À angustiante pergunta “para que tudo isto?” daquele que busca a solução, responde a nossa solícita Mãe, a Santa Igreja, com suas ternas e profundas palavras: “isto não é uma obra humana. Teu criador criou-te para si, e não para ti; e quer de ti um servidor fiel que dê a conhecer ao mundo a sua verdade e a sua bondade infinitas.”
O jovem coração não sabe o que responder. É algo tão acima do que imaginava nos seus primeiros anos... Confuso, vai em busca do conselho daqueles experimentados sacerdotes que estão a cargo de formá-lo até o ultimo passo, e se assombra ao descobrir que todos os antigos passaram pelo mesmo drama. E vendo neles a imagem de seu futuro, animado, prepara-se para os últimos anos de sua formação.
Os últimos anos
Esta nova e consoladora etapa, tão diversa dos anteriores, possui uma luz que transforma em sobrenatural tudo aquilo que lhe parecia tão natural. Todas as atividades quotidianas, desde o lavar pratos até os louvores divinos, tudo se faz para glória do único Deus vivo, por amor, obediência e fidelidade àquele que o criou e lhe pede seu coração.
A liturgia, a mesma de sempre, mas sempre nova, se transforma em uma conservação com Deus. Essa nova alegria, até então desconhecida, vai tomando conta do coração do futuro sacerdote, e vai deixando no esquecimento todas as mundanas alegrias, que se tornam efêmeras ao lado do serviço de Deus e sua glória. Já não pensa em “subir na vida” senão no sentido de crescer em perfeição interior e conhecimento da verdade.
Agora sim, dirá o seminarista, agora sim compreende-se que tantos jovens, tendo à “vida pela frente” venham a confinar-se entre as paredes de um edifício, deixando-se atar sua liberdade ao cumprimento de uma regra. Oh, sim, vale muito mais do que a pena!
As despedidas
Porém, aproximando-se o término dos estudos, deve o já experimentado seminarista preparar-se a receber aquilo que justificou seus seis anos de suores, sacrifícios, alegrias e consolações. Aproxima-se sua ordenação sacerdotal. A expectativa do grande dia contagia novos e antigos. Todo o seminário entra numa atmosfera de alegria tanto natural quanto sobrenatural.
O dia anterior à cerimônia é preenchido pelos intensos trabalhos preparativos, é necessário acomodar o refeitório para os numerosos convidados, limpar e preparar a Igreja, sem esquecer o cuidado do parque exterior.
Enquanto a comunidade se agita em ardoroso trabalho, nosso futuro sacerdote faz, silencioso, seu retiro de preparação. São-lhe dadas várias conferências sobre a responsabilidade que pesará sobre seus ombros, e sobre a sublimidade de sua vocação. No entanto também lhe é chamada a atenção sobre a enorme obrigação de fidelidade e gratidão a Deus, que gratuitamente, sem mérito algum de sua parte, confia-lhe o cuidado das almas.
Enfim, soa o sino do tão esperado dia! Com o coração levemente acelerado mas com espírito recolhido, integra a procissão solene de entrada à igreja e, a passos lentos, vai se aproximando do altar daquele que a seis anos atrás, de modo tão escondido havia lhe conduzido ao seminário. O sorriso exterior revela aquele outro interior, tão próprio de um homem, que ao compreender a sua condição de criatura, põe sua alegria em cumprir a vontade de Deus.
Conclusão
Quem diria, pois, que um tão sóbrio edifício em suas cores e formas, abrigasse em seus silenciosos claustros tão intensos movimentos de um coração humano, que em seu natural inquieto, busca o conhecimento do amor e da vontade de Deus, seu criador e redentor!
Isto é o coração de um seminário! Coração que recebe o seu impulso vital do coração de Cristo, aberto na cruz, e por outro lado, coração que reparte esta vida divina a todos os homens pela formação de sacerdotes missionários.
Obra essencial da Santa Igreja, um seminário é como uma fortaleza que garante a todo jovem que nela ingressa, não somente proteção e amparo, mas, principalmente, uma formação sólida que lhe abrirá os horizontes do discernimento da verdade e dos desígnios da Providência sobre os homens.
Que Deus se digne, por fim, inspirar em todo cristão ardentes desejos, orações e súplicas pelo florescimento cada vez maior desta tão bela obra, tanto mais necessária quanto maior é a sede de doutrina e vida cristã deste árido mundo moderno.
Uma entrevista com o Superior Geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X sobre o pontificado do Papa Francisco
DICI: Reverendíssimo Padre, passaram-se oito anos desde que o Papa Francisco ascendeu ao trono de São Pedro, e, por ocasião desse aniversário, o sr., bondosamente, concedeu-nos essa entrevista, pela qual estamos verdadeiramente gratos.
Para alguns observadores do pontificado do Papa Francisco, particularmente para aqueles apegados à Tradição, parece que a batalha de ideias acabou. De acordo com eles, agora, há uma praxis que domina, a saber, a ação concreta, inspirada em um pragmatismo amplo. Qual sua opinião acerca disso?
Padre Pagliarani: Eu não tenho tanta certeza de que as ações e as ideias devam ser opostas dessa maneira. O Papa Francisco, definitivamente, é muito pragmático. Mas, sendo um homem de governo, ele sabe perfeitamente bem onde quer chegar. Uma ação de larga escala é sempre inspirada em princípios teóricos, em um conjunto de ideias, normalmente dominadas por uma ideia central, com a qual toda a praxis pode e deve estar relacionada.
Deve-se perceber que todas as tentativas de entender os princípios [por detrás] do pragmatismo do Papa Francisco ainda estão no âmbito da tentativa e erro. Por exemplo, algumas pessoas achavam que tinham encontrado os princípios norteadores de sua ação na teologia del pueblo, uma variação argentina da teologia da libertação – porém muito mais moderada. Parece-me, no entanto, que o Papa Francisco está além desse sistema, e mesmo além de qualquer sistema conhecido. Eu acredito que as ideias que direcionam suas ações não podem ser analisadas e interpretadas de maneira satisfatórias se nos limitarmos aos critérios teológicos tradicionais. Ele não apenas está além de qualquer sistema conhecido, está acima deles!
O que o Sr. quer dizer com isso?
Com o Papa João Paulo II, por exemplo -- apesar de tudo que pode ser deplorado em seu pontificado -- certos pontos da doutrina católica permaneciam incólumes. Com o Papa Bento XVI, lidávamos com um espírito apegado às raízes da Igreja. Seu esforço considerável de realizar a quadratura do círculo, ao tentar reconciliar a Tradição com os ensinamentos conciliares ou pós-conciliares, embora condenado ao fracasso, revelavam contudo uma preocupação com a fidelidade à Tradição. Mas, com o Papa Francisco, essa preocupação não existe mais. O pontificado sob o qual vivemos é um ponto de virada histórico para a Igreja Católica: bastiões que ainda existiam, foram agora demolidos para sempre – humanamente falando; e, ao mesmo tempo, a Igreja redefiniu, ao revolucioná-la, sua missão em relação às almas e ao mundo.
Ainda é muito cedo para analisar o escopo integral dessa sublevação, mas já podemos tentar analisá-la.
O Sr. disse que os bastiões que ainda existiam foram demolidos. Que bastiões são esses?
Estou me referindo, de maneira particular, aos fundamentos morais últimos sobre os quais não apenas a sociedade cristã, mas qualquer sociedade natural se estabelece. Estava fadado a acontecer mais cedo ou mais tarde, era uma questão de tempo. Até agora, embora sendo vaga às vezes, a Igreja ainda mantinha suas demandas morais de modo um tanto firme, por exemplo acerca do casamento católico. Ela ainda condenava todas as perversões sexuais… Mas essas demandas, infelizmente, eram baseadas em uma teologia dogmática que estava desviada de seu propósito e, portanto, tornada instável. Era inevitável que, um dia, tudo isso iria vacilar. Princípios sólidos de ação não podem se sustentar firmemente por muito tempo quando a ideia de seu Autor Divino é enfraquecida ou distorcida. Esses princípios morais poderiam sobreviver por algum tempo, até mesmo por algumas décadas, porém, privados de sua espinha dorsal, eles estavam condenados a, um dia, ser tachados de “ultrapassados” e negados na prática. É isso que estamos vendo com o pontificado do Papa Francisco, em particular com a exortação apostólica Amoris Laetitia, de 19 de março de 2016. Esse documento não apenas contém erros sérios: ele manifesta um approach novo, completamente historicista.
O que é esse novo approach? O que poderia ter determinado sua escolha?
O Papa Francisco tem uma visão geral muito precisa da sociedade contemporânea e da Igreja contemporânea – e mesmo da história como um todo. Ele me parece muito afetado por um tipo de hiperrealismo, uma espécie de hiperrealismo “pastoral”. De acordo com ele, a Igreja deve encarar a realidade: é impossível a ela continuar a pregar a doutrina moral como tem feito até hoje. Ela deve, portanto, render-se às demandas do homem moderno e, consequentemente, repensar seu papel como mãe.
É claro, a Igreja deve sempre ser mãe. Mas, ao invés de ser mãe ao transmitir a vida e ao educar os filhos, será mãe na medida em que saiba ouvir, compreender e acompanhar seus filhos… Essas preocupações, que não são más em si mesmas, devem ser compreendidas, aqui, em um novo e muito particular sentido: a Igreja Católica não pode mais – e, portanto, não deve mais – impor-se. Ela deve ser passiva e adaptar-se. É a vida eclesial, tal como é vivida atualmente, que condiciona e determina a missão da Igreja, e, até mesmo, sua raison d’être [propósito]. Por exemplo, como não pode impor as mesmas condições que impunha no passado para a recepção da Sagrada Comunhão, uma vez que o homem moderno as percebe como uma intolerância inaceitável, a única reação verdadeiramente cristã e realista, ao seguir essa lógica, consistiria em adaptar-se a essa situação e redefinir essas condições. Portanto, por força dos acontecimentos, a moral muda; as leis eternas, agora, estão sujeitas a uma evolução, que se torna necessária em razão de circunstâncias históricas e dos imperativos de uma falsa e mal-compreendida caridade.
Na sua opinião, o Papa se sente desconfortável com esse desenvolvimento? Sente necessidade de justificá-lo?
Sem a menor dúvida, o Papa devia estar ciente, desde o princípio, da reação que tal processo provocaria dentro da Igreja. Ele, provavelmente, também estava ciente do fato de que estava abrindo portas que, por mais de dois mil anos, haviam permanecido muito bem fechadas. Mas, para ele, as demandas dos tempos superam quaisquer outras considerações.
É nessa perspectiva que a ideia de “misericórdia” adquire seu valor e escopo completos. Essa ideia de “misericórdia” é onipresente em seus discursos. Ela não é mais a resposta de um Deus de amor, que acolhe o pecador arrependido com braços abertos, para o regenerar e dar-lhe a vida da graça de volta. Ela, agora, é uma misericórdia fatal, que se tornou necessária para satisfazer as necessidades urgentes da humanidade. Daqui em diante, considerados incapazes de respeitar até mesmo a lei natural, os homens têm o direito estrito de receber essa misericórdia, uma espécie de anistia condescendente de um Deus que também se adapta à história, sem dominá-la como antes.
Desse modo, não apenas a fé e a ordem sobrenaturais são abandonados, mas também os princípios morais indispensáveis a uma vida honesta e reta. Isso é assustador, porque significa a renúncia definitiva da cristianização da moral: ao contrário, os católicos, agora, devem adotar a moral do mundo, ou ao menos adaptar – de acordo com o caso concreto – a lei moral à moda atual, incluindo aquela dos casais divorciados “recasados” e mesmo dos casais de mesmo sexo.
Essa misericórdia, portanto, tornou-se uma espécie de panaceia, o fundamento de uma nova evangelização a ser proposta para um século que não pode mais ser convertido e a cristãos aos quais o jugo dos mandamentos não pode mais ser imposto. Dessa maneira, as almas em perigo, ao invés de serem encorajadas e fortalecidas em sua fé, são consoladas e confirmadas em sua situação pecaminosa. Ao agir assim, o guardião da fé revoga até mesmo a ordem natural, o que significa que mais nada sobrou.
O que subjaz esses erros é a ausência total de transcendência ou verticalidade. Não há mais nenhuma referência, mesmo implícita, ao sobrenatural, à nossa vida após esse mundo e, acima de tudo, à obra de Redenção de Nosso Senhor, que, de modo definitivo, deu a todos os homens os meios necessários para sua salvação. A eficácia perene desses meios não é mais pregada, nem mais reconhecida. Eles não acreditam mais neles! Consequentemente, tudo é reduzido a uma visão puramente horizontal e historicista, na qual as contingências prevalecem sobre os princípios, e na qual apenas o bem-estar terreno importa.
Esse "ponto de virada", que o Sr. mencionou, continua consistente com o Concílio Vaticano II, ou já pertence a um Concílio Vaticano III, que não aconteceu?
Há, ao mesmo tempo, continuidade com as premissas estabelecidas no Concílio e superação delas. Isso por uma razão muito simples: com o Concílio Vaticano II, a Igreja quis adaptar-se ao mundo, quis “atualizar-se” com o aggiornamento promovido pelos Papas João XXIII e Paulo VI. Agora, o Papa Francisco continua essa adaptação ao mundo, mas em um sentido novo e extremo: a Igreja, agora, deve adaptar-se aos pecados do mundo – ao menos quando o pecado for “politicamente correto”. O pecado, no entanto, é apresentado como uma expressão autêntica de amor, em todas as formas permitidas na sociedade contemporânea e, portanto, permitidas por um Deus misericordioso. São sempre analisados caso a caso, mas esses casos excepcionais estão destinados a se tornar a norma, como já podemos ver na Alemanha.
Paralelamente a essa aniquilação progressiva da moral tradicional, o Papa Francisco propõe valores a serem promovidos? Ou, para colocar de outra maneira, na sua opinião, sobre que fundamento ele quer construir?
Essa é uma pergunta muito pertinente, à qual o próprio Papa deu a resposta no dia 03 de outubro de 2020, na sua última encíclica Fratelli tutti, onde afirmou que “trata-se, sem dúvida, doutra lógica”; e ele continua, propondo que aceitemos “o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente […] Esse é o verdadeiro caminho da paz”. Isso é o que se chama de uma utopia, e é isso que acontece a todos que se separam de suas raízes. O Santo Padre, rompendo com a Tradição Divina, aspira a uma perfeição ideal e abstrata, totalmente desconectada da realidade.
Reconhecidamente, na mesma passagem, defende sua posição, admitindo que o que diz “parecerá um devaneio”. Ele também especifica a base na qual ele quer justificar sua posição: “o grande princípio dos direitos que brotam do simples fato de possuir a inalienável dignidade humana”. Mas, de modo preciso, a Revelação Divina e a Tradição Católica nos ensinam que a natureza humana e a dignidade humana não são autossuficientes. Como Chesterton diz, “retire o sobrenatural, e o que resta é antinatural”. Sem Deus, a natureza tende a se tornar, na prática, antinatural. Ao chamar e elevar o homem à ordem sobrenatural, Deus ordenou a natureza humana à graça. Portanto, a natureza não pode remover a ordem sobrenatural sem introduzir uma desordem profunda nela mesma. O sonho do Papa Francisco – sua “outra lógica” é profundamente naturalista.
Outro sinal desse caráter utópico, seu sonho toma um escopo universalista: é uma questão de o impor a todos, de maneira autoritária e absoluta. Sendo concebidos de maneira artificial, os sonhos só podem ser impostos de uma maneira artificial...
Mas em que consiste a utopia do Papa Francisco?
Em osmose perfeita com as aspirações do homem moderno, imbuído dos direitos que ele reivindica e separado de suas raízes, ela pode ser resumida em duas ideias: a da ecologia integral e a da fraternidade universal. Não é coincidência que o Papa tenha dedicado suas duas encíclicas chave a esses temas, que, como ele mesmo defende, caracterizam as duas principais partes do seu pontificado.
A ecologia integral de Laudato si (24 de maio de 2015) não é nada mais que uma nova moral proposta para toda a humanidade, deixando de lado a Revelação Divina e, portanto, o Evangelho. Seus princípios são puramente arbitrários e naturalistas. Eles se harmonizam, sem a menor dificuldade, com as aspirações ateístas de uma humanidade que está apaixonada pelo mundo na qual vive, e atolada em preocupações puramente materiais.
E a fraternidade universal de Fratelli tutti, defendida pelo Papa de modo muito solente na Declaração de Abu Dhabi, coassinada pelo Grande Imam de Al-Azhar (04 de fevereiro de 2019), não é nada mais que uma caricatura naturalista da fraternidade cristã, fundada na paternidade divina comum a todos os homens, salvo por Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa fraternidade é, materialmente, idêntica à da Maçonaria, que, ao longo dos últimos dois séculos, não fez nada além de semear ódio, particularmente contra a Igreja Católica, em um desejo feroz de suplantar a única verdadeira fraternidade entre os homens possível.
Não é apenas a negação da ordem sobrenatural, reduzindo a Igreja Católica às dimensões de uma ONG filantrópica, mas também é uma falta de compreensão das feridas do pecado original e o esquecimento da necessidade da graça para restaurar a natureza decaída e para promover a paz entre os homens.
Nesse contexto, como pode o papel da Igreja ser distinguido do papel da sociedade civil?
Hoje, a Igreja Católica oferece a imagem de um poder sacerdotal a serviço do mundo contemporâneo e de suas necessidades sociopolíticas… Porém, esse sacerdócio não é mais dedicado à cristianização das instituições ou à reforma da moral, que se tornaram pagãos novamente. É um sacerdócio tragicamente humano, sem qualquer dimensão sobrenatural. Paradoxalmente, a sociedade civil e a Igreja, portanto, encontram-se, como no apogeu do Cristianismo, unidos, lutando lado a lado por objetivos comuns… Mas, dessa vez, é a sociedade secularizada que sugere e impõe suas visões e ideais à Igreja. Isso é verdadeiramente assustador: o humanitarismo secular tornou-se a luz da Igreja e o sal que lhe dá seu sabor. A debandada doutrinal e moral dos últimos anos é um bom exemplo do complexo de inferioridade que os homens da Igreja mantêm em relação ao mundo moderno.
E, ainda assim – esse é o mistério de nossa fé e, também, nossa esperança – a Igreja é Santa! Ela é Divina! Ela é Eterna! Apesar dos sofrimentos da hora presente, sua vida interior, em todas as suas dimensões mais elevadas, é, certamente, de uma beleza que delicia a Deus e aos anjos. Hoje, como em todos os tempos, a Igreja Católica dispõe completamente de todos os meios necessários para guiar e santificar as almas!
Na sua opinião, como a Igreja pode livrar-se desses erros e regenerar-se?
Primeiramente, devemos rejeitar todas as utopias e voltar à realidade, um retorno aos fundamentos da Igreja Católica. Podemos identificar três pontos chave que a Igreja deve recuperar e começar a pregar novamente, de maneira direta, sem qualquer concessão ou transigência: a existência do pecado original e de seus efeitos (que são a concupiscência tripla de que São João fala em sua primeira Epístola) – e isso é contrário a toda forma de ingenuidade naturalista; a necessidade da graça, fruto da Redenção, que é o único remédio – porém um remédio todo-poderoso – para triunfar sobre aqueles efeitos devastadores; e a transcendência dum fim último que não está nessa terra, mas no Céu.
Pregar isso novamente seria o princípio de “confirmar vossos irmãos”. A verdadeira fé católica seria, novamente, proclamada. É a condição necessária para qualquer vida sobrenatural. É, também, o guardião indispensável da lei natural, que também é divina, eterna e imutável em sua origem, o fundamento necessário para levar o homem à sua perfeição.
Esses três conceitos podem ser resumidos em um único ideal: o de Cristo Rei. Ele é a essência de nossa fé. Ele é o autor de toda a graça. Ele é o autor dessa lei natural que Ele insculpiu nos corações de todos os homens quando Ele os criou. O legislador divino não muda. Ele não renuncia a Sua autoridade. Assim como essa lei não pode ser alterada sem se alterar a própria fé, ela também não pode ser restaurada, sem restaurar ao divino legislador a honra que Lhe é devida.
Para colocar de maneira mais simples, não devemos nos render ao mundo, mas “render todas as coisas a Cristo”. É em Cristo Rei e através de Cristo Rei que a Igreja Católica tem todos os meios para vencer o mundo, cujo príncipe é o pai das mentiras. Através da Cruz, Ele já o venceu de uma vez por todas: “Eu venci o mundo”.
O Sr. acha que a Bem-Aventurada Virgem Maria terá um papel especial nessa vitória?
Como essa vitória é uma vitória de Cristo Rei, ela, necessariamente, também será de Sua Santa Mãe. Nossa Senhora é sistematicamente ligada a todas as batalhas e a todas as vitórias de seu Filho. Ela, certamente, estará ligada a essa de um modo muito especial, porque jamais antes houve um triunfo de erros tão sutis e perniciosos, que causaram uma devastação tão generalizada e profunda na vida concreta dos católicos. A prova disso é que, entre os títulos mais belos que a Igreja dá a Nossa Senhora, estão aqueles de “Destruidora de todas as heresias” - ela esmaga a cabeça daqueles que as concebem – e de “Auxílio dos cristãos”. Quanto mais a vitória de um erro parecer definitiva, mais gloriosa será a vitória da Bem-Aventurada Virgem Maria.
Essa entrevista ocorreu em Menzingen, no dia 12 de março de 2021,
Festa de São Gregório Magno, Papa
Carta aos amigos e colaboradores da FSSPX Nº90
Meus caros fiéis, amigos e colaboradores,
Atualmente, estamos vivendo um momento fora do comum, quase sem precedentes na História, em razão da crise do coronavírus e de suas repercussões. Em uma situação como essa, mil perguntas surgem, às quais poderia haver mil respostas ou mais. Seria utópico desejar dar uma solução a cada problema em particular, e esse não é o propósito dessas breves considerações. Em vez, gostaríamos de analisar, aqui, um risco que, de certa maneira, é mais grave do que todos os males que afligem a humanidade atualmente: é o risco que correm os católicos de reagir de modo excessivamente humano à punição que, atualmente, aflige nosso mundo, que se tornou pagão mais uma vez pela sua apostasia.
Por várias décadas, estávamos esperando um castigo divino ou algum tipo de intervenção providencial para remediar uma situação que parecia perdida há muito tempo. Alguns imaginavam uma guerra nuclear, outros, uma nova onda de pobreza, um desastre, uma invasão comunista, uma crise do petróleo etc. Em suma, poderíamos esperar algum evento providencial através do qual Deus iria punir o pecado de apostasia de nossos países e causar uma reação saudável naqueles que tivessem boas intenções. De qualquer modo, esperávamos algo que tornaria as coisas mais claras de se perceberem. Mas, enquanto esse algo não tomou a forma que esperávamos, os problemas atuais, sem sombra de dúvidas, desempenham esse papel revelador.
O que está havendo nessa crise? Tentemos analisar as emoções que estão conquistando os corações de nossos contemporâneos e, acima de tudo, tentemos examinar se nossas próprias disposições, enquanto católicos, conseguem fazer jus à nossa fé.
Temores excessivamente humanos
Para colocar de maneira simples, encontramos três tipos de temores que, hoje, estão entrelaçados em quase todo ser humano e que consomem todas as suas energias.
Primeiramente, há o medo da epidemia enquanto tal. Não é uma questão de discutir, aqui, a nocividade do coronavírus. Mas o que é certo é que nosso mundo sem Deus está apegado à vida mortal como a um bem absoluto, ante o qual todas as considerações devem reverência e se tornam irrelevantes. Consequente e inevitavelmente, esse ponto de vista distorcido gera uma ansiedade universal e incontrolável. O mundo inteiro parece estar enlouquecendo. Hipnotizados pelo perigo que ameaça a prioridade das prioridades, literalmente em pânico, todos parecem estar fundamentalmente incapazes de pensar em outras questões, ou de elevar-se acima da situação que está diante deles.
Depois, há o problema da crise econômica. É perfeitamente normal que um pai esteja preocupado com o futuro de seus filhos, e Deus sabe muito bem que, naquele momento, há várias preocupações legítimas com as quais se deve lidar. Mas estou me referindo ao medo mais geral e, em última instância, mais egoísta de se tornar um pouco mais pobre e de não ser mais possível gozar o que, antes, era considerado como uma garantia e direito intocável. Essa percepção está diretamente ligada à anterior: pois, se a vida terrena é o bem supremo, as riquezas que nos permitem gozá-la mais, ou o quanto possível, também se tornam, por força das circunstâncias, um bem supremo.
A tudo isso, finalmente, soma-se o calvário da perda das liberdades individuais, que os homens gozavam até agora. Nunca antes se soube tanto sobre “direitos humanos”.
A análise desse temor de três cabeças e de tudo que está relacionado com ele poderia ser longamente desenvolvida. Digamos, apenas, que sua base comum é fundamentalmente natural, puramente humana, e que eles poderiam ser resumidos no receio de que nada vai ser como era antes da crise: esse “antes”, erronea e universalmente, considerado como um bem-estar ideal e inalienável, que a humanidade iluminada havia, gloriosamente, conquistado.
Porém, se analisarmos esse temor e o comportamento que ele causa a fundo, paradoxalmente encontramos subterfúgios semelhantes aqueles usados pelos pagãos antigos para explicar qualquer fenômeno fora do seu controle. Aquele mundo antigo, certamente culto, civilizado e organizado, mas infelizmente ignorante da Verdade, recorria a monstros, deuses de todos os gêneros e, acima de tudo, a mitos para explicar o que não conseguia compreender. Hoje, estamos testemunhando reações semelhantes: face ao medo, face à incerteza do futuro, uma série de explicações surgem, que vão em todas as direções, sistematicamente contraditórias umas em relação às outras, sem nunca chegar a lugar algum. Sua inconsistência é evidente pelo fato de que vão sendo continuamente substituídas, dentro de poucas horas ou semanas, por outras explicações que são mais demandadas, mais refinadas, aparentemente mais convincentes, mas não necessariamente verdadeiras. Estamos vendo verdadeiros mitos, nos quais elementos reais se misturam a histórias fictícias. E vemos um clamor enorme por uma solução miraculosa, uma solução utópica, capaz de, repentinamente, dispersar a grossa névoa e resolver todos os nossos problemas.
É um pouco como o grito antigo de confusão, ânsia e desespero, que reaparece, após dois mil anos, em uma humanidade que se tornou pagã novamente. E não poderia ser de outra maneira: ele deixa escancarado, para todos aqueles que podem ver, como essa humanidade sem Deus está indefesa e condenada à loucura. Acima de tudo, é extraordinário constatar que o homem moderno, que perdeu sua fé e, portanto, não crê mais, está tão apto a crer em qualquer coisa sem discernimento algum.
Nossa esperança está firmemente fincada no Céu
Mas nós mesmos estamos completamente imunes a esse espírito? É claro, os três temores que mencionamos são compreensíveis, e até legítimos em certo grau. O que não é legítimo é deixar que esses temores evitem e sufoquem considerações sobrenaturais e, pior ainda, que arruinem a possibilidade de se beneficiar desse calvário.
Afinal de contas, não esqueçamos que só permaneceremos na realidade e na verdade se encararmos essa situação através dos olhos de nossa fé: nada foge de Deus e de Sua Divina Providência. É certo que, acima e além dos acontecimentos que nos atacam, Deus tem um plano. E que lembrar as pessoas de sua condição mortal e da fragilidade de seus projetos pertence a esse plano.
Deus, em primeiro lugar, mostra ao homem contemporâneo, envenenado pelo positivismo (a negação da ordem divina), que as obras da natureza ao seu redor são Sua obra e que elas obedecem a Suas leis. Deus força o Prometeu moderno, inebriado de transhumanismo (a negação dos limites do homem), a entender que a natureza que Ele criou escapa da técnica e do controle das ciências do homem. Essa é uma lição extremamente necessária, especialmente hoje. Devemos fazer dela nosso tesouro, nosso mais precioso tesouro, tanto mais que o homem moderno, cego pelo seu sonho de poder absoluto, tornou-se incapaz de compreendê-la. Também devemos encontrar nela novos incentivos para adorar a grandeza de Deus e para viver intimamente dependentes d´Ele.
Mais concretamente, o que nos diz Nosso Senhor, Ele, a quem nada escapa e que planejou tudo com antecedência? “Por que temeis, homens de pouca fé? Não credes que eu sou verdadeiramente Deus? Que sou verdadeiramente onipotente? Que governo todas as coisas em minha sabedoria e bondade? Há um único fio de cabelo em vossas cabeças que cai sem meu conhecimento e sem minha permissão? Não sou eu o mestre da vida e da morte? Pensais que um vírus pode existir sem mim? Que governos podem fazer leis ignorando que sou o mestre supremo? Dizei-me: qual a pior coisa que pode suceder a vós durante essa tempestade, se estou com vós no barco?”
O problema todo reside nas respostas que conseguimos dar a essas perguntas. Nosso Senhor está mesmo no barco, ou seja, nas nossas almas? Se sim, estamos realmente olhando para as coisas através da nossa fé, que nos permite interpretar cada evento em nossa vida diária sob a luz da fé? Temos confiança total n´Ele, mesmo quando não compreendemos bem o que está havendo? As respostas eternas de nossa fé católica são suficientes para nós? Ou nós sentimos necessidade de as ignorar em detrimento dessas respostas constantemente atualizadas que encontramos na internet? Enquanto os meses passaram, nossa confiança em Jesus Cristo, Nosso Senhor, aumentou? Ou nosso ensimesmamento e nosso sentimento de falta de esperança aumentaram? Cada um de nós deve responder a essas questões sinceramente e de boa fé.
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Também há alguns entre nós que temem, além da epidemia em si, o início de uma perseguição religiosa de longo prazo e, em particular, contra os católicos. É compreensível que essa questão surja, porque sabemos que o mundo nos odeia, e que, cedo ou tarde, isso vai acontecer: seja em razão da epidemia ou independentemente dela. Nós não poderemos escapar disso. Essa é uma verdade evangélica, que antecede qualquer predição atual. Nosso Senhor nos avisou: “Quando ouvirdes falar de guerras e de tumultos […] Levantar-se-á nação contra nação e reino contra reino. Haverá grandes terremotos por várias partes, pestes e fomes […] Lançar-vos-ão as mãos e vos perseguirão, entregando-vos nas sinagogas, nas prisões e vos levarão à presença dos reis e dos governadores por causa do meu nome” (Lc 21,9)
Mas, aqui, também, nossos medos devem ser banhados na tranquilizante luz da nossa fé: “Não temais”. Tendo sido avisados disso por muito tempo, devemos nos preparar para isso serenamente, entregando-nos, sem reservas, às mãos da Divina Providência e sem procurar, desesperadamente, uma maneira de fugir. Lembremo-nos dos cristãos dos primeiros séculos, vivendo sob perseguições: aqueles que olhavam para os algozes, os instrumentos da tortura ou as feras selvagens, esquecendo-se do amor de Deus, que os chamava a juntarem-se a Ele, não viam nada além de perigo, dor e medo… e terminavam apostatando. Eles tinham todas as informações de que precisavam, mas sua fé não era forte o suficiente, e não havia sido nutrida pela oração ardente: “Velai, pois, sobre vós, para que não suceda que os vossos corações se tornem pesados com as demasias do comer e do beber e com os cuidados desta vida, e para que aquele dia vos não apanhe de improviso; porque ele virá como um laço sobre todos os que habitam sobre a face de toda a terra. Vigiai, pois, orando sem cessar (Lc 21,34)
E Nosso Senhor também nos avisou: “Não é o servo maior do que o senhor. Se eles me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós”. Em todas as tribulações, há o segredo e precioso dom de nos enxergarmos remodelados, para nos tornarmos mais como nosso Divino Salvador, nosso modelo, e, portanto, aptos a “completar em nossa carne o que falta aos sofrimentos de Cristo”
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Também há uma reflexão final que pode nos ajudar a manter-nos na realidade e deixar o problema do coronavírus no seu devido lugar. Paralelamente a essa crise presente, a Igreja Católica está atravessando uma crise muito mais terrível e devastadora, que nos afeta cada vez mais. Ai de nós se não fosse assim, porque seria sinal de que nós não enxergamos mais com os olhos de nossa fé! Essa outra crise é, de fato, muito mais mortífera, porque aqueles que perderam sua fé por causa dela correm o risco de perder suas almas para sempre. A isso, infelizmente, na presente situação, acrescenta-se a total ausência de uma mensagem sobrenatural da hierarquia da Igreja sobre as consequências do pecado, da necessidade de penitência, do amor da cruz e da preparação para a morte e do julgamento que aguarda todos os homens. É, verdadeiramente, uma catástrofe dentro da catástrofe!
Quanto a nós, não percamos nossa esperança, que não se baseia nem nos nossos esforços ou habilidades, nem nas nossas análises – por mais pertinentes que possam ser – mas nos méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a Ele que sempre devemos recorrer, especialmente quando estamos sobrecarregados e fatigados sob o peso de nosso jugo. Fazer isso, especialmente para nós que O conhecemos, é um dever de caridade em relação àqueles que vivem em uma trágica ignorância dessa realidade reconfortante. Se realmente queremos ser apóstolos para nosso próximo, nessas horas privilegiadas, o apostolado mais apropriado e eficiente é o da confiança ilimitada na Divina Providência. Essa é uma maneira exclusivamente cristã de carregar nossa cruz e de manter a esperança. Nosso desejo de retornar à “normalidade” deve ser, antes de tudo, um desejo de recuperar inteiramente essa confiança, nutrida pela fé, esperança e caridade.
Para obter essas preciosas graças, intensifiquemos nosso fervor – pais e filhos – na nossa Cruzada de Rosários, que nos aproxima e une, para que nossa oração ardente possa se transformar em um brado passional ao qual Deus não resistir: pela a Missa; pelas vocações; pelo mundo e a Igreja; e pelo triunfo da Bem-Aventurada Virgem Maria.
Esse é o verdadeiro caminho para sair da atual crise, sem necessidade de aguardar o fim da pandemia!
“Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? A tribulação? Ou a angústia? Ou a fome? Ou a nudez? Ou o perigo? Ou a perseguição? Ou a espada? […] De todas essas coisas saímos mais que vencedores por aquele que nos amou. Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor”.
Que Deus os abençoe!
Menzingen, 02 de fevereiro de 2021
Na Festa da Purificação da Bem-Aventurada Virgem Maria
Dom Davide Pagliarani, Superior Geral.
Don Davide Pagliarani, Superior Geral
1. QUE REPRESENTA PARA A TRADIÇÃO O 50o ANIVERSÁRIO DA FSSPX?
Em primeiro lugar, este jubileu é ocasião de agradecer à Providência por tudo o que nos concedeu durante esses cinquenta anos, porque uma obra que não fosse de Deus não teria resistido à prova do tempo. Antes de tudo, devemos atribuir tudo isso a Deus.
Mas também e sobretudo, este jubileu é uma oportunidade para reavivarmos o nosso ideal de fidelidade ao que recebemos. Na verdade, depois de tantos anos, pode haver uma fadiga compreensível. Trata-se, portanto, de reavivar o nosso fervor na luta pelo estabelecimento do reino de Cristo Rei: que Ele reine primeiro nas nossas almas e em seguida ao nosso redor. É neste ponto particular que devemos trabalhar, seguindo Dom Marcel Lefebvre.
2. POR QUE, NA SUA OPINIÃO, O LEGADO QUE DOM MARCEL LEFEBVRE NOS DEIXOU SE RESUME NO DESEJO DE INSTAURAR O REINADO DE CRISTO?
A resposta me parece muito simples: é o amor de Nosso Senhor como Rei que fez do Arcebispo Lefebvre um santo prelado e um grande missionário, procurando apaixonadamente estender ao seu redor o reinado daquele que reinava em sua alma. É este amor que o levou a denunciar com veemência todos os que se opunham a ele. Ora, o santo Sacrifício da Missa é o meio por excelência para estender este reino e lutar contra seus inimigos. A voz de Dom Marcel Lefebvre tremia de emoção ao pronunciar estas belas palavras da liturgia, que resumem tanto o seu amor pela Missa como por Cristo Rei: “Regnavit a ligno Deus” (hino Vexilla Regis), Deus reina pelo madeiro da Cruz. Numa carta que escreveu pouco antes de sua morte a um ex-confrade de sua congregação original, o Arcebispo fez questão de dizer que, ao longo de sua vida, nunca havia trabalhado por outra coisa que não o reinado de Nosso Senhor. Isso resume tudo o que ele foi e tudo o que nos legou.
3. NESTE 24 DE SETEMBRO, POR SUA SOLICITAÇÃO, O CORPO DE DOM MARCEL LEFEBVRE FOI TRANSFERIDO PARA A CRIPTA DA IGREJA DO SEMINÁRIO DE ECÔNE. APESAR DA CRISE DO CORONAVIRUS, MUITOS SACERDOTES, SEMINARISTAS, RELIGIOSOS E FIÉIS PARTICIPARAM DA CERIMÔNIA. COMO FOI A EXPERIÊNCIA DESTE DIA?
Esta transferência fora solicitada no último Capítulo Geral, em 2018, e estou muito feliz que tenha se concretizado no espaço de dois anos. Embora caiba somente à Igreja canonizar um dia Dom Marcel Lefebvre, creio que ele já merece toda a nossa veneração, e uma sepultura digna de um santo bispo. Neste ano jubilar, este gesto quer ser a expressão da gratidão de todos os membros da FSSPX por aquele que a Providência suscitou como instrumento para salvaguardar a Tradição da Igreja, a Fé, a Santa Missa e para nos transmitir todos esses tesouros. O fato de tornar a ver, depois de trinta anos, o caixão de nosso fundador, e de ver nossos padres carregando-o nos ombros como no dia do seu funeral, foi particularmente comovente. Vi antigos confrades comovidos até as lágrimas.
4. QUANDO A FRATERNIDADE SACERDOTAL SÃO PIO X FOI FUNDADA, A MÍDIA DESCREVEU-A COMO UM "FENÔMENO FRANCÊS", DESTINADO A UMA EXISTÊNCIA MERAMENTE LOCAL. HOJE, A FSSPX É UMA COMUNIDADE GLOBAL. O QUE ISSO SIGNIFICA PARA SUA ADMINISTRAÇÃO?
Isso significa que a Casa Geral precisa coordenar as mais diversas situações. A própria tradição foi redescoberta em diferentes países, por meios diversos e de acordo com sensibilidades distintas. Isso explica o porquê da FSSPX não ter se desenvolvido da mesma maneira em todos os lugares ou ao mesmo tempo. Não é preciso dizer que uma obra de tal magnitude como a da FSSPX, com todas as suas facetas, não é administrada apenas pelo Superior Geral: ele é auxiliado nesta tarefa pelos Superiores maiores, que trabalham em países diferentes.
Mas a grande diversidade de situações não deve nos fazer subestimar o fato de que a unidade da FSSPX é baseada em um ideal e princípios comuns a todos os membros e a todos os fiéis sem distinção. Esta unidade é a nossa força, apesar das diferenças legítimas e inevitáveis. Além disso, por ser a FSSPX uma obra da Igreja, ela deve, de certa forma, reproduzir a capacidade da Igreja de oferecer aos fiéis de todo o mundo os mesmos princípios e a mesma fé, em que pese as suas diferenças.
5. APÓS DOIS ANOS À FRENTE DA FSSPX, QUE JULGAMENTO O SENHOR FAZ SOBRE O SEU DESENVOLVIMENTO?
A FSSPX existe há muito tempo no mundo. Não creio que a Providência nos peça nesse momento abrimos novas casas e ampliarmos mais, o que seria talvez da nossa parte uma falta de prudência. Em vez disso, julgo que a Fraternidade precisa se enraizar mais profundamente onde já está presente, a fim de ter comunidades mais fortes; sobretudo para que os jovens sacerdotes tenham tempo para amadurecer e completar a sua formação, o que nos permitirá prepará-los para diferentes responsabilidades, em particular, para a tarefa de prior, para que um dia sejam verdadeiros pais para os seus confrades e para as almas confiadas aos seus cuidados.
6. O SENHOR CONHECE TODOS OS PAÍSES ONDE A FRATERNIDADE ESTÁ PRESENTE? COMO O “TESOURO DA TRADIÇÃO”, DO QUAL O SENHOR FALOU APÓS SUA ELEIÇÃO, É COMUNICADO PELA FRATERNIDADE NO CONTEXTO ATUAL?
Devido ao Covid-19, existem alguns distritos que ainda não pude visitar, pelo que sinto muito. Este "tesouro" é comunicado pelos sacerdotes da Fraternidade em situações que necessariamente diferem entre si, mas que sempre permitem que os sacerdotes demonstrem um verdadeiro zelo. A este respeito, fiquei muito edificado com a inventividade dos nossos confrades, que, na medida do possível, encontraram soluções muito engenhosas para administrar os sacramentos durante o confinamento. Acima de tudo, alguns de nossos padres permaneceram isolados por vários meses em lugares onde a comunicação com outros padres se tornou impossível. Foi grande o seu mérito e gostaria de felicitá-los.
Ao mesmo tempo, também fui tocado pelas reações de nossos fiéis, que demonstraram muito desejo de receber os sacramentos, não pouparam esforços e fizeram sacrifícios consideráveis para demonstrar seu amor por Nosso Senhor. Essa crise certamente nos ajudou a sair da rotina e valorizar mais todos os tesouros que costumamos desfrutar.
Além disso, muitos católicos, que até agora nos observavam de longe, foram atraídos às nossas capelas, porque era para eles a única possibilidade de acesso aos sacramentos. Este é um fenômeno bastante difundido e todas essas almas demonstram grande gratidão à FSSPX.
7. QUAIS SÃO OS PROJETOS ATUAIS OU FUTUROS?
Por enquanto, os projetos são principalmente de natureza moral e, portanto, não são necessariamente projetos que possam ser constatados externamente. Em suma, trata-se de continuar a trabalhar o máximo possível para tornar a Fraternidade forte, unida, verdadeiramente ancorada em Deus, fiel à graça que a sustenta e, ouso dizer, sólida como um exército em linha, capaz de defender, com todos os meios à sua disposição, os tesouros que Deus lhe confiou e atacar aquilo que se lhe opõe; capaz, finalmente, como um exército digno desse nome, de lidar com os mais fracos de seus membros, os feridos, os desanimados e os que se encontram sob alguma provação.
8. O SENHOR É O QUARTO SUPERIOR GERAL DA FRATERNIDADE SÃO PIO X, APÓS DOM MARCEL LEFEBVRE, FRANZ SCHMIDBERGER E DOM BERNARD FELLAY. O SEU ESTILO DE GOVERNO DIFERE DO DELES?
Acho que cada personalidade é inevitavelmente diferente, e por isso traz uma experiência diferente. Além disso, cada época da história da Fraternidade é diferente, pois, depois de cinquenta anos, as circunstâncias e as pessoas não são as mesmas.
Dito isso, a Fraternidade foi sempre fiel ao que Dom Marcel Lefebvre ensinou e nos legou: salvaguardar a herança do nosso fundador e ser fiel ao seu espírito, essa é a principal preocupação de qualquer Superior Geral, seja ele quem for, e qualquer que seja sua personalidade. Por outro lado, a continuidade também é garantida pelo fato de que todo Superior Geral visa o mesmo fim: a salvaguarda do sacerdócio católico e da Tradição da Igreja, para o serviço das almas e da própria Igreja. Esta é uma realidade que transcende as diferenças de estilos e que permite que a necessária renovação dos superiores não seja uma ameaça à estabilidade da obra.
De minha parte, manter esta continuidade é um pouco mais fácil uma vez que tenho o privilégio inestimável de contar com o apoio de meus dois predecessores, Dom Fellay e Padre Schmidberger, eleitos conselheiros do Superior Geral no capítulo anterior. Para mim, não se trata de uma eleição puramente formal, para a realização de tarefas administrativas, mas a feliz possibilidade de apoiar-se em dois ex-superiores gerais, que conheceram bem o Fundador e a vida da Fraternidade durante décadas, dedicando-se ao seu serviço e merecendo hoje a mais elevada estima. Em particular, tive a alegria de contar com os valiosos conselhos de Dom Bernard Fellay, que continuou a residir na Casa geral durante dois anos. Pude admirar nesta ocasião uma grande disponibilidade para ajudar, aliada a uma notável discrição. A presença dos meus dois predecessores, portanto, compensa um pouco aquilo que definitivamente me faltaria se eles não estivessem lá.
9. OS ESTATUTOS DA FRATERNIDADE DÃO AO GERAL SUPERIOR DOIS OBJETIVOS ESPIRITUAIS: “1) Fazer tudo para manter, entreter e aumentar ´no coração dos membros uma grande generosidade, um profundo espírito de Fé e um zelo fervoroso no serviço da Igreja e das almas´; 2) ajudar os membros ´a não caírem na tibieza e fazerem concessões ao espírito do tempo´”. COMO O SENHOR PRETENDE ATINGIR ESSES OBJETIVOS?
O Superior Geral deve, antes de tudo, lembrar-se de que não poderá alcançar esses objetivos sem a obra da graça. Ele estaria errado se julgasse ser capaz de conseguir isso por meio de textos, lembretes ou outras medidas puramente exortativas.
Quanto a mim, estou profundamente convencido de que a chave da nossa fidelidade a estes objetivos está na virtude da pobreza. De fato, com o tempo, é inevitável que os membros da Fraternidade corram o risco de "se instalar" num certo conforto e permitir, desta forma, que o espírito do mundo se infiltre imperceptivelmente em nossas comunidades. Se isso acontecesse, acabaria repercutindo na generosidade dos membros e, portanto, na fecundidade de seu zelo apostólico.
10. O PARÁGRAFO IV DOS ESTATUTOS PREVÊ: “Assim que a Fraternidade poussuir casas em dioceses distintas, adotará as medidas necessárias a fim de obter o Estatuto de Instituto de Direito Pontifício”. ISSO CONDUZ À SEGUINTE PERGUNTA: COMO PODEMOS CUMPRIR ESSE DESEJO DE NOSSO VENERADO FUNDADOR EM FACE DA ATUAL CRISE DA IGREJA?
Os Estatutos da Fraternidade foram aprovados em 1970 a nível diocesano. Era normal que nosso Fundador já tivesse em mente uma aprovação a nível superior, uma vez que a Fraternidade estava destinada a se expandir por todo o mundo.
No entanto, como todos sabem, apesar de todos os seus esforços nessa direção, o Arcebispo, ao invés de receber uma aprovação de direito pontifício, sofreu em 1975 uma supressão pura e simples da Fraternidade São Pio X. Desde então, os Superiores da Fraternidade, a começar pelo próprio Dom Marcel Lefebvre, pensaram em soluções, mas essas têm se chocado sistematicamente com exigências doutrinais inaceitáveis por parte da Santa Sé. Certamente, essas exigências teriam permitido o reconhecimento canônico da Fraternidade, mas, ao mesmo tempo, teriam destruído seu valor moral. Assim, para dar o exemplo mais recente, quando a Congregação para a Doutrina da Fé, em 2017, quis exigir que a FSSPX aceitasse os ensinamentos do Concílio Vaticano II e reconhecesse a legitimidade da nova Missa: se a FSSPX tivesse aceitado as condições impostas naquela época, ela simplesmente teria se negado a si mesma, teria negado aquilo a que está apegada com todas as fibras do seu ser.
Portanto, parece-me que, como sempre foi a conduta de nosso fundador, convém seguir a Providência e não precedê-la.
11. OS CONTATOS COM O VATICANO CONTINUARÃO ESTAGNADOS?
Não depende da Fraternidade, nem de seu Superior Geral. O próprio Vaticano preferiu no momento não retomar as discussões doutrinárias, que a Fraternidade propôs para melhor expor sua posição e mostrar sua adesão à Fé católica e à Sé de Pedro.
O que é surpreendente é que o Vaticano nos pede ao mesmo tempo que regularizemos nossa situação canônica: isso cria uma situação inextricável e intrinsecamente contraditória, uma vez que a possibilidade de um reconhecimento canônico da Fraternidade São Pio X está constantemente sujeito a pré-requisitos doutrinários que permanecem absolutamente inaceitáveis para nós.
Acrescentaria que, quaisquer que sejam as opiniões pessoais sobre este assunto, é importante ter o cuidado de não se preocupar de forma quase obsessiva com questões tão delicadas, como às vezes acontece. Devemos recordar que, assim como a Providência nos orientou e nos assistiu desde a nossa fundação, também, a seu tempo, não deixará de nos dar sinais suficientes e proporcionados que nos permitirão tomar as decisões que as circunstâncias exigem. Esses sinais serão tais que sua evidência será facilmente perceptível pela Fraternidade, e a vontade da Providência se deixará perceber claramente.
12. NESTE ANO DE 2020, A CRISE RELACIONADA À COVID-19 TAMBÉM AFETOU A IGREJA E CONDICIONOU SUAS ATIVIDADES. COMO O SENHOR VÊ ISSO?
É interessante notar que, com a crise do Coronavirus, a hierarquia eclesiástica perdeu uma oportunidade de ouro para mover as almas para a verdadeira conversão e penitência, o que é sempre muito mais fácil quando os homens redescobrem de alguma forma a sua natureza mortal. Além disso, teria sido a ocasião de lembrar à humanidade, tomada de pânico e desespero, que Nosso Senhor é "a Ressurreição e a Vida".
Ao invés disso, a hierarquia preferiu interpretar a epidemia de forma ecológica, em perfeita coerência com os princípios caros ao Papa Francisco. Desse modo, o Covid-19 seria tão-somente o sinal de rebelião da Terra contra a humanidade, que abusou da exploração desmensurada dos seus recursos, da poluição das águas, da destruição das florestas etc. Isso é lamentável e incompatível com uma análise em que subsista um mínimo de fé e consciência do que é o pecado, que se mede em relação à majestade ofendida de Deus, e não à poluição da Terra.
Em sua mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação (Jubileu da Terra), 1º de setembro de 2020, o próprio papa nos ensina a que conclusão moral a pandemia deve nos levar:
“De algum modo, a pandemia atual levou-nos a redescobrir estilos de vida mais simples e sustentáveis. [...] Foi possível constatar como a Terra consegue recuperar, se a deixarmos descansar: o ar tornou-se mais puro, as águas mais transparentes, as espécies animais voltaram para muitos lugares donde tinham desaparecido. A pandemia levou-nos para um encruzilhada. Devemos aproveitar este momento decisivo para acabar com atividades e objetivos supérfluos e destrutivos, e cultivar valores, vínculos e projetos criadores...”
Em suma, a crise do Covid-19 nos leva de volta para a “conversão ecológica”, pedra Angular da Encíclica Laudato si ´. Como se a santidade pudesse se resumir no respeito ao planeta.
13. TIVEMOS, NOS ÚLTIMOS DOIS ANOS, O SÍNODO SOBRE A AMAZÔNIA E A DECLARAÇÃO DE ABU DHABI, SOBRE A QUAL O SENHOR REAGIU EM UM COMUNICADO EM 24 DE FEVEREIRO DE 2019. COMO VÊ A SITUAÇÃO ATUAL APÓS TAIS EVENTOS?
Os últimos ensinamentos do Papa Francisco parecem, infelizmente, confirmar definitivamente a direção errada tomada no início de seu reinado. Com efeito, no dia 3 de outubro, o Papa assinou a Encíclica Fratelli tutti, que será supostamente o guia da segunda parte do seu pontificado, assim como Laudato si ' foi o ponto de referência da primeira parte. Esta encíclica é um verdadeiro desenvolvimento da Declaração de Abu Dhabi, Na qual se baseia. É preciso lembrar que esta última pretendia reconhecer a diversidade de religiões como expressão da vontade de Deus, todas elas chamadas a construir a paz. Aqui temos o resultado catastrófico do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, da liberdade religiosa e, acima de tudo, da negação da Realeza universal de Cristo e de seus direitos intangíveis.
É um texto longo que trata de muitos assuntos diferentes, mas possui uma unidade de fundo bastante clara: na verdade, este longo discurso do Papa desenvolve-se de forma ordenada e coerente em torno de uma ideia fundamental, a saber, a ilusão de que possa haver uma verdadeira fraternidade universal mesmo sem qualquer referência, direta ou indireta, a Cristo e sua Igreja. Ou seja, em torno de uma "caridade" puramente natural, uma espécie de filantropia vagamente cristã, à luz da qual se relê o Evangelho. Com efeito, ao lermos esta encíclica, temos a impressão de que é a filantropia que nos dá a chave de interpretação do Evangelho, e não o Evangelho que nos fornece a luz para iluminar os homens. Esta fraternidade universal é, infelizmente, uma ideia de origem liberal, naturalista e maçônica, e é sobre essa utopia apóstata que a sociedade contemporânea se construiu.
14. BISPOS COMO DOM ATHANASIUS SCHNEIDER E DOM CARLO MARIA VIGANÒ SUBLINHARAM A RELAÇÃO DE CAUSA E EFEITO ENTRE O CONCÍLIO VATICANO II E A CRISE ATUAL. COMO O SENHOR COMPREENDE O POSICIONAMENTO DESSES PRELADOS? DEVEMOS "CORRIGIR" O CONCÍLIO (SCHNEIDER) OU "ESQUECE-LO" (VIGANÒ)?
Desnecessário dizer que estamos muito contentes com essas reações, pois bispos que não são da FSSPX, nem possuem relação direta com ela, chegam finalmente, por outros meios e por outros caminhos, a conclusões semelhantes às que possuímos e, sobretudo, a conclusões capazes de iluminar e fazer com que muitas almas confusas reflitam. Isso é muito encorajador.
Infelizmente, não creio que possamos “esquecer” o Concílio sic et simpliciter, pois se trata de um acontecimento maior da história, assim como a queda do Império Romano ou a Primeira Guerra Mundial. Em vez disso, ele terá de ser seriamente discutido e, tudo o que contém de incompatível com a fé e a Tradição da Igreja, certamente terá de ser corrigido.
A própria Igreja resolverá a delicada questão da autoridade deste Concílio atípico e bizarro, e decidirá sobre a melhor maneira de corrigi-lo. Mas o certo é que um erro enquanto tal -- e o Concílio contém muitos -- não pode absolutamente ser considerado a voz da Igreja e atribuído a ela: podemos e devemos dizê-lo já. Além disso, os acontecimentos dos últimos anos, desde o pontificado de Bento XVI, mostraram aos homens de boa vontade que qualquer esforço hermenêutico, buscando interpretar o "erro" para fazer dele "uma verdade mal compreendida", não pode senão falhar miseravelmente. É um beco sem saída no qual, no qual é vão ingressar.
15. O JUÍZO DE DOM MARCEL LEFEBVRE SOBRE O CONCÍLIO E AS REFORMAS PÓS-CONCILIARES EM SEU LIVRO J´ACCUSE LE CONCILE (1976), E EM SUA CARTA AO CARDINAL OTTAVIANI (1966), GUARDAM A SUA ATUALIDADE?
Esse julgamento corresponde à posição que sempre foi, e sempre será, a da Fraternidade São Pio X -- não pode e não vai mudar. Vemos que, quanto mais os eventos se desenrolam, mais eles confirmam esse julgamento e ressaltam a perspicácia excepcional e sobrenatural do nosso fundador.
16. DOM ATHANASIUS SCHNEIDER, EM SEU LIVRO CHRISTUS VINCIT (PP. 152-155 DA EDIÇÃO FRANCESA), RECONHECE QUE SUA POSIÇÃO EM RELAÇÃO AOS ARGUMENTOS DA FRATERNIDADE EVOLUÍRAM POSITIVAMENTE. COMO O SENHOR ANALISA ESTA MUDANÇA? ACREDITA QUE É POSSÍVEL EM OUTROS PRELADOS?
Dom Schneider sempre demonstrou muita boa vontade, fruto de um espírito humilde e intelectualmente honesto. O que mais chama a atenção neste prelado é sua gentileza, combinada com a coragem de falar publicamente em favor da Tradição. Penso que são estas qualidades -- infelizmente muito raras -- que o permitiram seguir o curso que o conduziu às conclusões que hoje conhecemos.
Quanto aos demais prelados, estou convicto de que também eles podem seguir o mesmo percurso, mas apenas na medida em que tenham a mesma liberdade moral e o mesmo amor pela verdade. Certamente é uma intenção de oração para todos nós.
17. A MISSA TRIDENTINA É HOJE CELEBRADA POR OUTRAS COMUNIDADES, QUE NÃO EXISTIAM QUANDO A FRATERNIDADE SACERDOTAL SÃO PIO X FOI FUNDADA. ALÉM DISSO, HÁ SACERDOTES QUE TAMBÉM ESTÃO DESCOBRINDO ESSE RITO. COMO VÊ A EVOLUÇÃO DESSA SITUAÇÃO?
Constatamos que, sobretudo nos últimos anos, certo número de sacerdotes, descobrindo a Missa de todos os tempos, iniciou um itinerário que os levou gradualmente a descobrir a grandeza do seu sacerdócio e, de modo mais geral, o tesouro da Tradição. Este é um desenvolvimento muito interessante, porque é realmente tudo o que a Missa traz. Lembro-me bem do testemunho que recebi um dia de um padre que havia escolhido, não sem encontrar forte oposição, celebrar apenas a Missa Tridentina. Declarou enfaticamente que, ao celebrar esta Missa, foi levado a reconsiderar todo o seu sacerdócio e, consequentemente, tudo o que estava chamado a fazer como sacerdote: pregar, aconselhar às almas, ensinar o catecismo etc. Isso é muito bonito, e só podemos nos alegrar com tal regeneração, que aqui vemos nascer na própria alma do sacerdote.
Dito isto, é imperativo guardar a Missa Tridentina pela razão profunda de que constitui a expressão da nossa fé, em particular na divindade de Nosso Senhor, no seu Sacrifício redentor e, consequentemente, na sua realeza universal. Trata-se de viver a Santa Missa, entrando completamente em todos esses mistérios e, mais particularmente, no mistério de Caridade que ela contém. Tudo isso é incompatível com uma fé ecumênica, morna, centrada no homem; ou com uma apreciação puramente estética das riquezas do rito tridentino, como às vezes se verifica, infelizmente, entre aqueles que se sentem tentados a dissociar o uso do rito tridentino da necessidade de vivê-lo realmente, de penetrá-lo e, sobretudo, de se deixar assimilar por Nosso Senhor e por sua Caridade.
Em última análise, podemos dizê-lo: a própria Missa é esterilizada se não nos leva a viver em Cristo: per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso. De pouco serve se não produz em nós o desejo de imitar a Nosso Senhor pelo dom de nós mesmos. Essa generosidade mostra-se impossível em um contexto imbuído do espírito do mundo, ou sempre inclinado a se comprometer com ele. A fecundidade da Missa será tanto maior quanto as almas forem dispostas por um espírito ardente de sacrifício a doar-se generosamente a Cristo.
18. RECENTEMENTE, A MÍDIA DEU CONSIDERÁVEL REPERCUSSÃO AO ESCANDALO RELACIONADO AO CARDEAL BECCIU. O QUE O SENHOR ACHA ?
Não é preciso dizer que não cabe à FSSPX comentar sobre as responsabilidades uns dos outros neste assunto, ou investigá-lo. Dito isto, como filhos da Igreja, não podemos deixar de lamentar este escândalo que, infelizmente, a atinge e a humilha. Isso nos entristece inevitavelmente, pois a santidade da Igreja é obscurecida por ela. No entanto, devemos lembrar que, infelizmente, escândalos desse tipo sempre existirão na Igreja, e que Deus os permite misteriosamente em sua Sabedoria, para a santificação dos justos. Portanto, seria impróprio ficar escandalizado de forma farisaica, à maneira dos protestantes.
Para ir mais longe, acho importante sublinhar a atenção dispensada pela mídia secular acerca desse assunto. Essa atenção excede a que dedicam a outros acontecimentos da vida da Igreja, ou mesmo a que os imperadores da Idade Média podiam dedicar aos papas de seu tempo. Se lermos nas entrelinhas dos muitos artigos de jornais dedicados a este tema, reconheceremos uma certa complacência, uma satisfação doentia. Parece que o mundo secular não pode desperdiçar tão bela oportunidade de cuspir na face da Noiva de Cristo, a quem ainda juram indiferença. Isso deve nos fazer pensar e, acima de tudo, deve levar à reflexão todos aqueles que vivem sob a ilusão de que hoje a Igreja pode viver em paz diante de um mundo que se tornou efetivamente laico e teoricamente respeitador de todos. É falso. Por detrás da retórica liberal está sempre o desejo de ver a Igreja, não purificada, mas desacreditada e aniquilada. Não há acordo possível com este mundo.
19. COMO A FRATERNIDADE PODE LEVAR REMÉDIO, NA MEDIDA DOS SEUS MEIOS, À CRISE ATUAL?
Em primeiro lugar no nível doutrinário, a Fraternidade está ciente de que não pode abandonar suas posições. Queira ou não, elas constituem um ponto de referência a todos que, na Igreja, procuram a Tradição. É, portanto, em espírito de serviço uns aos outros, e à própria Igreja, que devemos manter a luz fora do alqueire, sem esmorecer.
No nível prático, os membros da Fraternidade devem demonstrar que seu apego ao Santo Sacrifício da Missa é um apego a um mistério de Caridade que deve refletir em toda a Igreja. Isso significa que uma Missa verdadeiramente vivenciada, que nos permite penetrar no mistério da Cruz, é necessariamente apostólica, e sempre nos incitará a buscar o bem do próximo, mesmo dos mais distantes, sem distinção. É uma atitude fundamental, uma disposição moral de benevolência que deve permear todas as nossas ações.
20. O OBJETIVO DA FRATERNIDADE É O SACERDÓCIO CATÓLICO E TUDO RELACIONADO COM ELE. ESSA É A RAZÃO DO SENHOR PREOCUPAR-SE PRINCIPALMENTE COM AS VOCAÇÕES, COM A SANTIFICAÇÃO DOS SACERDOTES E COM A FIDELIDADE À MISSA SE SEMPRE. QUAIS SÃO SUAS PREOCUPAÇÕES ATUAIS?
Eles são exatamente as que acaba de enumerar. Estou persuadido de que, na medida em que conseguirmos cumprir esses três objetivos de todo coração, nos serão dadas, no momento oportuno, as graças e as luzes de que necessitamos para o nosso futuro e para as decisões que teremos que tomar.
Ao perservar o sacerdócio, preservamos o que a FSSPX e a Igreja mais valorizam. Na verdade, cada vocação tem um valor infinito. A vocação é, sem dúvida, a graça mais preciosa que o Bom Deus pode dar a uma alma e à sua Igreja. Portanto, um seminário é o lugar mais sagrado que pode ser imaginado ou encontrado na terra. O Espírito Santo continua a atuar ali, como no Cenáculo, para transformar as almas dos candidatos ao sacerdócio e torná-los apóstolos. Devemos continuar a empenhar todos os nossos esforços nisso e a investir todas nossas energias morais e humanas nesse propósito. Tudo o que construirmos com base no sacerdócio de Nosso Senhor, e para perpetuar o sacerdócio de Nosso Senhor, permanecerá na eternidade.
21. QUE ENCORAJAMENTO O SENHOR DÁ AOS SACERDOTES E FIÉIS PERTENCENTES À TRADIÇÃO?
Gostaria de dizer-lhes que a Providência sempre guiou a Fraternidade e sempre a protegeu em meio a mil dificuldades. Esta mesma Providência, sempre fiel às suas promessas, sempre vigilante e generosa, não irá nos abandonar no futuro, porque deixaria de ser o que é -- o que é impossível, pois Deus permanece sempre o mesmo.
Em outras palavras, após cinquenta anos de existência da FSSPX, nossa confiança está ainda mais enraizada nos inúmeros sinais dessa benevolência manifestada durante todos esses anos.
Mas prefiro deixar a última palavra a Nosso Senhor mesmo: “Não temas, ó pequenino rebanho, porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o (seu) reino.” (Lc 12, 32)
Menzingen, 11 de outubro de 2020,
Festa da Maternidade Divina da BVM