Carta aos amigos e colaboradores da FSSPX Nº90
Meus caros fiéis, amigos e colaboradores,
Atualmente, estamos vivendo um momento fora do comum, quase sem precedentes na História, em razão da crise do coronavírus e de suas repercussões. Em uma situação como essa, mil perguntas surgem, às quais poderia haver mil respostas ou mais. Seria utópico desejar dar uma solução a cada problema em particular, e esse não é o propósito dessas breves considerações. Em vez, gostaríamos de analisar, aqui, um risco que, de certa maneira, é mais grave do que todos os males que afligem a humanidade atualmente: é o risco que correm os católicos de reagir de modo excessivamente humano à punição que, atualmente, aflige nosso mundo, que se tornou pagão mais uma vez pela sua apostasia.
Por várias décadas, estávamos esperando um castigo divino ou algum tipo de intervenção providencial para remediar uma situação que parecia perdida há muito tempo. Alguns imaginavam uma guerra nuclear, outros, uma nova onda de pobreza, um desastre, uma invasão comunista, uma crise do petróleo etc. Em suma, poderíamos esperar algum evento providencial através do qual Deus iria punir o pecado de apostasia de nossos países e causar uma reação saudável naqueles que tivessem boas intenções. De qualquer modo, esperávamos algo que tornaria as coisas mais claras de se perceberem. Mas, enquanto esse algo não tomou a forma que esperávamos, os problemas atuais, sem sombra de dúvidas, desempenham esse papel revelador.
O que está havendo nessa crise? Tentemos analisar as emoções que estão conquistando os corações de nossos contemporâneos e, acima de tudo, tentemos examinar se nossas próprias disposições, enquanto católicos, conseguem fazer jus à nossa fé.
Temores excessivamente humanos
Para colocar de maneira simples, encontramos três tipos de temores que, hoje, estão entrelaçados em quase todo ser humano e que consomem todas as suas energias.
Primeiramente, há o medo da epidemia enquanto tal. Não é uma questão de discutir, aqui, a nocividade do coronavírus. Mas o que é certo é que nosso mundo sem Deus está apegado à vida mortal como a um bem absoluto, ante o qual todas as considerações devem reverência e se tornam irrelevantes. Consequente e inevitavelmente, esse ponto de vista distorcido gera uma ansiedade universal e incontrolável. O mundo inteiro parece estar enlouquecendo. Hipnotizados pelo perigo que ameaça a prioridade das prioridades, literalmente em pânico, todos parecem estar fundamentalmente incapazes de pensar em outras questões, ou de elevar-se acima da situação que está diante deles.
Depois, há o problema da crise econômica. É perfeitamente normal que um pai esteja preocupado com o futuro de seus filhos, e Deus sabe muito bem que, naquele momento, há várias preocupações legítimas com as quais se deve lidar. Mas estou me referindo ao medo mais geral e, em última instância, mais egoísta de se tornar um pouco mais pobre e de não ser mais possível gozar o que, antes, era considerado como uma garantia e direito intocável. Essa percepção está diretamente ligada à anterior: pois, se a vida terrena é o bem supremo, as riquezas que nos permitem gozá-la mais, ou o quanto possível, também se tornam, por força das circunstâncias, um bem supremo.
A tudo isso, finalmente, soma-se o calvário da perda das liberdades individuais, que os homens gozavam até agora. Nunca antes se soube tanto sobre “direitos humanos”.
A análise desse temor de três cabeças e de tudo que está relacionado com ele poderia ser longamente desenvolvida. Digamos, apenas, que sua base comum é fundamentalmente natural, puramente humana, e que eles poderiam ser resumidos no receio de que nada vai ser como era antes da crise: esse “antes”, erronea e universalmente, considerado como um bem-estar ideal e inalienável, que a humanidade iluminada havia, gloriosamente, conquistado.
Porém, se analisarmos esse temor e o comportamento que ele causa a fundo, paradoxalmente encontramos subterfúgios semelhantes aqueles usados pelos pagãos antigos para explicar qualquer fenômeno fora do seu controle. Aquele mundo antigo, certamente culto, civilizado e organizado, mas infelizmente ignorante da Verdade, recorria a monstros, deuses de todos os gêneros e, acima de tudo, a mitos para explicar o que não conseguia compreender. Hoje, estamos testemunhando reações semelhantes: face ao medo, face à incerteza do futuro, uma série de explicações surgem, que vão em todas as direções, sistematicamente contraditórias umas em relação às outras, sem nunca chegar a lugar algum. Sua inconsistência é evidente pelo fato de que vão sendo continuamente substituídas, dentro de poucas horas ou semanas, por outras explicações que são mais demandadas, mais refinadas, aparentemente mais convincentes, mas não necessariamente verdadeiras. Estamos vendo verdadeiros mitos, nos quais elementos reais se misturam a histórias fictícias. E vemos um clamor enorme por uma solução miraculosa, uma solução utópica, capaz de, repentinamente, dispersar a grossa névoa e resolver todos os nossos problemas.
É um pouco como o grito antigo de confusão, ânsia e desespero, que reaparece, após dois mil anos, em uma humanidade que se tornou pagã novamente. E não poderia ser de outra maneira: ele deixa escancarado, para todos aqueles que podem ver, como essa humanidade sem Deus está indefesa e condenada à loucura. Acima de tudo, é extraordinário constatar que o homem moderno, que perdeu sua fé e, portanto, não crê mais, está tão apto a crer em qualquer coisa sem discernimento algum.
Nossa esperança está firmemente fincada no Céu
Mas nós mesmos estamos completamente imunes a esse espírito? É claro, os três temores que mencionamos são compreensíveis, e até legítimos em certo grau. O que não é legítimo é deixar que esses temores evitem e sufoquem considerações sobrenaturais e, pior ainda, que arruinem a possibilidade de se beneficiar desse calvário.
Afinal de contas, não esqueçamos que só permaneceremos na realidade e na verdade se encararmos essa situação através dos olhos de nossa fé: nada foge de Deus e de Sua Divina Providência. É certo que, acima e além dos acontecimentos que nos atacam, Deus tem um plano. E que lembrar as pessoas de sua condição mortal e da fragilidade de seus projetos pertence a esse plano.
Deus, em primeiro lugar, mostra ao homem contemporâneo, envenenado pelo positivismo (a negação da ordem divina), que as obras da natureza ao seu redor são Sua obra e que elas obedecem a Suas leis. Deus força o Prometeu moderno, inebriado de transhumanismo (a negação dos limites do homem), a entender que a natureza que Ele criou escapa da técnica e do controle das ciências do homem. Essa é uma lição extremamente necessária, especialmente hoje. Devemos fazer dela nosso tesouro, nosso mais precioso tesouro, tanto mais que o homem moderno, cego pelo seu sonho de poder absoluto, tornou-se incapaz de compreendê-la. Também devemos encontrar nela novos incentivos para adorar a grandeza de Deus e para viver intimamente dependentes d´Ele.
Mais concretamente, o que nos diz Nosso Senhor, Ele, a quem nada escapa e que planejou tudo com antecedência? “Por que temeis, homens de pouca fé? Não credes que eu sou verdadeiramente Deus? Que sou verdadeiramente onipotente? Que governo todas as coisas em minha sabedoria e bondade? Há um único fio de cabelo em vossas cabeças que cai sem meu conhecimento e sem minha permissão? Não sou eu o mestre da vida e da morte? Pensais que um vírus pode existir sem mim? Que governos podem fazer leis ignorando que sou o mestre supremo? Dizei-me: qual a pior coisa que pode suceder a vós durante essa tempestade, se estou com vós no barco?”
O problema todo reside nas respostas que conseguimos dar a essas perguntas. Nosso Senhor está mesmo no barco, ou seja, nas nossas almas? Se sim, estamos realmente olhando para as coisas através da nossa fé, que nos permite interpretar cada evento em nossa vida diária sob a luz da fé? Temos confiança total n´Ele, mesmo quando não compreendemos bem o que está havendo? As respostas eternas de nossa fé católica são suficientes para nós? Ou nós sentimos necessidade de as ignorar em detrimento dessas respostas constantemente atualizadas que encontramos na internet? Enquanto os meses passaram, nossa confiança em Jesus Cristo, Nosso Senhor, aumentou? Ou nosso ensimesmamento e nosso sentimento de falta de esperança aumentaram? Cada um de nós deve responder a essas questões sinceramente e de boa fé.
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Também há alguns entre nós que temem, além da epidemia em si, o início de uma perseguição religiosa de longo prazo e, em particular, contra os católicos. É compreensível que essa questão surja, porque sabemos que o mundo nos odeia, e que, cedo ou tarde, isso vai acontecer: seja em razão da epidemia ou independentemente dela. Nós não poderemos escapar disso. Essa é uma verdade evangélica, que antecede qualquer predição atual. Nosso Senhor nos avisou: “Quando ouvirdes falar de guerras e de tumultos […] Levantar-se-á nação contra nação e reino contra reino. Haverá grandes terremotos por várias partes, pestes e fomes […] Lançar-vos-ão as mãos e vos perseguirão, entregando-vos nas sinagogas, nas prisões e vos levarão à presença dos reis e dos governadores por causa do meu nome” (Lc 21,9)
Mas, aqui, também, nossos medos devem ser banhados na tranquilizante luz da nossa fé: “Não temais”. Tendo sido avisados disso por muito tempo, devemos nos preparar para isso serenamente, entregando-nos, sem reservas, às mãos da Divina Providência e sem procurar, desesperadamente, uma maneira de fugir. Lembremo-nos dos cristãos dos primeiros séculos, vivendo sob perseguições: aqueles que olhavam para os algozes, os instrumentos da tortura ou as feras selvagens, esquecendo-se do amor de Deus, que os chamava a juntarem-se a Ele, não viam nada além de perigo, dor e medo… e terminavam apostatando. Eles tinham todas as informações de que precisavam, mas sua fé não era forte o suficiente, e não havia sido nutrida pela oração ardente: “Velai, pois, sobre vós, para que não suceda que os vossos corações se tornem pesados com as demasias do comer e do beber e com os cuidados desta vida, e para que aquele dia vos não apanhe de improviso; porque ele virá como um laço sobre todos os que habitam sobre a face de toda a terra. Vigiai, pois, orando sem cessar (Lc 21,34)
E Nosso Senhor também nos avisou: “Não é o servo maior do que o senhor. Se eles me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós”. Em todas as tribulações, há o segredo e precioso dom de nos enxergarmos remodelados, para nos tornarmos mais como nosso Divino Salvador, nosso modelo, e, portanto, aptos a “completar em nossa carne o que falta aos sofrimentos de Cristo”
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Também há uma reflexão final que pode nos ajudar a manter-nos na realidade e deixar o problema do coronavírus no seu devido lugar. Paralelamente a essa crise presente, a Igreja Católica está atravessando uma crise muito mais terrível e devastadora, que nos afeta cada vez mais. Ai de nós se não fosse assim, porque seria sinal de que nós não enxergamos mais com os olhos de nossa fé! Essa outra crise é, de fato, muito mais mortífera, porque aqueles que perderam sua fé por causa dela correm o risco de perder suas almas para sempre. A isso, infelizmente, na presente situação, acrescenta-se a total ausência de uma mensagem sobrenatural da hierarquia da Igreja sobre as consequências do pecado, da necessidade de penitência, do amor da cruz e da preparação para a morte e do julgamento que aguarda todos os homens. É, verdadeiramente, uma catástrofe dentro da catástrofe!
Quanto a nós, não percamos nossa esperança, que não se baseia nem nos nossos esforços ou habilidades, nem nas nossas análises – por mais pertinentes que possam ser – mas nos méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a Ele que sempre devemos recorrer, especialmente quando estamos sobrecarregados e fatigados sob o peso de nosso jugo. Fazer isso, especialmente para nós que O conhecemos, é um dever de caridade em relação àqueles que vivem em uma trágica ignorância dessa realidade reconfortante. Se realmente queremos ser apóstolos para nosso próximo, nessas horas privilegiadas, o apostolado mais apropriado e eficiente é o da confiança ilimitada na Divina Providência. Essa é uma maneira exclusivamente cristã de carregar nossa cruz e de manter a esperança. Nosso desejo de retornar à “normalidade” deve ser, antes de tudo, um desejo de recuperar inteiramente essa confiança, nutrida pela fé, esperança e caridade.
Para obter essas preciosas graças, intensifiquemos nosso fervor – pais e filhos – na nossa Cruzada de Rosários, que nos aproxima e une, para que nossa oração ardente possa se transformar em um brado passional ao qual Deus não resistir: pela a Missa; pelas vocações; pelo mundo e a Igreja; e pelo triunfo da Bem-Aventurada Virgem Maria.
Esse é o verdadeiro caminho para sair da atual crise, sem necessidade de aguardar o fim da pandemia!
“Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? A tribulação? Ou a angústia? Ou a fome? Ou a nudez? Ou o perigo? Ou a perseguição? Ou a espada? […] De todas essas coisas saímos mais que vencedores por aquele que nos amou. Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor”.
Que Deus os abençoe!
Menzingen, 02 de fevereiro de 2021
Na Festa da Purificação da Bem-Aventurada Virgem Maria
Dom Davide Pagliarani, Superior Geral.