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Alegria de ser filho de Deus

Garrigou-Lagrange, O.P.

 

[Nota da Permanência] Quando Garrigou-Lagrange escreveu estas linhas sobre a alegria que é preciso conservar no meio das tribulações, a sua França, “la douce France”, havia sido derrotada e ocupada pelos nazistas. Também a nós se aplicam estas reflexões, que vemos nossa Pátria na iminência de ser saqueada por revolucionários bolivarianos e nossa Igreja invadida por modernistas.

 

 

“Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós,
e para que a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11)

 

As Sagradas Escrituras dizem-nos insistentemente que, nos tempos de provação, o verdadeiro católico deve tanto quanto possível confortar os aflitos, levar-lhes a paz e algo desta alegria divina que ergue os corações e lhes permite seguir viagem contra ventos e marés até o porto da salvação.

Convém, portanto, nas tristezas presentes, falar da alegria de sermos filhos de Deus e do dever de transmitir algo desta alegria aos que não a possuem.

Se, na tristeza comum, a alegria superficial é importuna, irritante, quando não exasperante, a alegria cristã, ao contrário, consola. Esta deveria ser a alegria do domingo, e o domingo a produz de fato quando, pela Missa, pela oração, torna-se verdadeiramente o dia do Senhor; ao contrário, para muitos, pela cessação do trabalho, torna-se o mais triste dos dias, porque não é santificado, porque não passa de um dia de distrações, dedicado a uma alegria puramente exterior, vazia e imbecil, da qual muitos não podem fazer parte, e que fatiga ao invés de repousar. Não sabem mais o que fazer de seu tempo, porque não o dão a Deus; eis uma prova pelo vazio ou em baixo relevo da necessidade de santificar o domingo.

Ao buscarmos tão-somente uma alegria inferior, nos privamos de outra singularmente mais preciosa.

Aprendamos com as Sagradas Escrituras e com os santos o que é a verdadeira alegria espiritual, vejamos como eles a conservaram em meio a sofrimentos, e então saberemos melhor o que fazer para transmiti-la aos demais.

Não se trata em absoluto da procura por consolações sensíveis, nem de sentimentalismo, que é a afetação de um amor que não se possui. O sentimentalismo está para a alegria espiritual da qual falamos como a bijuteria para o diamante.

 

O que é a verdadeira alegria espiritual?

Compreenderemos sua natureza e valor se a compararmos com alegrias legítimas menos elevadas. Experimentamos uma alegria sensível diante de uma bela aurora ou, na primavera, diante do resplendor da natureza. Sentimos uma alegria superior ao considerarmos que somos os filhos de um homem de bem, de uma boa mãe, ao recordarmos as verdadeiras alegrias de uma família unida, alegria de irmãos que se amam, contentes por trabalhar juntos e por viver das mesmas tradições, dos mesmos pensamentos e afetos em vista de uma ação comum, verdadeiramente fecunda. Ainda nesta ordem, a alegria de sermos franceses, em meio às tristezas atuais, e de trabalhar para reerguer nossa pátria. 

A alegria espiritual é de ordem ainda superior; é a alegria de ser filho de Deus pelo batismo, de ser amado por Ele como filho adotivo, que recebeu uma participação em sua vida íntima, e que tende a possuí-lo eternamente. É a alegria de estar na verdade, na verdade divina, de viver dela, de caminhar sob a direção da Providência de Deus, para que Ele reine cada vez mais em nós, no tempo e na eternidade.

Esta alegria espiritual não é precisamente uma virtude, mas fruto ou efeito da mais alta virtude, que é a caridade, ou o amor de Deus e das almas em Deus1.

O amor de Deus nos regozija, em primeiro lugar, porque Deus é Deus, a própria Verdade, a Sabedoria, o Bem infinito, a Bondade suprema, a própria Santidade, a perfeita Beatitude.

O amor de Deus nos regozija de Deus reinar nas almas, na nossa, na do próximo.

A caridade, enfim, nos faz possuirmos já a Deus na obscuridade da fé, pois está escrito: “quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16). Também o disse Nosso Senhor: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e nós viremos a ele, e faremos nele morada” (Jo 14, 23). E, no mesmo momento, Jesus nos prometeu o Espírito Santo, que efetivamente nos foi dado com a graça e a caridade no batismo, e mais ainda na confirmação. A Santíssima Trindade habita assim em toda alma em estado de graça, e ela se faz por vezes sentir como vida de nossa vida. Em certos momentos, como o diz São Paulo, “o mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito, de que somos filhos de Deus” (Rom 8, 16). Dá testemunho inspirando em nós uma afeição toda filial, que é causa de uma santa alegria e nos faz dizer: “Pai!”. Não se trata de consolação sensível, nem de sentimentalismo, mas de uma alegria verdadeiramente divina pelo seu princípio e objeto.

É tal a alegria espiritual, ao pensamento de que Deus é Deus, a Bondade mesma, que Ele reina em nós e nos justos, que se torna a vida de nossa vida, que nos chama a viver dele por toda eternidade.  Esta alegria surge do pensamento de que, exceção feita ao pecado, sob a direção da Providência, tudo vem do amor eterno.

A alegria espiritual é, de modo manifesto, fruto da caridade. Contrariamente, a tristeza desordenada e deprimente é efeito do amor desregrado de si mesmo, procede do egoísmo insatisfeito, do orgulho ferido, da vaidade ofendida. Quanto mais, numa alma, a caridade domina o egoísmo, mais desaparece esta tristeza perversa, mais a ela se substitui uma santa alegria.

Esta alegria não saberá, contudo, ser plena e perfeita como no céu, pois a caridade aqui embaixo se entristece ela mesma com o pecado que diminui o reino de Deus e conduz à perda das almas. Porém, apesar das tristezas da terra, os santos conservam, com a paz, uma desejada alegria espiritual, que transmitem aos outros, sem mesmo o perceberem.

As Sagradas Escrituras nos falam diversas vezes desta alegria espiritual. Diz Jesus: “Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e para que a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11). São João Evangelista exorta seus discípulos para que tenham “a plenitude da alegria”, ao pensamento de que são filhos de Deus e que estão chamados a gozar dele eternamente2. Os Salmos já diziam: “Laetamini in Domino et exsultate justi. – Justos, alegrai-vos no Senhor e exultai nele” (Sl 21, 11). São Paulo escreve aos Filipenses: “Gaudete in Domino semper, iterum dico vobis, gaudete – Alegrai-vos incessantemente no Senhor; outra vez vos digo, alegrai-vos” (Fl 4, 4).

O mesmo São Paulo chegará a ponto de dizer, “estou inundado de alegria no meio de todas as nossas tribulações” (2Cor 7, 4). Dizem os Atos dos Apóstolos de todos eles, “contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (At 5, 41).

Já se disse, como explicação destas palavras, “a alegria é o segredo gigantesco do católico”. Com efeito, não recua diante das maiores provas, quando, lembrando-se das promessas do seu batismo, diz a si mesmo: “Quero o que Deus Pai quer para mim, apenas o que quer, tudo o que quer, por mais duro que seja”. O católico conversa deste modo não consigo mesmo, mas com Deus, seu Pai e, como dizem as Escrituras, neste colóquio não há amargura: “In conversatione Dei non est amaritudo” (Sb 8, 16).

A alegria cristã é pois a de possuir a Deus e de ser por Ele possuído. Por esta alegria, o verdadeiro católico dá aos demais o desejo de converter-se. Convém que repita amiúde esta palavra das Escrituras: “Eu também te ofereci alegre todas estas coisas, na simplicidade do meu coração” (1 Pr 29, 17). A verdadeira alegria é tender para a santidade do céu, com a certeza de que Deus, que jamais pede o impossível, nos oferece graças incessantes para lá chegar.

Os santos guardam esta alegria espiritual, sem contudo senti-la sempre de modo sensível, ou sequer de modo espiritual, mas guardam o bastante para transmiti-la aos outros, mesmo nas suas provações. Por quê? Porque o Espírito Santo, pela afeição filial que nas almas inspira por si, “dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus”. Recorda-lhes também “que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom 8, 28), e para o bem dos que perseveram neste amor até o fim; tudo, mesmo as doenças, as contradições, os fracassos. Santo Agostinho acrescenta: mesmo as faltas, à condição de nos humilharmos por tê-las cometido, como o fez São Pedro após a terceira negação. Os santos entreveem cada vez mais nitidamente o bem superior pelo qual a Providência permite os males da vida presente. Este bem superior, que veremos a nu, nós o entrevemos progressivamente na medida de nossos méritos, e o merecemos cumprindo a palavra de Deus em vez de nos contentarmos em conhecê-la e admirá-la.

São Francisco de Assis experimentava uma santa alegria quando se via menosprezado ou rechaçado. Também São Domingos, quando ridicularizado e maltratado pelos hereges do Languedoc, sentia-se mais semelhante a Nosso Senhor, que aceitou as humilhações da Paixão por amor a nós. Assim também São Bento-José Labre, Santo Cura D’Ars ou seu amigo, o padre Chevrier de Lyon, São João Bosco, que guardava em todas as suas provações essa santa alegria que levava às criancinhas pobres, que não tinham nenhuma.

A irmãzinha dos pobres lhes levava esta alegria, a irmãzinha da Assunção, todos os verdadeiros servidores e servas de Deus.

A Santíssima Virgem, nosso modelo, foi chamada “consolo dos aflitos”, “causa de nossa alegria”, e o coração de Jesus é chamado “delícia dos santos”.

 

Como transmitir esta alegria aos outros?  

Primeiro, é preciso cuidar de não os sobrecarregar com nossa própria tristeza e, se estamos abatidos, não os desencorajar. Importa dominar uma certa tristeza, assim como se resiste às tentações.

Evitemos também causar-lhes uma alegria enganosa, aprovando seus erros, seus desvios, suas omissões, sua falta de julgamento ou de energia. Isto seria uma falsa caridade, uma fraqueza, que lhes daria uma alegria mentirosa.

Levemos algo desta alegria espiritual aos que não têm o pão, a saúde, a vitalidade, aos detestados, aos mesquinhos, aos que não procuram Deus; façamos com que tenham vontade de procurá-lo. Demos Deus, aos que não o têm.

Então, Jesus nos dirá no último dia, “tive fome, e destes-me de comer; tive sede, estava enfermo, estava na prisão, e fostes visitar-me... todas as vezes que vós fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”.

Demos algo desta alegria aos amargurados, lembrando esta palavra de São João da Cruz: “Lá, onde não há mais amor, semeai amor e colhereis amor”. Nas grandes trevas, uma voz nos diz: “Levanta e canta teu louvor na noite”.

Então, de nossas trevas bem suportadas, luz poderá brotar para outras almas.

O bem-aventurado Henrique Suso, no seu livro “Sobre a Sabedoria Eterna” 3, escreveu belas páginas sobre os píncaros da alegria espiritual em meio a tribulações. Servindo-nos de suas próprias palavras – ou antes, das que ele põe na boca de Nosso Senhor – podemos resumi-la assim:

“Tanto mais duro o sofrimento, tanto mais doce o ter sofrido... O sofrimento, quando bem suportado, torna o homem amável, pois o faz semelhante a mim. A alegria do sofrimento (mesmo se não sentida, mas desejada) é tesouro escondido que jamais se poderá merecer. Se alguém se ajoelhasse diante de mim por cem anos pedindo-me a felicidade de sofrer, ainda não o teria merecido. De um homem terrestre, o sofrimento (suportado por amor) faz um homem celeste. Ao que sofre, o mundo torna-se estrangeiro, de sorte que minha ternura o envolve mais estreitamente. Os amigos do século afastam-se das provações, enquanto minhas graças o cercam mais e mais. É que tomo por amigos (íntimos) os que renegaram e abandonaram o mundo completamente... O sofrimento ressoará por toda a eternidade num dulcíssimo canto, em refrãos novos que não os poderão repetir os anjos, porque não sofreram.”

Se Deus pudesse assombrar-se e admirar-se de algo, seria com alguns de seus filhos que, movidos por sua graça, chegam a ponto de carregar suas cruzes com alegria, conformando-se ao Senhor Jesus.

Isto deve nos levar a considerar de modo sobrenatural as faltas de respeito e mesmo o menosprezo a nosso respeito, se assim nos sucede4. Conviria recebê-lo com uma alegria, se não sentida, ao menos desejada, e agradecer ao Senhor a graça que se encontra escondida nas humilhações a serem suportadas. Esquecemos amiúde de agradecer a Deus pelas cruzes que nos envia; são elas, contudo, bem necessárias ao nosso progresso. Vemo-lo em algumas que nos foram tão proveitosas.  Possamos nós não desperdiçar as que virão. O mundo, infelizmente, está cheio de cruzes perdidas, que não servem para nada, como foi a do mau ladrão. A verdadeira alegria espiritual é a de tender efetivamente para a santidade do céu, pelo caminho que o Senhor escolheu para nós, por penoso que seja em alguns momentos; é a alegria de tender para esta santidade com a certeza de que Deus não nos pede jamais o impossível, que Ele nos chama à vida eterna e que nos oferece incessantemente graças para lá chegarmos.

(La vie spirituelle nº. 262, fevereiro de 1942 - tradução: Permanência)

  1. 1. Cf. S. Tomás, IIa, IIae, q. 28.
  2. 2. 1Jo 4.
  3. 3. Ia. Parte, caps. 9 e 10 (Noutras edições e traduções, cap. 19)
  4. 4. Quando São João da Cruz pedia a Nosso Senhor a recompensa “de sofrer e ser menosprezado por Ele” (no que foi prontamente ouvido), era uma graça muito grande a que desejava. Não é, com efeito, o menosprezo por si mesmo que desejava, mas a graça de suportá-lo com amor. Sem esta graça, o menosprezo, em si mesmo, não serviria em absoluto para fazê-lo crescer na caridade e glorificar a Deus.
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