Uma alma fiel à devoção que acabamos de falar realiza todas as suas ações por Maria, com Maria, em Maria e para Maria, e chega assim a uma grande intimidade com Nosso Senhor 1.
Os frutos superiores dessa consagração, quando vivida plenamente, são os seguintes em relação à humildade, às três virtudes teologais e aos dons do Espírito Santo que as acompanham: recebe-se pouco a pouco uma participação na humildade e na fé da Virgem Maria, uma grande confiança em Deus por intermédio dela, e a graça do puro amor e da transformação da alma à imagem de Jesus Cristo 2.
Participação na humildade e na fé da Virgem Maria
Pela luz do Espírito Santo, a alma conhecerá a sua má índole, verá por experiência que é naturalmente incapaz de todo bem salutar e sobrenatural, e quais obstáculos ainda se coloca freqüentemente sem prestar atenção à ação da graça em si mesma, como conseqüência de seu amor próprio. Chegará assim ao desprezo de si mesma, do qual fala Santo Agostinho em A Cidade de Deus (L, XIV, c. 28), quando diz: “Dois amores construíram duas cidades: o amor de si, levado até o desprezo de Deus, construiu a cidade de Babilônia, enquanto que o amor de Deus, levado até o desprezo de si mesmo, construiu a cidade de Deus”.
“A humilde Maria ― diz São Luiz de Montfort ― vos dará, enfim, parte de sua profunda humildade, com que vos desprezareis a vós mesmos, sem desprezar pessoa alguma, e gostareis até de ser desprezado”3.
“A Santíssima Virgem vos dará uma parte de sua fé, a maior que já houve na Terra, maior que a de todos os patriarcas, profetas, Apóstolos e todos os santos. Agora, reinando nos Céus, ela já não tem essa fé, pois vê claramente todas as coisas em Deus, pela luz da glória... [mas] guardou-a para seus fiéis servos e servas na Igreja militante. Quanto mais, portanto, ganhardes a benevolência dessa Princesa e Virgem fiel, tanto mais profunda fé tereis em toda a vossa conduta: uma fé pura, que vos levará à despreocupação por tudo que é sensível e extraordinário; uma fé viva e animada pela caridade, que fará com que vossas ações sejam motivadas por puro amor; uma fé firme e inquebrantável como um rochedo, que vos manterá firme e constante no meio das tempestades e tormentas; uma fé ativa e penetrante 4 que, semelhante a uma chave misteriosa, vos dará entrada em todos os mistérios de Jesus Cristo, nos novíssimos do homem e no coração do próprio Deus; fé corajosa que vos fará empreender sem hesitações, e realizar grandes coisas para Deus e a salvação das almas; fé, finalmente, que será vosso fanal luminoso, vossa via divina, vosso tesouro escondido da divina Sabedoria, e vossa arma invencível, da qual vos servireis para aclarar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte, para abrasar os tíbios e os que necessitam do ouro candente da caridade, para dar vida aos que estão mortos pelo pecado, para tocar e comover, por vossas palavras doces e poderosas, os corações de mármore e derrubar os cedros do Líbano, e para, enfim, resistir ao demônio e a todos os inimigos da salvação 5.
Página admirável, que mostra o pleno desenvolvimento da fé infusa, iluminada pelos dons da inteligência e da sabedoria; “fides donis illustrata”, como dizem os teólogos.
Grande confiança em Deus por meio de Maria
A confiança em Deus é a esperança fortalecida que possui uma “certeza de tendência”, a de tender precisamente à salvação. A Santíssima Virgem ― diz S. Grignion de Montfort ― vos encherá de uma grande confiança em Deus e nela própria 6: 1º, porque não vos aproximareis mais de Jesus Cristo por vós mesmos, mas sempre por intermédio dessa bondosa Mãe; 2º, porque, tendo lhe dado todos os vossos méritos, graças e satisfações, para que deles disponha à sua vontade, ela vos comunicará suas virtudes e vos revestirá de seus méritos; 3º, porque, desde que vos destes inteiramente a ela, dar-se-á a vós em troca, e isso de um modo maravilhoso, mas verdadeiro; assim podereis dizer-lhe: “Eu vos pertenço, Santíssima Virgem, salvai-me!” Podereis dizer a Deus com o salmista: “Senhor, o meu coração não se ensoberbece, nem os meus olhos se mostram altivos, nem ando atrás de coisas grandes ou demasiado altas para mim. Pelo contrário, acalmei e apazigüei a minha alma, como um menino no regaço de sua mãe: como um menino, assim está a minha alma em mim (Sl 130, 1-2)” 7.
Depois de ter-lhe dado tudo o que tendes de bom, para que ela o guarde ou o comunique a outras almas, “confiareis menos em vós e muito mais nela, que é vosso tesouro”8. Recebereis, cada vez com maior abundância, as inspirações do dom de ciência, que mostra a vaidade das coisas terrenas e nossa fragilidade e, por oposição, o valor inestimável da vida eterna e do auxílio divino, motivo formal de nossa esperança 9.
Graça do puro amor e da transformação da alma
Na senda dessa devoção, a caridade desenvolver-se-á mais e mais, sob a influência daquela que é chamada Mater pulchrae dilectionis 10. “Essa Mãe do amor formoso aliviará vosso coração de todo escrúpulo e de todo temor servil; ela o abrirá e alargará para correr pelo caminho dos mandamentos de seu Filho (cf. Sl 118, 32), com a santa liberdade dos filhos de Deus, e para nele introduzir o puro amor, de que ela possui o tesouro; de tal modo que não mais vos conduzireis, como o fizestes até aqui, pelo receio ao Deus de caridade, mas pelo puro amor, unicamente. Passareis a olhá-Lo como vosso bondoso Pai, tratando de agradar-Lhe incessantemente; com Ele conversareis confidentemente, à semelhança de um filho com seu pai. Se, por acaso, O ofenderdes... pedir-Lhe-eis perdão humildemente, e Lhe estendereis simplesmente a mão... e sem desfalecimentos continuareis a caminhar para Ele” 11.
A alma de Maria comunicar-se-á a vós para glorificar o Senhor e para regozijar-se n’Ele, para viver o Magnificat. O católico fiel respira, portanto, espiritualmente Maria, como o seu corpo respira o ar12. Seu espírito de sabedoria comunica-se de tal forma que o servo e filho plenamente fiel e dócil torna-se uma cópia viva de Maria, sua Mãe espiritual. Ela o tranqüiliza sobre o mistério da predestinação.
Essa comunicação produz, enfim, uma transformação da alma à imagem de Jesus Cristo 13: “Santo Agostinho chama a Santíssima Virgem de forma Dei: o molde de Deus... 14 Aquele que é lançado no molde divino fica em breve formado e moldado em Jesus Cristo... posso muito bem comparar esses diretores... a escultores que, depositando toda a confiança na própria perícia, conhecimento e arte, dão uma infinidade de marteladas e embotam o cinzel numa pedra dura, ou numa madeira áspera, para fazer a imagem de Jesus Cristo; e às vezes não conseguem dar expressão natural a Jesus Cristo, ou por falta de conhecimento ou devido a algum golpe desastrado que prejudica toda a obra. Aqueles, porém, que abraçam esse segredo da graça que lhes apresento, eu os comparo a fundidores e moldadores que, tendo encontrado o belo molde de Maria, no qual Jesus Cristo foi natural e divinamente formado, sem se fiar na própria habilidade, mas unicamente na eficiência do molde, lançam-se e perdem-se em Maria para se tornarem o retrato natural de Jesus Cristo... Mas lembrai-vos que só se lança no molde o que está fundido e líquido, isto é, que é mister destruir e fundir em vós o velho Adão, para que venha a ser o novo em Maria”.
Ninguém se cansa de citar essas palavras simples e profundas, plenas de sabor sobrenatural e que verdadeiramente vertem da fonte.
A pureza de intenção cresce, enfim, muito, por essa via, porque nos despojamos de nossas próprias intenções, ainda que boas, para mergulharmos nas da Santíssima Virgem, quer sejam conhecidas ou desconhecidas. “Por aí entrais a participar da sublimidade de suas intenções, que foram tão puras, que ela deu mais glória a Deus pela menor de suas ações, por exemplo, fiando na sua roca, dando um ponto de agulha, do que um São Lourenço estendido na grelha, por seu cruel martírio, e mesmo que todos os santos por suas mais heróicas ações...[e mais que] todos os anjos... se contariam antes as estrelas do firmamento, as gotas d’água do mar e os grãos de areia das praias [que seus méritos]... [Ao dignar-se] receber em suas mãos virginais o presente de nossas ações, dá-lhes uma beleza e brilho admiráveis; ela mesma as oferece a Jesus Cristo, e Nosso Senhor é assim mais glorificado que se nós lhas oferecêssemos por nossas mãos criminosas. Enfim, porque nunca pensais em Maria sem que ela, em vosso lugar, pense em Deus... Maria está toda em conexão com Deus, e com toda a propriedade eu a chamaria a relação de Deus, o eco de Deus, que só diz e repete Deus... Quando a louvamos, amamos, honramos ou lhe damos algo, Deus é louvado, amado, honrado, e recebe por Maria e em Maria” 15.
Graça da intimidade mariana
Certas almas recebem uma vida de união com Maria por uma graça singular, a propósito da qual o Pe. Neubert, marianista, reuniu vários testemunhos muito significativos16. Deve-se também citar sobre esse ponto a obra A união mística com Maria, escrita por uma monja flamenga, Maria de Santa Teresa (1623-1677), que a experimentou pessoalmente 17.
O Pe. Chaminade, que exerceu o seu sacerdócio com o maior zelo em Bordeaux durante a Revolução Francesa, e que fundou a congregação dos Marianistas, teve também essa experiência. Ele escreveu: “Existe um dom de presença habitual da Santíssima Virgem, como existe o dom da presença habitual de Deus, muito raro, é verdade, mas que pode ser alcançado, porém, com uma grande fidelidade”. Como explica o Pe. Neubert, que traz esse texto em sua coletânea (loc. cit., p. 15), trata-se da união mística normal e habitual com Maria.
O venerável L. Ed. Cestac também teve esse dom e dizia: “Eu não a vejo (Maria), mas a sinto como o cavalo sente a mão do cavalheiro que o guia”18.
É concedido a esses servos de Deus tomar assim consciência da influência que Maria exerce constantemente sobre nós, transmitindo-nos as graças atuais que nos asseguram uma constante fidelidade.
Maria de Santa Teresa disse também: “Essa doce Mãe... tomou-me sob sua maternal condução e direção, semelhante à direção da professora que conduz a mão da criança para ela aprender a escrever... Está quase sem interrupção diante de minha alma, atraindo-me de modo amável e materno, sorrindo-me, estimulando-me, conduzindo-me e instruindo-me no caminho do espírito e na prática da perfeição das virtudes. E dessa forma não perco nunca, nem por um só instante, a alegria da sua presença juntamente com a de Deus”19.
“Maria produz a vida divina por um influxo perceptível de graças operantes, previdentes, fortificantes, estimulantes e solicitantes”20. “A natureza do amor consiste em unir-se ao objeto amado... Nesse sentido, o amor terníssimo, violento, abrasador e unitivo conduz a alma que ama a Virgem Maria a viver nela, a fundir-se nela, a ela estar unida, e a outros efeitos e transformações”21. “Então Deus se revela em Maria e por ela como num espelho” 22.
E assim aconteceu durante boa parte da vida dessa serva de Deus.
Certas almas que têm uma grande intimidade mariana dizem: “Não tenho jamais experimentado a presença de Maria em mim, mas, sim, sua presença muito próxima, o mais próxima possível; e uma grande alegria ao saber que é uma presença feliz”. Conhecemos um santo cartuxo que dizia: “Eu sofro, mas ela é feliz”.
Num belíssimo artigo já citado de La Vie Spirituelle 23, diz o Pe. M. I. Nicholas, O. P., falando de um santo religioso, o Pe. Vayssière, provincial dos dominicanos de Toulouse, morto em 1940: “Maria era o meio universal, a atmosfera mesma de sua vida espiritual. Esse estado de desapego e de completa união a Deus unicamente, no qual ele vivia, foi nele estabelecido, mantido e desejado pela Virgem Maria. ‘É a Santíssima Virgem que tudo faz. Devo-lhe tudo, absolutamente tudo’, dizia freqüentemente. Maria foi a Mãe que lhe exigiu o senso de sua pequenez, a doçura suprema e mais profunda de sua renúncia, a fecundidade de seu recolhimento e a inspiradora de sua oração. Não tomou consciência de nenhuma das graças de Deus sem perceber ao mesmo tempo o caminho pelo qual elas vinham. Nem todos os santos fizeram do coração da Santíssima Virgem o centro de sua vida espiritual. Para chegar a isso, é necessária uma luz, uma revelação da Santíssima Virgem, que pressupõe uma escolha da sua parte... ‘É ela ― dizia ― que nos molda. A via da lealdade filial à Virgem Maria consiste em reviver a própria vida de Jesus em Nazaré’. O Pe. Vayssière dizia ainda: ‘Quanto mais se é menor, tanto mais se permite que ela seja Mãe. A criança estará tanto mais unida à sua mãe quanto menor e mais frágil for... A perfeição do caminho da infância no plano divino é a vida em Maria’”24.
Finalmente, muitas almas santas aqui na Terra têm num caminho doloroso uma intimidade mariana profunda e vigorosa, da qual não têm ocasião de falar. Para muitas dessas almas há uma disposição particularíssima, um impulso para Maria, um olhar seguido de sua presença sensível, às vezes num instante, como a passagem de uma mãe que vem observar na sala onde estão seus filhos, se eles cumprem bem seus deveres. Em seguida, ela comunica uma piedade inefável, inspira os sacrifícios mais generosos e as renúncias que enriquecem e permitem entrar nas profundezas do Magnificat e também do Stabat Mater.
O autor dessa seqüência deve ter tido essa intimidade mariana e sentido, de alguma forma, a influência da Mãe do Salvador, que não só nos conduz à união com Nosso Senhor, mas que, em certo sentido, cria em nós essa união pela transmissão da graça. É isso que está expresso, como já vimos, no Stabat, pela repetição do fac: “Fac ut tecum lugeam; fac ut ardeat cor meum; fac ut portem Christi mortem; fac me plagis vulnerari; fac me cruce inebriari et cruore Filii; fac me tecum pie flere... crucifixi condolere, donec ego vixero”.
Aqui é onde percebemos as relações profundas da Mariologia com a vida interior ― verdade elementar para todo cristão; mas as verdades elementares, quando examinadas e colocadas em prática, aparecem como as mais importantes e as mais sublimes, como acontece com as verdades expressadas no Pai Nosso.