Skip to content

Artigo 1: Sua realeza em geral

Pode-se dizer que a Santíssima Virgem, sobretudo depois da Assunção e de seu coroamento no Céu, participa da realeza universal de Deus, no sentido em que, de uma forma subordinada a Cristo, ela é propriamente falando rainha de todas as criaturas?1

Desde logo é possível chamá-la assim, no sentido impróprio da palavra, pelo fato que, por suas qualidades espirituais, por sua plenitude de graça, de glória e de caridade, ela é superior a todas as outras criaturas. Diz-se, no sentido impróprio da palavra, que o leão é o rei dos animais não dotados de razão, para significar somente sua superioridade sobre eles.

Pode-se também dizer, ao menos em sentido amplo, que Maria é rainha do universo porque é a Mãe de Cristo Rei.

Mas esse título também lhe seria conveniente em sentido próprio por ter recebido a autoridade e o poder reais? Teria a Virgem Maria, por Cristo e subordinada a Ele, não somente uma primazia de honra sobre os santos e os anjos, mas um verdadeiro poder para governar os homens e os anjos?

Se forem examinados os diversos testemunhos da Tradição aduzidos pela pregação universal, pelos Padres, Papas, pela liturgia, e tendo em conta as razões teológicas invocadas pelos Doutores, deve-se responder afirmativamente.

Os Padres do Oriente e do Ocidente têm freqüentemente chamado Maria de Domina, Regina, Regina nostrae salutis; particularmente no Oriente, Santo Efrém2, São Germano de Constantinopla 3, Santo André de Creta 4 e São João Damasceno 5; no Ocidente, São Pedro Crisólogo 6, São Beda o Venerável 7, Santo Anselmo 8, São Pedro Damião 9 e São Bernardo 10.

Posteriormente esses títulos aparecem com muita freqüência em todos os teólogos: Santo Alberto Magno 11, São Boaventura, Santo Tomás 12, Gerson, São Bernardino de Sena, Dionísio o Cartuxo, São Pedro Canísio, Suárez, São Luiz Grignion de Montfort e Santo Afonso.

Os Sumos Pontífices têm sempre empregado as mesmas expressões 13

A liturgia romana e as liturgias orientais proclamam igualmente Maria como Rainha do Céu, Rainha dos Anjos, Rainha do mundo, Rainha de todos os santos. Entre os mistérios do Rosário, comumente recitados na Igreja desde o século XIII, o último de todos é o da coroação de Maria no Céu, que foi representado por um dos mais belos afrescos do Bem-aventurado Angélico de Fiésole.

Finalmente, as razões teológicas invocadas pelos teólogos para mostrar que a realeza universal de Maria lhe é conveniente no sentido próprio da palavra são verdadeiramente conclusivas. Elas se reduzem às três seguintes.

Jesus Cristo homem, visto que sua personalidade é divina pela união hipostática, é Rei do universo. Ora, a Virgem Maria, como Mãe de Deus feito homem, pertence à ordem da união hipostática e participa da dignidade de seu Filho, porque a pessoa de Jesus é o fim mesmo da Maternidade Divina. Ela participa, portanto, conaturalmente em sua qualidade de Mãe de Deus, de sua realeza universal 14. E, por gratidão, Cristo deve reconhecer essa prerrogativa àquela que Lhe deu a Sua natureza humana.

Ademais, Jesus Cristo é Rei do universo por sua plenitude de graça e por sua vitória no Calvário sobre o demônio e sobre o pecado; vitória de sua humildade e de sua obediência até a morte de cruz, pela qual “Deus o exaltou, e lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que, ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho no Céu, na Terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai15. A Santíssima Virgem, no Calvário sobretudo, unindo-se aos sofrimentos e às humilhações do Verbo feito carne, associou-se o mais intimamente possível à sua vitória sobre o demônio e sobre o pecado e, depois, ao triunfo sobre a morte. Ela está, portanto, associada também verdadeiramente à realeza universal de Nosso Senhor.

Chega-se à mesma conclusão quando se considera a estreitíssima relação que une a Santíssima Virgem com Deus Pai ― ela é a primeira filha adotiva, a mais elevada em graça ― e com o Espírito Santo ― pois é por Sua obra que concebeu o Verbo feito carne.

Tem-se objetado: a mãe de um rei, chamada freqüentemente de rainha mãe, não é de fato rainha em sentido próprio; não possui, por esse fato, a autoridade real; da mesma forma, a Mãe de Cristo Rei não participa, pelo mesmo motivo, propriamente falando, da realeza de seu Filho.

Vimos anteriormente a resposta que foi dada a essa objeção: não há comparação, pois a mãe de um rei foi apenas a mãe de um menino que mais tarde tornou-se rei, enquanto que Maria é Mãe de Deus feito homem que, desde o instante de Sua concepção, é, pela união hipostática e pela plenitude de graça, Rei do universo. Ademais, Maria foi associada o mais intimamente possível à vitória de Cristo sobre o demônio e o pecado, em razão da qual Ele tem essa realeza universal por direito de conquista, apesar de que já a tinha por direito de herança, como Filho de Deus. Maria está, portanto, associada também à sua realeza universal em sentido próprio, embora de uma forma subordinada a Cristo.

*

*   *

Numerosas conseqüências derivam dessa verdade. Como Rei Universal, Jesus tem o poder de estabelecer e de promulgar a Nova Lei, de propor a doutrina revelada e de julgar os vivos e os mortos, mais ainda porque possui o poder de dar a graça santificante que nos mereceu, a fé, a esperança, a caridade e as demais virtudes para observarmos a lei divina 16. Maria participa de sua realeza universal de uma maneira interior e oculta, enquanto nos dispensa todas as graças que recebemos e que ela nos mereceu em união com seu Filho. Ela participa também exteriormente de duas maneiras: na primeira, quando deu outrora o exemplo de todas as virtudes e contribuiu para iluminar por suas palavras os Apóstolos; na segunda maneira, continua iluminando-nos quando, por exemplo, manifesta-se exteriormente em santuários como Lourdes, La Salette, Fátima e em outros lugares. Mas os teólogos notam que Maria não parece participar especialmente no poder judicial que impõe a pena merecida pelo pecado, pois a Tradição nunca chama a Virgem Maria de “Rainha da justiça”, mas “Rainha da misericórdia, o que lhe convém na qualidade de Medianeira de todas as graças 17. Parece estar reservado a Jesus o poder judicial 18, que lhe convém como “juiz dos vivos e dos mortos” 19.

Maria passou a ter um direito essencial a essa realeza universal depois que se tornou a Mãe de Deus. Entretanto, segundo as disposições da Providência, ela deveria também merecê-lo unindo-se ao sacrifício de seu Filho, e não o exerceu plenamente até ser elevada e coroada no Céu como Rainha de toda a criação.

É uma realeza mais espiritual e sobrenatural que temporal e natural, ainda que se estenda secundariamente às coisas temporais consideradas em sua relação com a santificação e salvação das almas.

Essa realeza se exerce na Terra pela distribuição de todas as graças que recebemos e pelas intervenções de Maria nos santuários onde ela multiplica os seus benefícios. Também a exerce no Céu em relação aos bem-aventurados, cuja glória essencial depende dos méritos do Salvador e dos de Sua Mãe Santíssima. A glória acidental dos bem-aventurados e a dos anjos aumenta também pela luz que ela lhes comunica, pela alegria que experimentam com a sua presença, por tudo o que faz para a salvação das almas. Maria manifesta aos anjos e aos santos as vontades e os desejos de Cristo para a extensão de Seu reino.

Maria exerce essa realeza, como dissemos, no Purgatório, no sentido em que leva os fiéis da Terra a rogar pelas almas detidas nesse lugar de tormentos; ela nos inspira a mandarmos oferecer Missas por essas almas; também apresenta a Deus os nossos sufrágios, aumentando assim o seu valor. Ela aplica também, em nome do Senhor, o fruto dos méritos e satisfações de Cristo e seus próprios méritos e satisfações a essas almas que sofrem.

A Santíssima Virgem, por fim, exerce sua realeza em relação aos demônios, que são obrigados a reconhecer, tremendo, seu imenso poder, pois pode eliminar as tentações que eles provocam, fazer evitar suas armadilhas e rejeitar os seus ataques; “os demônios sofrem mais ― diz São Luís Grignion de Montfort ―  ao verem-se vencidos pela humildade de Maria que ao serem imediatamente aniquilados pela onipotência divina”. Seu reino de misericórdia estende-se também, como vimos, ao inferno, no sentido em que os condenados são menos punidos do que merecem 20

  1. 1. Cf. de gruyter, De B. Maria Regina, Buscoduci, 1934; garénaux, La Royauté de Marie, Paris, 1935; m. j. nicolas, La Vierge reine, em Revue Thomiste, 1939; b. H. Merkelbach, Mariologia, 1939, p. 382.
  2. 2. Opera, III, grego 534, 536, 545, 548; siríaco, p. 415.
  3. 3. Hom. I et II in Praes., I et II in Dorm.
  4. 4. Hom. I et II in Dorm.
  5. 5. Hom. I et III in Dorm.
  6. 6. Sermo 142.
  7. 7. In Luc, I.
  8. 8. Orat. 52.
  9. 9. In. Ann. B. M. V.; Serm. 44.
  10. 10. Serm. in Ass. e Dominica infra Oct. Ass.
  11. 11. Mariale, q. 43, parágrafo 2: “Virgo assumpta est in salutis auxilium et in regni consortium... habet coronam trimphantis et militantis Ecclesiae, unde... est regina et domina angelorum..., imperatrix totius mundi...; in ipsa est plenitudo potestatis ccelestis perpetuo ex auctoritate ordinaria..., legitima dominandi potestas ad ligandum et solvendum per imperium...; totam habet B. Virgo potestatem in coelo, et in purgatorio et in inferno... Ad eodem dominio et regno a quo Filius accepit nomen regis, et ipsa regina ... B. Virgo vere et jure et proprie est domina omnium quae sunt in misericordia Dei, ergo proprie est regina misericordiae... ipsa enim ejusdem regni regina cujus ipse est rex”. Cf. ibid., q. 158, 162, 165.
  12. 12. In exposit. Salutationis Angelicae.
  13. 13. Gregório II, em sua carta a São Germano de Constantinopla, lida no II Concílio de Nicéia (787), chama a Virgem Maria de Senhora de todas as coisas; nesse mesmo Concílio, foram aprovadas as estátuas erguidas em honra de Nossa Senhora. Leão XIII, em suas encíclicas, emprega freqüentemente os termos rainha e senhora de tudo (enc. Jucunda semper; enc. Fidentem; enc. Magnae Dei Matris; enc. Adjutricem populi) - E igualmente Pio X, na enc. Ad diem illum: “Apresentou-se Maria à sua destra”.
  14. 14. Cf. merkelbach, o. p. cit., p. 385.
  15. 15. Fl 2, 9-11; também é dito em Cl 2, 15: “e, despojando os principados e potestades (infernais), levou-os (cativos) gloriosamente, triunfando em público deles em si mesmo (pela Cruz)”.
  16. 16. Pio XI, encíclica Quas primas, 11 de dezembro de 1925 (Denzinger, nº 2194) diz que por isso Jesus é o Rei das inteligências, dos corações e das vontades, enquanto que a Nova Lei não é principalmente uma lei escrita, mas uma lei impressa nas almas pela própria graça. Cf. santo tomás, Iª IIae, q. 106, a. 1.
  17. 17. Cf. santo alberto magno, Mariale, q. 43, parágrafo 2.
  18. 18. Jo 5, 26-27: “Porque assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu ao Filho ter vida em si mesmo, e deu-lhe o poder de julgar, porque é o Filho do Homem”.
  19. 19. At 10, 42. Cf. santo tomás, IIIª, q. 59, a. 1.
  20. 20. Cf. santo tomás, Iª, q. 21, a. 4, ad 1: “Na danação dos réprobos, manifesta-se a misericórdia não, certo, perdoando totalmente, mas de algum modo, aliviando, por punir aquém do merecido”. Essa interpretação da misericórdia divina não é independente, de maneira alguma, dos méritos de Cristo e de Maria, obtidos antes.[/fn e que, em certos dias, como pode ser o da Assunção, seus tormentos são mitigados ou tornam-se menos penosos de suportar.

    Esse último ponto demonstra que a realeza de Maria é verdadeiramente universal, pois não existe nenhum lugar em que ela não exerça sua soberania de alguma maneira.

AdaptiveThemes