Esse título de Mãe de Misericórdia é um dos maiores de Maria. Isso é percebido quando se considera a diferença entre a misericórdia, que é uma virtude da vontade, e a piedade sensível, que é somente uma louvável inclinação da sensibilidade. Essa piedade sensível, que não existe em Deus uma vez que Ele é espírito puro, leva-nos a compatir com os sofrimentos do próximo como se nós mesmos os sentíssemos, e de fato eles podem nos atingir. É uma louvável inclinação, mas geralmente tímida e acompanhada do temor ao mal que nos ameaça também, e muitas vezes incapaz de fornecer ajuda efetivamente.
A misericórdia, pelo contrário, é uma virtude que se encontra não na sensibilidade, mas na vontade espiritual; e, como observa Santo Tomás 1, se a piedade sensível encontra-se sobretudo nos seres débeis e tímidos, que se sentem prontamente ameaçados pelo mal que vêem no próximo, a virtude da misericórdia é própria dos seres poderosos e bons, capazes realmente de prestar auxílio. Por isso ela se encontra sobretudo em Deus e, como diz uma oração do Missal, é uma das maiores manifestações de seu poder e de sua bondade2. Santo Agostinho assinala que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal que criar algo do nada; é mais sublime converter um pecador dando-lhe a vida da graça que criar do nada todo o mundo físico, o céu e a terra3.
Maria participa eminentemente dessa perfeição divina, e nela a misericórdia une-se à piedade sensível, que lhe é perfeitamente subordinada e que a torna mais acessível a nós, porque não captamos as coisas espirituais a não ser por meio das coisas sensíveis.
A Santíssima Virgem é Mãe de Misericórdia porque é a Mãe da Divina Graça, Mater Divinae Gratiae, e esse título lhe é conveniente porque é a Mãe de Deus, o autor da graça, Mãe do Redentor, que foi associada mais intimamente que ninguém, no Calvário, à obra da redenção.
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Como Mãe de Misericórdia, Maria nos recorda que se Deus é o Ser, a Verdade e a Sabedoria, é também a Bondade e o Amor, e que sua Misericórdia infinita ― difusão de sua bondade ― deriva do Amor mais que da Justiça vingadora, que proclama os direitos imprescritíveis do Soberano Bem a ser amado acima de tudo. Por isso diz o Apóstolo São Tiago: “A misericórdia se eleva acima da justiça”4.
Maria nos faz compreender que a misericórdia, longe de ser contrária à justiça, como o é a injustiça, une-se a ela superando-a, sobretudo no perdão, porque perdoar é dar mais do que aquilo que é devido, eximindo uma ofensa5.
Compreenderemos agora que toda obra de justiça divina supõe uma obra de misericórdia ou de bondade totalmente gratuita 6. Se é possível dizer que Deus deve algo à sua criatura, é em virtude de um dom precedente puramente gratuito; se deve recompensar nossos méritos, é porque primeiro nos deu a graça para merecer, e se castiga, é depois de ter-nos dado um auxílio que tornaria realmente possível o cumprimento de seus preceitos, pois Ele não manda jamais o impossível.
A Santíssima Virgem nos faz entender que Deus, por pura misericórdia, dá-nos freqüentemente mais do que o necessário, mais do que nos deve dar em justiça; ela nos mostra que Deus nos dá também freqüentemente além de nossos méritos, como, por exemplo, a graça da comunhão que não é merecida.
Ela também nos ajuda a entender que a misericórdia une-se à justiça nas penas desta vida, que são como um remédio para curar-nos, corrigir-nos e conduzir-nos ao bem.
Ensina-nos, finalmente, que muitas vezes a misericórdia compensa a desigualdade das condições naturais pelas graças concedidas, como o dizem as bem-aventuranças evangélicas com relação aos pobres, aos que são mansos e doces, aos que choram, aos que têm fome e sede de justiça, aos misericordiosos, aos puros de coração, aos pacíficos e aos que sofrem perseguição pela justiça.