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Artigo 1: O poder de intercessão de Maria

Desde sua vida terrena, a Santíssima Virgem aparece no Evangelho como a dispensadora das graças. Por ela, Jesus santificou seu precursor, quando sua Mãe foi visitar sua prima Isabel e cantou o Magnificat. Por ela, Jesus confirmou a fé dos discípulos em Caná, realizando o milagre que sua Mãe lhe pedia. Por ela, Jesus confirmou a fé do Apóstolo João no Calvário, ao dizer: “Filho, eis aí tua mãe”. Por ela, finalmente, o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos, pois está escrito1 que rezava com eles no Cenáculo quando se preparavam para o apostolado para o qual foram iluminados e fortalecidos pelas graças de Pentecostes.

Com maior fundamento, após a Assunção, depois de ter entrado nos Céus e de ter sido elevada acima de todos os anjos, Maria é poderosa por sua intercessão.

O senso cristão de todos os fiéis considera que uma mãe beatificada conhece no Céu todas as necessidades espirituais dos filhos que deixou na Terra e que intercede pela salvação deles. Em toda a Igreja, os cristãos rencomendam-se às orações dos santos que já chegaram ao término da sua viagem. Como diz Santo Tomás2, se quando estavam na Terra, sua caridade os levava a rezar pelo próximo, com maior razão no Céu, uma vez que sua caridade, iluminada não só pela fé, mas pela visão beatífica, é muito maior, posto que seu ato é ininterrupto e que conhecem muito melhor nossas necessidades espirituais e o preço da vida eterna, a única necessária.

O Concílio de Trento, na sessão XXV3, definiu que os santos no Céu rogam por nós e que é útil invocá-los. O mérito e a expiação cessaram no Céu, mas não a súplica; não é mais, certamente, a oração suplicante com lágrimas, mas a oração intercessora.

Jesus Cristo vive sempre para interceder por nós 4, disse São Paulo. Jesus é, sem dúvida, o intercessor necessário e principal, mas a Providência e Ele mesmo ordenaram que recorramos ao auxílio de Maria, para que nossas orações, apresentadas por ela, tenham mais valor.

Em sua qualidade de Mãe de todos os homens, ela conhece todas as suas necessidades espirituais e tudo o que está relacionado com a sua salvação; em virtude de sua imensa caridade, roga por eles; e como é onipotente sobre o coração de seu Filho por causa do amor mútuo que os une, obtém-nos todas as graças que recebemos e todas as graças que recebem aqueles que não querem obstinar-se no mal.

O senso cristão formado pelas sublimes orações da Igreja, expressão da Tradição, afirma tudo isso ao recorrer cotidianamente à intercessão da Santíssima Virgem por meio da Ave Maria.

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A teologia explica essa crença universal dos fiéis considerando as três razões fundamentais do poder de intercessão de Maria.

Em primeiro lugar, como Mãe de todos os homens, Maria conhece todas as suas necessidades espirituais.

É um princípio admitido por todos os teólogos que a beatitude dos santos no Céu não seria completa, como deve sê-lo, se não pudessem conhecer tudo o que lhes interessa aqui na Terra por razão de seu ofício, de sua função e de suas relações conosco. Esse conhecimento é motivo de um desejo legítimo que deve ser satisfeito pela beatitude perfeita, tanto mais que, se se trará do conhecimento de nossas necessidades espirituais, esse desejo procede da caridade dos santos a nosso respeito; é ela que os induz a desejar a nossa salvação, para que glorifiquemos a Deus eternamente com eles e sejamos partícipes de sua beatitude.

Por isso um pai ou uma mãe que tenham ido para o Céu conhecem as necessidades de seus filhos, sobretudo as referentes à salvação e tudo o que se relaciona direta ou indiretamente com esta. Da mesma forma, um fundador de alguma ordem entrando na glória conhece os interesses da sua família espiritual e os de cada um dos seus membros. Com maior razão, pois, Maria, Mãe de todos os homens e que tem o mais alto grau de glória diante de seu Filho, Nosso Senhor, deve conhecer tudo o que se relaciona direta ou indiretamente com a vida sobrenatural que está encarregada de nos comunicar e de conservar em nós: os atos bons e meritórios que a engrandecem, as faltas que a diminuem ou a destróem e, por conseguinte, todos os nossos pensamentos, desejos, perigos que nos ameaçam, graças de que temos necessidade, e mesmo interesses temporais que tenham alguma afinidade com a nossa salvação, como, por exemplo, o sustento diário.

Esse conhecimento universal, certo e preciso de tudo o que concerne ao nosso destino, é uma prerrogativa que pertence a Maria pelo título de sua Maternidade Divina e por sua maternidade espiritual em relação a todos os homens5.

Conhecendo todas as nossas necessidades espirituais e mesmo as de ordem material que tenham alguma afinidade com a nossa salvação, Maria está evidentemente inclinada, por sua imensa caridade, a interceder por nós. É suficiente a uma mãe suspeitar das necessidades de seu filho para que trate de aliviá-las. Para nossa Mãe do Céu, assim como para Nosso Senhor, não se trata de adquirir novos méritos, mas de fazer com que os méritos anteriores de seu Filho e os seus próprios nos sejam aplicados no momento oportuno.

Essa oração da Santíssima Virgem é onipotente? 

A Tradição tem chamado Maria de omnipotentia supplex, a onipotência suplicante6.

É, com efeito, um princípio certo que o poder de intercessão dos santos é proporcionado ao seu grau de glória no Céu, ou de sua união com Deus 7. Igualmente, segundo o testemunho constante da Tradição, Maria, cuja glória ultrapassa incomparavelmente a de todos os outros santos, possui a onipotência de intercessão. Antes do século VIII, essa doutrina encontra-se explicitamente em Santo Efrém; no século VIII, as declarações mais claras são as de Santo André de Creta, São Germano de Constantinopla e São João Damasceno. No final do século XI, Santo Anselmo e seu discípulo Eadmero afirmaram formalmente essa onipotência de intercessão, que São Bernardo explicou e transmitiu aos teólogos que lhe seguiram.

Bossuet, em seu Sermão sobre a Compaixão da Santíssima Virgem 8, demonstra admiravelmente os fundamentos dessa doutrina, recordando esta verdade da fé: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe entregou o Seu próprio Filho9, e “se o entregou à morte por nós, como não nos dará também com Ele todas as coisas?10; como não dará as graças necessárias para a salvação a todos os que as pedem com humildade, confiança e perseverança? Ora, Maria amou a Deus e as nossas almas de tal modo a ponto de entregar seu próprio Filho no Calvário. Ela é, portanto, onipotente sobre o coração de Deus Pai e sobre o coração de seu Filho para obter os bens necessários à salvação daqueles que não se obstinam na resistência à graça, mas que, ao contrário, pedem-na como convém.

Em seu sermão, Bossuet assim se expressa: “Intercedei por nós, ó bem-aventurada Maria; tendes em vossas mãos, atrevo-me a dizê-lo, a chave das bênçãos divinas. Vosso Filho é essa chave misteriosa pela qual são abertas as arcas do Pai Eterno: Ele as fecha e ninguém pode abri-las; Ele as abre e ninguém pode fechá-las; é Seu sangue inocente que faz descer sobre nós os tesouros das graças celestes. E a quem mais que a vós, Virgem Maria, dará mais direitos sobre esse sangue, a vós que lhe destes todo o seu sangue?... Ademais, viveis com Ele numa amizade tão perfeita que é impossível não fôsseis ouvida”. Basta, diz São Bernardo, que Maria fale ao coração de seu Filho.

Esse ensinamento da Tradição assim formulado por Bossuet foi proclamado pelo Papa Leão XIII na primeira encíclica sobre o Rosário, a 1º de setembro de 1883, onde Maria é chamada de “dispensadora das graças celestiais”, coelestium administra gratiarum. Na encíclica Jucunda semper, de 08 de setembro de 1894, o mesmo Papa fez suas estas duas frases de São Bernardo: que Deus, em sua amorosa misericórdia, fez de Maria a nossa Medianeira, e que Ele quis que todas as graças nos venham por ela. A mesma doutrina é encontrada no início da epístola Diuturni temporis, de 5 de setembro de 1898. O Papa Pio X disse o mesmo na Encíclica Ad diem illum, de 02 de fevereiro de 1904. Maria é chamada de “a dispensadora de todas as graças que nos foram adquiridas pelo sangue de Jesus Cristo”. Nosso Senhor é a fonte dessas graças e Maria é o aqueduto, ou, segundo outra imagem muito utilizada, é como o pescoço que, no corpo místico, une a cabeça aos membros, transmitindo-lhes o influxo vital: “Ipsa est collum capitis nostri, per quod omnia spiritualia dona corpori ejus mystico communicantur. O Papa Bento XV consagrou essa doutrina aprovando, para toda a Igreja, a Missa e o ofício litúrgico de Maria Medianeira de todas as graças.

Como observa o Pe. Merkelbach11, é preciso notar aqui três coisas.

Em primeiro lugar, é de fé que a Santíssima Virgem roga por nós, e até por cada um de nós, em sua qualidade de Mãe do Redentor e de todos os homens, e que sua intercessão nos é utilíssima, segundo o dogma geral da intercessão dos santos12. Assim a Igreja canta: Sancta Maria, ora pro nobis. E como “Lex orandi statuit legem credendi, o dogma e a oração são regidos pela mesma lei13.

Em segundo lugar, é certo, segundo a Tradição, que o poder de intercessão de Maria pode obter para todos aqueles que a invocam devidamente 14 todas as graças da salvação e que ninguém é salvo sem ela. Também a Igreja diz a Maria: “Sentiant omnes tuum juvamen, que todos experimentem tua ajuda.

Em terceiro lugar, enfim, é uma doutrina comum e segura, ensinada pelos Papas, pela pregação universal e pela liturgia, que nenhuma graça nos é dada sem a intervenção de Maria; isso é o que diz o Ofício e a Missa de “Maria Medianeira de Todas as Graças” (31 de maio), e seria ao menos temerário negar tal doutrina.

Essa doutrina aprovada pela Igreja está implicitamente contida, até o século VIII, na afirmação geral da mediação universal de Maria. Posteriormente, do século VIII ao XV, está mais explicitamente afirmada, ao se dizer que todos os dons de Deus nos vêm por meio da Santíssima Virgem. Desde o século XVI até nossos dias, essa verdade tem sido teologicamente exposta sob seus diversos aspectos, e se ressalta que se trata de todas as graças sobrenaturais provenientes da Redenção de Jesus Cristo, mesmo das graças sacramentais, no sentido em que as disposições necessárias para receber os sacramentos são obtidas pela intercessão de Maria15. Se, ademais, a Santíssima Virgem nos mereceu de congruo tudo o que Cristo nos mereceu de condigno, como vimos anteriormente, ela nos mereceu de um mérito de conveniência as próprias graças sacramentais.

Vê-se, por isso, que a intercessão de Maria é muito mais poderosa e eficaz que a de todos os outros santos, mesmo reunidos, pois os outros santos não obtêm nada sem ela. A intercessão deles fica compreendida na de Maria, que é universal, ainda que sempre subordinada à de Nosso Senhor. Ademais, as graças que Maria pede para nós, ela já no-las mereceu, e não é assim com os santos; eles pedem freqüentemente para nós os auxílios que não nos têm merecido. Sua oração, ademais, não tem a mesma eficácia que a de Maria.

E, finalmente, em relação à eficácia das orações de Maria, convém recordar um princípio que se aplica até mesmo à oração de Jesus Cristo. Este é sempre ouvido naquilo que pede, não de uma forma condicionada, como quando rezou no Jardim das Oliveiras, mas de uma maneira absoluta e conforme as intenções divinas completamente conhecidas por Ele16. Deve-se dizer o mesmo de Maria: por sua intercessão, obtém infalivelmente de seu Filho tudo o que lhe pede de maneira não condicional, mas absoluta e em conformidade com as intenções divinas, que ela não ignora.

Pode haver, para a realização de certas orações, algum obstáculo que a Divina Providência podia impedir, mas que, de fato, não impede sempre. Esse obstáculo pode advir ou porque não se pede à Santíssima Virgem com as disposições requeridas, com humildade, confiança e perseverança, ou porque se pede algo que não é julgado útil ao bem espiritual, ou porque a vontade daquele por quem se roga recusa deliberadamente a conversão exigida 17. Às vezes isso é permitido por um bem superior, que entenderemos claramente no Céu: a manifestação das perfeições divinas, o esplendor da Misericórdia ou da Justiça.

Vê-se por essas explicações que a onipotência da intercessão de Maria, baseando-se nos méritos do Salvador e no seu amor por sua Mãe, longe de antepor-se à mediação universal de Cristo, é um reflexo esplêndido da mesma e manifesta a Redenção soberana realizada pelo Redentor perfeito naquela que lhe é mais intimamente associada na obra da salvação da humanidade.

  1. 1. At 1, 14.
  2. 2. IIª IIae, q. 83, a. 11: “Se os santos que estão na pátria oram por nós”.
  3. 3. Denzinger, nº 984.
  4. 4. Hb 7, 25; Rm 8, 34.
  5. 5. Cf. e. dublanchy, Dict. Théol. cath, art. Marie, col. 2412: “Pode ser dito que Maria, em sua vida mortal, conheceu em detalhes tudo o que concerne à santificação e à salvação de cada um dos membros da humanidade? Parece que não é possível dar uma prova convincente, sobretudo quando se trata de um conhecimento universal e estendendo-se aos detalhes de cada indivíduo. No Céu, depois de sua Assunção, exerce a função de intercessão universal e de mediação para todas as graças decorrentes da redenção e possui esse conhecimento perfeito em relação a cada um dos membros de toda a humanidade”.
  6. 6. Afirmam isso em termos equivalentes: santo efrém, Opera, t. III, gre. lat., pp. 511, 537, 540; santo andré de Creta, Triod.; são Germano de Constantinopla, Homilia in Dorm. II; Teodoro Estud., P. G., CXXIX, 1779; são Nicéforo de Const., P. G., C, 341; Jorge de Nicomedia, ibid., 1438; Santo Anselmo, Orat., XLVI, P. L., CLVIII, 944; Eadmer, De excel. B. M., XII, P. L., CLIX, 579; são Bernardo, Serm. de acquaeductu, 7, P. L., CLXXXIII, 441, ibid., 415, 432, 436; Adão de Perseigne, Mariale, serm. I, P. L., CCXI, 703; Hugo de São Caro, Postilla in Eccli., xxiv, 15. — E. Dublanchy, Dict. Théol. cath., art. Marie, col. 2436 traz também as declarações de Santo Alberto Magno, Jacobo de Vorágine, Raymond Jordán, Gerson, São Bernardino de Sena, São Lorenzo Justiniano, Gabriel Biel, Viguier, Santo Tomás de Villanueva, Luis de Blois e Santo Afonso de Ligório. — Muitas dessas declarações são citadas mais ou menos amplamente pelo Pe. E. Hugon em seu livro Marie, pleine de grâce, 5ª edição, 1926, pp. 160-66, e acrescenta ainda as de Suárez, De Mysteriis Vitae Christi, d. 23, sect. 3, parágrafo 5, de Vega, Theol. Mariana, palestra XXIX, cert. IV, de Contenson, Theol. mentis et cordis, 1. X, diss. IV, c. I, de são luís Grignion de Montfort, Tratado, Iª parte., c. I, de Bossuet, Sermon sur la Compassion de la Sainte Vierge, e a declaração dos teólogos contemporâneos: Petitalot, Sauvé, de la Broise, Lépicier, Terrien, Bover. — Cf. também Merkelbach, Mariologia, pp. 345-371.
  7. 7. santo tomás, IIª IIae, q. 83, a. 2.
  8. 8. Ver o final do primeiro ponto.
  9. 9. Jo 3, 16.
  10. 10. Rm 8, 32.
  11. 11. Mariologia, p. 345-349.
  12. 12. Concílio de Trento, sessão XXV.
  13. 13. Denzinger, nº 139.
  14. 14. Dizemos “para todos aqueles que a invocam devidamente” para indicar que um obstáculo à obtenção dessa graça pode proceder de que não se rogue a Maria com as disposições necessárias ou de que se rogue por alguém que se nega a converter-se e se obstina no mal. Mas por outro lado, não é necessário para o exercício dessa mediação universal de intercessão que se peça explicitamente a Maria, nem mesmo que se peça efetivamente. De fato, em virtude de rogar a Deus ou aos santos, pede-se implicitamente a Maria, segundo a economia geral do plano divino, e ademais, muitas graças nos são concedidas sem que as peçamos: por exemplo, a graça atual necessária para começar a rezar. Mas a oração dirigida a Maria e com as devidas disposições confere maior segurança de obter a graça divina.
  15. 15. Cf.. Dict. Théol. Cath., art. Marie, col. 2403.
  16. 16. santo tomás, IIIª, q. 21, a. 4.
  17. 17. Cf. santo tomás, IIª IIae, q. 83, a. 15, ad 2.
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