Seria a Santíssima Virgem a distribuidora de todas as graças unicamente por interceder em favor de cada um de nós, a fim de que os méritos precedentes do Salvador e os seus próprios nos sejam aplicados no momento oportuno, ou então nos transmitiria ela também as graças que recebemos, ao modo de transmitir da Humanidade de Jesus, que é, segundo Santo Tomás e muitos teólogos “causa instrumental física dessas graças”, instrumento sempre unido à divindade, superior aos sacramentos, que são instrumentos separados.
Com respeito a Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, essa doutrina foi exposta muitas vezes por Santo Tomás1; pergunta-se agora se é preciso admiti-la também para Maria, já que ela é, segundo a Tradição, como se fosse o pescoço do Corpo Místico, que une a cabeça com os membros e transmite-lhes o influxo vital.
A causalidade moral de Maria pela satisfação, pelos seus méritos passados e por sua intercessão sempre atual é comumente admitida por todos. Mas muitos teólogos detêm-se aqui e negam-se a admitir que Maria transmita as graças por uma causalidade física instrumental, análoga na ordem espiritual ao que ocorre na ordem sensível, como a ação da harpa que, tocada pelo músico, emite sons harmoniosos2.
Mas outros teólogos atribuem-lhe também essa segunda influência de uma forma subordinada à Humanidade de Cristo, insistindo sobre o que diz a Tradição: a Virgem Santíssima é verdadeiramente no Corpo Místico como o pescoço, que, unindo a cabeça aos membros, transmite-lhes o influxo vital 3.
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É certo que Santo Tomás ensinou explicitamente que a Humanidade do Salvador e os Sacramentos da Nova Lei são a causa física instrumental da graça, da qual somente Deus pode ser a causa principal, uma vez que é uma participação de sua vida íntima.
Mas não vemos que o Santo Doutor tenha afirmado algo semelhante a respeito de Maria. No dizer de certos autores, ele até a excluiria em um texto, embora pensemos não existir tal exclusão 4.
Em sua obra Exposição sobre a Ave Maria, Santo Tomás atribui à Santíssima Virgem uma plenitude de graça que transborda sobre os homens para santificá-los, mas não diz explicitamente se essa influência contém algo mais que a causalidade moral do mérito, da satisfação passada e da intercessão atual5.
Não sendo ― no julgamento de Santo Tomás e de seus comentadores ― a causalidade física instrumental uma impossibilidade para a Sagrada Humanidade de Cristo nem para os Sacramentos ― por exemplo, nas palavras do sacerdote na Consagração e na absolvição sacramental ― tampouco seria impossível para Maria6. O Santo Doutor chega até a admitir que o taumaturgo é, algumas vezes, a causa instrumental do milagre, que se opera, por exemplo, pela sua bênção7. Não somente o obtém por suas orações, mas às vezes o realiza como instrumento de Deus.
Não se pode afirmar que a Santíssima Virgem não exerça também essa influência. É melhor dizer que as obras-primas de Deus contêm mais riquezas, belezas e vitalidade do que podemos expressar. Não pensamos, no entanto, que se possa provar de uma maneira certa a existência dessa causalidade em Maria. Esse é um dos pontos sobre os quais a teologia, ao que parece, não se atreve a passar da constatação de uma séria probabilidade. Por quê? Porque é muito difícil ver nos textos tradicionalmente invocados onde termina o sentido próprio e onde começa a metáfora. Aqueles que se expressam mesmo habitualmente de uma maneira metafórica, ali onde poderiam e deveriam empregar termos próprios, não prestam atenção à dificuldade que apontamos. Mas quanto mais nos atermos à propriedade dos termos, melhor compreenderemos a verdade dessa observação. Quando a Tradição nos diz que Maria, no Corpo Místico, é comparável ao pescoço que une a cabeça aos membros e transmite-lhes o influxo vital, isso é certamente ao menos uma metáfora muito expressiva, mas não podemos afirmar com certeza que não existe metáfora ou sentido figurado na frase.
Essas palavras, no entanto, não teriam sentido completo ― como disse o Pe. Hugon ― se não admitíssemos a causalidade física instrumental de que estamos falando8.
O Pe. R. Bernard, O. P. declara-se da mesma maneira em seu livro O Mistério de Maria9: “Deus e Seu Cristo servem-se dela [Maria] no sentido em que fazem passar por ela todas as graças que nos destinam... A ação d’Eles, por esse meio, impregna-se de mais humanidade sem nada perder, bem entendido, de sua força divina. Eles fazem nossa Mãe viver a vida que pretendem que vivamos. Antes de tudo, Maria é cheia e transbordante dessa vida; a graça é pré-formada em Maria e impregna-se de uma especial beleza. Toda a graça e todas as graças, socorros e estados, virtudes e dons chegam a nós assim canalizados e distribuídos por ela, impregnados dessa particular suavidade que Maria difunde em tudo aquilo que toca e deixa em tudo o que faz.
“Maria, portanto, por sua ação, intervém em toda a nossa vida e é portadora de todo dom divino em nós. Durante todo o curso da nossa existência, desde o berço até o sepulcro e ainda mais além, não há nada que esteja fora de seu império: nem a graça habitual e as graças atuais, nem a graça e a glória. Ela dá forma e modela todo o nosso ser em Jesus Cristo... Ela imprime a sua forma a tudo e dá um aumento de perfeição a tudo o que passa por suas mãos. Todo cristão é um filho de Maria, e um filho é indigno desse nome se não é realmente moldado por sua Mãe”.
Se admitirmos que a Santíssima Virgem não só nos obtém por sua oração, mas também nos transmite todas as graças que recebemos, o título de tesoureira e dispensadora de todas as graças adquire um sentido mais completo do que lhe é geralmente atribuído.
Isso parece igualmente indicado em certas palavras belíssimas e vigorosas da liturgia, sobretudo no Stabat Mater, onde a repetição admirável do Fac demonstra que Maria não só nos obtém por suas súplicas a graça de alcançar a intimidade de Cristo, mas, de certa maneira, cria em nós essa divina intimidade:
Eia, Mater, fons amoris me sentire vim doloris fac, ut tecum lugeam. |
Faze, ó Mãe, fonte de amor que eu sinta o espinho da dor para contigo chorar. |
Fac, ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam. |
Faze arder meu coração do Cristo Deus na paixão para que o possa agradar. |
Fac, ut portem Christi mortem, passionis fac consortem, et plagas recolere. |
Traga em mim do Cristo a morte, da Paixão seja consorte, suas chagas celebrando. |
Fac me plagis vulnerari, fac me Cruce inebriari, et cruore Filii. |
Por elas seja eu rasgado, pela cruz inebriado, pelo sangue de teu Filho! |
Essa influência de Maria sobre nossas almas é, sem dúvida, misteriosa, mas parece claro que ela não só intervém moralmente, mas que o faz na própria produção da graça, como instrumento consciente e livre, da mesma forma que o taumaturgo cura por seu contato e bênção. Mesmo na própria ordem natural, o sorriso, o olhar, a inflexão e o próprio timbre da voz transmitem algo da vida da alma.
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A essa interpretação dos termos tradicionais comumente admitidos acrescentam-se razões teológicas que não carecem de valor.
Como diz o Pe. Hugon10: “Uma vez estabelecido que os anjos e os santos são muitíssimas vezes as causas físicas secundárias dos milagres, é muito natural que reivindiquemos essa eficácia para a Mãe de Deus e num grau superior”. E se ela é causa instrumental física dos milagres que Deus só produz como causa principal, por que não admitir que é, do mesmo modo, a causa da graça? Como observa o teólogo que acabamos de citar11: “Toda prerrogativa que é possível e que convém à função, ao ofício ou à dignidade de uma Mãe de Deus, deve encontrar-se na Santíssima Virgem... Ela recebeu por título secundário tudo o que Cristo possui por título pleno e principal: méritos, satisfações, intercessão... por que haveria de cessar essa relação na ordem da causalidade física? É necessária essa exceção?12 Não parece, ao contrário, que o paralelismo sobrenatural deve continuar-se até o fim, e que a Mãe deve ser o instrumento secundário em todos os lugares em que o Filho é o instrumento primário e principal?... Parece algo muito natural que os atos [de Maria] dos quais Deus quer se servir a cada instante na ordem da intercessão sejam elevados, transformados pela fecundidade infinita e encarregados de comunicar instrumentalmente a vida celeste às almas”.
Ademais, se o sacerdote, pela absolvição sacramental, é causa instrumental da graça, em virtude de sua união ao Cristo Redentor, Maria não Lhe está menos unida em sua qualidade de Mãe de Deus e de Corredentora, pois é mais perfeito ter dado ao Verbo a sua natureza humana e tê-lo oferecido na Cruz do que torná-lo presente e oferecê-lo nos altares.
A influência certíssima de Cristo, Cabeça do Corpo Místico, permanece também em profundo mistério, uma vez que é essencialmente sobrenatural. A influência que parece exercer Maria, fora de sua intercessão, não é menos secreta, claro, mas seriamente provável, pensamos nós, sem que possamos nada afirmar além disso. Assim, quando se trata das últimas ondulações do som ou da luz no ar, é muito difícil dizer com certeza onde existem ainda ou onde terminam verdadeiramente.
Notemos finalmente que a influência própria de Maria parece se exercer sobre a nossa sensibilidade, muitas vezes desorientada e distraída, para acalmá-la e subordiná-la às nossas faculdades superiores e facilitar nestas a docilidade para seguir o impulso de Cristo, Cabeça da Igreja, que nos transmite o influxo da graça divina13.
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Embora o modo da influência de Maria permaneça oculto e misterioso, o fato mesmo de sua influência não é duvidoso.
A Santíssima Virgem é certamente a dispensadora de todas as graças, ao menos por sua poderosa intercessão. Deve observar-se com o Pe. Merkelbach14 que Maria não intercede da mesma maneira que os outros santos ― por uma súplica que poderia não ser satisfeita ― mas sim como Cristo, constituído Mediador e Salvador, cuja intercessão é sempre ouvida não só de fato, mas também de direito. A intercessão de Cristo, diz Santo Tomás15, é a expressão de seu desejo de nossa salvação adquirida com o preço de seu sangue. Como Maria Medianeira está associada muito intimamente à obra redentora de seu Filho, está igualmente associada à Sua intercessão e exprime seu desejo, que Deus decidiu considerar como sempre unido ao de Cristo. Nesse sentido, a Santíssima Virgem dispõe sempre das graças que pede; sua oração é a causa eficiente para a obtenção das mesmas e parece estar associada também à influência de Cristo para a transmissão dessas graças.
Por isso a Igreja canta no hino das Matinas do Ofício de Maria Medianeira de todas as graças:
Cuncta, quae nobis meruit Redemptor,
dona partitur Genitrix Maria,
cujus ad votum sua fungit ultro
munere Natus.
Maria nos distribui todas as graças que seu Filho Redentor nos mereceu, e ao seu menor desejo o bom Jesus derrama, com generosidade, todos os seus dons.
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Se, como parece, Maria, por uma causalidade física instrumental, transmite-nos todas as graças que recebemos, todas as graças atuais que nos são dadas para a respiração da alma ― como o ar que chega incessantemente aos pulmões para a respiração do corpo ― estamos assim constantemente sob sua influência subordinada à de Cristo, Cabeça da Igreja; ela nos transmite continuamente o influxo vital que procede de Nosso Senhor.
Mas, ainda que não aja sobre nós atualmente mais que pela causalidade moral de intercessão, ela está presente nas almas em estado de graça que a ela acodem segundo uma presença afetiva, da mesma forma que o objeto amado, mesmo quando fisicamente distante, está presente naquele que o ama. Maria está presente em corpo e alma no Céu; está, pois, fisicamente distante de nós; mas está presente com uma presença afetiva nas almas interiores e recolhidas que a amam, como o objeto amado que atrai para si nossa afeição e está presente em nós16.
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Essa influência de Maria faz-se mais íntima nas almas interiores fidelíssimas, como São Luís Grignion de Montfort muitas vezes observou. Diz ele: “O Espírito Santo, que era estéril em Deus, isto é, não produzia outra pessoa divina, tornou-se fecundo em Maria. É com ela, nela e dela que Ele produziu sua obra-prima, um Deus feito homem, e que produz todos os dias, até ao fim do mundo, os predestinados e os membros do corpo deste Chefe adorável. Eis por que, quanto mais, em uma alma, Ele encontra Maria, sua querida e inseparável esposa, mais operante e poderoso se torna para produzir Jesus Cristo nessa alma, e essa alma em Jesus Cristo.
“Não se quer dizer com isso que a Santíssima Virgem dê a fecundidade ao Espírito Santo, como se Ele não a tivesse. (...) O que se quer dizer é que o Espírito Santo, por intermédio da Virgem, da qual se quis servir, se bem que não lhe fosse absolutamente necessário, reduziu ao ato a sua fecundidade, produzindo, nela e por ela, Jesus Cristo e seus membros. É um mistério da graça, inacessível até aos mais sábios e espirituais dentre os cristãos”17.
Como observa o Pe. Hugon18 em relação a essas palavras do Santo de Montfort: “A fecundidade exterior do divino Paráclito consiste na produção da graça, não na ordem da causalidade moral, porque o Espírito Santo não é uma causa meritória ou impetratória, mas na ordem da causalidade física. Reduzir essa fecundidade ao ato é produzir fisicamente a graça e as obras de santidade que são próprias da terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Se é verdadeiro que o Espírito Santo reduz ao ato sua fecundidade por meio da Virgem Maria, se se faz operante por ela, por ela produz também fisicamente a graça nas almas: Maria é, pois, instrumento físico secundário do Espírito Santo. Tal nos parece o alcance dessas fortes palavras do santo autor; tal seria essa elevada doutrina que ele chama de ‘um mistério da graça, inacessível até aos mais sábios e espirituais dentre os cristãos’”.
Assim como a Encarnação prolonga-se de certo modo indefinidamente pela influência vivificadora de Cristo, Cabeça da Igreja, sobre seus membros, a maternidade virginal de Maria completar-se-ia pelo fato de transmitir-nos todas as graças que suas orações nos obtêm.
O santo de Montfort fala sempre dessa forma 19. É preciso citar também, com relação a esse assunto, a obra L' union mystique à Marie, escrita por uma religiosa flamenca, Maria de Santa Teresa (1623-1677), que o experimentou pessoalmente. Esses escritos demonstram que existe uma influência profundíssima ― toques secretos de Maria, Medianeira de todas as graças ― para conduzir as almas interiores e fidelíssimas a uma intimidade cada vez maior com Nosso Senhor 20. A alma que segue essa senda entra cada vez mais no mistério da comunhão dos santos e participa dos sentimentos mais elevados que a Mãe de Deus tinha ao pé da Cruz e após a morte de Nosso Senhor, em Pentecostes ou mais tarde, quando rezava pelos Apóstolos e obtinha-lhes as graças sublimes de luz, o amor e fortaleza de que precisavam para levar o nome de Jesus até os confins do mundo conhecido pelos antigos. Mas a influência de Maria, Medianeira universal, tornou-se ainda maior, mais universal e mais esplendorosa após sua Assunção ao Céu.
Nota
O modo de presença da Santíssima Virgem nas almas que lhe estão unidas
Para esclarecer essa doutrina, é necessário dizer brevemente o que os teólogos entendem por contato virtual, de um lado, e por presença afetiva, de outro.
O contato virtual ou dinâmico
A propósito da presença de Deus em todas as coisas ou da presença dos anjos nos corpos sobre os quais agem, distingue-se geralmente o contato virtual (contactus virtualis) do contato quantitativo. Dois corpos estão presentes ou contíguos um ao outro pelo contato quantitativo, quer dizer, pela proximidade da sua própria quantidade ou extensão.
Um espírito puro, não tendo corpo e, portanto, nem quantidade ou extensão, está presente ali onde age pelo contato virtual, por sua virtude, princípio de sua ação. Esse é o contato dinâmico de uma força espiritual sobre aquilo em que opera.
A virtude divina não é distinta do próprio ser de Deus. Logo, Deus está real e substancialmente presente, pelo contato virtual, em tudo o que Ele produz imediatamente, ou sem o intermédio de um instrumento, quer dizer, em tudo o que cria por criação propriamente dita, do nada (ex nihilo), e conserva imediatamente na existência; está assim presente na matéria, nas almas espirituais e nos anjos, que não podem ser produzidos a não ser pela criação ex nihilo, a qual não pode fazer-se por intermédio de um instrumento21.
Pela mesma razão, os teólogos admitem geralmente que o anjo, que propriamente falando não se encontra num lugar, posto que é espírito puro, está realmente presente ali onde age, porque toca por um contato virtual (contactus virtualis) o corpo que ele move localmente22. Um anjo pode também esclarecer a inteligência humana e agir sobre ela por meio da imaginação, como um professor que ensina.
A presença da Alma de Jesus e a da Santíssima Virgem nas pessoas que estão unidas a eles assemelha-se a dos anjos, mas diferem, no entanto, em um ponto. A diferença provém de que a alma humana unida ao seu corpo, como a alma de Jesus e a de sua Mãe Santíssima, está realmente presente (definitive) ali onde está seu corpo e não em outro lugar; ora, o Corpo de Jesus, após a Ascensão, só está no Céu enquanto lugar natural, e o mesmo se pode dizer do corpo de Maria após a Assunção. E a alma, estando por natureza unida ao seu próprio corpo, não age sobre os demais senão por ele. Nisso ela difere de um anjo, pois este não tem corpo.
Mas como Deus pode servir-se dos anjos para produzir instrumentalmente um efeito propriamente divino como o milagre, pode também servir-se da alma de Jesus, de Seus atos, e até mesmo de Seu próprio corpo, ou ainda da alma de Maria, de seus atos e de seu corpo.
Quando Deus se serve da Humanidade do Salvador como de uma causa física instrumental para produzir a graça em nós ― assim o admite Santo Tomás23 ― estamos sob a influência ainda física da humanidade de Cristo. No entanto, ela não nos toca, uma vez que está no Céu. Da mesma forma, se alguém de longe nos fala por um telefone, esse telefone não nos toca imediatamente; nesse caso, há somente contato virtual e não contato quantitativo entre o aparelho e o sujeito sobre o qual ele opera; contato virtual semelhante ao do sol que de longe nos ilumina e aquece.
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Se a Santíssima Virgem é causa física instrumental da graça, de um modo subordinado à Humanidade de Cristo, estamos também sob sua influência física, ainda que, não obstante, toque-nos apenas pelo contato virtual.
Deve-se notar, no entanto, que a alma humana, enquanto é espiritual e domina o corpo, não está, como tal, num lugar. Desse ponto de vista, todas as almas, na medida em que vivem mais amplamente da vida espiritual e estão mais desprendidas dos sentidos, ao aproximar-se espiritualmente de Deus, aproximam-se espiritualmente umas das outras. Assim se explica a presença espiritual da Santa Alma de Cristo e da alma de Maria, sobretudo se admitirmos que ambas são causas físicas instrumentais das graças que recebemos.
Nesse aspecto, pode-se dizer que estamos constantemente sob sua influência na ordem espiritual, como na ordem material está o nosso corpo constantemente sob a influência do sol que nos ilumina e aquece, e sob a influência permanente do ar que respiramos sem cessar 24.
À presença espiritual que acabamos de mencionar podem acrescentar-se a influência da causalidade instrumental denominada física, que é aqui de ordem espiritual, e a presença chamada afetiva, sobre a qual insistiremos, e que não só é provável, mas certa.
Presença afetiva
Mesmo se a Santíssima Virgem não fosse a causa física instrumental das graças que recebemos, ela estaria presente em nós com uma “presença afetiva”, como o objeto conhecido e amado naqueles que o amam, e isso nos diferentes graus de intimidade segundo a profundidade e a força desse amor.
Mesmo uma alma muito imperfeita está sob a influência física da Santíssima Virgem, se essa é a causa instrumental das graças recebidas por essa alma. Porém, quanto mais nosso amor por Maria se torna profundo, mais sua presença afetiva em nós se torna íntima. Importa insistir nisso, porque esse modo de presença é certo, e Santo Tomás explicou-o maravilhosamente na passagem da Suma25 onde se pergunta se a união é efeito do amor e se o amor causa a mútua inerência, isto é, se faz com que o amante esteja no amado e reciprocamente.
Respondeu ele que o amor, como disse Dionísio, é uma força unitiva: existem duas uniões possíveis entre aqueles que se amam: 1º, uma união real, quando estão realmente presentes um ao outro (como duas pessoas que estão no mesmo lugar e se vêem imediatamente); 2º, uma união afetiva (como a que existe entre duas pessoas fisicamente muito distantes uma da outra); essa união procede do conhecimento (da memória atual da pessoa amada) e do amor dessa pessoa. O amor é suficiente para constituir formalmente a união afetiva e leva a desejar a união real.
Existe, portanto, uma união afetiva que resulta do amor, apesar do afastamento das pessoas. Se Santa Mônica e Santo Agostinho, mesmo muito distantes um do outro, estavam espiritualmente muito unidos, e assim afetivamente presentes um ao outro de uma maneira mais ou menos profunda segundo o grau ou a intensidade de sua afeição, quanto mais unida estará afetivamente uma alma que a cada dia vive na maior intimidade com a nossa Mãe do Céu?
Santo Tomás vai ainda mais longe26; ele mostra que uma mútua adesão ou inerência espiritual pode ser um efeito do amor, apesar do afastamento das pessoas. Distingue claramente dois aspectos dessa união afetiva: lº, amatum est in amante, a pessoa amada está no amante, como que gravada na afeição deste pela complacência que lhe inspira; 2º, vice-versa, amans est in amato, o amante está na pessoa amada, enquanto se regozija extrema e intimamente com tudo o que agrada a ela.
O primeiro modo é freqüentemente mais sentido e, com respeito a Deus, existe o perigo de simular e imaginar tal união antes da hora; além disso, mesmo quando é verdadeiramente o fruto de uma graça, pode ter grande repercussão sobre a sensibilidade propriamente dita e expor à avidez e gula espiritual.
Quanto mais o amor é desinteressado e ao mesmo tempo forte e íntimo, mais o segundo aspecto tende a prevalecer. Então a alma está mais em Deus que Deus nela; e acontece algo parecido em relação à Humanidade de Jesus e a da Santíssima Virgem.
Finalmente, esse amor profundo e desinteressado ― diz Santo Tomás 27 ― produz o êxtase do amor (com ou sem suspensão do uso dos sentidos), o êxtase espiritual, pelo qual aquele que ama sai, por assim dizer, de si, porque quer o bem de seu amigo como o seu e se esquece de si mesmo 28.
A partir disso, poder-se-á ver quão grande pode ser a intimidade dessa união de amor e dessa presença não corporal, mas afetiva. É certo, portanto, que essa união afetiva tende à união real, da qual gozaremos no Céu ao vermos diretamente a Humanidade do Salvador e a Santíssima Virgem. Há, aqui na Terra, como que um prelúdio disso na influência física da Humanidade de Jesus e provavelmente da Santíssima Virgem, que nos transmite uma graça sempre mais elevada e uma caridade que se enraíza sempre mais intimamente em nossa vontade 29.
E igualmente, quando Jesus não se contentava em rezar para obter os milagres, mas os realizava tocando nos enfermos (Jo 10, 25): “As obras que eu faço em nome de meu Pai dão testemunho de Mim”.
O primeiro Concílio de Éfeso (Denzinger, nº 123) diz também que “a carne de Cristo, em virtude de sua união com o Verbo, é vivificante, vivificatrix”; logo, a carne de Cristo não produz a vida da graça por uma causalidade moral do mérito ou da oração, mas por uma causalidade física instrumental. É dessa forma que podemos entender as palavras de São Cirilo, São João Crisóstomo e de Santo Agostinho, citados pelos tomistas, principalmente pelo pe. hugon, op. cit., pp. 87 e ss.
Diz-nos também a razão teológica: agir não apenas moral, mas fisicamente, é mais perfeito que agir somente pela causalidade moral. Deve ser atribuída à Humanidade de Cristo o que é mais perfeito, sempre que não repugne à Encarnação redentora (as objeções feitas contra essa causalidade instrumental foram resolvidas pelos tomistas em IIIam, q. 13, a 2). Esse mesmo argumento de conveniência serve para Maria, guardadas as devidas proporções, a título de argumento de conveniência, que fornece uma probabilidade.
Mas, como diz santo tomás, IIª IIae, q. 178, a. 1, ad 1 e De Poenitentia, q. 6, a. 4, Deus pode servir-se como de instrumento de um ato puramente espiritual, de uma oração interior do Salvador ou de Sua Mãe; então a virtude instrumental produtora da graça é transmitida sem meio corporal. Como? Deus, que está presente em todos os lugares, em todos os corpos e nos espíritos os quais conserva na existência, pode tornar essa virtude instrumental de ordem espiritual presente ali onde deve atuar; ela que por si só não está em nenhum lugar, mas que está como o espírito numa zona acima do real. Os tomistas dizem que Deus leva-a ali onde deve operar, mas que não pode desempenhar o papel de meio, porque o meio, como o ar ou o éter, é uma causa material posta em movimento, e Deus não pode ser além de causa eficiente e final.