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Artigo 5: As consequências da plenitude inicial de graça

Da plenitude inicial de graça em Maria derivam-se, a partir do instante de sua concepção, as virtudes infusas e os sete dons do Espírito Santo, que formam as diversas partes ou funções do organismo espiritual. A graça habitual ou santificante é chamada, por causa disso, e desde antes de Santo Tomás, “a graça das virtudes e dos dons”, porque as virtudes infusas, teologais e cardeais, derivam-se dela a título de propriedades e segundo um grau proporcionado ao seu, assim como as faculdades procedem da alma 1. Os sete dons derivam-se também, segundo o mesmo grau, a título de disposições infusas permanentes que tornam a alma prontamente dócil às inspirações do Espírito Santo, algo assim como o barco é dócil, pelas velas, ao impulso do vento favorável 2.

Ademais, as virtudes infusas e os dons estão unidos à caridade, que torna meritórios seus atos 3, e crescem com ela como os cinco dedos da mão desenvolvem-se em conjunto 4. Pode acontecer que os dons de sabedoria, de inteligência e de ciência, que são ao mesmo tempo especulativos e práticos, apareçam em algum santo em forma mais puramente contemplativa, e em outro de uma forma mais prática, mas normalmente, em toda alma em estado de graça, todas as virtudes infusas e os sete dons existem em um grau proporcionado ao da caridade, e esta corresponde igualmente ao grau de graça santificante.

Desses princípios geralmente admitidos e expostos nos tratados das virtudes em geral e dos dons, deduz-se comumente que em Maria, desde o primeiro instante de sua concepção, derivaram-se da plenitude inicial de graça santificante, segundo um grau proporcionado, as virtudes infusas teologais e morais e os sete dons. Maria, assim já preparada para seu destino de Mãe de Deus e Mãe de todos os homens, não deveria ser menos perfeita que Eva no momento de sua criação. Ainda que Maria não tenha recebido em seu corpo os privilégios da impassibilidade e da imortalidade, tinha em sua alma tudo o que espiritualmente pertencia ao estado de justiça original, e ainda mais, uma vez que a plenitude inicial da graça já superava nela a graça final de todos os santos reunidos, suas virtudes iniciais superavam, pois, as virtudes heróicas dos maiores santos 5. Sua fé esclarecida pelos dons da sabedoria, da inteligência e da ciência era de uma firmeza inabalável e de grande penetração; sua esperança era invencível, superior a todo movimento de presunção ou de desânimo; sua caridade era fervorosíssima desde o primeiro minuto. Em resumo, sua santidade inicial, que superava a dos maiores servos de Deus, era inata e não deixou de crescer até a sua morte.

A única dificuldade encontrada aqui é a relativa ao exercício dessas virtudes infusas tão elevadas e dos sete dons; esse exercício pressupõe o uso da razão e do livre arbítrio; deve-se então perguntar se Maria teve, desde o primeiro instante, o uso de suas faculdades.

Todos os teólogos assentem quando se trata da santa alma de Cristo 6; eles reconhecem que Nosso Senhor teve, desde o primeiro instante, a visão beatífica ou imediata da essência divina 7, e o Santo Ofício, em 6 de Junho de 1918, declarou essa doutrina certa. Jesus, com efeito, em sua qualidade de soberano da ordem da graça, gozava desde o primeiro instante da glória que deveria dar aos eleitos, e essa glória era n’Ele uma conseqüência da união pessoal de sua humanidade com o Verbo. Ele tinha também a ciência infusa à maneira dos anjos, mas em grau superior a estes, bem como a ciência infusa que existiu em muitos santos, por exemplo, como naqueles que tiveram o dom de línguas sem tê-las aprendido 8. Os teólogos reconhecem até que essas duas ciências foram perfeitas em Jesus desde o princípio, pois o progresso só pode ser admitido em sua ciência adquirida pela experiência ou pela reflexão. Jesus, soberano sacerdote, juiz e rei do universo, desde a sua entrada no mundo ofereceu-se por nós, diz São Paulo 9, e conheceu tudo o que, no passado, presente ou futuro poderia estar submetido ao seu juízo.

Distingue-se, enfim, a propósito do Salvador, a ciência infusa por si (per se infusa), que alcança um objeto inacessível para a ciência adquirida e que pode ser exercida sem o concurso da imaginação desde o seio materno, quando ainda não foi recebida nenhuma imagem do mundo exterior, e a ciência acidentalmente infusa (per accidens infusa), cujo objeto não é inacessível para a ciência adquirida e que se exerce com o concurso da imaginação, como o dom de línguas, que pode ser adquirido com o tempo.

Sobre esses pontos, geralmente existe acordo entre os teólogos quando se trata do próprio Cristo. Com relação a Maria, nada permite afirmar que tenha tido a visão beatífica desde sua vida aqui na Terra, especialmente desde o primeiro instante 10. Mas muitos teólogos sustentam que teve desde o primeiro instante a ciência por si infusa (per se infusa), ao menos de forma transitória, e outros dizem que a teve de modo permanente. De maneira que teria tido, desde o seio materno, ao menos em alguns momentos, o uso da inteligência e do livre arbítrio, e conseqüentemente, o uso das virtudes infusas e dos dons, que já possuía em grau muito elevado. E não se pode negar isso sem supor que em Maria a inteligência, a liberdade e as virtudes infusas tenham ficado de certo modo adormecidas, como nas outras crianças, e que foram despertadas mais tarde, na idade normal do pleno uso da razão.

Em primeiro lugar, é ao menos muito provável, segundo a maioria dos teólogos, que Maria teve desde o primeiro instante de sua concepção o uso do livre arbítrio por ciência infusa, ao menos de modo transitório. Assim pensam São Vicente Ferrer 11, São Bernardino de Siena 12, São Francisco de Sales 13, Santo Afonso 14, e também Suárez 15, Vega 16, Contenson 17, Justino de Miechow 18 e com eles quase todos os teólogos modernos 19. O Pe. Terrien declara ter encontrado apenas dois adversários dessa doutrina: Gérson e Muratori 20.

As razões alegadas em favor desse privilégio são as seguintes:

Não convém que Maria, rainha dos patriarcas, dos profetas, dos Apóstolos e de todos os santos, tenha sido privada de um privilégio concedido a São João Batista 21. Ora, em São Lucas 22 é dito de São João Batista que, estando ainda no seio de sua mãe: “E aconteceu que, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino saltou no seu ventre”, e Isabel disse, por sua vez: “Logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino exaltou de alegria no meu ventre”, “exultavit infans in gaudio”. Santo Irineu, São Leão Magno e São Gregório Magno observaram que a alegria de João Batista antes de seu nascimento não era apenas de ordem sensível, mas causada pela vinda do Salvador, cujo precursor ele deveria ser 23. E acrescenta Caetano: essa alegria de ordem espiritual supunha um conhecimento e o uso do livre arbítrio, pois nesse momento não poderia tratar-se de conhecimento adquirido, mas de conhecimento infuso 24. A Igreja diz também na liturgia, no hino de Vésperas de São João Batista: “Senseras Regem thalamo manentem... Suae regenerationis cognovit auctorem” “Tu reconheceste teu rei e o autor de tua regeneração”. Se, pois, São João Batista teve, antes de seu nascimento, o uso da inteligência e do livre arbítrio, como precursor de Cristo, não se poderia negar esse privilégio àquela que deveria ser a Mãe de Deus.

Uma vez que Maria recebeu desde o primeiro instante a graça, as virtudes infusas e os dons em um grau superior à graça final de todos os santos, ela deveria ser justificada como convém aos adultos, isto é, com o uso do livre arbítrio, dispondo-se por uma graça atual à graça habitual e merecendo, por esta última, desde o próprio instante de sua recepção; quer dizer, na medida de seu conhecimento, ela ofereceu-se a Deus, como seu Filho, que “entrando no mundo, diz: Eis-me que venho para fazer, ó Deus, a tua vontade 25. Maria não sabia certamente, portanto, que ela seria um dia a Mãe de Deus, mas pôde oferecer-se a Deus por tudo o que Ele queria dela e lhe pedisse posteriormente.

A plenitude inicial de graça, das virtudes infusas e dos dons, que já superava a graça final de todos os santos, não podia permanecer inativa, inoperante em Maria no princípio de sua vida. Isso seria contrário à maneira delicada e superabundante com a qual a Providência age muito especialmente com respeito à Mãe do Salvador. Ora, sem o uso do livre arbítrio por conhecimento infuso, as virtudes e os dons existentes, que já existiam em grau eminente, teriam permanecido inativos e como que estéreis durante um longo período da vida da Santíssima Virgem.

Assim, quase todos os teólogos reconhecem hoje que é pelo menos muito provável que Maria teve, desde o seio materno, o uso do livre arbítrio por ciência infusa, ao menos de forma transitória. E reconhecem também que usou dessa ciência infusa em certas circunstâncias mais notáveis, como no momento da Encarnação, da Paixão, da Ressurreição do Salvador, de Sua Ascensão, e também para ter um conhecimento mais perfeito das perfeições divinas e do mistério da Santíssima Trindade.

Se a ciência infusa foi dada aos Apóstolos no dia de Pentecostes, quando receberam o dom de línguas e um conhecimento mais profundo da doutrina de Cristo; se Santa Teresa, chegada à sétima Morada do Castelo Interior, gozava muitas vezes de uma visão intelectual da Santíssima Trindade, que só pode ser explicada por idéias infusas, não se pode negar esse privilégio em favor da Mãe de Deus, cuja plenitude inicial de graça já superava a graça final de todos os santos juntos.

Assim falam geralmente os teólogos, mesmo aqueles que só estão dispostos a avançar mais se apoiados em sérias razões 26. É o mínimo que se pode dizer da Mãe de Deus, que gozou da aparição do arcanjo Gabriel, da santa familiaridade do Verbo feito carne, que foi constantemente iluminada por Ele durante toda a sua vida oculta, que deveria receber durante e depois da Paixão as revelações especiais e, no dia de Pentecostes, a abundância das luzes do Espírito Santo em maior grau que os próprios Apóstolos.

 

Esse privilégio do uso da razão e do livre arbítrio em Maria, desde o seio materno, foi apenas temporário e depois interrompido?

Segundo São Francisco de Sales 27, Santo Afonso 28 e teólogos como Sauvé 29, Terrien 30, Hugon 31 etc., esse privilégio nunca foi interrompido. O Pe. Merkelbach, com alguns outros, disse, pelo contrário: nada nos permite afirmar que tenha sido permanente 32.

Respondemos: nada permite afirmar essa permanência com certeza, mas é seriamente provável e muito difícil negá-la. Com efeito, se fosse de outra maneira, se Maria tivesse sido privada desse privilégio, teria sido menos perfeita que no primeiro instante, e não parece conveniente que uma criatura tão santa tenha decaído sem culpa própria, tanto mais que sua dignidade exigia que fosse progredindo sem cessar e que seu mérito não fosse nunca interrompido 33.

Objeta-se que Santo Tomás parece negar esse privilégio ao dizer que é próprio do Cristo 34. É certo que o exercício permanente da inteligência e da vontade só existe em Cristo, como um direito próprio, conseqüência da visão beatífica; por esse motivo, é privilégio exclusivo seu. Não é devido a Maria pelo mesmo motivo, mas as grandes conveniências e a alta dignidade da futura Mãe de Deus parecem exigi-lo e inclinam o ânimo seriamente a admiti-lo. Ademais, como à época de Santo Tomás o privilégio da Imaculada Conceição não havia sido ainda esclarecido, não se tinham ainda aprofundadas as razões que haveriam de ser invocadas em favor do uso, desde o seio materno, do livre arbítrio 35.

Hoje, depois da bula Ineffabilis Deus, vemos mais claramente que Maria, desde o primeiro instante, foi cumulada de mais graças que todos os santos reunidos; quase todos os teólogos admitem nela, desde esse momento, o uso ao menos transitório do livre arbítrio, e, uma vez admitido, é muito difícil dizer que foi posteriormente privada dele, pois teria se tornado mais imperfeita, e não somente não teria progredido em mérito nesse período, mas teria sido interrompida no mérito, e a plenitude inicial da graça teria ficado improdutiva e como que estéril durante um tempo bastante longo, o que parece contrário à Providência especial que vela sobre Maria fortiter et suaviter, fortemente e suavemente, mais que sobre qualquer outra criatura.

Tal foi em Maria a plenitude inicial da graça, unida ao privilégio da Imaculada Conceição, e tais foram as primeiras conseqüências dessa plenitude. Vemos assim, cada vez mais claro, o significado da saudação do anjo: “Deus te salve, cheia de graça”.

  1. 1. Cf. SANTO TomÁs, Iª IIae, qq. 62, 63 (a. 3), 110, a.3 e 4; IIIª, q. 7, a. 2.
  2. 2. Iª IIae, q. 68.
  3. 3. Ibid., a. 5 e q. 65.
  4. 4. Iª IIae, q. 66, a. 2.
  5. 5. Cf. H. B. Merkelbach, Mariologia, 1939, pp. 184-194.
  6. 6. Cf. Santo Tomás, IIIª, q. 34, a. 2 e 3.
  7. 7. Ibid., a. 4, q. 9, a. 2.
  8. 8. IIIª, q. 9, a. 3.
  9. 9. Hb 10, 5-9, Cristo disse ao entrar no mundo... Aqui estou, eu vou... não haveis querido os holocaustos (da antiga lei): Eu venho para fazer a vossa vontade.
  10. 10. C. Vega é o único a sustentar como provável que Maria sempre teve, desde o primeiro instante, a visão beatífica, o que exclui a fé e o mérito da vida eterna. Tampouco podemos afirmar com certeza que a tivesse de uma maneira transitória antes de morrer, cf. Merkelbach, Mariologia, p. 197 e ss. É apenas provável, sobretudo se São Paulo gozou por alguns instantes de privilégio semelhante.
  11. 11. Manuscript. Tolos., 346.
  12. 12. Serm. IV de B. M. V., a. 1, c. II, t. IV, p. 86.
  13. 13. Sermão 38 para a festa da Purificação.
  14. 14. Glória de Maria, IIª P., II disc, 2 punt.
  15. 15. De mysteriis vitae Christi, disp. IV, sect. 7 e 8.
  16. 16. Theologia Mariana, nº 956.
  17. 17. Lib. X, diss. 6, cap. I.
  18. 18. Collat. 93 super litan. B. V.
  19. 19. Cf. Tractatus dogmatici de e. hugon, O. P., t. II, p. 756; a Mariologia de H. B. Merkelbach, O. P., p 197 e ss; item p. Terrien, S. J., La Mère de Dieu, t. II, p. 27. Cf. também o Dict. Apol., art. Marie, pelo Pe. d’Ales, que cita o p. de la broise, col. 207.
  20. 20. Cf. terrien, ibid.
  21. 21. Santo Tomás, IIIª, q. 27, a. 6, cita Jeremias e São João Batista como santificados no ventre de suas mães, mas o sagrado texto não diz que Jeremias tinha o uso da razão e do livre-arbítrio, enquanto que de São João Batista é dito: Exultavit infans in gaudio ― O menino exaltou de alegria (Lc 1, 44).
  22. 22. Lc 1, 41; 44.
  23. 23. santo irineu diz: “João, que ainda estava no seio de sua mãe, ao conhecer o Salvador que estava no seio de Maria, saudou-o” (Cont. Haer., III, 16; P. G., VII, 923). – santo Ambrósio diz também: “Tinha o uso da inteligência, aquele que assim saltava de alegria” (in Luc., 1. II, c. XxXIv; P. L., XV, 232). – são leão: “O precursor de Cristo recebeu o dom da profecia no seio de sua mãe e antes de seu nascimento manifestou sua alegria pela vinda da Mãe de Deus” (Serm. XXXI in Nativ. Domin., c. IV; P. L., LIV, 232..). - são Gregório: “Estava repleto do espírito profético desde o seio de sua mãe” (Moral., 1. III, c. 4; P. L., LXXV, 603).
  24. 24. Comment. in IIIª P., q. 27, a. 6.
  25. 25. Hb 10, 5-9.
  26. 26. Cf. H. Merkelbach, O. P., Mariologia, 1939, p. 200: “Cognitionem infusam transeuntem Mariae fuisse communicatam conveniens erat in quibusdam specialibus adjunctis, v. g. in primo instanti conceptionis et sanctificationis, aut dum hujusmodi cognitio perfectior hic et nunc opportuna aut decens videbatur ad pleniorem intelligentiam cujusdam mysterii, aut ad interpretationem cujusdam loci Scripturae; et si prophetis aliquando videtur concessa, aut etiam sanctis, quo altius in contemplationem assurgerent, sicut testantur auctores mystici, non est tale privilegium B. Virgini denegandum”.
  27. 27. Loc. cit.
  28. 28. Loc. cit.
  29. 29. Jésus intime, t. III, p. 262.
  30. 30. La Mère de Dieu, t. II, c. I.
  31. 31. Tractatus dogmatici, 1927, 1. II, p. 759, e Marie, pleine de grâce, pp. 24-32.
  32. 32. Mariologia, pp. 199-201.
  33. 33. Isso é exatamente o que diz o Pe. Hugon, Marie, pleine de grâce, p. 31 e no Tractatus dogmat., t. II, p. 759.
  34. 34. IIIª, q. 27, a. 3: “Por isso parece melhor pensarmos que, a santificação no ventre materno não isentou a Santa Virgem da concupiscência, na sua essência, mas os seus efeitos ficaram paralisados. Não por ato da sua razão, como se deu com os varões santos; pois, não teve o uso do livre arbítrio logo que começou a existir no ventre materno – privilégio especial de Cristo; mas, a abundância da graça... e ainda mais perfeitamente por ação da divina providência, paralisou-lhe todo movimento desordenado dos sentidos”.
  35. 35. Cf. Hugon, loci citatis.
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