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Parte 2

PARTE II

EXAME DA DENÚNCIA DE 10 DE OUTUBRO DE 1873

CÓPIA FIEL DA DENÚNCIA QUE O Sr. PROCURADOR DA COROA, D. FRANCISCO BALTHAZAR DA SILVEIRA, COMO PROMOTOR DA JUSTIÇA, DEU CONTRA O REVER. BISPO DE PERNAMBUCO, D. VITAL MARIA GONÇALVES DE OLIVEIRA, AO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, E QUE É REMETIDA AO ACUSADO PARA RESPONDER NO PRAZO LEGAL, CONFORME A LEI E DESPACHO DO EXMO. SR. CONSELHEIRO RELATOR.

Vejamos agora o modo porque o Sr. Procurador da Coroa baseia a sua denúncia. Não é de supor que tão alto funcionário se dirija a Sua Majestade o Imperador e ao Supremo Tribunal de Justiça em negócio em tanta magnitude e transcendência, sem primeiro ter examinado, com a devida calma, reflexão e imparcialidade, as razões que militam em favor do humilde Bispo de Olinda, quer em relação ao corpo de delito, quer acerca da competência do tribunal.

“Senhor! À Vossa Majestade Imperial, respeitáveis ministros do Supremo Tribunal de Justiça, requisita o procurador da coroa,

soberania e fazenda nacional e promotor da justiça, autorizado pelo aviso do Exmo. ministro do Império de 27 de Setembro próximo findo, que se mande formar e fazer efetiva a responsabilidade do Rever. Bispo de Olinda, D. Fr. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, pelos fatos criminosos por ele cometidos no exercício de seu emprego, que são descritos no citado aviso, e que, segundo lhe permitirem suas fracas forças, mostrará como infringem a nossa Constituição política e o nosso Código Criminal”.

Fatos criminosos por ele cometidos no exercício de seu emprego!!!

É assim que, nesta terra da Santa Cruz, em uma peça oficial por um elevado magistrado dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça, se qualifica o santo Ministério Episcopal, e se taxam os atos que, para seu fiel e cabal desempenho, são ordenados por Aquele que disse aos Bispos: — Attendite vobis et universo gregi, in quo vos Spiritus Sanctus posuit episcopos regere ecclesiam Dei, quam acquisivit sanguine suo. (At. 20, 28).

De sorte que o Sagrado Ministério Episcopal não é mais do que um mero emprego do governo, como os da Alfândega ou da Tesouraria!

De sorte que não foi o Espírito Santo quem constituiu os Bispos para o governo da Igreja de Deus, mas foi o poder executivo que proveu o emprego de Bispos para o serviço do Império!

Estabelecido este princípio, será forçoso confessar que cometi um ato criminoso, não dando cumprimento, como fiz, às determinações do Governo Imperial. Mas, para estabelecer-se semelhante princípio, é mister, antes de tudo, apostatar da fé de nossos pais, que é Católica, deixar as nossas plagas, e ir para onde não se conheça, ou pelo menos, não se reconheça a missão divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Doe-me, doe-me, no mais íntimo da alma, ver o sagrado caráter episcopal rebaixado com tamanho aviltamento em uma peça oficial!

Pois, será possível que não só para Judeus e Muçulmanos, mas também para muitos que receberam as sagradas águas do batismo e gloriam-se do título de Católicos, debalde tenha Jesus dito aos Apóstolos, e neles aos Bispos, seus sucessores: “Assim como o Eterno Pai me enviou a mim, também eu vos envio a vós”. Sicut misit me Pater et ego mitto vos?!

Será possível que debalde para cristãos tenha Ele assoprado sobre os Apóstolos, dizendo-lhes: “Recebei o Espírito Santo”. Accipite Spiritum Sanctum (Joan. 20, 21, 22)?!

Será possível que haja cristãos que pensem não terem os Bispos recebido missão alguma de Cristo, mas do Governo?! E não tenham n’alma o divino caráter, ou a imagem d’alma do Redentor assoprada sobre eles por Jesus Cristo mesmo; porém tenham uma extrínseca deputação do Governo que Lutero e Calvino assopraram sobre o Estado e este assopra sobre os Bispos?!

A que ponto chegamos!!!

Agora compreendo que em minha Pátria sempre querida possam os Bispos Católicos ser acusados como criminosos. Porquanto, crendo eles que sua missão recebem-na de Jesus Cristo e não do Governo civil, crendo eles que, em virtude de seu sagrado caráter, são vivas imagens de Cristo, e não representantes do Governo civil, querem obedecer Àquele e não a este, que manda-nos transgredir as ordens de Deus.

Mas, a graça do mesmo adorável Salvador a todos ajudar-nos-á, para que, não degenerando dos Apóstolos, nossos antecessores, sempre e sempre repitamos com eles: — Obedire oportet Deo magis quam hominibus (At. 5, 9), até dar, se preciso for, o sangue e a própria

vida pelo desempenho do nosso Sacerdotal Ministério, como nos ensinou, com exemplo e palavras, o Pastor universal de nossas almas. Bonus Pastor animam suam dat pro ovibus suis. (Jo. 10, 11).

“Senhor! É sempre doloroso ver um alto funcionário em circunstâncias de ser responsabilizado, e dever-se-lhe impor a sanção das leis penais. E o que será então para com um Bispo, cuja autoridade, cujo ministério levam a ser ele considerado o pai espiritual de seus diocesanos?!”

Logo, se a autoridade, se o ministério do Bispo levam-no a ser considerado o pai espiritual de seus diocesanos, não é um empregado do Governo.

“Os Bispos, sob a direção do Vigário de Cristo na terra, devem ser nossos pastores, nossos guias para a vida presente, e mais ainda a vida futura, eterna”.

Otimamente! Nada se podia dizer de mais exato e ortodoxo. Provavelmente, ao escrever estas palavras, o Sr. Procurador da Coroa, a quem muito respeito, teve alguma distração, visto como deixou escapar-lhe da pena uma verdade que é a cabal refutação de sua denúncia.

Vejamos se tenho razão.

Diz o Sr. Procurador da Coroa que os Bispos, sob a direção do Vigário de Cristo, devem ser pastores, guias para a vida presente e mais ainda para a vida futura e eterna. Já S. Ex. concede a nós, Bispos, muito mais do que desejamos. Pois, nós só pretendemos ser pastores para a vida futura, isto é, pretendemos governar as nossas queridas ovelhas na vida presente, somente no que diz respeito à vida futura, e nunca governá-las no que se refere à vida presente, porquanto semelhante tarefa está inteiramente fora de nossa missão divina.

Prescindindo, porém, desta liberalidade do Sr. Procurador da Coroa, o mais que diz é puríssima verdade, e, na ordem prática, uma das mais fundamentais da fé Católica, e da qual dimanam logicamente os seguintes corolários:

1° Se os Bispos são pastores e guias de nossas almas para a vida futura e eterna, conclui-se que não seguir a direção dos Bispos, para seguir a dos que não o são, e não ouvir a voz dos Bispos, para ouvir a dos que não o são, é um mal tão grande que equivale a perder a vida futura e eterna. Ora, é isto justamente o que exige o atual Governo, a saber, que os brasileiros não sigam os Bispos, seus guias, e não atendam à voz dos Bispos, seus pastores; ao passo que o enorme crime, de que são acusados os Bispos, é precisamente terem eles querido ser guias de seus diocesanos, pastores de suas ovelhas em negócios atinentes à vida eterna. Logo, do princípio estabelecido pelo Sr. Procurador da Coroa segue-se que mui culpado é o Governo, e no todo inocentes são os Bispos; visto como o Governo exige que os brasileiros percam a vida futura e eterna; à medida que os Bispos empenham-se por salvá-los.

2° Vigilanti verbo, bem podemos aqui dizer, segundo a frase elegante de Santo Agostinho, falou o Sr. Procurador da Coroa, quando, não se limitando a dizer-nos simplesmente que os Bispos são pastores e guias de nossas almas para a vida futura e eterna, dignou-se até especificar o modo porque são guias e pastores, afim de que não se enganassem os fiéis, tomando por guia a um inimigo e por pastor a um lobo disfarçado.

O modo essencial é “que os Bispos estejam sob a direção do Vigário de Jesus Cristo”. Bispos eram Nestório, Fócio, Jansenio e outros muitos hereges e heresiarcas de todos os séculos, e, contudo, não eram pastores nem guias, senão lobos e pedra de escândalo.

E por quê?

Porque não estavam sob a direção do Vigário de Jesus Cristo.

Logo, para que os brasileiros conheçam se os seus Bispos são verdadeiros pastores, e guias seguros, indaguem se acham-se eles sob a direção do Vigário de Jesus Cristo.

De sorte que, se não houvesse no Espiscopado Brasileiro tão maravilhosa união em obedecer às prescrições do glorioso Vigário de Jesus Cristo na terra, a despeito das ordens do Governo civil, o princípio do Sr. Procurador da Coroa agora revelar-nos-ia quais os Bispos a quem deveriam seguir as ovelhas, e quais aqueles a quem deveriam elas fugir.

Figuremos, por um momento, a hipótese irrealizável de que houvesse divisão entre os Bispos do Brasil.

Neste caso, nos diria o princípio do Sr. Procurador da Coroa “Deveis seguir os Bispos que, para obedecerem ao Pontífice Romano, desobedecem ao Governo civil, e não aos que, para obedecerem a este, desobedecem aquele”. Ora, esta é a verdade Católica que todos nós, Bispos, ensinamos, e pela qual estamos sofrendo tantas vexações por parte do Governo, que ora nos arrasta à barra dos tribunais. Logo, o princípio do Sr. Procurador da Coroa declara os Bispos inocentes e acusa o Governo de culpado.

Como Católico, como sacerdote, e como Bispo, se bem que muito indigno, confesso-me sumamente reconhecido a S.Ex. pelo relevante serviço que prestou à causa nobre e santa que nós, Bispos, defendemos. Em seguida, veremos como o seu princípio desmorona todo o resto da denúncia.

“Mas o Rever. Bispo de Olinda, apartando-se do que tanto recomenda o Evangelho, longe de ser mitis et humilis, longe de dar exemplo de atenção, de obediência às leis do nosso país, apresenta, ostenta a

mais formal desobediência, declara, para assim dizer, guerra formal ao governo imperial, ao código criminal, à constituição política!...”

Mas, como se segue isto do princípio precedente? Qual o nexo deste discurso?

Para que sejam os Bispos nossos guias, nossos pastores, nossos pais espirituais, devem estar sob a direção do Vigário de Jesus Cristo na terra. Ora, o Bispo de Olinda ostenta a mais formal desobediência, declara, para assim dizer, guerra formal ao Governo imperial...

Que é isto?

Pois o Vigário de Jesus Cristo seria por ventura algum Ministro do Poder civil?

E porque o Bispo de Olinda, para obedecer ao incomparável Pio IX, glorioso Vigário de Jesus Cristo que manda expelir os maçons das Irmandades, viu-se na dura necessidade de desobedecer ao Governo Imperial, que ordena se não os expila, por isso o Bispo de Olinda aparta-se do que tanto recomenda o Evangelho, não é mitis et humilis, não dá exemplo de obediência às leis do país?

Não! O Bispo de Olinda, graças a Deus, não desobedece às leis do país, não infringe a Constituição política; o que faz é, segundo lhe permitem as suas diminutas forças, harmonizar as leis do país com as da Igreja, para que sejam aquelas leis verdadeiras, quia lex injusta non est lex; e, depois, tirar dos princípios estabelecidos conclusões não contraditórias.

Da primeira parte tratarei mais adiante, quando o Sr. Procurador da Coroa assinalar o ponto da Constituição em que pretende achar-me culpado. Por ora limito-me a dizer que, não sendo nenhum Ministro do Governo Imperial o Vigário de Jesus Cristo, se quiser eu ser bom Bispo, guiar as almas à vida futura e eterna, pastorear o amado

rebanho que de minha solicitude e desvelo confiou o Supremo Pastor, me é absolutamente necessário, segundo o princípio admitido, permanecer sob a direção do incomparável, do imortal, e nunca assaz amado Pio IX, Vigário de Jesus Cristo, sem deixar-me amedrontar pelas ameaças da maçonaria.

“E isto com expressões, com um estilo e tom, que no seu ofício de 12 de julho último, mais parece um superior forte e despótico do que um empregado”.

Desculpe-me o Sr. Procurador. Vergonhosamente teria eu rebaixado a dignidade pessoal, se houvesse respondido ao Exmo. Sr. Ministro do Império em estilo e expressões de um empregado do Governo!

Porém, se não desconheço que um Bispo em relação a um leigo não é um súdito, nem igual, mas superior, sustento ao mesmo tempo que em minha resposta nada, absolutamente, há de despotismos; por quanto não é déspota aquele que francamente expende suas razões: déspota é quem recorre ao direito da força para se fazer obedecer, quando não lhe assiste a força do direito.

Por conseguinte, despotismo não se acha em meus ofícios, pois não disponho senão de armas espirituais; mas sim, nos daqueles que mandam à viva força levantar interditos com imenso escândalo de todo o povo Católico.

“Dando resposta ao aviso do Exmo. ministro do Império de 12 de junho do corrente ano, no qual não se encontra frase ou palavra que possa autorizar um reparo, um desgosto”.

Da parte dos que se consideram e são empregados do Governo transeat; da parte de um Bispo Católico, a quem o Governo de um país Católico intima com ordem peremptória de levantar interditos, mil vezes não!

Não disse o Sr. Procurador da Coroa que os Bispos, para bem guiar os fiéis e pastorear o seu rebanho devem estar sob a direção do Vigário de Jesus Cristo?

Como quer agora que eles não tenham direito de fazer algum reparo, nem se devam desgostar, recebendo intimações de um Governo que se opõe abertamente a essa direção?

“Aquele escrito (e o mais que tem saído da pena de S.Ex., e que tenho lido nos jornais) do prelado diocesano de Olinda, como Vossa Majestade Imperial terá de analisar, faz lembrar dos tempos em que os Bispos e a Cúria romana, supondo-se, e de fato sendo senhores do mundo, davam tronos, depunham reis, dividiam a terra, tinham o gênero humano em escravidão e sob o mais despótico terror”.

Assim, pois, segundo o catolicismo do Sr. Procurador da Coroa, teria havido um tempo em que os Bispos e a Cúria Romana, isto é, toda a Igreja docente, tiveram o gênero humano em escravidão e sob o mais despótico terror, como uns Marats e Robespierres!

Mas, quando foi esse tempo?

Ele o diz: — Quando se supuseram, e de fato foram, senhores do mundo.

Ora, os Bispos e os Pontífices Romanos nunca se supuseram, e nunca foram, nem de fato nem de direito, senhores do mundo. Logo, a asserção do Sr. Procurador da Coroa, além de carecer de fundamento, com pesar o digo, é uma acusação mui gratuita, e uma injúria lançada em rosto à santa e imaculada Esposa do divino Cordeiro, o que é muito para estranhar em uma peça oficial dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça de uma nação católica, em negócio de tão elevada importância.

Bem sabem os Sumos Pontífices que são os Vigários d’Aquele em cujo Natal mandam cantar na Igreja: — Non eripit mortalia qui regna dat cœlestia; isto é, que a sua missão neste mundo, qual a do Salvador, não é tirar alheios reinos, mas dar o do Paraíso.

Portanto, os Papas não se supuseram, nem foram, em tempo algum, senhores do mundo.

O Sr. Procurador alude, talvez, à Idade Média. Mas ainda neste caso, a alusão é contraproducente.

A História da Idade Média nos relata que povos inteiros e reis poderosos recorriam ao Romano Pontífice, afim de que, com a sua autoridade, os defendesse da prepotência dos seus vizinhos e das freqüentes invasões dos bárbaros do Setentrião: bem conheciam eles qual o misteriosos poder da palavra do Vigário de Jesus Cristo; e sabiam que junto ao túmulo dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo encontravam o mais seguro abrigo.

Os reis daquele tempo, por uma política, infelizmente desconhecida em nossos dias, se julgavam mais independentes sendo feudatários da Igreja Romana do que senhores absolutos; e por isso aos Sumo Pontífices ofereciam as suas coroas para, depois, recebê-las mais santificadas e mais respeitáveis aos olhos de seus súditos e dos estrangeiros.

Isto, porém, o que prova senão o governo todo paternal dos Pontífices Romanos?

No mais, os Soberanos Pontífices sempre ensinaram, nunca menos o exemplo, do que com a palavra, o respeito aos monarcas da terra, nem se meteram nos negócios destes, senão quando foram provocados, segundo o direito de defesa que a todo assiste.

Em conclusão, este trecho do Sr. Procurador da Coroa, perante o tribunal de Deus e de todos os homens de bom senso, é o maior argumento de defesa dos atos do Episcopado Brasileiro.

Com este ataque que, na denúncia, está absolutamente fora de lugar, pois deveria limitar-se a denunciar de meus atos e não os da Igreja de Jesus Cristo, o Sr. Procurador comprometeu-se sobremaneira; porquanto poderia algum mal intencionado supor que não o amor da justiça, de que S.Ex. é o Promotor, mas as prevenções da seita ou preconceitos de partido, ditaram a denúncia.

Pois, não compromete o seu crédito um católico, que, sob a gíria maçônica e herética de Cúria romana, acusa, em termos por extremo injuriosos, o Governo da Santa Sé, onde se sentaram oitenta santos, que veneramos sobre nossos altares; pertencendo quarenta e oito deles ao tempo em que os Pontífices Romanos, saídos das catacumbas, apareceram no meio da sociedade com todo o esplendor de sua glória; quero dizer, desde S. Silvestre até S. Pio V?

Não compromete a sua fé um católico que chama os Pontífices Romanos de opressores da humanidade, desconhecendo, ou acintosamente dissimulando que os Papas, desde S. Pedro até Pio IX, não fizeram outra coisa, em sua generalidade, senão sacrificar-se pelo bem espiritual e eterno da mesma humanidade?

Não foram eles quem, primeiro com a doce insinuação da caridade evangélica, que ensina não haver diante de Cristo distinção de servo e de senhor, e depois, mediante os decretos dos Concílios Gerais, aboliram a escravidão?

Não foram eles quem instituíram ordens religiosas para remir os cativos e ordens militares para libertá-los; e sobretudo, não foram eles quem excitaram, promoveram, sustentaram, com inauditos esforços, aquelas famosas cruzadas, as quais devemos que todo o velho mundo se não tenha tornado muçulmano?

E, finalmente, não foram eles quem na Idade Média, prepararam a civilização moderna, abrandando o espírito das nações bárbaras com tantas associações de paz, com tantos colégios de educação, com tanta pompa do culto, e com tantos exemplos de virtude?

Ah! E ainda há quem diga que a Cúria Romana tinha o gênero humano em escravidão e sob o mais despótico terror!!!

“O Senhor permitiu que isto acabasse, e que nos tempos que correm vejamos a lei, a Religião do Mártir do Gólgota, como as da paz e harmonia tão doces, tão fáceis de executar e seguir”.

Permita-me o leitor um ligeiro reparo àquela denominação de Mártir do Gólgota, que hoje em dia ouvimos tão freqüentemente, sobretudo da boca dos maçons, e, no contexto do lugar citado, inspirou-me algumas suspeitas.

Verdade é que a frase tem seu fundamento na Escritura Sagrada. Mártir é palavra grega que em nossa língua significa testemunha. E Jesus Cristo disse a Pilatos que o fim de sua missão era dar testemunho à verdade. Ad hoc veni in mundum ut testimonium perhibeam veritati (Jo. 18, 37). E como o testemunho mais solene da verdade o deu o nosso Adorável Salvador no Gólgota, por isso é ele verdadeiramente o Mártir do Gólgota.

Porém, nos demonstra a experiência e nos advertem os Santos Doutores da Igreja, que da boca dos hereges até as frases mais ortodoxas tomam sentido herético. Esta frase do Mártir do Gólgota é desconhecida na linguagem Eclesiástica, e, tal qual está formulada, não se acha na Escritura Sagrada.

S. Paulo, em suas admiráveis Epístolas, repete centenas de vezes, e como que saboreando, o Santíssimo nome de Jesus Cristo. E em outros lugares chama-o, ora Deus Grande, Deus sobre todas as

coisas; ora o Senhor, o Salvador de todos; ora o Filho de Deus e Deus nosso Salvador. O mesmo fazem os Apóstolos e Evangelistas. Nunca, porém, encontra-se nas Sagradas Escrituras a denominação de Mártir do Gólgota.

Por isso, na linguagem que herdamos de nossos maiores, também costumamos dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo, Nosso Divino Redentor, o Filho de Deus, frases que manifestam a um tempo nossa fé e nosso afeto; e não nos vem aos lábios essa misteriosa frase de Mártir do Gólgota.

Em matéria de fé, o qudo semper do aforismo de S. Vicente de Lerins é o mais certo e venerando. Posto que esta frase de Mártir do Gólgota possa ter, como explicamos, um sentido ortodoxo, todavia presta-se também a sentidos heterodoxos.

Se observa-se a palavra Mártir (testemunho), por si mesma tem sentido indiferente que se deve determinar pelo seu complemento: há testemunhos de verdade e testemunhos de mentira; e no mesmo Gólgota, onde expirava o Filho de Deus testemunhando a verdade, morria um mau ladrão dando testemunho à mentira.

Um dos ladrões, nota S. Lucas, blasfemou do Salvador, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós”. Portanto, quem é que nos assegura que, na boca de algumas pessoas, aquele Mártir do Gólgota, em vez de significar o nosso Divino Redentor, não signifique algum mau ladrão?

E não é destituída de fundamento esta suspeita; por quanto os maçons nos estão falando continuamente de um certo Cristo maçon, iniciado na Maçonaria de seu tempo, e que é filho de Deus. Neste caso, se o tal Cristo foi crucificado no Gólgota, seria Mártir do Gólgota; porém, como o mau ladrão, mártir só em testemunho da mentira.

Quanto ao contexto do trecho que examinamos, diz o Sr. Procurador da Coroa que “o Senhor permitiu que nos tempos que correm vejamos a lei, a religião do Mártir do Gólgota com as da paz e harmonia tão doces, tão fáceis de executar e seguir”.

Se a lei da Religião que hoje em dia, à preferência dos tempos idos, se acha tão doce e tão fácil de executar e seguir, é a fé e a Religião de outro qualquer Mártir do Gólgota que não seja o nosso divino Redentor, concedo, conquanto muito a pesar meu.

Se, porém, é a lei e a Religião do verdadeiro Filho de Deus, que por nós morreu na Cruz, nobis relinquens exemplum ut sequamur vestigia ejus (Pe. 2, 21), com igual sentimento, pela mesma razão, devo dizer que não é hoje mais doce, nem mais fácil de executá-la e segui-la, do que nas passadas eras.

O Divino Mestre diz no seu Evangelho (Mt. 7, 13): “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos são os que por ela entram; estreita é a porta e apertado o caminho que guiam para a vida, e poucos são os aqueles que acertam com ele”.

E acrescenta imediatamente: “Guardai-vos dos falsos profetas que vem a vós disfarçados de ovelhas e por dentro são lobos vorazes; pelos frutos os conhecereis”.

E depois: “Nem todos os que me dizem — Senhor, Senhor, entrarão no reino dos Céus; mas aqueles que fazem a vontade de meu Pai, que está nos Céus, estes sim, entrarão nos Céus”.

E quando a primeira vez enviou os Apóstolos a pregar, depois de lhes ter inculcado não temessem, “os que matam o corpo e não podem matar a alma; e temessem antes aquele que pode lançar no inferno corpo e alma” (Mt. 10, 28). Prosseguiu: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra (aquela paz com as paixões que o mundo quer) não vim

trazer a paz, mas sim a guerra, (a saber, contra as próprias e alheias paixões). Porque vim separar o homem de seu pai, a filha de sua mãe, e a nora de sua sogra (quando juntos não podem fazer a vontade de Deus, e os inimigos do homem são os seus próprios domésticos quando embaraçam-se mutuamente no serviço divino). O que ama o pai e a mãe, filho ou filha, mais do que a mim, não é digno de mim, (quanto mais os que amam o Governo mais do que a Cristo), e o que não toma a sua Cruz e não me segue, não é digno de mim”.

São estas as palavras com que o Divino mestre declarou a dificuldade da sua lei; e em outros mil lugares do Evangelho disse a mesma coisa; e o mesmo repetiram os Apóstolos na sua pregação escrita e oral.

Se nosso adorável Salvador nos prometesse o Paraíso contentando-se com o que nós quiséssemos crer e fazer, não há dúvida que facílimo seria o caminho, e os que mais correriam por ele seriam por certo os chamados ditosos do século.

Mas, o caso é que, além das palavras acima citadas, ele disse a seus Apóstolos outras mui positivas e categóricas: “Ide e ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos tenho prescrito (Mt. 18, 9 – 19, 20): quem crer e for batizado, será salvo, quem porém não crer, será condenado” (Mc. 16, 15, 18).

E o Apóstolo S. Tiago, falando acerca da necessidade de observar por inteiro a lei de Deus, disse: “qualquer que tiver observado a lei de Deus e a transgredir em um só ponto, tornar-se-á réu de a ter violado toda” (Tg. 2, 10). E a razão é, diz, que aqueles que em um ponto não querem fazer a vontade de Deus, mostram que não amam a Deus sobre todas as coisas; o que é princípio fundamental de toda a lei, e assim, faltando a este princípio, faltam à lei inteira.

Desse resumo da lei evangélica se conclui:

1° Que ela é tão difícil que muitos de seus pontos, sem o poderoso auxílio da graça de Deus, com as simples forças da natureza, não se poderiam absolutamente observar. Mas, este auxílio a ninguém que o peça fervorosamente Deus o nega.

2° Que nas atuais circunstâncias, em que o Governo se tem tornado uma pedra de escândalo para os fiéis, impedindo que se observe a lei de Jesus Cristo, no tocante à obediência à Igreja, mandando abrir Igrejas que a Autoridade eclesiástica mandou fechar, querendo que se admitam à participação dos divinos mistérios pessoas a quem o Vigário de Jesus Cristo excomungou, e ameaçando, com todo o rigor das leis civis, aos Padres e Bispos que desejam cumprir os seus deveres: nas atuais circunstâncias, digo, é muito mais difícil observar a lei de Cristo do que naqueles tempos que o Sr. Procurador da Coroa chama de opressão; porque, então, as autoridades civis, lembrando- se de que eram cristãos, e que seu governo era para facilitar a seus súditos o cumprimento da lei de Cristo, não faziam o que, infelizmente, se está fazendo em nossos dias.

“E por que não quer o Rever. Bispo de Olinda observar e cumprir o que é próprio da nossa Santa Religião, e abalança-se a levantar o estandarte da guerra?”

É justamente esta a pergunta que dirijo ao Governo do meu país, e com toda a razão.

“E no Brasil, onde felizmente domina a Religião Católica, Apostólica, Romana”.

Isto é, deveria dominar em virtude da mesma Constituição Brasileira. “Que todos abraçam e trabalham por bem cumprir?”

Provera a Deus que assim fosse! E antes de todos, o fizesse o Governo! Não teríamos a dor de ver o que atualmente estamos vendo nesta luta não menos antipolítica que irreligiosa.

“Mediu, pesou S.Ex. Rever. o alcance, os males de uma guerra religiosa?”

O Senhor nos preserve de uma guerra religiosa; mas, se para cúmulo de nossa desventura e expiação de nossos pecados, tal acontecesse, outro que não o humilde Bispo de Olinda acarretaria com a tremenda responsabilidade dos males, cujo alcance todos podem medir.

“Que lucros tirará de tão danado mal?”

Tudo isto a ninguém melhor quadra do que ao governo.

“Que vantagens, que bens auferirá a Religião do Filho de Deus...?”

Esta triunfará sempre, e graças a Deus, já está triunfando na heróica firmeza que desenvolveu o clero brasileiro sob a opressão e vexações do governo, e na pouca ou nenhuma consideração em que foi tomada a ordem do mesmo governo, mandando levantar interditos; os católicos nenhum caso, absolutamente, fizeram dela, e consideraram as Igrejas interditas, como dantes.

Quem por certo não auferirá nenhuma vantagem, antes, pelo contrário, está cavando, com suas próprias mãos, o medonho abismo em que, senão arrepiar carreira, se há de precipitar infalivelmente, é o governo.

“Males e males incalculáveis nos ameaçam; e por isso é de toda a necessidade e urgência procurar-lhes um paradeiro”.

Em abono da verdade, confesso que assim é.

Mas, como a causa de tantos males é o próprio Ministério, que está perseguindo a Religião Católica, Apostólica, Romana, a qual jurou manter e defender, por isso o paradeiro se deve procurar, não contra Bispos inocentes, mas contra a causa dos males incalculáveis que o Sr. Procurador da Coroa, e nós todos amargamente deploramos.

“E um dos meios mais seguros dura lex, sed lex, é a responsabilidade, e punir quem com tanto escândalo deu causa e não se quer conter”.

Verdade terrível! Se Deus e o país se determinarem a responsabilizar e punir o Ministério, que com tamanho escândalo deu causa e não se quer conter, infringindo o ponto mais fundamental da Constituição, como logo provarei.

“O Rever. Bispo de Olinda não pode desconhecer os preceitos do nosso pacto fundamental, leis das leis, e como então claramente não seguir, não fazer caso do que é proclamado, estatuído no §14 do art. 102?”

“E sem esta base essencial, sólida, deve S. Ex. saber que não teria o Império do Brasil a sua soberania, não seria uma nação livre e independente”.

“E o procedimento do Rever. Bispo de Olinda não tem como imediata conseqüência a violação do nosso pacto fundamental?”

Não! Pelo contrário, o Bispo de Olinda diz e sustenta que foi o Ministério que violou, da maneira a mais insólita e escandalosa, e com imenso dano do país, o nosso pacto fundamental.

Vamos às provas.

A nossa Constituição política diz:

“Art. 5° - A Religião Católica, Apostólica, Romana, continua a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de seu templo”.

“Art. 103 – O Imperador, antes de ser aclamado, prestará, nas mãos do presidente do senado, reunidas as duas câmaras, o seguinte juramento: — Juro manter a Religião Católica, Apostólica, Romana, a integridade e indivisibilidade do Império, observar e fazer observar a Constituição política da nação brasileira e mais leis do Império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber”.

“Art. 106 – O herdeiro presuntivo, em completando 14 anos de idade, prestará, nas mãos do presidente do senado, reunidas as duas câmaras, o seguinte juramento: — Juro manter a Religião Católica, Apostólica, Romana, observar a Constituição política da nação brasileira, e ser obediente às leis e ao Imperador”.

“Art. 127 – Tanto o Regente, como a Regência, prestará juramento mencionado no art. 103, acrescentando a cláusula de fidelidade ao Imperador, e de lhe entregar o governo, logo que ele chegue a maioridade ou cessar o seu impedimento”.

“Art. 133 – Os Ministros de Estado serão responsáveis:

1° ....................

2° ....................

3° Por abuso de poder.

4° Pela falta de observância da Lei.

“Art. 141 – Os Conselheiros do Estado, antes de tomarem posse, prestarão juramento nas mãos do Imperador de manter a Religião Católica, Apostólica, Romana; observar a Constituição e as Leis; ser fiéis ao Imperador, aconselhá-lo, segundo suas consciências, atendendo somente ao bem da nação”.

“Art. 143 – São responsáveis os Conselheiros de Estado pelos Conselhos que derem, opostos às Leis e ao interesse do Estado, manifestamente dolosos”.

“Art. 164 – A este tribunal compete:

1° Conceder ou denegar revistas nas causas, e pela maneira que a Lei determinar;

2° Conhecer dos delitos e erros de ofício que cometerem os seus Ministros, os das Relações, os empregados no Corpo diplomático, e os presidentes das províncias;

3° Conhecer e decidir sobre os conflitos de jurisdição e competência das Relações Provinciais”.

“Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:

1° Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da Lei;

2° Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade pública;

3° ..................

4° Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publica-los pela imprensa, sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito, nos casos e pela forma que a Lei determinar; 5° Ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública”.

Ainda quando se faça abstração da obrigação de observar a lei divina e da Igreja de Jesus Cristo, de preferência às leis e constituições de todos os reinos e impérios deste mundo, porque uma lei contrária à lei divina e da Igreja, não é lei; visto como uma lei é, segundo a

definem os juristas — dictamen rationis ad bonum commune; e o que é oposto à lei divina e da Igreja nem é ditame da razão, nem é para a o bem comum, como todos entendem: digo eu, ainda quando se prescinda desta obrigação anterior a todas as leis humanas, e se queira resolver a nossa questão, segundo a Constituição política do Império, da simples leitura dos artigos há pouco citados, da mesma Constituição, resultam as duas conclusões seguintes:

1a Nem o Bispo de Olinda, nem outro qualquer do Império, nesta questão infelizmente tão debatida, faltaram à Constituição; antes, observam-na do modo mais exemplar, vencendo, segundo o dever de seu Ministério Apostólico, as dificuldades suscitadas pela malignidade dos tempos, que não querem saber de rei nem de lei.

2a Os Srs. Ministros e Conselheiros de Estado, de muitos modos violaram a Constituição, já como Ministros e Conselheiros, já como brasileiros.

Provas da Primeira Conclusão

A primeira conclusão tornar-se-á em extremo evidente a quem considerar de um lado a importância que o legislador aplicou ao artigo 5°, como se depreende da leitura de todos os citados artigos da Constituição; de outro a sua interpretação absurda e injuriosa ao mesmo legislador, dada pelos nossos acusadores.

Acerca da importância que aplicou o legislador ao artigo 5° observe- se:

1° Ele o coloca com um dos cinco pontos essenciais da Constituição, anunciados no primeiro título, como a base lógica e jurídica dos títulos que se seguem.

Com efeito, os pontos essenciais que se devem ter em vista quando se trata de dar uma constituição política, são estabelecer:

1° de que maneira é composta a nação e qual o seu território;

2° qual o governo, e, no caso de ser o monárquico hereditário, qual a dinastia;

3° qual a Religião.

O primeiro ponto influi na Constituição como causa material; porque a qualidade dos indivíduos e a extensão do território exigem uma legislação própria: o segundo como causa formal; porque o que determina a forma do governo é o sujeito em que reside a autoridade suprema; e certamente cada forma de governo exige uma legislação peculiar: o terceiro como causa final; porque o fim da Constituição é ordenar aos membros com a força do direito, e a base de todo o direito é a Religião; por isso, quanto maior for a autoridade da Religião para os membros, e quanto mais nela estribar-se a Constituição, tanto maior será a força do direito com que ordenará aos membros, e melhor será a sua legislação.

Logo, o artigo 5° da Constituição é a base lógica e jurídica dos artigos que se lhe seguem; razão pela qual o legislador, lógica e juridicamente, colocou-o no primeiro título.

2° O mesmo legislador exige do Chefe Supremo da nação, seu primeiro representante, quando completa 14 anos, e antes de ser aclamado Imperador, o juramento citado nos artigos 103 e 106; onde jura-se manter: 1° a Religião Católica, Apostólica, Romana; 2° Tudo o que é relativo à Constituição.

Este mesmo juramento, e com a mesma ordem, se exige também do Regente e da Regência (art. 127) e dos Conselheiros de Estado, antes de tomarem posse.

Ora, está claro e patente que o legislador quer ter a certeza de que o Chefe Supremo da nação, seu primeiro representante, não consentirá violar o artigo 5°, nem por prejuízo de educação (art. 103), nem por eleição de seu arbítrio (art. 106), nem por insinuação de seus Conselheiros (art. 141 e 143), nem, finalmente, por alguma alteração já feita no tempo da Regência, e que tornasse impossível o remédio (art. 127).

Logo, segundo a mente do legislador, nada é tão essencial como este artigo:

“A Religião Católica, Apostólica, Romana, continua a ser a Religião do Estado”, visto como o faz jurar duas vezes em todos os ditos juramentos: a primeira explicitamente em termos os mais claros, e incapazes de restrição alguma; a segunda implicitamente; por quanto, sendo o artigo 5° parte essencial da Constituição, jurando-se manter a mesma Constituição, jura-se manter este artigo.

Ora, qual é a acusação que se formula contra o humilde Bispo de Olinda, e os seus Venerandos Colegas?

Ei-la em poucas palavras:

O Sumo Pontífice, Augusto Chefe da Religião Católica, Apostólica, Romana, fulminou pena de excomunhão maior contra os maçons; e excomungados estes, de fato estão fora das Irmandades. Estando fora das Irmandades, como corporações religiosas, destinadas ao culto divino, debaixo da jurisdição dos Ordinários, recebem dos Bispos ordem para que expilam de seu seio os maçons que, por ventura, não queiram abjurar; mas, recusam obedecer. Os Bispos punem-lhes a desobediência, lançando-lhes pena de interdito, arma que lhe fez empunhar o dever de seu sagrado Ministério. As Irmandades interpõem recurso à Coroa, proibido pelo direito canônico, e ultimamente sob pena de excomunhão latæ sententiæ, reservada de modo especial ao Romano Pontífice.

Neste ínterim, chega um Breve do SS. Padre, aprovando o que fizeram os Bispos a este respeito, e autorizando-os com plenos poderes a procederem contra as Irmandades rebeldes. Os Bispos publicam este Breve, sem o beneplácito imperial.

O Ministério do Império dá provimento ao recurso das Irmandades, e manda aos Bispos levantem o interdito e não considerem excomungados os maçons, e, ao mesmo tempo, condena o procedimento daqueles a respeito da publicação do Breve. Os Bispos recusam obedecer, por ser tal ordem, debaixo de muitos pontos de vista, atentatória da divina Constituição da Igreja Católica, Apostólica, Romana, que só tem por árbitros supremos nas questões religiosas ao Soberano Pontífice e aos Bispos em suas Dioceses, e nunca ao Governo.

Ora, isto posto, não é claro como a luz do sol em pleno dia, que os Bispos não deviam obedecer, já como Bispos, já como brasileiros, cuja Constituição exige, manda e ordena que a Religião Católica, Apostólica, Romana seja sempre tão respeitada?

Logo, provada está a primeira conclusão.

Mas, ainda mais clara e evidente torna-se a prova, se examinarmos o modo absurdo e injurioso ao legislador, porque pretendem os nossos acusadores explicar o art. 5° da Constituição.

Dizem que o artigo 5° se entende com a restrição do art. 102 § 14 da mesma Constituição, onde se diz que o Imperador, Chefe do poder executivo, pode “conceder ou negar beneplácito aos Decretos dos Concílios e Letras Apostólicas, e quaisquer outras Constituições eclesiásticas, que se não opuserem à Constituição, e precedendo a aprovação da Assembléia, se contiverem disposição geral”.

Respondo:

1° Ou este artigo 102 § 14, concorda com todos os artigos citados relativamente à Religião Católica, Apostólica, Romana, (arts. 5°, 103, 106, 127, 141), ou não concorda.

Se concorda, nada encerra contra os Bispos, que outra coisa não fizeram, senão cumprir com seus deveres, já como Bispos, já como brasileiros, conforme provado fica.

Se não concorda, como também já se provou, nada tem contra os Bispos; pois evidentemente este artigo não é essencial, senão muito acidental à Constituição; portanto no interesse da mesma Constituição não se deve transgredir um dos artigos mais essenciais para observar um acidental.

Em todo o caso, os Bispos, não sujeitando o Breve Pontifício ao beneplácito imperial e não prestando obediência ao ministério em matéria contraria à Religião Católica, Apostólica, Romana, cumpriram os deveres não só de Bispos, senão também de cidadãos brasileiros.

2° Todas as leis da boa hermenêutica nos ensinam que os pontos mais claros de um contexto são a chave que abre o sentido dos mais obscuros; e as leis da prudência e caridade nos ditam que se não devem taxar de contraditórios é evidente e palpável.

Ora, na nossa Constituição, o que é relativo à Religião Católica, Roma e suas conclusões práticas é tão claro que não admite dúvida, senão dos que acintosamente querem sofismar; e o que se refere ao beneplácito não proíbe, claramente aos Bispos a publicação dos Decretos dos Concílios, Letras Apostólicas e outras Constituições, no que propriamente consistiria a oposição ao art. 5° e, por conseguinte, a contradição.

Logo, não se pode provar que o art. 5° e o art. 102, § 14, sejam contraditórios; e, portanto, se os Bispos observaram um artigo não faltaram ao outro.

Na verdade, além da autoridade de vários jurisconsultos que ensinam não ser necessário beneplácito imperial para publicação dos Decretos dos Concílios e Letras Apostólicas e quaisquer outras Constituições, quanto à regra da fé e da disciplina eclesiástica, mas tão somente quanto aos seus efeitos civis que dependem do Poder Executivo; é claro e evidente que assim se deve entender — 1° das palavras do art. 102 § 14, onde nenhuma menção se faz dos Bispos; e, tratando- se de um negócio em que se limita a liberdade e ação deles, parecia que a Constituição deveria ser mais explícita no intuito de evitar conflitos; 2° do mencionado art. 179.

E, com efeito, segundo este artigo há, em nosso país, liberdade, pela qual, sem dependência de censuras, podem todos comunicar os seus pensamentos por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa, contanto que sejam responsáveis pelos abusos que cometerem.

Ora, se todos os cidadãos gozam de liberdade, com maioria de razão tem-na os Bispos, máxime tratando-se de publicar, não pensamentos frívolos e inúteis, porém as disposições da maior importância que se podem publicar neste mundo, nas quais conhecem os fiéis que não pode haver abuso; por quanto, o que vem do Sumo Pontífice, em relação ao governo da Igreja vem do Espírito Santo.

Logo, segundo o espírito de toda a Constituição do Império e a mente do legislador, o art. 102 relativo ao beneplácito não se deve entender quanto a simples publicação dos Decretos dos Concílios, Letras Apostólicas, e quaisquer outras constituições eclesiásticas; mas quanto à sua publicação para efeitos civis.

Logo, os Bispos, publicando o último Breve do SS. Padre Pio IX, sem beneplácito do Governo Imperial, não violaram este artigo da Constituição; por isso que não entraram nos efeitos civis.

3° Sumamente injuriosa ao legislador é a interpretação que nossos adversários querem dar ao artigo 5°, cerceando-o com o art. 102; por quanto, nesta suposição, o juramento que tantas vezes exige, e com tamanha solenidade, nos artigos 5, 103, 106, 1271 141, seria uma impostura em moral, uma contradição em lógica, e uma traição ao país em política e em Religião.

Uma impostura em moral. Porque, na hipótese, o Imperador, o Regente, e os Conselheiros jurariam manter uma Religião Católica que não é a Religião Católica, mas a seita dos protestantes sob a denominação de Religião Católica; visto como, segundo a suposição dos adversários, a Religião que se jura manter é tal que faz depender do beneplácito imperial a publicação do que se deve crer.

E o que será da fé do povo se o Imperador não permitir a publicação?

Logo, neste caso, a fé do povo depende da vontade do Imperador.

Ora, uma Religião que professa semelhante doutrina não é a Religião Católica, mas a seita dos protestantes com o suposto apelido da Religião Católica, Apostólica, Romana. Logo, na suposição de nossos adversários, tantos juramentos seriam em moral uma verdadeira impostura.

Uma contradição em lógica. Dizem os nossos adversários que, em virtude do beneplácito, deve o Imperador examinar os Decretos dos Concílios, Letras Apostólicas, e quaisquer Constituições Eclesiásticas, sendo submetidas à aprovação da Assembléia Geral, se contiverem disposições gerais; e acrescentam que tudo isto não é no intuito de discutir o dogma, pois reconhecem que para tal não é ela juiz competente; mas, para ver se nesses atos do Pastor universal da

Igreja existem disposições que vão de encontro ao Governo. Ora, digo, é nisso que se acha a mais flagrante contradição.

E se não, suponhamos o caso que já se deu.

Chega de Roma uma Constituição Pontifícia, acompanhada de um syllabus de vários erros condenados pela autoridade infalível da Santa Sé. São estes erros os princípios reguladores de muitos Governos hodiernos; e, por isso, o Supremo Pastor da Igreja condenou-os por amor da temporal e eterna felicidade dos povos.

Agora, pergunto, se essa Constituição há de solicitar o beneplácito do Imperador em vigor do artigo 102 § 14, como é interpretado pelos adversários, não se lho poderá negar por conter ela determinações contra o Governo?

E negado o beneplácito, não seria julgar em matéria de fé?

Logo, ao mesmo tempo o Imperador julgar-se-ia e não julgar-se-ia juiz competente em matéria de fé; o que é contraditório.

Ainda mais.

Julgando o Imperador se um Decreto Apostólico ou Constituição Pontifícia encerra ou não alguma coisa contra o governo civil, o seu juízo é falível ou infalível?

Se falível, pode ser que fato se engane e, neste caso, negando-lhe licença para a publicação, será causa de grandes distúrbios e danos para a nação que governa.

Se infalível, então teria o Imperador aquele dom de infalibilidade que, pela própria exigência do beneplácito, se nega ao Papa; por quanto, não se examina para conceder ou negar beneplácito, se não do que se supõe ser ou poder ser errôneo.

Ora, é princípio fundamental da Religião Católica, que o Papa e os Concílios Ecumênicos são infalíveis em seus Decretos e Constituições, em virtude das promessas de Jesus Cristo e da assistência do Espírito Santo; e, visto como mais a pessoa alguma neste mundo prometeu o Divino Mestre essa assistência, também ninguém mais é infalível.

Logo, segundo a interpretação que os adversários dão ao artigo 102 § 14, se supõe o Papa infalível, porque assim o ensina a crença Católica, e se supõe ao mesmo tempo falível, pois se conhece a possibilidade de erro em suas Constituições Apostólicas: se supõe o Imperador falível, porque assim o exige a fé Católica, e infalível porque se lhe atribui o direito de julgar, sem apelo nem agravo, as Constituições Pontifícias.

Haverá contradição mais palpável do que esta?

Além disso, admitida a explicação dos adversários, os tais juramentos são...

Uma traição do país em política e em Religião.

Já fiz notar que o legislador colocou sob o título primeiro a parte relativa à Religião do Império; porque a Religião é a base do direito, e por isso é a Religião que sustenta o direito.

De sorte que, suprimindo-se do mundo a Religião, suprimir-se-ia juntamente a existência de Deus, e, tirada a existência de Deus, a regra do homem seria o libido; por isso que, se a sanção do látego, e do azorrague é suficiente para guiar animais irracionais, não o é para criaturas inteligentes, cuja vontade não conhece limites na resistência que pode opor a quem tenta guiá-las com a força bruta, assim, como não os conhece nos imensos recursos que lhe pode sugerir o entendimento. É por isso que a irreligião fazendo desconhecer a força do direito, engendra infalivelmente a revolução.

Por conseqüência, a profissão da Religião é de suma necessidade, não só para agradar a Deus, senão também para obedecer aos superiores temporais e respeitar as leis civis.

Ora, com a interpretação dada pelos adversários ao artigo 5°, querendo limitá-lo pelo artigo 102 § 14, torna-se possível mudança da Religião verdadeira em falsa, quase insensivelmente, sem que o povo perceba sua ruína; porquanto, condenado um erro, como heresia, torna-se herética a nação que continuasse a professá-lo; e posta a negação do beneplácito para publicação das Constituições Apostólicas, como conhecerá o povo ou respeitará as condenações pontifícias?

E assim, a nação seria vítima de uma horrorosa traição, julgando-se Católica por ouvir os juramentos dos que a governam, quando estaria fora do seio materno da Santa Igreja Romana, por não ter a mesma fé, nem achar-se sob obediência do Romano Pontífice.

Logo, admitida a tal interpretação, os juramentos seriam uma traição ao país em política e em Religião.

Recapitulemos as provas da primeira conclusão.

Acusando-me o Sr. Procurador da Coroa com figuras retóricas, desafiara a quem quer que fosse a provar como o meu procedimento não levava consigo violação do fato fundamental, tendo infringido o artigo 102 § 14, que S.Ex. chama base essencial, sólida, sem a qual não teria o Brasil, a sua soberania, não seria uma nação livre e independente.

Provei-lhe mais do que ele exigia; isto é, que nem o humilde Bispo de Olinda, nem tão pouco os demais Bispos do Brasil violaram ponto algum da Constituição, muito menos os pontos essenciais; e que, nesta luta com o Ministério, não só pugnamos, como Bispos, pela

Constituição da Igreja, mas também, como brasileiros, pela manutenção da Constituição do Império.

As provas foram estas:

1a Segundo a mente do legislador, claramente revelada em todo o teor da Constituição, e, principalmente, nos repetidos e tão solenes juramentos, a Religião Católica, Apostólica, Romana, puramente professada, como o é por todos os fiéis, é a Religião do Império e lógica e juridicamente um dos pontos essenciais da Constituição.

Ora, na questão atual, nós, Bispos, defendemos a Religião Católica, Apostólica, Romana, tal qual é puramente professada pelos fiéis.

Logo, lógica e juridicamente defendemos a Religião do Império, e um dos pontos mais essenciais da Constituição; e, assim, cumprimos os nossos deveres, quer de Bispos quer de cidadãos brasileiros.

2a O art. 102 § 14, citado pelo meu acusador, não limita o Governo da Religião Católica, sujeitando seus atos ao apraz-me imperial, mas, exige tão somente o beneplácito quanto aos efeitos civis, como é evidente e manifesto do teor do mesmo artigo, da liberdade de imprensa de que todos gozam, e da autoridade de vários jurisconsultos de nota; e se o limita no sentido dos adversários, é, sem contradição, ponto acessório da Constituição e não essencial, como o art. 5°, e os demais artigos relativos aos juramentos, nos quais professa-se a Religião Católica, Apostólica, Romana, pura, sem condição nem restrição alguma.

Em todo caso, o mesmo artigo não pôde autorizar nenhuma acusação contra os Bispos, mandando violar tantos outros artigos mais fundamentais da mesma Constituição.

3° A interpretação que se pretende dar ao art. 5° em relação ao art. 102 § 14, como se devesse entender com esta condição e restrição a

Religião Católica, Apostólica, Romana, professada pelo Estado, é uma interpretação por extremo injuriosa ao legislador; porquanto fa-lo-ia exigir um ato que em moral seria uma impostura, em lógica uma contradição, em política e Religião uma traição ao país.

Em moral uma impostura. Porquanto com palavras professar-se-ia a Religião Católica, e de fato, a seita dos protestantes, na qual o supremo árbitro das questões religiosas é o poder civil. Se tal não se faz com uma definição ex Cathedra, pouco importa, porque se faz com uma definição de fato, decidindo ex vi do beneplácito que doutrinas devem correr e quais não.

Em lógica uma contradição: porque, a interpretação sugerida supõe o Papa e a Igreja infalíveis e falíveis a um tempo: infalíveis segundo o dogma Católico, e falíveis segundo a necessidade do beneplácito, que admite a possibilidade de algum erro nos atos do Papa e da Igreja (se a não admitisse para que seria o beneplácito?).

A dita interpretação supõe do mesmo modo o Imperador falível e infalível; falível porque não é Papa, infalível porque decide sem apelação, se as Constituições da Igreja devem ou não correr livremente.

Haverá maior contradição em juramentos feitos neste sentido?

Em política e Religião uma traição ao país. Porquanto não havendo verdadeira política sem Deus, e não se manifestando as relações do homem para com Deus, senão por meio da Religião verdadeira, segue-se que fora desta Religião não há sã política. Ora, a suposta interpretação do beneplácito abre, no país, caminho à ruína da verdadeira Religião, jurada tantas vezes e com forma tão evidentemente Católica, pelo primeiro representante da nação e pelos outros que o auxiliam no governo. Logo, estes juramentos seriam em política e Religião uma traição ao país.

Assim, pois, fica a todos os respeitos provada a primeira conclusão que, nesta luta com o Governo, nem eu, nem os demais Bispos do Império, violamos de modo algum a Constituição, e muito menos, os pontos essenciais dela; antes, pelo contrário, pugnamos pela defesa da Religião Católica como Bispos, e pela da Constituição política do Império como brasileiros.

E aqui pudera eu fazer ponto, sendo o fim deste exame defender os meus atos e os dos meus venerandos Colegas no Episcopado, e não acusar os alheios. Mas, a força da lógica que não depende de nossa liberdade, a defesa do país para a qual devem concorrer todos os cidadãos, pospondo-lhe todos os respeitos e interesses particulares, e, finalmente, o dever de meu sagrado Ministério, como Bispo brasileiro, me obrigam a não recuar diante da segunda conclusão, em que se diz que os Ministros e Conselheiros de Estado em oposição aos Bispos, faltaram de mil modos à Constituição, já como Ministros e Conselheiros de Estado, já como brasileiros.

Disse que a esta segunda conclusão me arrasta a força da lógica; porque tal é natureza da acusação de que estou me defendendo a mim e aos meus Exmo. Colegas, perante o tribunal do bom senso, que não posso promover a nossa defesa sem ao mesmo tempo formular contra os nossos acusadores acusação do mesmo crime que nos imputam.

Ministros, Conselheiros e Procurador da Coroa acusam-nos, porque, como já se provou, quisemos observar o artigo 5° da Constituição, segundo o espírito desta; e não, segundo a interpretação falsa e sobremaneira perniciosa ao bem público e particular, civil e religioso, que lhe querem dar. Logo, provado que os Bispos deviam observar o art. 5° como o observam, provado está igualmente que Ministros e Conselheiros violaram o artigo 5°, aconselhando, mandando e denunciando os Bispos como inimigos, porque observaram-no.

Eis, portanto, a necessidade lógica da segunda conclusão.

Além disso, a defesa do país obriga a todo o bom cidadão a lançar mão dos meios ao alcance para evitar à pátria todo e qualquer dano.

Se acaso chegasse ao meu conhecimento a existência de uma conspiração de médicos e farmacêuticos, por exemplo, com o fim de envenenar os medicamentos, e matar sorrateiramente toda ou parte de certa população, não teria eu a restrita obrigação, como bom cidadão, de denunciá-los?

Pois, é este o nosso caso, e com maioria de razão, por quanto Ministros e Conselheiros de Estado, não tratam de matar o corpo, porém a alma do povo brasileiro. E não digam que este argumento se deve deixar aos carolas ou jesuítas: Ovídio, poeta pagão, que por certo bem longe estava de ser carola ou jesuíta. Em análogas circunstâncias disse ele:

Ut corpus redimas ferrum patieris et ignes,

Arida nec silicus ora levabis aqua;

Ut valeas animo quicquam tolerare negabis?

At pretium pars hœc corpore majus habet.

O Ministério Episcopal, enfim, força-me a não recuar diante da mesma conclusão, porque segundo a frase do grande Apóstolo das nações, é dever dos Bispos, não só loqui quæ decent sanam doctrinam, como também eos qui contradicunt arguere, sendo ambas as tarefas: a de ensinar e a de repreender, simbolizadas no báculo pastoral, que, na sua origem, bem como na sua forma, outra coisa não é senão o cajado com que o pastor guia as suas ovelhas e defende-as, torcendo-o contra os lobos.

Por conseguinte, com muito pesar meu, não posso recuar diante da segunda conclusão, e para confirma-la outras provas aduzirei.

Provas da Segunda Conclusão

Segundo os artigos supracitados, os Ministros de Estado são responsáveis por abuso de poder e por falta de observância à lei (art. 133 § 3 e 4); são responsáveis os Conselheiros de Estado pelos conselhos opostos às leis e ao interesse do Estado manifestamente dolosos (art. 143); e os mesmos Conselheiros juram manter a Religião Católica, Apostólica, Romana (art. 141).

Ora, o Aviso do Ministério do Império, de 12 de Junho, baseado em um parecer do Conselho de Estado pleno, que aprovou o da seção do mesmo Conselho dos Negócios do Império, apresentado em 23 de maio último, conforme longa e evidentemente o prova ao Senado, na sessão de 30 de junho deste ano, o Ilmo. e Exmo. Sr. Senador Candido Mendes de Almeida, é ilegal, anárquico e atentatório da verdade e ofensivo da Religião do país, e dos direitos do Episcopado. Por outra, os Ministros abusam de seu poder contra a Igreja e não observam o art. 5°, e os Conselheiros faltam ao seu juramento e dão conselhos opostos às leis e ao interesse do Estado manifestamente dolosos.

Logo, Ministros e conselheiros incorreram na responsabilidade dos citados artigos 133 § 3 e 4 e 143 da Constituição.

“Parece que o único propósito (da Seção do Conselho dos Negócios do Império) diz o erudito Senador, era achar sempre má vontade do Bispo contra a lei, violência e arbítrio, quando por outro lado tudo se empregava para o sacrifício da causa da verdade e glorificação da apostasia. Toda a jurisprudência do Conselho de Estado, todo o respeito ao decreto n° 1911 de 28 de março de 1857, o direito canônico e as prerrogativas do metropolita caíram por terra, tudo devia ceder o passo ao previsto triunfo da apostasia, cujo recurso, maculado de tantas e insanáveis nulidades, devia a todo o custo ser recebido”.

“As próprias autoridades civis, Sr. Presidente, por não terem desenvolvido todo o rigor, todo o zelo acirrado contra o procedimento do Bispo de Olinda, tiveram o seu quinhão de azeda censura, e como que ficaram preparadas para, em qualquer outra emergência, mostrarem o que podem subalternos estimulados, senão irritados, com tão afiado acicate”.

“São três, Sr. Presidente, os defeitos que encontrou a Seção no recurso interposto pela irmandade do Santíssimo Sacramento da Paróquia de Santo Antônio da Cidade do Recife: 1° vir fora de tempo, 2° não ser a petição assinada por advogado do Conselho de Estado, 3° falta de prévia apelação para o Metropolita. A estes defeitos podia se acrescentar o de falta de cópia autêntica do compromisso da irmandade, em que aliás tanto se apoia a Seção e o governo no aviso de 12 de junho, sem que ninguém visse-o!”

“O recurso da irmandade recorrente não foi interposto em tempo útil (decreto n° 124 de 5 de fevereiro de 1842, artigos 39 e 45), bem o reconheceu a doutra seção, mas tem o cuidado de acrescentar que sendo contra a autoridade eclesiástica, não deve ter tempo certo, a qualquer hora, a qualquer momento pode ser interposto e aceito; toda a garantia a favor delas deve ser posta à margem; adversus hostem æterna auctoritas. Esse termo dado para a interposição dos recursos (10 dias) a jurisprudência do Conselho de Estado tinha sempre julgado fatal e o mantinha, mas nesse caso vinha sofrer a apostasia privilegiada, predileta, o que não convinha”.

“Por meio de uma singular, mas fútil argumentação jurídica, declarou-se em vigor disposição já revogada, o art. 3° do decreto n° 10 de 3 de fevereiro de 1838, contra o que terminante e positivamente determinou o decreto n° 1911 de 28 de março de 1857, art. 24, nas seguintes palavras in fine: ‘que procederá como

determinam os artigos 13 e 14 do decreto de 19 de fevereiro de 1838, o qual só nesta parte fica em vigor!’ . Todas as outras razões invocadas para adornar esta estranha novidade, serviam também, talvez com mais força, para os casos de recursos civis e nunca se fez uso!”

“Mas, Sr. Presidente, parece que nesse caso a atitude do direito tomou outras proporções; havia no governo um grão-mestre da franco-maçonaria, é certo, mas esse fato, e outros nas mesmas condições, nunca poderiam influir para a variação do direito e da jurisdição de uma corporação tão respeitável por sua luzes. Qual a razão?”

“A segunda nulidade consiste em não ter sido assinada a petição de recurso por advogado do Conselho de Estado (art. 37 do decreto de 5 de fevereiro de 1842). Em verdade é duro que se perca um recurso por falta de assinatura de um advogado daquela corporação, sendo tão poucos os que possuem esse título, e todos ou quase todos residindo na Corte, e nesta parte as razões da seção calam no espírito; mas, é admirável, Sr. Presidente, que sendo intuitivo o inconveniente, nunca o Conselho de Estado, nem o governo tratasse de reforma-lo; é pois com sacrifício da Igreja que se procura sanar esse pequeno mal, de cuja existência poucos tinham conhecimento. O próprio autor do decreto n° 1911 de 1857, dormitou quando redigiu- o, e seus sucessores no governo nunca cuidaram de reparar o descuido!...”

“Se a precedente nulidade é aceitável, não me parece, Sr. Presidente, que a terceira se ache em idênticas condições. Refiro-me à apelação ao metropolita...”.

“O Sr. Zacarias: — Apoiado”.

“O Sr. Mendes de Almeida: — ... que devia preceder ao recurso, em vista do art. 7° do decreto n° 1.911 de 1857, meio facultado pelos

cânones, como a própria seção reconhece, e sendo tão terminantes as palavras do artigo citado que passo a ler: ‘Não será porém admitido o recurso à Coroa, no caso do art. 1° § 3° (abusos na jurisdição espiritual), senão quando não houver ou não for provido o recurso, que competir para o superior eclesiástico’”.

E pouco antes notara o ilustre Senador:

“A ilustre seção julga que houve excesso na sentença do interdito, porque não se limitou o prelado a punir por desobediência a Mesa Regedora, levando em sua violência e arbítrio toda a corporação. Prescindamos desta intervenção absurda do poder secular no processo eclesiástico, mas a verdade foi ainda neste caso sacrificada pela seção, porquanto do seu próprio relatório do corpo de delito do Bispo se vê que o proceder da Mesa Regedora foi aprovado pela Irmandade, para esse fim convocada expressamente”.

Recapitulando, o eloqüente e doutro jurisconsulto conclui:

“Pela análise, Sr. Presidente, um pouco detalhado da Consulta e do Aviso de 12 de Junho deste ano, estou persuadido que demonstrei: 1° que para as Bulas de 1738 e 1751 era o “placet” inaplicável, e portanto, mesmo no sentido dos mais rigorosos autoritários, essas Bulas estavam em execução no nosso país”.

2° que o “placet” não pode ser, sem perigo para a nossa Religião, interpretado senão de harmonia com o art. 5° da Constituição.

3° Que o “Recurso à Coroa” por parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio da cidade do Recife, não podia deixar de ser desprezado, por isso que o Revmo. Bispo de Olinda procedeu curialmente, sem ofender direito algum do Estado.

4° Que em tais condições o Aviso do Ministro do Império de 12 de Junho último, é injusto, é ilegal, é anárquico, atentatório da

Constituição no art. 5°, tendo por objetivo ofender, desmoralizar o mesmo, destruir a Religião que o país segue e jurou defender naquele pacto fundamental.

5° Que o propósito do mesmo Aviso não pode ser outro senão promover a propaganda da apostasia maçônica por meios de governo; e por isso é o mesmo governo digno da mais severa censura: tal é o meu humilde voto”.

Confirma esta conclusão um fato gravíssimo que se deu antes do Aviso de 12 de junho. O fato é geralmente conhecido, mas, nem todos atentam para a sua gravidade.

O Presidente da Província de Pernambuco autorizou uma reunião do povo para o fim de protestar contra o ato do Diocesano relativo à suspensão de um padre. Bem sabem todos que se o Diocesano , em suspendendo a esse padre, obrara mal, não era por certo este o meio de defender o suposto inocente, mas sim recorrer a um tribunal legítimo. Autorizar uma manifestação popular contra a primeira Autoridade eclesiástica da Diocese, era o mesmo que autorizar uma revolução religiosa.

Ora, teve lugar esta reunião no dia 14 de maio, e deram-se cenas de desordens, cuja dolorosa recordação ainda nos impressiona, as quais deixaram mais uma página negra na história dos povos cultos e civilizados. Teve o Sr. Presidente da Província, pergunto, por este seu procedimento alguma censura?

Por este seu procedimento, não; teve-o porém e assaz severo por não ter sido ainda mais rebelde contra o seu Pastor e pai espiritual, recebendo o recurso da Irmandade no efeito devolutivo, quando, segundo o governo, deveria tê-lo recebido no efeito suspensivo.

Assim, pois, fica provado a toda a luz da evidência que, no Ministério e no Conselho do Estado, há firme e deliberado propósito de perseguir a Religião do país; para isso abusam os Ministros de seu poder, e violam os Conselheiros o seu juramento, incorrendo, por conseguinte, na responsabilidade dos citados artigos 133, § 3 e 4 e 143. Da Constituição.

É pelas razões expendidas que contra eles protesto diante de Deus, e de todo o meu país e os denuncio ao tribunal do bom senso daqueles que o não tiveram depravado pelas teorias falazes, desconhecidas de toda a veneranda antigüidade, que temos a mágoa profunda de ver circular desassombradamente e com imenso dano das almas incautas.

Voltemos ao exame da denúncia.

“S. Exc. Revma., com uma tal violação e com o mais que fez e faz, não terá em vista promover interesse pessoal seu?”

Não interesse pessoal meu, mas interesse pessoal alheio; isto é, o interesse de minha cara pátria e de minhas amadas ovelhas, como já provei.

“Não o interesse sórdido e mesquinho do dinheiro, das riquezas, mas sim o alto interesse de estender, de elevar atribuições que o levarão a ser uma autoridade suprema e independente”.

Só há na terra duas autoridades supremas e independentes, cada qual dentro da órbita de suas atribuições, o Chefe do poder espiritual, e o do poder temporal. E lembrou-se o Sr. Procurador, sem dúvida no intuito de corroborar a sua acusação, de atribuir ao humilde Bispo de Olinda, religioso dos Menores Capuchinhos, pretensões a uma destas duas Supremas Autoridades!!!

“O Revmo. Bispo de Olinda, procurando e obtendo novas ordens da Cúria Romana, e dando-lhes execução entre nós sem sujeitar-se aos

trâmites necessários, terá reconhecido autoridade superior fora do Império, prestando-lhe obediência?”

No temporal, não; no espiritual, sim: e assim devem fazer não só todos os Bispos, como também todos aqueles que não tem o catolicismo somente nos lábios, mas o tem, e principalmente, no íntimo do coração.

“Ou terá recorrido à autoridade estrangeira sem impetrar licença?”

Nego suppositum: o Sumo Pontífice, o Pai comum de nossas almas, o augusto Chefe de toda a cristandade não é autoridade estrangeira para nenhum país Católico; porquanto o pai não pode ser estrangeiro para seus filhos.

“O Revmo. Bispo de Olinda lançou interditos, quis reviver uma medida vexatória, iníqua, que estava fora de uso”.

Logo, os interditos que a Igreja costuma lançar como pena medicinal, para que seus filhos rebeldes abram os olhos e se convertam é uma medida vexatória, iníqua?

E é um católico que assim fala?

É fora de uso!...

É fora de usa para a Igreja!?

Quem o disse ao Sr. Procurador da Coroa?

Só uma coisa acho eu fora de uso na questão dos interditos: é que o poder civil os mande levantar, tornando-se objeto da irrisão do povo, como está acontecendo.

“E o que é mais, não podia ter lugar ex vi da lei de 18 de dezembro de 1516; da carta régia de 20 de outubro de 1620, de 23 de fevereiro de 1821 e de 12 de outubro de 1823; nem mesmo a par da prov. Reg. De 10 de março de 1764 e 18 de janeiro de 1765”.

Ainda quando, na questão do valor dos interditos, o Sr. Procurador da Coroa citasse todas as leis civis do universo, se não citar alguma lei eclesiástica, não alcança mais do que aquele que pretendesse resolver, com uma comissão de médicos ou teólogos, uma questão de engenharia. Por conseguinte, quaisquer que sejam as leis citadas, sendo emanadas de príncipes temporais, não podem tirar nem sequer um ceitil de força a uma determinação eclesiástica.

“S.Ex., que deve ser o primeiro a dar exemplo de justiça moderada e brandura, não atendeu que, ainda quando pudesse aplicar tão forte censura eclesiástica, não devia fazê-lo sem todas as cautelas, para que não ficassem sob o peso, os que em nada haviam concorrido, e para que não ficassem os fiéis privados de todo socorro espiritual”.

Deixo a parte histórica da censura que se digna fazer-me o Sr. Procurador da Coroa, porque já refutei tanto neste, como no exame do Aviso de 27 de setembro.

Quanto, porém, à parte dogmática, em quem diz S.Ex. que os fiéis pelo interdito ficam privados de todo o socorro espiritual, perdoe-me S.Ex., pois caiu em um formidável equívoco.

O interdito não é o mesmo que excomunhão: esta, sim, priva os fiéis de todos os socorros espirituais, porque separa-os inteiramente da Igreja, negando-lhes todos os sacramentos; ao passo que o interdito priva-os tão somente, de alguns deles e dos ofícios divinos, e isto mesmo com muitas modificações.

Além disso, no nosso caso, da parte dos que não estão excomungados, e não deram motivo ao interdito, toda a questão

cifra-se em não vestirem opa. Tanto mais que, prescindindo desse fato, a Autoridade Eclesiástica podia proibi-la por outras razões; visto como vestir opa é matéria que entende com o culto divino e por isso da competência do Bispo.

“A desobediência do Rever. Bispo de Olinda em cumprir o que foi decidido no recurso à Coroa, interposto pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio do Recife, é clara e escandalosa”.

Clara e escandalosa foi, sem dúvida, a injustiça e rebelião do governo contra a Religião do país, a qual deve defender e acatar mais do que outra qualquer coisa, em virtude dos juramentos tão solenemente feitos.

Permita-me S.Ex. que o contradiga no que diz respeito à minha suposta desobediência.

Obediência e desobediência são termos relativos a autoridade superior. Ora, em matéria atinentes à Religião, os Bispos não podem reconhecer, como superior, nenhum Ministro ou delegado do poder civil; mas só ao Exmo. e Revmo. Sr. Arcebispo e ao Sumo Pontífice. Logo, no meu ato relativo ao interdito não podia haver desobediência.

“S.Ex. Revma. não se importa do que, segundo as leis do Brasil e nos limites de atribuições rigorosamente legais, é decidido pelo Governo Imperial”.

Desculpe-me o Sr. Procurador da Coroa; isto é uma acusação muito gratuita que ainda não se provou, e jamais poder-se-ia provar. Prezo- me de ser tão obediente às prescrições do poder civil quando este não sai da esfera de suas atribuições, quanto o sou às do poder eclesiástico em matérias religiosas.

“Antes, porém, peço a V. Majestade Imperial, que, com seu saber e luzes, mandando formar o processo e fazendo efetiva a responsabilidade daquele alto funcionário público, determine definitivamente, se as infrações recaem no art. 96 ou no art. 81, ou no art. 79, ou no art. 142, ou no art. 129, nos §§ 1° e 7° na parte final, todos do código criminal”.

E eu fervorosamente suplico a Deus se digne outorgar força e luz a Sua Majestade Imperial, para que ponha um paradeiro a tantos escândalos, a tantas injustiças, a tanta prepotência; e veja, enquanto ainda é tempo, o abismo profundo e espantoso que esta guerra contra a Igreja está cavando a Monarquia.

O fato não é novo nem sem exemplo na história. Todos sabem perfeitamente que a guerra, que nos trouxe a revolução francesa do século passado, começou contra a Igreja e acabou contra a Monarquia. Por isso ficaram para sempre memoráveis as palavras inspiradas do Padre Beauregard, proferidas do alto do púlpito da Catedral de Paris, 13 anos antes de arrebentar a revolução:

“Sim, é contra o rei, é contra o rei, e contra a Religião que os Filósofos intentam1. Já eles empunham o machado e o martelo, e só esperam o momento favorável para derrubarem o trono e o altar”.

Sim, vossos templos, Senhor, serão despojados e destruídos, vossas festas abolidas, vosso nome blasfemado, vosso culto proscrito. Mas! Santo Deus! O que ouço! O que vejo! Aos cânticos inspirados que, em vosso louvor, fazem retumbar essas abobadas sagradas, sucedem cânticos lúbricos e profanos!”

“E tu, infame divindade do paganismo, impudica Vênus, vens audazmente ocupar, aqui mesmo, o lugar do Deus vivo; vens assentar-te no trono do Santo dos Santos e daí receber o incenso criminoso de teus novos adoradores?”

Tudo isto, como sabem todos, realizou-se ao pé da letra e ninguém há que ignore como também tudo verificou-se textualmente em relação à família real.

Com tudo, a desditosa Rainha Maria Antoinette, no tempo de sua glória, não podia crer que a maçonaria fosse tão inimiga do trono e do altar; e a quem, uma vez, lhe observava que nos maçons a beneficência era um mero pretexto, porquanto para a prática da caridade não são necessários tantos mistérios: “Como então? Replicou um tanto enfadada, pois, não pôde cada qual praticar a caridade, como bem lhe parecer?”

Coitada! Viu ela, depois, no cadafalso, se se tratava de caridade. Sublime lição!

“Vossa Majestade Imperial decidirá tudo como melhor for em direito”. Assim o espero.

Tal é o teor da denúncia do Sr. Procurador da Coroa: “Esse documento, mui judiciosa e sabiamente diz um anônimo no Jornal do Comércio de 22 de Outubro último, esse documento extraordinário ainda sob o aspecto jurídico, há de ficar registrado em nossos anais como prova inconcussa das aberrações da quadra de decadência que imos atravessando”.

“Não me deterei, continua, em considerar o tom e estilo verdadeiramente insueto, segundo a frase do Aviso de 27 de Setembro, da denúncia do Procurador da Coroa; outros que tiverem tempo e pachorra que o façam”.

1 Ninguém ignora que Voltaire e seus companheiros eram Maçons.

“Pela minha parte examinarei exclusivamente sob o ponto de vista jurídico, a peça oficial, que tenho diante dos olhos”.

E fê-lo o sábio articulista, insistindo, sobretudo, na parte que deixei de examinar, relativa ao código criminal, e concluindo que “como o modo de pensar do nobre magistrado, raro seria o artigo do código, em que a denúncia não pudesse considerar incurso o Bispo de Olinda”.

Recapitulemos este exame.

1° Insistindo o nosso acusador em considerar os Bispos como empregados do Governo, no intuito de melhor fundamentar a sua acusação, provei que os Bispos não são delegados do Governo, mas de Jesus Cristo, sagrados para esse fim, como caráter indelével e constituídos para governar a Igreja, não pelo poder executivo, senão pelo próprio Espírito Santo.

2° Como o Sr. Procurador da Coroa reconhecesse em sua denúncia que os Bispos, sob a direção do Vigário de Jesus Cristo, guiam as almas para a vida eterna, deste princípio fiz derivar toda a defesa de nossos atos e a condenação dos atos do Governo; porque tudo o que pretende o Ministério nesta luta é que os Bispos brasileiros não prestem obediência ao Sumo Pontífice.

3° Em seguida fiz ver que as acusações do Sr. Procurador da Coroa estão em contradição manifesta com esse princípio: pois S. Ex., que pouco antes queria os Bispos sob a direção do Soberano Pontífice, agora estranha-lhes que não se submetam às ordens do Governo, e obedeçam ao mesmo Sumo Pontífice, cujo Governo alcunha com a odiosa denominação de Cúria Romana.

4° Acusando S. Ex. nesta ocasião ao Governo da Santa Sé de opressor e tirânico, pelo menos nos séculos passados, demonstrei que isto, além de ser uma imputação mui gratuita, é desconhecer ou dissimular as noções mais vulgares e elementares da história.

Notei que, estando esta acusação na sua denúncia fora de lugar, revelava ânimo prevenido, e, por conseguinte, lhe tirava toda a força de que há mister uma denúncia do Promotor da Justiça.

5° Na mesma ocasião examinei teológica e praticamente a frase Mártir do Gólgota, que tão freqüentemente se acha nos lábios dos maçons, e conclui que, se bem não lhe falte fundamento na Escritura Sagrada, contudo, assim formulada, não se encontra nos Livros Santos, não substitui com vantagem as outras denominações com que costumamos chamar a Nosso Senhor Jesus Cristo, e, presta-se à gírias maçônicas.

6° Chegado a principal acusação da denúncia, baseada na suposta violação do art. 102 § 14, examinei de propósito a Constituição em todos os artigos concernentes à nossa questão, e duas conseqüências deduzi, a saber: que o Bispo de Olinda e os demais Bispos do Império pugnam pela defesa da Constituição em vários pontos da maior importância, máxime no ponto essencial do art. 5°, e que o Governo, em lugar de defendê-la, como lhe cumpre, lesa-a gravemente.

Provei a primeira parte, examinando a importância que tem o art. 5° lógica e juridicamente; e tudo isto segundo a mente do legislador, a qual se torna manifesta em todo o teor da Constituição, especialmente, em tantos juramentos que exige, de modo tão solene, do Supremo representante da nação.

Confirmei este segundo argumento, fazendo ver que a hipótese dos adversários, que pretendem limitar o art. 5° com a restrição do art. 102 § 14, nada alcança, já porque este artigo não se opõe do art. 5° (ao menos claramente), já porque, dado que se lhe opusesse, é artigo acessório e não deve prevalecer ao principal com uma limitação que o destrói.

Em suma, a hipótese dos adversários é por extremo injuriosa ao legislador; porque, exigindo este tantos juramentos, exigiria ao mesmo tempo atos de hipocrisia em moral, contraditórios em lógica, e traidores do país em política e Religião.

Fiz ver como era a segunda conclusão um corolário da primeira, e acrescentei os artigos particulares que foram violados pelos Srs. Ministros e Conselheiros, como tais; e, por conseguinte, a responsabilidade em que incorreram.

Confirmei tudo isto com a autoridade do Sr. Senador Cândido Mendes de Almeida.

7° Enfim, acabei ponderando que esta guerra dos maçons é movida ao trono e ao altar, e, se não tiver um paralelo, faz temer as horripilantes catástrofes da revolução francesa.

Cumprido a dolorosa tarefa do exame dessas duas peças oficiais do governo do meu país, não quero dissimular que um pensamento de grande aflição traspassava-me a alma a cada resposta que me saía do bico da pena.

São estas verdades tão claras e tão evidentes, dizia eu comigo mesmo, são verdades tão elementares; isto é o que todos os dias se ensina ao povo cristão, está sancionado pelas nossas leis e acha-se como que naturalizado com a nossa educação. Como é, pois, que pessoas, aliás de talento, merecimento e instrução, tantos Conselheiros, Ministros e Magistrados, de um país católico, as impugnam tão porfiamente e em negócio de tanta monta?

E, se em suas deploráveis aberrações não esperassem aprovação do país, falariam eles desta maneira em documentos tão públicos e que, certamente, hão de passar à posteridade?

E, se o nível do bom senso desceu a este ponto, como serão acolhidas estas minhas respostas?

Por amor destes pensamentos, e mesmo por ser mais conforme à lógica, eu quisera deixara para depois a refutação das peças oficiais que acabo de analisar, estabelecendo logo os princípios de que devia depender toda a discussão. Mas, atuando fortemente sobre meu ânimo considerações que julgo ponderosas, seguia ordem inversa.

Rogo ao leitor suspenda o seu juízo acerca do exame que acabo de fazer, até que aprecie o fundamento das razões que expendi, estabelecido no discurso que se segue.

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