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Parte 1

Pelo mesmo Bispo 1

 

Veritatis et sobrietatis verba loquor. (Act. 26, 25)

 

Muito se tem falado e muito se tem escrito em quase todos os pontos do Império contra os atos que o humilde Bispo de Olinda, em desempenho de seu sagrado Ministério Episcopal e em cumprimento dos deveres de sua missão augusta e divina, tem sido forçado a praticar de um ano a esta parte. 

A esse aluvião de escritos e a essa infinidade de acusações, cada qual a mais infundada e destituída de verdade, não tem ele deixado de responder com o mais profundo silêncio, recordando-se do sublime exemplo que nos dera o divino Mestre, guardando profundo e absoluto silêncio em face dos clamores e acusações do povo judeu que tão porfiadamente procurava perdê-lo; e não respondendo senão quando interpelado pelo Sumo Sacerdote e pelos depositários da autoridade civil. Jesus autem tacebat (Mat. 26. 63).

O silêncio, e silêncio perpétuo, continuaria a ser, por certo, a norma fiel do meu proceder, se ora não pesassem sobre minha humilde pessoa graves acusações formuladas, não só por anônimos ou pessoas que não merecem a honra de uma resposta, mas também pelo próprio Governo Imperial e por um alto Magistrado Promotor de Justiça.

Calar aos primeiros cumpria para não dar importância nem mesmo atenção a imputações e falsidades que por si mesmas se destroem; mas, contestar os segundos é obrigação imperiosa que me impõem não só a dignidade episcopal menosprezada, senão também o respeito e o acatamento que em justiça devo ao Exmo. Sr. Ministro do Império e ao Sr. Procurador da Coroa, Soberania e Fazenda Nacional. Então, cumpria-me calar; hoje urge-me falar: — Tempus tacendi, et tempus loquendi (Eccles. 3, 7).

Defender a causa própria sempre foi tarefa por demais delicada e espinhosa, e coisa sobremaneira penosa e ingrata, principalmente, quando semelhante defesa se não pode promover sem, ao mesmo tempo, formular acusação direta ou indireta contra o outro.

Tudo isto sobe de ponto, desde que a acusação vai atingir, se bem que com pesar nosso, a pessoa, ou pessoas a quem tributamos as mais sinceras homenagens de estima, veneração e inteira dedicação.

São estas, infelizmente, as difíceis circunstâncias em que atualmente me colocara um sagrado dever de consciência.

Nunca passou-me pela mente sequer a idéia da possibilidade de que, um dia, ver-me-ia na dura necessidade de defender-me, acusando o Governo de meu país; ao qual sempre ufanei-me de consagrar profundo acatamento e a mais completa dedicação.

E, se não fora tratar-se de interesses infinitamente superiores ao de um humilde religioso, sem dúvida que jamais ter-me-ia eu animado a romper o silêncio que me havia prescrito, como regra invariável do meu procedimento.

Lembrando-me, porém, de que a honra e a dignidade de um Bispo pertencem menos a si próprio, do que à santa igreja de Deus, da qual é ministro;

Lembrando-me de que, segundo a frase do Apóstolo das nações, a todos, sem distinção nem acepção de pessoas, sou devedor da verdade: — Sapientibus et insipientibus debitor sum. (Rom. 1, 14);

Lembrando-me de que o mesmo Apóstolo ordena-me pregue opportuna e inopportunamente a sã doutrina e subministre incessantemente o salutar alimento da verdade a meu querido rebanho: — Prœcipe hæc et doce. Nemo adolescentiam tuam contemnet;

Lembrando-me de que ocorre-me a rigorosa obrigação de defender, segundo a medida de minhas diminutas forças, o sagrado depósito da fé que me foi confiado, que devo passar intacto aos meus sucessores, e que ora está sendo descomunalmente atacado por doutrinas falazes, desconhecidas de toda a veneranda antigüidade, e adornadas com atavios e falsos ouropéis de ciência enganadora: — Depositum custodi devitans profanas vocum novitates et oppositiones flasi nominis scientiæ (I Tim. 6, 20);

Lembrando-me, finalmente, de que assim cumpre-me fazer para assegurar a minha salvação eterna, bem como a das minhas ovelhas muito amadas. — Hoc enim faciens et teipsum salvum facies et eos qui te audiunt (I Tim. 4, 16);

Lembrando-me de tudo isso, lanço hoje mão da pena, não tanto para defender os meus atos, como no intuito de impugnar algumas asserções muito opostas à verdade e ao ensino Católico, que se acham consignadas em certas peças oficiais.

E assim, o que não me permitiram as divinas Constituições da Igreja fizesse perante o Supremo Tribunal de Justiça, que em sumo grau venero e acato, como a todos os demais tribunais do Império, tenho a satisfação de ora poder fazê-lo perante o tribunal do bom senso e da lógica.

Peço, pois, ao leitor tenha a benevolência de acompanhar-me atentamente — 1° no exame do Aviso de 27 de Setembro; 2° No exame da Denúncia de 10 de Outubro; 3° Nas breves reflexões acerca das relações entre a Igreja e o Estado, que tenho a honra de oferecer-lhe.

 

PRIMEIRA PARTE

EXAME DO AVISO DE 27 DE SETEMBRO

 

Ilmo e Exmo. Sr. — Dos papeis juntos verá V.EX. que o Revmo. Bispo de Olinda recusou cumprir a decisão que deu o provimento ao recurso à Coroa, interposto pela confraria do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio do Recife, da injusta sentença de interdição contra ela proferida pelo único motivo de serem maçons alguns de seus membros”.

Recusei dar cumprimento à decisão do Governo Imperial, porque de modo algum mo permitia a minha consciência de Bispo Católico, como largamente ponderei na minha resposta ao Aviso de 12 de Junho.

Não é verdade que o único motivo da interdição fosse pertencerem à maçonaria alguns membros daquela Irmandade. É muito para lastimar que o Exmo. Sr. Ministro desse começo a uma peça oficial de tanta magnitude, caindo em um equívoco deste quilate.

O motivo único e verdadeiro foi ter a Irmandade recusado obediência a seu legítimo Pastor que, em desempenho de seu sagrado Ministério, lhe mandara eliminar de seu grêmio os maçons que não abjurassem. Como bem se vê, é imensa a diferença que vai de um a outro motivo.

Eis em sua íntegra a sentença de interdito:

“D. Fr. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Olinda, do Conselho de S. M. o Imperador.

Recusando a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio desta Capital, apesar de nossas paternais admoestações, expulsar de seu grêmio alguns membros que não querem de modo algum abjurar a maçonaria, sociedade já muitas vezes condenadas pela Igreja de Jesus Cristo, Nós, legítimo Pastor dessa Diocese, em cumprimento de Nosso sagrado dever e em virtude de Nossa Autoridade Episcopal, lançamos pena de interdito sobre a mencionada Irmandade, e declaramos formalmente que dita pena só deixará de ter vigor com a retratação ou eliminação daqueles Irmãos que por infelicidade são filiados à maçonaria. Dada em nosso Palácio Episcopal da Soledade aos 16 de janeiro de 1873. — Fr. Vital, Bispo Diocesano”.

E para mais ostentar a sua recusa tratou de incitar os vigários a desobedecerem por sua vez ao Governo Imperial, aterrando-os com a suspensão ex informata conscientia, de que fora logo vítima um que apenas só havia mostrado hesitante”.

Contra a inexatidão desta acusação não se demoraram em protestar solenemente os mesmos Revmos. Vigários, da maneira seguinte:

“Os abaixo assinados, Párocos das Freguesias da Capital do Recife, lendo no Diário de Pernambuco, de 8 do corrente ano um ofício, do Excelentíssimo Ministro do Império ao Procurador da Coroa, fazenda e soberania nacional de 27 de Setembro deste ano, mandando dar denúncia contra o nosso caro Diocesano, exprimindo-se nestes termos:

“E para mais ostentar a sua recusa tratou de incitar os Vigários a desobedecerem por sua vez ao Governo Imperial, aterrando-os com suspensão ex informata conscientia, etc”.

“Protestam contra tais expressões; por quanto não foi o Excelentíssimo Bispo que nos ameaçou, pelo contrário, estas ameaças saíram da parte do Governo querendo nos obrigar, já com promessas lisonjeiras, já com processos e prisões, para que nós desobedecêssemos ao nosso Prelado, autorizando destarte, a desobediência ao nosso legítimo Superior.

Por isso declaram em alto e bom som que nada mais fizeram do que cumprir com seus deveres obedecendo ao seu legítimo Superior, e repelir com toda a energia de que são capazes qualquer insinuação e ameaça que vá de encontro às suas consciências, e que não seriam dignos do lugar que ocupam se o contrário praticassem. Por tanto de novo protestam, e estão dispostos a sofrer por amor de seus deveres e da Religião Católica, Apostólica, Romana, de que são indignos Ministros, qualquer perseguição da parte daqueles que deveriam ser os primeiros a respeitar a Lei, e dar exemplos de obediência e respeito a seus superiores legítimos”. Recife, 10 de outubro de 1873. — O Cônego Vigário Antônio Marques de Castilha. — Vigário Antônio Manoel d’Assumpção.

“Nestes e em outros fatos, cada qual mais temerário, tem o Revmo, Bispo manifestado o firme propósito de ir de encontro às leis do Estado, por si, e pelo clero de sua Diocese”.

É bem sabido e provado que o fato alegado pelo Exmo. Sr. Ministro não se deu: quando aos outros fico placidamente esperando que sejam provados.

“Desconhecendo assim a competência do poder temporal em pontos há muito admitidos e observados pelas nações católicas, e expressamente consagrados na legislação pátria”.

Humildemente peço mil desculpas ao Exmo. Sr. Ministro.

Quanto ao poder que se arrogou o Estado de definir a maçonaria como sociedade que nada tem contra a Religião, de absolvê-la da pena de excomunhão maior fulminada pelo Vigário de Jesus Cristo, de mandar levantar interditos, pena espiritual, lançada pela Autoridade Eclesiástica, sobre corporações religiosas, não tem havido até o presente nação ou governo algum católico, ao menos que eu saiba, à exceção do atual Governo do Brasil, que o julgasse de sua competência.

Quanto ao Beneplácito e Recurso à Coroa, força é confessar que tem havido, e ainda há, infelizmente, nações que os admitem; porém, muito sem razão e sem fundamento algum, como extensamente demonstrei na minha resposta ao Aviso de 12 de Junho. A Igreja não tem cessado de protestar contra a injúria que lhe irrogam esses Governos católicos, os quais, neste ponto, lhe são mais infensos que os Governos heterodoxos.

“As Irmandades embora possam ser consideradas instituições cujo fim principal é matéria eclesiástica, tem ao mesmo tempo intuitos temporais, constituem entidades jurídicas, suscetíveis de direitos e obrigações, que as colocam em relação direta com as autoridades civis, a quem prestam contas de sua administração e consequentemente de sua missão”.

Observo 1°: O Exmo. Sr. Ministro, em seu ofício de 12 de Junho, disse que “a constituição orgânica das Irmandades compete principalmente ao Poder civil”; aqui permite sejam consideradas instituições cujo fim principal é matéria eclesiástica. Ora, se o fim principal destas instituições orgânica compete principalmente ao Poder Civil?.

Não é o fim que constitui o organismo de uma sociedade, determinando-lhe os meios?

Por certo que sim.

Logo, se o fim principal, matéria eclesiástica, é da competência do Bispo, ao Bispo compete também, e principalmente, a constituição orgânica. Ergo tollitur quæstio.

Seja, porém, como for, em relação à difícil harmonia entre os dois tópicos mencionados; fico, por ora, com a concessão que nos fez o Exmo. Sr. Ministro no seu último Aviso e;

Observo 2°: Nas palavras supracitadas se acha toda a defesa de meus atos nesta questão de Irmandades. Porquanto, se o fim principal das Irmandades é matéria eclesiástica, segue-se que os intuitos temporais são fim acessório. Ora, nunca ouviu-se em direito que o acessório houvesse de dominar e dirigir o principal. Logo, na questão atual não foi o Bispo quem usurpou as atribuições do Poder temporal; mas sim o Poder civil quem invadiu os domínios do espiritual.

Tudo isto, segundo os princípios admitidos e concedidos pelo Exmo. Sr. Ministro.

Observo 3°: Conforme esta concessão e explicação do Exmo. Sr. Ministro, o mais que o Governo Imperial pôde pretender na questão ventilada é tudo o que refere-se “a esses intuitos temporais que constituem as Irmandades entidades jurídicas, susceptíveis de direitos e obrigações que as colocam em relação direta com as autoridades civis, a quem prestam contas de sua administração”. Não entro na apreciação desta teoria; digo, porém, que por amor da paz tudo isto já tinha eu concedido ao Governo Imperial na minha resposta ao Aviso de 12 de Junho, quando disse: “Dentro da esfera de suas atribuições, no elemento temporal, determine o Governo de Sua Majestade que as Irmandades continuem a ser sociedades civis, que podem possuir bem temporais e gozar de todas as graças e privilégios civis: a isto nada tenho que replicar”.

Assim pois, da mesma concessão e explicação do Ex. Sr. Ministro torna-se patente que não ultrapassei as raias de minhas atribuições.

Observo 4°: Não há conseqüência nas últimas palavras do tópico em exame; onde se diz que as tais entidades jurídicas prestam contas às autoridades civis de sua administração e consequentemente de sua missão. A conta da missão se deve prestar àquela autoridade de cuja competência é o fim principal das Irmandades, visto como é o fim que determina a missão. Ora, o Exmo. Sr. Ministro concedeu que o fim principal é da competência da Autoridade Eclesiástica. Logo, a esta devem as Irmandades prestar contas de sua missão.

Suponhamos, por exemplo, que o Governo Imperial nomeie uma comissão de médicos para examinar uma questão de higiene pública e que para isso seja mister fazer algumas despesas à custa do próprio Governo. Irá porventura a comissão dar contas de sua missão ao Inspetor da Tesouraria da Fazenda para que julgue este se foi a questão bem ou mal resolvida!

“Daí vem que os seus compromissos dependem da sanção do poder temporal e da aprovação do eclesiástico, adquirido por esse fato uma natureza inquestionavelmente mista, e tendo, portanto, força obrigatória, assim no foro interno como no externo, enquanto não forem alterados ou revogados pelos mesmos tramites legítimos porque foram constituídos”.

De passagem observo que a frase “ter força obrigatória assim no foro interno como no externo” em direito canônico não equivale a esta outra “ter força obrigatória assim no foro eclesiástico como no civil” visto que na mesma Igreja há foro interno e externo: sendo o foro interno o sagrado tribunal da penitência, e o foro externo o tribunal mais ou menos público, fora da confissão, cada um com suas leis peculiares. Faço este reparo, porque no lugar citado parece negar-se à Igreja outro tribunal, que não seja o da confissão, identificando todo foro externo com o foro civil; o que é doutrina condenada.

Examinemos, porém, a lógica de todo o trecho.

Dos princípios assentados deduz ele que os compromissos das Irmandades dependem da sanção do Poder Temporal e da aprovação do eclesiástico. Vemos que dois são os princípios postos: “o fim principal das Irmandades é matéria eclesiástica, e, por conseguinte, da alçada do Bispo”; os intuitos temporais, que são fim acessório, constituem entidades jurídicas da competência do Governo civil. Logo, a obrigação das Irmandades relativamente aos dois Poderes, segundo os mesmos princípios professados no Aviso, baseia-se na razão direta de fim principal e fim acessório. Ninguém, porém, ignora que o acessório obriga menos que o principal. Logo, de conformidade com os princípios estabelecidos, as Irmandades se acham mais obrigadas perante o Poder eclesiástico que perante o civil; e por isso, em emergência de colisão dos dois Poderes, não há vacilar: devem obedecer ao tribunal eclesiástico e não ao civil. O contrário é doutrina condenada pela Igreja de Deus (Syllabus. Prop. 42).

Enfim, o mesmo trecho diz que perante os dois Poderes os compromissos das Irmandades adquirem força obrigatória, enquanto não forem alterados ou revogados pelos mesmos tramites legítimos por que foram constituídos.

Ótimo! É precisamente o que ora se está fazendo pelo tramite legítimo do tribunal eclesiástico. Por quanto, não correspondendo os compromissos a seu fim principal, cujo juízo é da exclusiva competência do Poder eclesiástico, este, da mesma sorte que os constitui, assim também os pode revogar. É tudo isto conseqüência lógica da doutrina do Aviso.

Não deixa, pois, de causar-me estranheza a grande celeuma que se tem levantado contra as minhas determinações na questão vertente.

“Entretanto julgou o Rever. Bispo de Olinda que de sua própria e exclusiva autoridade podia, ex abrupto, mandar expelir das Irmandades alguns dos seus membros por motivos aliás estranhos aos ditos compromissos”.

Foi, é verdade, de minha própria autoridade, mas tão somente na parte que era de minha competência, como demonstrado fica. Não foi ex abrupto, porém sim depois de várias admoestações paternais, às quais, como já disse e todos bem sabem, as Irmandades de modo algum quiseram atender.

O eliminar o que é o oposto ao fim principal dos compromissos não pode ser estranho aos mesmos compromissos. Ora, o fim principal dos compromissos das Irmandades, na Igreja Católica, é o culto divino. Logo, eliminar o que é contra esse culto ou contra a Igreja Católica não é estranho aos compromissos das Irmandades. Ora, os maçons, segundo o juízo infalível do Sumo Pontífice, único juiz competente nesta matéria, são contrários à Igreja Católica. Logo, lança-los fora das Irmandades não é estranho aos ditos compromissos.

Ainda mais.

As irmandades estão no seio da Igreja Católica. Ora, os maçons, na qualidade de excomungados estão fora da mesma Igreja. Logo, também estão fora das Irmandades. Logo, expeli-los ou declará-los as Irmandades fora de seu grêmio não é outra coisa senão separarem-se da comunhão externa com eles, visto como perante a Igreja de Jesus Cristo, já não são eles seus membros.

“E lançar interdito geral, pessoal e local sobre toda a corporação”.

Na sentença de interdito da Irmandade que interpôs recurso à Coroa nada, absolutamente há de interdito local.

Tanto mais que, na ocasião de tornar efetiva a mesma sentença mandei fazer pelo respectivo vigário a seguinte declaração:

“Em tempo declaro que a Irmandade só fica interdita na parte religiosa, não podendo comparecer como Irmandade, a nenhum ato religioso, como por exemplo: acompanhar o SS. Sacramento, assistir às festividades, e reuniões, nem mesmo mandar tirar esmolas, vestido o esmoler de opa ou capa, ficando porém a Irmandade no pleno gozo de seus direitos na parte temporal e administração de seus bens”.

Donde é manifesto que o interdito pessoal não atinge aos indivíduos, senão à corporação. E os irmãos individualmente considerados, em relação aos bens espirituais dos sacramentos, missas, etc., etc., não perdem coisíssima alguma; antes muitíssimo lucrarão se obedecerem às prescrições da Santa Igreja de Deus; como também se, pelo contrário, não lhes obedecerem, muito embora se intitulem membros das mais santas confrarias, não o são de fato, e o pior é, perdem a própria alma.

“Postergando assim o direito natural e eclesiástico, abstraindo das leis do processo, preterindo a citação pessoal, suprimindo a defesa que tem suas escusas”.

Nada é mais contra o direito natural e eclesiástico do que uma Irmandade ter excomungados em seu seio e não querer expeli-los. Logo, não é o Bispo de Olinda quem posterga o direito natural e eclesiástico, mas sim o Exmo. Sr. Ministro do Império que defende e coadjuva as Irmandades rebeldes.

Ansiosamente desejo que o Exmo. Sr. Ministro se digne citar-me qual o cânon da Igreja ou decreto dos Sumos Pontífices por mim postergado em toda esta questão. Não é com asserções vagas e gratuitas que se acusa um Bispo de postergar o direito natural e eclesiástico, máxime partindo a acusação de tão elevadas regiões, donde só devem descer a justiça e a verdade.

“Ferindo de um só golpe a inocentes e culpados”.

Fica demonstrado que os indivíduos inocentes nada, absolutamente, perdem dos sacramentos e graças espirituais: e se eles, a despeito da expressa proibição da Autoridade eclesiástica tentam vestir opa, já não são inocentes, porém recalcitrantes e rebeldes.

“Interrompendo as funções do culto a ponto de tornar-se este quase paralisado na religiosa capital de Pernambuco, por quanto raras foram as Irmandades que deixaram de ficar sob o peso enorme da interdição”.

As funções do culto divino não foram interrompidas, como aqui se pretende. Além disso, o culto de Irmandades maçonisadas seria sobremodo desagradável a Jesus Cristo, que lhes diria, como outrora aos Escribas e Fariseus: “Populus hic labiis me honorat, cor autem eorum longe est a me” (Mat. 45, 8). O culto de Irmandades rebeldes à Igreja, não é culto; mas sim, insulto, ultraje, superstição.

“Não foi, com efeito, sem muita razão que Santo Agostinho, advertindo a um jovem Bispo d’África, por haver fulminado com penas espirituais a uma família inteira, se exprimiu do seguinte modo:

‘Se vós, escrevia o Bispo ancião, tendes alguma razão ou alguma autoridade que prove que podem com justiça ser excomungado os filhos pelo pecado do pai, a mulher pelo do marido, o escravo pelo do senhor, suplico-vos mo comuniqueis. Quando a mim, nunca ousei fazê-lo, ainda quando mais vivamente impressionado pelos crimes atrozes cometidos contra a Igreja. Mas se o Senhor vos revela se pode fazer justamente eu não desprezarei a vossa mocidade, nem a vossa pouca experiência no episcopado. Posto que de idade avançada, e há tantos anos Bispo, de boa vontade aprenderia de um jovem colega a maneira por que poderíamos justificar-nos diante de Deus e dos homens, de haver punido com suplício espiritual a inocentes por causa do crime de outrem’.

Ora, o Rever. Bispo de Olinda excedeu aquele rigor, porque não fulminou só a uma família, mas a Irmandades inteiras, antes de serem os seus membros ouvidos e convencidos regularmente”.

Com efeito! É muito para admirar que o Exmo. Sr. Ministro se tivesse lembrado de invocar contra mim esta autoridade de Santo Agostinho, quando ela, como aí está citada, e muito mais, como se acha no original, não é contra mim, porém contra o Exmo. Sr. Ministro!

E senão, vejamos.

Noto, antes de tudo, que S.Ex. citou o texto de modo a deixar entender que nele haja uma oração seguida desde o princípio até o fim; ao passo que no primeiro período faltam alguns incisos de suma importância para a nossa questão.

De mais, há entre o primeiro e o segundo período uma grande lacuna. S. Ex. omitiu um longo texto que mais adiante restituirei ao seu lugar; porquanto se não é ele do agrado de S. Ex. não é todavia indiferente para a nossa questão.

Por ora, prescindindo de tudo isto e aceitando o texto tal qual o citou S. Ex., deve-se concluir o seguinte:

1° O fato de que trata a carta de Santo Agostinho não é de interdito, mas sim, de excomunhão: logo não vem ad rem, nem pode ser aplicado a nossa questão que é de interdito e não de excomunhão. E, sendo a pena de excomunhão muito maior que a de interdito, pois que a primeira priva de todos os bens da Igreja, a segunda de alguns somente, todos compreendem que, do simples fato de ser Santo Agostinho queixado do Bispo que fulminou uma pena tão grande, não se segue deva queixar-se igualmente de mim que infligi uma pena, sem comparação, muito menor.

2° Um Bispo velho, e um Bispo douto e santo, qual o de Hipona, cuja autoridade tanto pesava e ainda hoje pesa na balança do Santuário, queixa-se de um Bispo moço por causa de uma pena canônica. Tudo dentro dos limites da boa ordem, por isso que são pessoas de maior ou menor categoria na mesma esfera. O contrário, porém agora acontece: é um Ministro do Poder civil que, de mitra e de báculo pastoral em punho, pretende reformar uma decisão do tribunal eclesiástico.

3° De que maneira fala o grande Santo Agostinho ao jovem Bispo d’África?

Basta ler o trecho citado pelo Exmo. Sr. Ministro:

“Se vós tendes alguma razão ou autoridade que prove que podem com justiça ser excomungados os filhos pelo pecado do pai, a mulher pelo marido, o escravo pelo do senhor, suplico-vos mo comuniqueis etc... etc...”.

O Bispo velho, douto e santo não despreza ao Bispo moço, antes consulta-o; não julga-o criminoso, mas reconhece que talvez tenha o direito de comunicar a tal excomunhão. Ora, o Aviso do Exmo. Sr. Ministro procede de modo muito diferente para com o humilde Bispo de Olinda. Logo, o trecho citado depõe contra aquele e não contra este.

Esta verdade torna-se muito mais evidente e sobe de ponto, consultando-se o trecho genuíno da carta de Santo Agostinho a Auxílio, que é o Bispo de quem se fala:

“Se o vosso juízo nesta matéria funda-se em boas razões ou autoridades da Escritura, pedimos vos digneis ensinar-nos com que justiça podem ser excomungados o filho pelo pecado do pai, a mulher pelo do marido, o escravo pelo do senhor, ou alguém que ainda não nasceu naquela casa, e se por acaso nascer enquanto está toda ela excomungada, porque não se lhe pode conferir o batismo em perigo de morte? Pois esta não é uma pena corporal como a que lemos de alguns que desprezaram a Majestade divina e por isso foram mortos com todos os seus que não tiveram parte na sua impiedade. Naqueles casos, para terror dos vivos, matavam-se os corpos mortais que de certo haveriam de morrer a seu tempo; ao passo que a pena espiritual, tendo o efeito que diz a Escritura: ‘tudo o que ligares sobre a terra será também ligado no céu’ (Mt. 16): liga as almas de quem foi dito: ‘a alma do pai é minha, e minha é a alma do filho: a alma que pecar, esta morrerá’ (Ez.18).

Ouvistes por ventura, que sacerdotes de grande renome excomungassem algum pecador com toda a sua casa? E se acaso fossem interrogados poderiam eles cabalmente dar a razão desse ato? Quanto a mim, confesso que se me fizessem semelhante pergunta, não poderia decidir a questão; e por isso nunca ousei fazê-lo, ainda mesmo quando fortemente instigado por crimes que alguns cometeram contra a Igreja. Porém, se o Senhor vos revelou que isto se pôde fazer justamente, não desprezarei a vossa mocidade, nem a vossa pouca experiência no episcopado: eis-me pronto, eu velho e Bispo a tantos anos, para aprender de um meu colega moço, e Bispo de menos de um ano, como podemos justificar-nos perante Deus e os homens, se infligimos uma pena espiritual a almas inocentes, por alheio pecado de que não contraíram culpa original, como de Adão em quem todos pecaram” (Rm. 5).

De toda esta exposição é claro e manifesto que a razão por que mais se queixa Santo Agostinho de Auxílio é por ter este excomungado uma família inteira, compreendendo nas censuras até aqueles que ainda haviam de nascer e negar-lhes o batismo em artigo de morte, o que trazia inevitavelmente a perda eterna de muitas almas inocentes.

Uma excomunhão levada a este extremo é demasiado rigorosa, isto não padece a menor dúvida, e até mesmo aqueles que não são dotados da sublime inteligência nem da profundíssima ciência teológica de Santo Agostinho fácil e evidentemente reconhecê-la-ão injusta.

Contudo o Santo Bispo não se anima a condená-la, consulta o Bispo mais moço no intuito de saber se tinha este boas razões ou autoridades da Escritura Sagrada; se havia sacerdotes de grande renome que excomungassem um pecador com toda sua casa; e se o Senhor lhe tinha revelado que tal se podia fazer justamente.

Nenhum exemplo, com efeito, é mais adequado nem mais instrutivo do que este para alguns que, muito longe de possuírem o prodigioso talento e autoridade de Santo Agostinho, tem de tratar com Bispos embora moços, ainda mesmo quando se não trate de excomungar crianças inocentes, negando-se-lhes o batismo em artigo de morte, mas sim, de lançar simples pena de interdito a Irmandades contumazes e rebeldes, que de modo algum quiseram excluir de seu grêmio pessoas feridas com pena de excomunhão maior pelo Supremo Pastor da Igreja Universal.

Não tinha eu razão de asseverar que este trecho citado pelo Aviso de 27 de Setembro não procede contra a minha humilde pessoa, porém contra o Exmo. Sr. Ministro que com ele tutelou-se?

“Por um direito quase imemoriável, firmado em diversos assentos legislativos, e sustentado pelo decreto n° 1911 de 28 de março de 1857, é permitido recurso à Coroa nos casos de usurpação de jurisdição e poder temporal, por quaisquer censuras contra empregados civis em razão de seu ofício, e por notória violência no exercício da jurisdição e poder espiritual, postergando-se o direito natural, ou os cânones recebidos. Tal é a legislação do país, que ainda não tinha sido desacatada por nenhum prelado brasileiro”.

Na minha resposta ao Aviso de 12 de junho amplamente tratei, e de propósito, do recurso à Coroa. Agora acrescente somente que na Bula do SS. Padre Pio IX, publicada em 1869, que começa — Apostolicœ sedis moderationi — são fulminadas com pena de excomunhão maior latœ sententiœ reservada de modo especial ao Sumo Pontífice: — “Todos aqueles que impedem direta ou indiretamente o exercício da jurisdição eclesiástica, seja no foro interno seja no externo, e que para isso recorrerem ao foro secular; os que dão ordens para isto ou as publicam; os que lhes prestam auxílio, conselho ou favor”.

Eis aí o pensar da Santa Igreja de Jesus Cristo, mestra infalível da verdade, acerca do recurso à Coroa, por quaisquer censuras contra empregados civis no exercício da jurisdição e poder espiritual.

“De acordo com ela foi interposto o recurso à Coroa por uma das Irmandades interditas”.

E por isso mesmo incursas na excomunhão supra.

“Sem dúvida o procedimento do Rever. Bispo era manifestamente exorbitante e tumultuário”.

Nem uma coisa nem outra, como provado fica.

“Nada menos importava do que assustar e inquietar as consciências”.

Inquietar e assustar as consciências dos que vivem em pecado, para que se emendem, é ofício e dever imprescindível dos ministros de Deus; bem como é ocupação constante do inimigo de todo o bem fazer com que vivam eles com toda a tranqüilidade e sossego no pecado; e assim percam a sua alma.

“De surpresa, com inteiro abandono das regras de prudência e caridade recomendadas pela Igreja”.

Nada disto, como é manifesto e patente da verdadeira exposição dos fatos.

“E sem respeitar, como lhe cumpria, o ligame dos preceitos civis, que de certo obrigam até em consciência”.

Excelente! De sorte que os Bispos em consciência são obrigados a deixar que os maçons excomungados pelo Vigário de Jesus Cristo façam parte das Irmandades, a consentir que estes não cumpram os deveres de seus compromissos e incorram em excomunhão maior latæ sententiæ reservada de modo especial ao Romano Pontífice, interpondo recurso à Coroa!!!

É, pois, assim que o Exmo. Sr. Ministro do Império pretende instruir a um Bispo, e dar-lhe lições de prudência e caridade?!

“Nestas circunstâncias o Governo Imperial não podia deixar de vir em socorro dos cidadãos ofendidos”.

Para um ministério maçônico tudo isto segue-se mui logicamente, mas para um governo de uma nação que professa a Religião Católica, Apostólica, Romana, é inexplicável.

“Usando de um direito de Soberania contra uma violência manifesta e clamorosa”.

Não há tal direito de Soberania, assim como também não há tal fato de violência.

“Deu portanto provimento ao recurso e mandou, nos termos mais atenciosos anular os efeitos da interdição por Aviso de 12 de junho”.

Com os termos mais atenciosos! Com efeito! Não será isto dito por antífrase?

O Exmo. e mui distinto Sr. Senador Cândido Mendes de Almeida, no seu monumental discurso proferido na Câmara vitalícia na sessão de 30 de junho, acoima o dito Aviso de “ilegal, anárquico e atentatório da verdade e ofensivo da Religião do país e dos direitos do episcopado”.

Ilegal, porque sua doutrina é contrária à Constituição e às leis civis e canônicas;

Anárquico, porque, colocando a força ao lado da apostasia, desmoraliza a ação do poder público, excita e protege a revolta contra a Autoridade eclesiástica;

Atentatório da verdade, porque estriba-se em fatos inexatos que a realidade histórica repele e condena;

Ofensivo à Religião do país, porque, ex vi da censura que faz ao Bispo de Olinda, mantém doutrinas já condenadas pelo Chefe Supremo da Igreja Católica, juiz competente para fazê-lo, mediante Bulas aceitas no Império, há mais de um século, como lógica e positivamente se deduz da nossa história e das palavras do art. 5° da Constituição.

Tudo isto o erudito Senador não só afirma como prova exuberantemente e à toda evidência.

“Sem mais refletir, e em vez de obedecer à decisão Imperial, o Rever. Bispo de Olinda não somente nega a legítima competência do Poder civil, como reincide nos atos qualificados de abusivos e violentos”.

Não sendo legítima a competência do Poder civil, como já foi provado, bem como não tendo sido abusivos nem tampouco violentos os meus atos, não se pode dar o caso de reincidência. Aconteceu apenas o que naturalmente se deveria esperar: apoiando o Governo os que desobedeceram ao Bispo, multiplicou o número, já tão crescido, dos desobedientes e acoroço-os a reincidirem em sua pecaminosa desobediência. E o indigno Bispo de Olinda que, pela divina misericórdia, não traiu a sua consciência à primeira vez, ajudado com o celeste auxílio também não a traiu depois.

“E em linguagem insueta, imprópria de seu sagrado ministério, íntima ao Governo Imperial a sua forma desobediência”.

Essa linguagem que o Exmo. Sr. Ministro apelida insueta é a linguagem franca e singela da verdade, é a linguagem dos sucessores dos Apóstolos, a qual nunca pôde ser insueta na respostas dos Bispos Católicos, Apostólicos, Romanos, e ainda menos imprópria de seu sagrado ministério.

“Julgando-a mui justificada por um novíssimo Breve Pontifício, que provocara por informações suas e mandou logo publicar sem dependência, ou antes com desprezo do competente Beneplácito”.

O que é injusto e ofensivo dos sagrados direitos e liberdades da Igreja de Deus se deve desprezar!

Em informar o Vigário de Jesus Cristo do estado do rebanho confiado por ele à minha solicitude e vigilância, não fiz mais do que cumprir o dever indeclinável de fiel depositário.

O Breve, com que o Supremo Pastor da Igreja Universal não só aprovou os meus atos passados em relação à questão das Irmandades, como até nos conferiu plenos poderes, a mim e aos outros Bispos do Brasil, para o nosso futuro proceder, constitui o nosso maior título de defesa perante o tribunal daqueles que não antepõe o juízo dos homens ao da Igreja de Jesus Cristo.

“E todavia é deste mesmo Breve que reslumbra o desagrado do SS. Padre quanto ao modo áspero e violento com que o Rever. Bispo procedeu aplicando, ao que considerava moléstias crônicas, remédios excessivamente heróicos, e por isso mesmo nocivos. Em sua alta sabedoria o Soberano Pontífice reconheceu aquilo de que não cogitou o Bispo de Olinda, isto é, que antes dos meios rigorosos se deve usar dos brandos e suasórios”.

Mirabile dictu!!! Maravilha a ingenuidade com que o Exmo. Sr. Ministro escreveu tais coisas acerca de um documento tão público, no qual não só nada há do que ele assevera, como até acha-se o contrário e dão-se a mim e aos meus mui respeitáveis Colegas no Episcopado amplas faculdades para fazermos mais ainda do que temos feito!

“Ainda que o placet não tivesse a mesma razão justificativa do direito do padroado, que tem origem canônica, ainda que os imperantes católicos não fossem os protetores natos da Igreja”.

Como o Exmo. Sr. Ministro não insiste nestas frívolas razões, eu tampouco demorar-me-ei em confutá-las.

“Os vingadores dos cânones, como dizem as sagradas páginas”.

Desde longos anos me habituei à leitura das Sagradas páginas; entretanto ainda não encontrei em nenhuma delas que os imperantes fossem vingadores dos cânones. Porém, ainda quando tal se achasse, provaria inteiramente o contrário do que pretende o Exmo. Sr. Ministro. Por enquanto os cânones da Igreja rejeitam o placet. Logo, se os imperantes são vingadores dos cânones da Igreja, se devem opor formalmente àqueles que o exigem ou o aconselham.

“Bastaria que o placet fosse uma garantia de ordem pública para que o Rever. Bispo não fosse lícito conspirar abertamente contra ele pelo modo porque o está praticando”.

Se o placet fosse, na verdade, uma garantia de ordem pública, teria razão o Exmo. Sr. Ministro. Mas, infeliz e precisamente é o contrário, quero dizer, é o maior incentivo e fomento de discórdias.

“Com efeito, o que pretende o placet régio?”

Opor-se à Autoridade Pontifícia, se a julgar ofensiva dos direitos majestáticos.

Neste caso, eis o que naturalmente deve acontecer em um país católico. Os que não renunciaram aos princípios mais comezinhos da filosofia e da Religião, sabem que a suprema Autoridade espiritual — cœteris paribus — é superior à suprema autoridade temporal, como o espírito o é à matéria e o Céu à terra; sabem que os decretos dos Sumos Pontífices obrigam em consciência, independentemente do cumpra-se dos reis e imperadores; por quanto a Pedro e aos seus sucessores, e não aos Césares, disse Jesus Cristo: “Tudo quanto ligares sobre a terra, será ligado nos Céus”.

Daí a luta inevitável entre a Igreja e o Estado, entre os ministros daquela e os deste. Daí a alternativa em que se acham os cidadãos de escolher entre as penas temporais com que os ameaça o Estado e as eternas que a Igreja lhes faz esperar. Daí a divisão galistas. Daí a imperiosa necessidade de um dos dois males: ou a desmoralização do Governo eclesiástico, ou a desmoralização do Governo civil: hipóteses igualmente funestas, cuja realização ninguém poderá ver sem grande mágoa.

Em todo caso temos indubitavelmente a desordem pública, porque os Governos eclesiástico e civil são governos que dirigem os mesmíssimos cidadãos: — Duo quippe, quibus pricipaliter mundus regitur: auctoritas sacra pontificum et regalis potestas (Gelas. Pap. Epist. 8 ad Anast. Imp.) E assim quidquid delirant reges plectuntur archivi.

Logo, o placet régio, em vez de ser garantia da ordem pública, é o mais perigoso incentivo e fomento de desordens.

“Em todo o caso, o placet no Império, assim como em todos os países católicos respeitados pela Santa Sé, é inquestionavelmente um direito majestático”.

Inquestionavelmente! Pois o que tem feito os Canonistas até agora com tantos argumentos irrespondíveis e a Igreja com tantas Constituições apostólicas, senão protestar contra o palpável absurdo desse suposto direito majestático?

“E ao mesmo tempo uma condição de harmonia entre os dois poderes civil e eclesiástico”.

Acabo de provar o contrário.

“Os quais, embora distintos nos seus ministérios, não são nem podem ser antagônicos”.

Isto é pura verdade; mas, só quando as pessoas, em cujas mãos descansam os poderes do Estado, são sinceramente católicas; porque, então reconhecendo a infalibilidade e santidade da Esposa Imaculada de Jesus Cristo, mestra e Juiz indefectível da verdade, não mimoseá-la-ão com o sobremodo injurioso e sacrílego jus cavendi, para fundamentar o placet régio.

“Devem identificar-se no pensamento do bem comum sem se confundirem, e auxiliar-se sem perderem a respectiva autonomia”.

Plenamente concordo com o Exmo. Sr. Ministro. Mas, infelizmente, com o placet e o recurso à Coroa, é o Estado quem tudo governa direta ou indiretamente; e assim, desaparecendo a autonomia da Igreja, os reis tornam-se papas.

“Esquecendo-se o Rever. Bispo de seus deveres de súdito, tem resistido, e continua a resistir às legítimas determinações do Governo Imperial”.

Se as determinações a que se refere o Exmo. Sr. Ministro fossem com efeito legítimas, por certo que eu não hesitaria um só instante em pô-las em execução; por quanto muito me ufano de obedecer a meus legítimos superiores.

Porém emanando elas do Poder civil e versando sobre matéria puramente espiritual, não posso de modo algum deixar de resistir-lhe; visto como em negócios eclesiásticos não sou súdito do Governo Imperial.

“E como Prelado tem procedido com rigor excessivo para com as ovelhas de seu rebanho, provocando-as talvez a um cisma que não pode estar na intenção religiosa dos brasileiros”.

É incrível! O Exmo. Sr. Ministro apressasse em imputar aos Bispos fatos e intenções, cuja paternidade cabe exclusivamente ao próprio Governo!

O Governo abraça o que a Igreja Católica condena; e condena o que ela abraça ou ensina: persegue os sacerdotes fiéis a ela; e lisonjeia a alguns que lhe são infiéis: paga côngrua a um Vigário suspenso pelo Bispo; e tira-a aos que não deixam de obedecer ao seu legítimo Pastor, que está, mercê de Deus, em plena comunhão com a Santa Sé: manda finalmente processar o humilde Bispo de Olinda, por não se ter ele querido sujeitar a decisões heréticas, condenadas e cismáticas; entretanto, são os Bispos que estão promovendo um cisma!!!

Nas altas regiões do poder fala-se em separação da Igreja do Estado; fala-se em abolição do art. 5° da Constituição; fala-se em casamento civil, chegando-se a ponto de indicar-se o feliz mortal, ex lente, a quem coube a insigne honra de elaborar o projeto: entretanto, são os Bispos que estão provocando um cisma!!!

A tática é antiqüíssima: dela em todos os tempos se valeram os heresiarcas para disfarçar suas ciladas, dissimular seus intentos e encobrir suas alicantinas.

“Por estes deploráveis fatos que já tiveram conseqüências funestas em Pernambuco, e que ameaçam a ordem pública de graves perturbações, se não for contido o Rever. Bispo”.

Sim, a ordem pública infelizmente tem sido perturbada; porém, não pelos atos do humilde Bispo de Olinda, mas pelos dos maçons, os quais, se em tempo não forem contidos, não só perturbarão cada vez mais a ordem pública, como até de luto e vergonha cobrirão a veneranda imagem da Pátria sempre querida.

“Incorreu ele na sanção das leis penais e deve responder perante o Supremo Tribunal de Justiça”.

Citar um Bispo para responder perante o Supremo Tribunal de Justiça é a última, a mais solene e a mais flagrante violação dos sagrados cânones, como provei em minha resposta ao Supremo Tribunal de Justiça.

“E sua Majestade o Imperador, conformando-se com o parecer da maioria do Conselho do Estado pleno, há por bem ordenar que V. Ex. promova a acusação do Rever. Bispo de Olinda D. Fr. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, como é de direito e reclamam os interesses do Estado. O que a por muito recomendado ao esclarecido zelo de V. Ex.”

O profundo respeito e sincero acatamento que professo à augusta pessoa de Sua Majestade o Imperador me inibem de analisar este último trecho.

Reclamo, entretanto, a atenção do leitor para as principais observações que emiti no exame de todas as cláusulas e palavras do Aviso de 27 de Setembro.

Delas torna-se evidente, como a luz meridiana, a falta de lógica e de verdade de que ressente-se o dito Aviso, quando:

1° Fundamenta a principal acusação relativa à Irmandade que interpôs o recurso, ocultando o verdadeiro motivo do interdito, que foi a rebelião manifesta da mesma Irmandade, que não quis expelir de seu seio Irmãos incursos nas mais graves censuras da Igreja; e não o simples fato de serem maçons alguns de seus membros.

2° Afirma que tratei de incitar os Vigários a desobedecerem por sua vez ao Governo Imperial; ao passo que está na consciência de todos, que semelhante fato nunca se deu, e, pelo contrário, foi o Presidente da Província quem, por meio de blandícias, promessas e ameaças, tentou forçar os Párocos a desobedecerem ao seu legítimo Pastor.

3° Recorre ao exemplo das nações católicas acerca do placet régio, do recurso à coroa e da ortodoxia dos maçons; quando é fora de dúvida que as nações verdadeiramente católicas rejeitam os dois primeiros pontos, e quanto à ortodoxia maçônica, não se sabe que houvesse Governo chamado católico, à exceção do do Brasil, que a reconhecesse. Em todo o caso, não é o governo sinceramente católico aquele que não aprova e condena tudo quanto aprova e condena a Igreja Católica.

4° Invoca a autoridade de Santo Agostinho, omitindo a parte mais importante do texto que ele cita, e atribuindo-lhe um contexto que não se encontra no original. Todavia, até do contexto citado no Aviso se deduz o contrário do que pretende o Exmo. Sr. Ministro.

5° Taxa o meu procedimento de tumultuário e notoriamente violento, com quanto seja bem sabido que mandei advertir aos Irmãos, insisti com admoestações paternais e caridosas, oficiei mais de uma vez, apesar de nunca obter senão respostas negativas, algumas até muito pouco delicadas.

6° Apela para o Breve do SS. Padre, prestando-lhe palavras e sentido que não contém, como se nele reslumbrasse algum desagrado da parte do Sumo Pontífice; ao passo que aí encontra-se a mais solene aprovação de meus atos, tanto por palavras como por fatos; visto como o Sumo Pontífice se dignou outorgar a mim e aos meus digníssimos Colegas, plenos poderes para fazermos, em relação às Irmandades, mais ainda do que temos feito.

7° Deduz dos princípios que assentou, conclusões contraditórias. Concede, por exemplo, que o fim principal das Irmandades é matéria eclesiástica; e os intuitos temporais matéria civil, e que, sendo matéria eclesiástica fim principal, segue-se que os intuitos temporais são fim acessório. Ora, o acessório acompanha e não prevalece ao principal. Entretanto, o mesmo Aviso pretende o contrário.

Além disto, admitido que o fim principal é matéria eclesiástica e que os intuitos temporais são matéria civil, segue-se que o interdito, que diz respeito à matéria eclesiástica e não à civil, é da exclusiva competência da Autoridade Eclesiástica. Todavia, o Aviso sustenta que por via dos intuitos temporais, o Governo civil pode levantar interditos!

De mais, afirma que os compromissos das Irmandades têm força obrigatória enquanto se referem ao fim principal (matéria eclesiástica) e ao fim acessório (matéria civil); e, a despeito de tudo isto, pretende que as Irmandades deixem de obedecer à Autoridade Eclesiástica que obriga, segundo o fim principal para obedecer ao Poder civil, que só obriga segundo o fim acessório.

Ainda mais.

Estabelece que os compromissos podem ser revogados pelos mesmos tramites legítimos da sanção do Poder Temporal e da aprovação do eclesiástico, por que foram constituídos; entretanto, tirou ao Poder eclesiástico toda a autoridade sobre esses mesmos compromissos, ainda que seja pelo mesmo tramite legítimo que se refere ao Poder eclesiástico.

Vai adiante.

Proclama que os imperantes são vingadores dos Sagrados Cânones e protetores natos da Igreja; contudo quer que sejam os imperantes os primeiros a conculcar os cânones relativos ao placet régio, ao recurso à Coroa, à constituição das irmandades, às censuras eclesiásticas, etc. ; e, em vez de proteger a Santa Igreja de Deus, armem-se contra ela com o injurioso jus cavendi.

Reconhece, enfim, que os poderes eclesiástico e civil se devem auxiliar mutuamente, sem perderem a respectiva autonomia; mas, pretende que a Igreja não possa dar sequer um passo, sem a prévia licença do Governo civil.

Eis os autos do corpo de delito, pelo qual o Bispo de Olinda é acusado no Supremo Tribunal de Justiça.

Custa a crer que o Exmo. Sr. Ministro do Império, já não digo mandasse citar um Bispo perante um tribunal incompetente, pois é mui conhecida a incredulidade de nossos dias; mas, fizesse-o por meio de uma peça de natureza, como se um Bispo fosse tão desconhecedor dos princípios mais elementares da lógica e do direito, que se deixassem enlear nas falsas, sofísticas e contraditórias imputações em que abunda o Aviso de 27 de Setembro.

Mas, foi esta a lógica de Pilatos: — Nullam causam mortis invenio in eo. Corripium ergo ilum. (Lc. 23, 22); tirar conseqüências contrárias às premissas estabelecidas; porque, a despeito da lógica, devia-se condenar o inocente.

Muito há que nós, bispos, estamos preparados a partilhar a sorte de nosso divino Modelo; e por isso, calmos e resignados, prosseguimos, imperturbavelmente, no desempenho de nossa missão augusta e toda celestial.

Passo ao exame da denúncia de 10 de Outubro, escrita debaixo da mesma inspiração que o Aviso de 27 de Setembro. 

 

(O Bispo de Olinda D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira perante a História, Antonio Manoel dos Reis, 3ª Parte pág. 440, Tipografia da Gazeta de Notícias, 1878 Rio de Janeiro.)

 

 

 

  1. 1. Antes deste luminoso escrito, escreveu e fez publicar o ilustre Confessor da Fé a Resposta ao Aviso de 12 de Junho de 1873, etc., que o leitor encontra na segunda parte desta obra à pág. 185 e seguintes.
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