PARTE III
REFLEXÕES ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O ESTADO
I. Não há questão tão melindrosa e intrincada como esta, das relações que existem entre Igreja e o Estado. Nela não se pode tocar, sem que ao mesmo tempo maior ou menor alteração ressintam todas as fibras do corpo social. As funestas e gravíssimas conseqüências que podem resultar de sua solução demandam seja ela tratada com muita calma, com a mente mui tranqüila, com ânimo repousado e desapaixonado.
A paixão ofusca, senão extingue no todo, a luz da razão, ainda mesmo quando ela brilha no seu maior esplendor.
E o que sucede, apagando-se o lume do entendimento?
O que ora temos a profunda mágoa de estarmos contemplando e amargamente deplorando: blasfemarem os homens continuamente daquilo que ignoram, como no tempo do grande Apóstolo das nações.
Enfim, para bem discutir uma matéria de tão elevada importância, como esta, cumpre antes de tudo assentar os princípios que devem servir de ponto de partida.
Para não se perder tempo, falando-se muito sem nada concluir, parece-me, que a primeira pergunta que se deveria dirigir ao adversário seria a seguinte: Sois católico verdadeiro, protestante ou incrédulo materialista?
Neste último caso, terminada está a questão: sabe-se em que sentido a deve resolver o adversário.
Para esse bípede de nova espécie, como chistosamente De Maistre classifica os materialistas, a Igreja de Jesus Cristo não é coisíssima alguma, ao passo que o Estado é tudo, e tudo pode ser. Como o Brama do panteísmo oriental, o Estado é tudo o que se vê e não se pode ver; tudo vem do Estado e para o Estado tudo há de tornar.
Para ele o legem habemus, que supõe a lei civil, como a razão última do justo e do injusto; o direito da força, o ateísmo legal, a apoteose da maçonaria, tudo, tudo é lógico.
Para ele a melhor de todas as políticas é a de Maquiavel, que sustenta que a bússola dos que governam deve ser o interesse, e que para a consecução deste fim todos os meios são lícitos; porquanto o fim justifica os meios.
Se o adversário é protestante, também está resolvida a questão; ainda mesmo sendo ele do número dos que se disfarçam com o nome de católicos; porquanto não é o nome que constitui a Religião, mas sim os princípios; e não é o catolicismo um título de família, senão a profissão do indivíduo que crê tudo quanto ensina a Igreja, Esposa infalível do Verbo humanado.
Aquele que exclui da fé alguma parte do ensino da Igreja de Deus, verbi gratia, a necessidade da confissão, a existência e eternidade das penas, a infalibilidade pontifícia, a prática da mortificação, não reconhece a Igreja como Mestra infalível e Esposa imaculada de Jesus Cristo, Verdade eterna.
E, se a Igreja não é o que de si afirma, não será ela uma impostora? Ou, pelo menos, não será uma instituição humana, sujeita à legislação da sociedade civil?
E, se é instituição humana, se não é infalível no seu ensino, se não é santa em sua moral, e no seu governo, não terá o Poder civil sobre ela o jus cavendi, pelo menos?
Digo pelo menos, porque a conclusão mais lógica, neste caso, seria que o Estado absorvesse tudo e pusesse em vigor as fórmulas antigas da sociedade pagã: Imperatori Cæsari Vespasiano Augusto Pontifici maximo, etc., censori, conservatori cæremoniarum publicarum ac restitutori ædium sacrarum.
É precisamente o que fizeram os cismáticos e protestantes, com suas rainhas papisas, reis e imperadores papas.
Portanto, quem disputa com um protestante, qualquer que ele seja, oculto ou declarado, acerca das relações que existem entre a Igreja e o Estado, de duas uma: ou nada, absolutamente, conclui, ou então consegue fazê-lo abjurar dos princípios do protestantismo.
À vista disso, só entre verdadeiros católicos poder-se-á com proveito tratar desta controvérsia: e não é outra a razão, porque as reflexões presentes são dirigidas tão somente aos verdadeiros católicos.
Somos católicos, e somos brasileiros; somos filhos da Igreja Católica, Apostólica, Romana, e somos súditos do Império do Brasil; temos de um lado o Evangelho e o Direito Canônico, temos do ouro a Constituição e os decretos do Poder civil: é necessário, pois, harmonizar os deveres de cidadão com os de cristão.
Poderá haver conflito entre a Igreja e o Estado?
No caso de conflito, que partido deve seguir quem é ao mesmo tempo filho da Igreja e súdito do Estado?
Eis aí dois quesitos da mais alta importância, cuja solução depende toda do exame das relações que existem entre a Igreja e o Estado; pois que da natureza dos governos se deduzem quer os deveres, quer os direitos dos governados.
II. Este conflito, que atualmente dá-se entre a Igreja e o Estado, é bem sabido que não se limita ao nosso tempo nem ao nosso país.
É antiquíssimo e remonta nada menos que ao berço do Cristianismo.
O que fez a política de Pilatos e o farisaísmo na morte de nosso adorável Salvador;
O que fez o despotismo pagão armado do gládio dos Césares, nos três primeiros séculos da Igreja;
O que fizeram desde o quarto até o nono século as heresias dos arianos, dos euticianos, dos monotelitas, dos iconoclastas, e o cisma fociano, abrigados na corte de Bizâncio e eivados de ciúmes da Igreja Romana;
O que fizeram nos quatro séculos posteriores o orgulho e a cobiça dos Imperadores da Alemanha, fomentando a devassidão e a simonia de um clero que rojava-se-lhes aos pés;
O que fizeram, depois, os galicanos, seguindo mais ou menos fielmente os erros de Hus e de Wiclef, com o fim de idolatrar os seus Reis;
O que fizeram, finalmente, e proclamaram os luteranos com a turba multa dos novadores dos últimos quatro séculos, e o que mais hipocritamente professaram os jansenistas, os regalistas, e os pretensos filósofos do século passado:
É justamente o que estão repetindo, com o mais ignóbil e vergonhosos servilismo, o liberalismo 1 e a maçonaria dos tempos presentes.
Coisa notável!
O mais horroroso crime que no mundo perpetrou-se e se poderia perpetrar, o deicídio, foi devido a uma maldita razão de política, que a farisaica malícia soube alegar e fazer prevalecer no espírito fraco de Pilatos: Si hunc dimittis non es amicus Cæsari (Jo 19, 12).
Que mais se quer? Perder a amizade de César? Contradizer a César? Não é possível.
Logo, condene-se muito embora o inocente, e não se tome em consideração os infinitos milagres com que provou ser Filho de Deus.
A sabedoria divina foi arrastada à barra do tribunal da política humana, foi acusada de postergar os direitos do Poder civil, e, como era de esperar de um tribunal que, sobre ser incompetente, era juiz e parte a um tempo, foi condenada à morte.
Eis o primeiro ensaio do conflito entre a Igreja e o Estado. E se o Salvador é não só cabeça, mas também protótipo de sua Igreja, destes princípios do pretório já podemos tirar a ilação do que há de acontecer no decurso dos séculos.
O Império Romano não admitia a Religião que não fosse reconhecida pela autoridade do Senado. O orgulho e a prepotência dos Césares ambicionavam unir aos louros imperiais as infulas dos Sumos Pontífices. As tradições, os costumes, os preconceitos, as antipatias do mundo grego e romano não podiam aceitar a Religião do Filho de Deus, a quem chamavam por escárnio um judeu crucificado.
Logo, era coisa impossível, humanamente falando, evitar o conflito entre o novo e o antigo poder, entre a Igreja e o Estado.
E assim foi, como é notório em todos os demais séculos.
Verdade é que, quando a Igreja quebrou os pesados grilhões que a retinham na sombria noite das catacumbas e saiu toda radiante de glória para estabelecer o seu trono no meio da sociedade, houve sempre governos e monarcas cristãos que respeitaram-na e acataram-na, como Rainha das nações, Mãe, Mestra e educadora dos povos civilizados; porém, não se pode negar que, se esta mística Rebeca teve sempre nos estados cristãos filhos dóceis e obedientes, quais Jacó, teve-os também insubordinados e rebeldes como Esaú.
Pelo que diz respeito a estes últimos tempos, nada é tão abominável como aquela liga satânica que fizeram no século passado os sofistas da impiedade, os sofistas da rebelião, e os sofistas da anarquia, traçando o plano de guerra contra a Religião, a monarquia e toda a ordem social, o qual o liberalismo, a maçonaria e a internacional ora estão executando, não sei se por conveniência, ou por fraqueza dos próprios governos.
Os inimigos destes bem compreendem que não há meio mais fácil e pronto de derrotá-los, do que lhes tirar o apoio da Igreja. Por isso promovem com açodamento o conflito entre o Estado e a Igreja.
Da distinção destas duas bases fundamentais do edifício social aos incêndios, carnificinas, e hecatombes da internacional não há mais que um passo.
Haja vista os montões de ruínas e os incêndios de Paris, ainda fumegando, que foram os últimos resultados da luta.
E os governos e os povos que tremem ao pensamento de efeitos tão funestos, tão lúgubres e tétricos, já não se lembram de sua causa eficiente!
Quando a Justiça divina resolve castigar um governo ou um povo, cega-os, para que a tempo não vejam o próprio mal e lancem mão do remédio.
Parece-me que, com este ligeiro esboço histórico, fica patente a atitude em que, há séculos, se mantém a Igreja e o Estado.
Consideremos agora os direitos recíprocos de cada um deles.
III. Nenhum católico, por certo, negará, que os direitos de cada um deste dois Poderes são nem mais nem menos os que lhes foram outorgados pelo seu divino Autor; porquanto, segundo nos ensina o Apóstolo — non est potestas nisi a Deo (Rm 13, 1).
Como, porém, poderemos chegar a conhecer as disposições do Supremo Autor da natureza e da graça a este respeito?
Por uma dúplice revelação, natural e sobrenatural.
O onipotente Senhor qui illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum (Jo 1), nos revela a sua vontade divina, como autor da natureza, com a luz da razão; e, como autor da graça, com a luz da fé.
A natureza e a Sagrada Escritura são dois grandes livros, nos quais lemos as disposições da Divina Providência: lemos o primeiro ao lume da razão natural; lemos o segundo ao lume da fé; no primeiro aprendemos a ser homens sob a educação que recebemos de nossos pais; no segundo aprendemos a ser filhos de Deus, sob a que nos dá a Santa Madre Igreja.
Ora, se investigássemos somente os direitos do Estado, que é sociedade simplesmente humana, bastar-nos-ia o estudo do primeiro livro, bastar-nos-ia a ética natural; mas, como aqui trata-se também, e principalmente, da Igreja, sociedade humano-divina, é necessário consultarmos o segundo e argumentarmos com os princípios do direito Cristão.
Portanto, consideremos, antes de tudo, o que diz a Sagrada Escritura em relação aos direitos da Igreja e do Estado.
Refere S. Mateus que o adorável Salvador dos homens, antes de voltar para junto de seu Eterno Pai, dirigindo-se aos Apóstolos que se achavam em torno de si, disse-lhes:
“Todo o poder me foi dado no Céu e na terra. Ide, pois ensinai a todas as nações, e a todos batizai em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a observarem todas as coisas que vos prescrevi: e eis que estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos (28, 18, 19, 20).”
Em S. Marcos diz que a esta ordem tão peremptória Jesus Cristo acrescentara a sanção seguinte: “Quem crer e for batizado, será salvo; quem porém não crer, será condenado (16, 16)”.
Destes trechos de S. Mateus, e de S. Marcos, vê-se claramente que o filho de Deus, mandando aos seus Apóstolos pregassem o Evangelho ao mundo universo, e ensinassem uma doutrina que a cada um dos homens é tão necessária quanto a salvação, não quis estorvos nem empecilhos de humanos poderes; porque, acima de todos os interesses do mundo está a salvação das almas.
Por isso, faz saber aos Apóstolos que lhes fala com toda a plenitude de seus poderes: Data est mihi omnis protestas in cœlo et in terra.
Como se dissesse: — Não sou eu o Senhor do Céu e da terra? Logo, todo e qualquer lugar aonde chegardes é de meu domínio; e se os poderosos da terra vos pedirem razão do que ides fazer, responder- lhes-eis, como já o fizestes em outra ocasião: — é o Senhor quem nos envia.
Não estou sujeito às decisões nem do Sinédrio, nem do Senado, nem do Areópago; antes, é de mim que os reis recebem o direito de governar. Por conseguinte, cumpri as minhas ordens; pois, derrogo tudo quanto em contrário prescreveram ou possam prescrever os meus vassalos.
Quatro são os pontos que no texto citado são dignos de maior atenção:
1° A extensão do poder de que faz menção o Rei dos reis e Senhor dos senhores, a fim de que nenhum rei da terra se abalance a embargar a pregação de seus Apóstolos: — Data est mihi omnis potestas in cœlo et in terra.
2° A necessidade da doutrina que manda pregar, pois, diz: “Quem crer e for batizado será salvo, e quem não crer será condenado: — Qui crediderit et baptizatus fuerit savus erit, qui ver non crediterit condemnabitur”.
Portanto, a doutrina não é simplesmente proposta, é imposta, mas imposta com a palavra e com a persuasão — docete; e não com o ferro ou outro qualquer meio de coação, pois, não disse: — Cogite.
3° A extensão da fé que se deve receber: não se pode fazer seleção de ponto algum de sua doutrina: Servare omnia quœcumque mandavi vobis.
4° A assistência do espírito de verdade que lhes promete, a fim de se não enganarem eles e seus sucessores, nem enganarem a outrem no ensino da verdade: Ecce ego vobiscum sum omnibus diebus usque ad consummationem sæculi.
Prometendo Jesus Cristo esta assistência unicamente aos Apóstolos e seus sucessores, isto é, a todos os Bispos do mundo Católico, pois fala aos Apóstolos enquanto hão de viver até o fim dos tempos; o que certamente só podem fazer na pessoa de seus sucessores; e não a prometendo mais a ninguém, está claro que a sua vontade é que a autoridade da Igreja seja a maior e a mais independente de todas as autoridades da terra.
A maior, porque só ela se estende a todos os homens, só ela é para o maior bem dos homens, só ela é assistida do espírito da verdade.
A mais independente, porque assim a fez o livre arbítrio do Supremo Senhor de todo o criado, assim o mostra a sua Constituição intrínseca, assim o exige o seu fim último.
Vamos, porém, a outra passagem da Sagrada Escritura.
Pouco tempo havia decorrido depois que o divino Redentor subira aos Céus, quando a furiosa perseguição levantou-se em Jerusalém contra a Igreja nascente. Nela mais que todos, assinalou-se em ódio sacrílego e desapiedado, um mancebo de nação judaica e de nome Saulo.
Indo ele um dia a Damasco, em companhia de outros animados do mesmo ódio contra os cristãos, eis que uma luz vinda do Céu, investe-o e lança-o por terra. No meio dessa luz lhe aparece Jesus e lhe diz: “Saulo, Saulo, porque me persegues?” E ao som destas palavras o perseguidor transformou em Apóstolo, o lobo em cordeiro, e Saulo se tornou Paulo.
Naquela ocasião, falando o mesmo adorável Salvador ao Santo varão Ananias, que estranhava tão improvisa conversão do mais acérrimo inimigo do nome Cristão, disse-lhe: “Este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome aos gentios, aos reis, e os filhos de Israel” (At 9, 15).
Foi esta a missão que recebera o Santo Apóstolo; e na segunda epístola aos Coríntios explica-a, dizendo: “Fazemos o ofício de embaixadores em nome do Cristo”.
Do que se torna evidente que os Apóstolos devem pregar o Verbum Veritatis, não só aos vassalos, mas ainda aos reis; por quanto os reis também devem procurar salvar a própria alma. Antes, mais aos reis do que aos vassalos, por isso que estes só darão contas ao tribunal de Deus da sua alma; ao passo que aqueles darão também das almas alheias.
Mas, como devem os Apóstolos apresentar-se ante o trono dos monarcas da terra?
Como embaixadores do Monarca dos Céus, Soberano dos soberanos: — Pro Christo legatione fungimur. De maneira que faltar ao respeito a um destes seus representantes, é o mesmo que faltar a ele próprio, e, por conseguinte, é, digamo-lo assim, um casus belli da parte do Rei dos reis.
Os Santos Padres, mui detidamente meditam aquelas palavras dirigidas por Jesus Cristo a Saulo: — Quid me persequeris, porque me persegues? “Notai (são palavras de Santo Agostinho), não diz Jesus Cristo: porque persegues os meus fiéis; mas sim, porque persegues a mim? É a cabeça que está no Céu e queixa-se dos que afligem seus membros que estão na terra (Serm. 14 de Sanct.)”.
Assim pois, quem persegue a Igreja, quem persegue os filhos da Igreja, e, com maioria de razão, quem persegue os pastores da Igreja, persegue a Jesus Cristo, persegue ao Onipotente Senhor, que em outro lugar diz: — Nolite tangere Christos meos et in prophetis meis nolite malignari. (Sl 104, 15).
Na primeira carta aos Coríntios, S. Paulo excomunga a um incestuoso, com estas palavras terríveis: “Ouço dizer que há entre vós devassidão, e devassidão tão grande, que não há igual entre os gentios. E andais ainda inchados, e nem ao menos haveis mostrado pena, para que seja tirado dentre vós o que praticou tal iniquidade. Pois eu, ainda que ausente do corpo, mas presente do espírito, já julguei aquele que assim se portou. Por isso, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, congregados vós e o meu espírito, com o poder de Nosso Senhor Jesus Cristo, seja o tal entregue a Satanás, para mortificação da carne, afim de que se salve a sua alma no dia de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Eis uma excomunhão fulminada pelo Santo Apóstolo com todo o poder que recebera de Jesus Cristo: In nomine Domini nostri Jesu Christi congregatis vobis et meo spiritu cum virtude Domini nostri Jesu Christi.
Eis os efeitos da excomunhão: ser entregue a Satanás — tradere Satanæ; isto é, estar inteiramente debaixo do poder do espírito maligno, ser lançado fora da sociedade de Cristo e de sua Igreja, sem o auxílio das orações, dos sacrifícios, dos Sacramentos, abandonado do cuidado dos pastores, como explicam os dois grandes luminares da Igreja, S. Jerônimo e Santo Agostinho.
Eis, em suma, o fim da excomunhão: para que excitado o culpado por salutar vergonha de se ver excluído da sociedade dos Santos, abra os olhos, peça perdão a Deus, repare o escândalo, se reconcilie com a Igreja por meio da penitência, e assim salve a sua alma. Ut spiritus salvus sit in die Domini nostri Jesu Christi.
Lembraram-se os Coríntios de interpor recurso dessa excomunhão para a Coroa?
Ainda mais.
No capítulo seguinte repreende o Santo Apóstolo aos mesmos Coríntios, porque em suas querelas ou demandas recorriam aos tribunais dos gentios, e argumenta assim: “Não sabeis que nós havemos de julgar o mundo e até aos mesmos anjos? (os rebeldes), pois quanto mais as coisas deste século?”.
É para notar que na primitiva Igreja as causas não só dos clérigos, como até de todos os cristãos, eram julgadas pelos padres e pelos Bispos, como se lê nas cartas do Papa S. Clemente. Crescendo, depois, o número dos fiéis, foram deputados para as mesmas causas dos leigos, juizes também leigos, mas cristãos; podendo, porém, sempre haver apelo para o juízo dos Bispos, como tribunal superior: disposição canônica que foi depois recebida na legislação cesárea do Oriente e do Ocidente, por Teodósio o grande e Carlos Magno.
Tanto assim, que S. Ambrósio, contemporâneo do mesmo Teodósio, refere, no livro segundo dos Ofícios, ter ele várias vezes anulado as injustas sentenças dos imperadores.
Tal é a jurisprudência da Igreja de Jesus Cristo, sempre coerente com seus princípios, porque as suas regras recebe-as da Sabedoria infinita de seu Esposo e não teme o cesáreo despotismo.
Mas, nem por isso pretendo sustentar que os Bispos devam ingerir-se nos tribunais civis e decidir as questões que pertencem ao foro laical; o que, por certo, não deixaria de produzir grande confusão no tribunal civil e no eclesiástico; ponderamos apenas quanto os dois maiores imperadores dos séculos cristãos, não menos que os ministros cristãos longe estavam das pretensões do Poder temporal de nossos dias.
No capítulo dezoito de S. Mateus, falando o Divino Mestre da correção fraterna, dá a regra a seguir-se nela; manda que primeiro admoeste- se e corrija-se o delinqüente a sós com ele; depois, se não se emendar, na presença de duas ou três testemunhas; e quando isto não lhe aproveite, seja acusado perante os superiores da Igreja: se, enfim, não fizer caso deles, seja considerado como gentio ou publicano.
E dá também a razão deste interdito pessoal ou excomunhão, dizendo: “Em verdade vos digo, que tudo quanto ligardes sobre a terra, será também ligado no Céu; e tudo quanto desligardes sobre a terra, será também desligado no Céu”.
Eis aí a regra geral que traça o Divino Mestre: correção particular de amigo para amigo; correção entre dois ou três amigos; correção pública em face da Igreja; feito isto, está tudo concluído.
Porquanto, a sentença da Igreja sobre a terra é sentença confirmada e ratificada pela Verdade eterna, que está nos Céus.
Não trata aqui o Filho de Deus de Poder civil, para o qual seja lícito interpor recurso da sentença do tribunal eclesiástico; antes, pela razão que ele assinala; isto é, que tudo o que os Ministros eclesiásticos atarem ou desatarem sobre a terra será atado ou desatado no Céu, exclui positiva e categoricamente o apelo para um tribunal, ao qual nunca foram feitas semelhantes promessas.
De tudo o que levo dito vê-se claramente que a Igreja de Deus, em sua missão divina, não depende de modo algum do Poder civil; que em sua missão divina é superior ao Poder civil; que prega unicamente com a força da palavra a sua missão divina ao Poder civil; que lhe assiste o direito de desenvolver e defender a sua missão divina com armas espirituais, às quais o Poder civil não pode dar nem tirar força alguma; em suma, qualquer insulto feito a ela reflete sobre o seu eterno Esposo, que o considera feito a si próprio.
IV. Mas tudo isto tornar-se-á muito mais evidente, considerando-se qual é, segundo o ensino da Sagrada Escritura, o fim último da Igreja e do Estado.
Achamo-lo claramente descrito no livro dos Salmos, onde o Santo Rei Profeta contempla ao longe este escandaloso conflito entre a Igreja e o Estado.
O segundo Salmo de David versa todo inteiro sobre a luta que o Messias teria de sofrer da parte dos poderosos da terra, já no seu corpo real, já no seu corpo místico, a Igreja.
Começa, pois, como horrorizado e estranhando essa guerra sacrílega:
“Por que razão embraveceram as nação e estão os povos meditando vão projetos?”
“Vede, como príncipes e reis da terra levantaram-se como um só homem e coligaram-se contra o Senhor e contra o seu ungido”.
“Vamos, dizem eles, rompamos os seus laços sacudamos o seu jugo”. Até aqui a descrição da guerra.
E quem não vê nestas palavras fielmente delineado o estado presente da Igreja?
Todos estamos deplorando a apostasia quase universal das nações enquanto nações, a guerra mais vergonhosa que povos e reis ora movem a Jesus Cristo no seu glorioso Vigário e na sua santa Igreja.
Mas, qual será o fim desta guerra insensata?
Ouçamos o Profeta real:
“Porém, vos digo que aquele que habita nas alturas do Céu zombará deles, e o Senhor escarnecê-los-á. O Senhor falar-lhes-á em sua ira; e no seu furor enchê-los-á de confusão”.
É este o fim de todas as lutas contra a Igreja.
Sacudiram o jugo suave da lei de Cristo; negaram-lhe obediência na pessoa de seus legítimos representantes; quiseram governar o mundo com a política de Maquiavel; não puseram Deus e a Religião como fundamento de suas leis; o estandarte da rebelião que arvoraram contra Deus, foi o sinal da própria ruína; precipitaram-se no abismo que, por suas próprias mãos, reis e povos abriram debaixo dos pés.
Deus confundiu a humana soberba e mostrou que a prudência mundana, diante dele, é rematada loucura.
Passa o real Profeta à segunda parte do Salmo, demonstrando quão grande é aquele Senhor, contra quem tanto se atreveram os poderosos da terra.
“Mas, eu fui constituído, por Deus mesmo, rei sobre Sião, seu monte santo, para promulgar a sua lei. O Senhor disse-me: meu filho és tu, gerei-te hoje: pede-me, e, como herança, dar-te-ei as nações, e o teu domínio estender-se-á a toda a terra. Hei de governar os povos com a força de minha autoridade e quebrarei o orgulho dos rebeldes, como a um vaso de argila”.
São estas, segundo o santo rei Profeta, as reais prerrogativas, pelas quais o Filho de Deus deverá ser respeitado por todos os soberanos da terra.
É ele gerado ab æterno por seu pai; portanto, tudo o que é deste, pertence-lhe também. Ora, o mundo universo é de seu Pai. Logo, dele é também o mundo universo.
Por isso são todas as nações herança sua; por isso tem ele o governo universal do orbe; por isso disse ele a seus Apóstolos: “Ide, pregai o Evangelho a todas as nações”.
É ele rei, é legislador; falou em pessoa mandando e legislando no monte Sião; e continua a mandar e legislar no Vaticano na pessoa e pelo órgão de seu glorioso Vigário.
Por intermédio deste sempre governou, e governará até o fim dos tempos, os povos, com a força de sua autoridade e há de confundir os seus inimigos que, à semelhança de um vaso de argila, espedaçar-se-ão contra aquela rocha inconcussa sobre a qual edificou a sua Igreja.
Conclui o rei Profeta:
“E agora, ó reis, tomai tento, e instrui-vos, vós que julgais a terra. Servi e temei ao Senhor; alegrai-vos nele; porém, ao mesmo tempo tremei. Recebei o ensino, para que não suceda que o Senhor se ire, e assim percais o caminho da justiça. Afinal, quando incender-se a sua ira (praza a Deus que não seja breve!) bem-aventurados todos os que nele confiam”.
A conclusão evidentíssima que o real Profeta tira, em primeiro lugar, da inutilidade dos esforços e tentames dos governos rebeldes à lei de Jesus Cristo, e, depois, da dignidade do mesmo Salvador dos homens. Rei dos reis, Senhor dos senhores, é que devem todos tomar sentido; devem receber a sua instrução para governar a si próprios e aos outros; devem-lhe respeito e acatamento na pessoa de seus legítimos representantes; devem lembrar-se de que, mais cedo, mais tarde, de tudo hão de dar-lhe severas contas, quando ele vier em pessoa julgar a todos, mostrando rosto afável aos que nele confiaram e inundando-os de celeste júbilo, e semblante carregado aos que desprezaram a sua lei santa e enchendo-os de consternação indizível.
Eis aí a tradução literal do segundo Salmo com alguns leves comentários.
Neste Salmo David fala do propósito, como é patente, das relações entre a Igreja e o Estado. Com maior evidência descreve jurídica e historicamente o que são entre si estes dois entes morais.
Quanto à parte histórica, pinta ao vivo a guerra sacrílega dos governos contra o corpo místico de Jesus Cristo e o castigo que lhe seguiu: Quare fremuerunt gentes et populi meditati sunt inania? Atisterunt reges terræ et principes convenerunt in unum adversus Dominum et adversus Christum ejus? Qui habitat in cœlis irridebit eos et Dominus subsanabit eos.
Quanto à parte jurídica, descreve as qualidades do divino fundador e cabeça da Igreja, as quais se resumem em ser ele Filho de Deus, e, por isso, herdeiro de seu domínio sobre todas as nações, rei e legislador de todo o universo: Ego autem Constitutus sum rex super Sion, montem sanctum ejus, prædicans præceptum ejus. Dominus dixit ad me filius meus es tu, ego hodie genui te. Dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam fines terræ.
Conclui com a parte parentética que não precisa maior comento.
Ora, cumpre notar que o Salmista fala do Messias, como legislador e mestre de todas as nações, dirigindo-se até a consumação dos séculos, no caminho da salvação; o que sem dúvida não faz com a letra morta da Sagrada Escritura, mas com o vivo magistério da sua Igreja docente: isto é, do Sumo Pontífice e dos outros Pastores.
Mas, nem por isso se pode concluir que deste texto seguir-se-ia que o Papa fora constituído Monarca civil de toda a terra. Fala-se aqui da monarquia que Jesus Cristo veio fundar entre os homens, a qual não foi um império civil sobre todas as nações do globo, com pretendiam os judeus na explicação destes textos relativos ao Messias, mas um império espiritual, que não só abrange todos os limites da terra, como estende-se até o Céu.
É o que vemos na pessoa do Romano Pontífice, segundo a promessa do Filho de Deus. Tibi dabo claves regni cœlorum, quodcumque ligaveris super terram erit ligatum et in cœlis (Mt 16, 19).
Esta relação que existe entre a Igreja e o Estado torna-se ainda mais evidente, atentando-se para as instruções que o Divino Mestre dera aos seus discípulos, quando pela primeira vez lhes falou acerca dos deveres do apostolado.
“Eis que (lhes diz aquele que abrange com um só olhar todos os séculos, que chamamos com a linguagem humana, passados, presentes e futuros), “eis que vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes e simples quais pombas... Sereis levados por meu respeito à presença dos governadores e dos reis para lhes servirdes a eles e aos gentios de testemunho”.
“O que vos digo às escuras, dizei-o às claras. E não temais aos que matam o corpo e não podem matar a alma, temei antes a aquele que pode lançar no inferno tanto a alma como o corpo (Mt 10, 16, 18, 27 e 28)”.
Não pode haver passagem de sentido mais claro, nem de aplicação mais prática do que esta!
O Divino Mestre profetiza a guerra que seus discípulos e aos sucessores deles fariam os potentados do mundo; traça-lhes a linha de conduta que tem a seguir, que é falar claramente a verdade evangélica e não deixar intimidar nem mesmo com ameaças de morte; sendo loucura inqualificável, para evitar a morte do corpo que podem dar os reis da terra, expor-se à morte d’alma por sua desobediência ao Rei dos Céus.
Falando, de outra ocasião, com os mesmos discípulos, acerca dos bens caducos deste mundo, únicos que se podem esperar dos reis da terra, e a troco dos quais tantos vendem a própria alma, diz: Quid prodest homini si mundum universum lucretur, animæ vero suæ detrimentum patiatur (Mt 16, 26).
Por conseguinte, os Apóstolos e seus sucessores, ou para melhor dizer, todos aqueles que têm uma a salvar, não devem fazer nenhum caso, absolutamente nenhum, das ameaças dos poderosos da terra, como devem desprezar as suas promessas, ainda mesmo quando prometessem eles o império e as riquezas todas do mundo inteiro, desde que se trata do cumprimento de um dever sagrado.
O fim do governo político deve ser sempre a felicidade temporal, não qualquer felicidade temporal, mas aquela somente que serve de meio para a felicidade eterna.
Assim os súditos do governo político viverão em paz, obedecerão aos magistrados, observarão as leis do Estado; porque tudo isto é meio para eterna felicidade de que eles não podem prescindir.
No caso contrário, dar-se-á infalivelmente conflito entre a autoridade civil e a religiosa, conflito entre os súditos e as autoridades, conflito
entre as consciências e os interesses; e como poderá haver, no meio destes conflitos, paz e felicidade, mesmo temporal?
V. Destes princípios tão claros e evidentes dimana toda a legislação canônica acerca das relações que devem existir entre os dois poderes.
A vontade do Criador, que dispõe todas as coisas em ordem a atingir o fim último de sua glória e da eterna felicidade dos homens, bem como fundou a Igreja para que dirigisse-os imediatamente a este fim último, assim também instituiu o Poder civil para que promovesse a paz, a tranqüilidade e o incremento social dos cidadãos, e auxiliasse destarte a Igreja no desempenho de sua missão divina.
É deste modo que os dois poderes, cada qual dentro da órbita de seus deveres, conspiram, segundo as disposições do divino autor de ambos, em procurar os mesmos interesses da glória de Deus e da verdadeira felicidade dos povos.
Tal é a doutrina que desenvolveram os Santos Padres e Doutores da Igreja acerca das relações entre a Igreja e o Estado; e, sobretudo, fizeram-no os Sumos Pontífices em suas cartas que formulavam a fé dos Concílios e deviam servir de norma à consciência dos reis e imperadores cristãos, desde o grande Constantino até o fim dos tempos.
Tal é a doutrina que ensinaram principalmente S. Leão Magno aos imperadores Teodósio e Marciano, S. Nicolau I ao imperador Miguel, Gelásio ao imperador Anastácio, S. Gregório Magno ao imperador Maurício, S. Gregório II ao imperador Leão Isaurico, Pelágio ao Rei Childeberto, e outros muitos Papas, máxime dos últimos séculos, que passo em silêncio.
Tal é, enfim, a doutrina que entre os Santos Padres e Doutores da Igreja, particularmente, pregaram, o grande Ósio de Cordova, S. Gregório Nazianzeno, S. Agostinho, Isidoro Hispalense e S. Bernardo.
Não posso furtar-me ao prazer de aqui mencionar duas belíssimas comparações que nos pintam ao vivo e com a maior exatidão o que são na sociedade os dois poderes civil e eclesiástico.
A primeira comparação ou semelhança, que é de Inocêncio III e de Bonifácio VIII, e antes deles do Padre Berengósio, como se pode verificar na Bibliotheca Patrum, e muito louvada até pelo galicano Pedro de Marca, faz ver que o Poder eclesiástico é para o poder civil o que o sol é para a lua.
A segunda, que é ainda mais célebre e antiga, pois acha-se em S. Gregório Nazianzeno, S. João Crisóstomo, S. Isidoro Pelusista, e nos séculos posteriores, em S. Ivo de Chartres, em S. Tomás 2, e nos teólogos do Concílio de Constança, diz que o Poder eclesiástico é para o Poder civil o que a alma é para o corpo.
Desenvolvamos ambas as semelhanças; porquanto, se me não engano, não há outro modo de explicar mais clara e sucintamente toda esta matéria.
O Poder Eclesiástico é para o Poder civil o que é o sol para a lua.
1° O sol e a lua alumiam os mesmos homens que vivem na mesma terra; os alumiam, porém, cada qual em sua esfera e de conformidade com a natureza de seus movimentos, o sol presidindo ao dia e a lua à noite. Assim também o Poder eclesiástico e o Poder civil governam os mesmos homens no mesmo país, cada qual, porém, no que é de sua alçada, segundo a natureza de seu governo: o Poder eclesiástico nos negócios espirituais, e o civil nos materiais, que em relação aos espirituais são como a noite e o dia.
2° A lua não ilumina a terra senão com a luz que recebe do sol, do qual se torna espelho para dirigir nas trevas da noite os passos dos mortais; de sorte que a sua luz benéfica cresce em clareza e suavidade à proporção que a sua parte visível olha para o sol.
É justamente o que, segundo os admiráveis e adoráveis desígnios da Providência Divina acontece ao Poder civil em relação ao Poder eclesiástico.
Uma legislação civil, cujos princípios fundamentais não sejam os do Cristianismo, não é legislação de luz que dirija os passos dos cidadãos no caminho da felicidade social, é legislação de trevas que cega os infelizes, perde-os no sombrio e tétrico labirinto das intrigas políticas e precipita-os nos medonhos abismos da anarquia.
A felicidade dos povos cresce à proporção que os seus governos, em todas as disposição políticas, volvem a face para o sol da justiça, e recebem a doutrina do Salvador.
Mas, onde está o sol que aclara esta doutrina, senão nas cumeadas do Vaticano?
Logo, o Poder civil só poderá dirigir os seus súditos por entre as sombras dos negócios terrenos para a felicidade e bem estar social, em razão direta da luz que houver recebido do Poder eclesiástico e que dá vigor à sua legislação.
3° A luz da lua, ainda mesmo no seu maior brilho, é sempre fraca, é enganadora, é ofensiva do órgão da vista, quando dela nos servimos para misteres para os quais não fora destinada, e não merece o nome de luz ante a luz do sol; e assim vemos que, quando juntos se encontram o sol e a luz no horizonte, ofusca-se, ou antes, desaparece inteiramente a luz da lua e fica prevalecendo a do sol.
Assim também o Poder civil, ainda quando o mais subordinado ao Poder eclesiástico, por isso que não participa do dom de infalibilidade, é sempre fraco na luz da sabedoria governativa, pode enganar-se e enganar, e, se tiver pretensão de ver e julgar em matérias que não são de suas atribuições, quais as eclesiásticas, corre risco de cegar- se.
Demais, quando ambos os Poderes versam sobre o mesmo objeto, em parte civil, em parte eclesiástico, não podendo este dividir-se, prevalece o Poder eclesiástico, na sua qualidade de poder humano- divino, em competência de outro meramente humano. Isto dá-se nos bens e pessoas eclesiásticas; nas quais a sociedade civil não pode exercer os direitos que exerce sobre os bens e pessoas dos leigos; por isso que violaria os direitos que tem a Igreja de procurar a dignidade e o esplendor do culto divino; e neste caso os direitos do Poder civil, em face deste direito do Poder eclesiástico, deixa de ser direito, como a luz da luz diante da luz do sol não é mais luz.
4° A lua é mui variável, ao passo que o sol é sempre o mesmo. Daí vem que os homens não recebam tão constantemente o benefício da luz da lua, como recebem-no da luz do sol. Isto é devido à disposição da natureza que ao sol dotou de uma luz própria, e da lua fez um corpo opaco, de modo porém que pudesse receber e reverberar a luz do sol.
Assim também é o Poder civil, que varia sobremaneira na luz da sabedoria política de que resplandece; ao passo que o Poder eclesiástico é sempre o mesmo no ensino das verdades eternas e não acompanha as vicissitudes das coisas humanas, porque em sua bandeira lê-se: Christus heri et hodie, ipse et in sæcula (Heb 13, 8). Só a Igreja se assemelha ao sol, que no decurso dos séculos vai sempre derramando a mesma luz: a mesma nas prosperidades e nas humilhações; a mesma nas glórias do trono do Vaticano e nas ignomínias do cárcere mamertino.
5° O que sucederia no mundo físico, se porventura se apagasse a luz do sol?
Não só desapareceria a luz da lua, mas este fato traria consigo a morte universal de todo o nosso sistema planetário; pois, como o observa um dos maiores astrônomos de nossos dias, tão célebre por seus estudos sobre a natureza do sol: “Os raios deste astro benéfico que a um tempo ilumina, aquece e exerce a sua atividade nas moléculas dos corpos, são a causa principal da força e da vida de todos os planetas” 3.
É precisamente o que por certo aconteceria no mundo social se por acaso se extinguisse completamente a luz da Religião Cristã.
Na ordem presente da Providência, que exige que todos os bens nos venham da fonte do Salvador, está claro que, estancando a fonte, cessa a corrente; e assim teríamos a morte total da sociedade humana.
Prova disto sejam aquelas nações que perderam no todo a fé, e por isso mesmo desapareceram da face da terra.
Que é do grande Império do Oriente, que é daqueles povos da Ásia e da África nos primitivos séculos da Igreja, tão gloriosos e tão potentes?
Evanuerunt! Sumiram-se na imensa voragem dos tempos, com todas as suas humanas grandezas, depois que perderam a fé, à qual tudo deviam!!!
Apenas deixou de brilhar para eles a luz vivificadora do Poder eclesiástico, eis que a morte acometeu o poder civil e pouco depois a nação.
Tudo isto ainda mais se dilucida com a segunda semelhança.
O Poder eclesiástico está, em relação ao Poder civil, como a alma ao corpo.
1° Todos sabem que o homem é composto de sentido e de razão: sujeito, enquanto sensitivo, às paixões da ira e da concupiscência, cujo objeto são os bens materiais, e senhor de si enquanto intelectivo, sob a direção da razão, cujo objeto são os bens espirituais.
O sentido e a razão têm inclinações diversas, mas não irreconciliáveis: antes, a natureza exige que se harmonizem: e neste caso a parte sensitiva, unindo as suas forças com as da intelectiva, faz com que o homem corra mais facilmente ao alcance da sua felicidade. Por isso, ainda que o sentido em muitos atos seja inteiramente independente da razão, porque segue espontaneamente o caminho que lhe traça a natureza, contudo, em muitos outros depende e há de seguir a direção daquela, sob pena de correr desenfreadamente ao seu objeto, e neste curso rebelde às leis da natureza, encontrar a própria ruína.
E, na verdade, quantas mortes deploramos todos os dias, unicamente devidas às paixões desordenadas da ira e da concupiscência?
São elas uma prova da minha asserção.
Ora, é isto mesmo o que sucede à sociedade humana, cuja vida pende toda inteira destes dois princípios constitutivos, a Igreja e o Estado, o Poder eclesiástico e o Poder civil. O fim do Poder eclesiástico é a felicidade eterna dos homens enquanto cristãos, o fim do Poder civil é a felicidade temporal dos homens enquanto cidadãos. Por isso tem os dois Poderes inclinações diversas, é verdade, porém não irreconciliáveis; antes, a amorosa disposição da Divina Providência exige que o fim do Poder civil, a terrena felicidade, seja meio para mais facilmente alcançar-se o fim do Poder eclesiástico, a felicidade eterna.
Mas, para isso torna-se necessário alguma subordinação do Poder civil ao Poder eclesiástico. Se aquele rejeitar toda a direção deste e contra ele rebelar-se, muito tempo não passará, sem que tudo seja desordem, tudo confusão, tudo anarquia. Verificar-se-á no corpo social o que nos ensina a fé ter acontecido ao nosso primeiro pai no paraíso terrestre. Enquanto a vontade de Adão conformou-se com a divina, a parte inferior ou as paixões conservaram-se submissas à vontade; quando porém a vontade rebelou-se contra Deus, aquelas também rebelaram-se contra a vontade.
Da mesma sorte, enquanto a autoridade civil conformar-se com a eclesiástica, os poderes subalternos obedecerão à autoridade civil; mas quando a primeira revoltar-se contra a segunda, também os poderes subalternos revoltar-se-ão contra a autoridade civil.
2° O composto humano é uma anacefaleose e quase miniatura da criação, não só porque compendia os quatro reinos da natureza, o mineral, o vegetal, o animal e o racional; senão também porque a admirável disposição de suas faculdades, segundo o plano da natureza, é o tipo de uma sociedade organizada.
Esta verdade, que sugeriu aos Santos Padres e Doutores da Igreja a semelhança que estamos desenvolvendo, não escapou aos sábios da antigüidade, ainda envoltos nas densas trevas do paganismo.
É assim que Platão formou o ideal de sua política, segundo o seu sistema de psicologia.
Acerca de nossa questão, não há exemplo que mais esclareça estes dois pontos, aliás dificílimos de aclarar:
1° Em que são independentes a Igreja e o Estado, para não perderem a natureza de poderes supremos?
2° Em que são mutuamente subordinados?
Com efeito.
Três gêneros de atos governativos se podem distinguir nesta pequena república denominada — composto humano, dirigindo-se porém todos eles à felicidade do mesmo homem: os primeiros são peculiares à parte intelectiva, os segundos à parte sensitiva, os terceiros são comuns a ambas.
Os atos de abstrair das idéias sensíveis as idéias universais, para formar juízos e raciocínios, são próprios, como todos sabem, da parte intelectiva.
Os movimentos espontâneos da parte irascível e da concupiscível, as sensações involuntárias de dor e de prazer, bem como o desenvolvimento orgânico da vida vegetal, são próprios da parte sensitiva.
Enfim, são atos próprios de uma e de outra aqueles que ordena a parte intelectiva e executa a parte sensitiva, e aqueles que propõe a sensitiva e põe em execução a intelectiva.
É assim que o homem quando quer, lê, ouve, passeia, etc. e quando recebe nos sentidos impressão de algum objeto externo, forma-se a idéia daquele objeto; quando experimenta sensação de fome, sede, calor, etc., naturalmente inclina-se a buscar o que lhe é preciso.
Ora, sabemos que tanto mais perfeitos são os atos do primeiro gênero, quanto menor é neles o influxo dos sentidos.
Tanto assim que se o entendimento não se desprende dos fantasmas sensitivos, não pode abstrair as idéias universais, nem discorrer sobre Deus e a virtude, nem formular proposições e raciocínios, nem penetrar com a agudeza da vista intelectual os esconderijos da metafísica.
Mas, também sabemos que no desenvolvimento espontâneo da vida vegetal, bem assim em muitas sensações que são efeito deste desenvolvimento, o sentido segue as leis da natureza e não espera pela direção da vontade, nem a vontade pode meter-se a dar a esse desenvolvimento outra direção, sem destruir o organismo e encontrar a morte: como, por exemplo, quem intentasse impedir a respiração, a circulação do sangue e toda a sorte de sensações.
É portanto dever da vontade nos atos da parte sensitiva que são necessários à existência, deixar à natureza o seu livre curso.
Há, porém, outros muitos atos no homem, que os filósofos chamam formalmente atos humanos, porque são atos em que entram ao mesmo tempo a deliberação da parte intelectiva do homem e a cooperação da parte sensitiva; e nestes é claro que a vontade manda e o sentido executa. Mas, quando é o sentido que manda e a vontade executa, então com toda a propriedade de linguagem diz-se que a vontade é escrava de suas paixões.
Vamos agora à aplicação destes fatos de nossa consciência, que me foi necessário notar tão minuciosamente.
Três são também os gêneros de atos que se devem distinguir na sociedade humana, vivificada pela Igreja e pelo Estado.
Alguns são próprios da Igreja como tal, e são relativos ao dogma, à moral e à disciplina, a missão que recebo de seu divino Esposo tendente à salvação das almas. Nestes atos o Estado não deve ter a mínima parte, e toda a parte que neles tomar será um embaraço para a Igreja; pois, os objetos destes atos estão fora da alçada daquele, como as idéias, seja universais, seja de objetos espirituais, estão fora da atividade do sentido.
Não destruiria, por ventura, a idéia de Deus e da virtude aquele que se imaginasse Deus ou virtude, como objetos de alguma cor ou forma particular?
Pois é este o caso daquele que se imagina os atos próprios do governo da Igreja, tendo o Estado parte neles.
Estes atos não seriam mais próprios de um poder infalível em seu governo, visto que nunca os Estado recebeu de Deus o dom da infalibilidade; por isso, falível em tais matérias, deve ser inteiramente dirigido nelas e não dirigir.
Há, porém, outros atos próprios do Estado como tal, e são os dos seus três poderes, legislativo, judicial e executivo. Nestes atos não pretende a Igreja ingerir-se; antes, pelo contrário, é ela a primeira a respeitá-los, e manda que sejam respeitados, à exceção do caso em que o Estado, no exercício de tais poderes, prescrevesse alguma coisa que fosse de encontro ao fim da Igreja; porque então tem ela não só direito, mas até obrigação de se lhe opor.
Isto, porém, não seria ingerir-se no exercício dos poderes do Estado nem tirar-lhe a independência; visto entre os mesmos estados políticos acontecer que, se algum deles toma uma determinação perniciosa ao fim dos outros, estes têm o direito de se lhe opor; e nem por isso diz-se que intrometem-se na legislação alheia.
Em suma, na mesma sociedade humana há um terceiro gênero de atos que a um tempo pertencem à Igreja e ao Estado; como é todo o que diz respeito ao culto divino. Nestes entra o Estado, pois ele também será obrigado a reconhecer a Deus como fonte de todo o poder e render-lhe a própria homenagem do culto interno e externo. Mas a direção pertence à Igreja; porquanto recebeu ela a incumbência de tudo o que diz respeito à Religião.
Se a Igreja, isto é, uma Religião revelada, não estivesse vivificando o corpo social, é claro que o Estado dirigir-se-ia por si mesmo com a Religião natural, assim como faz o irracional que, não tendo alma intelectiva, governa-se pelo natural instinto na busca de substância. Mas, como a Divina Providência não deixou a sociedade no estado natural, porém elevou-a ao sobrenatural e divino, (em relação ao qual o estado natural pode considerar-se, como o irracional, em relação ao homem); por isso tem ela obrigação imprescindível de prestar a Deus um culto sobrenatural e divino; o que não pode fazer senão obedecendo à Igreja.
Daí o direito que tem a Igreja de determinar o que é necessário para o culto divino, na ordem, no número, na qualidade dos ministros, na sua isenção dos cargos civis, no privilégio do foro, em uma palavra, em tudo o que é relativo aos sacramentos.
Daí também a obrigação não menos rigorosa que tem o Estado não só de se não opor, como de cooperar com a Igreja para prestar a Deus o culto que lhe é devido.
Tudo isto, me parece, explica com a maior evidência os pontos de independência e de subordinação que têm entre si a Igreja e o Estado.
3° Há, finalmente, outro ponto de semelhança que merece a nossa atenção.
Três foram os intentos que teve a natureza, unindo no homem o sentido com a razão.
O primeiro para que o sentido fornecesse à razão a matéria de seu primeiro trabalho intelectual, e assim pudesse ela argumentar das coisas visíveis para as invisíveis.
O segundo para que o sentido suprisse onde não chega a razão, pois muito mal provida seria a existência do homem se todos os atos da vida vegetal e sensitiva dependessem do governo da sua razão: ninguém viveria nem sequer um minuto, sendo o organismo da vida humana tão complicado e sujeito a tantas enfermidades mortais.
O terceiro para que o sentido apoiasse e defendesse as determinações da razão, nos interesses do composto humano; porquanto, segundo as disposições da natureza, como a parte concupiscível abre o caminho, assim a irascível remove os obstáculos exteriores do bem que se pretende.
Ora, estes mesmo três intentos teve a Divina Providência, unindo na mesma sociedade o Estado e a Igreja.
Em primeiro lugar, é o Estado que dá filhos à Igreja, visto como ninguém nasce cristão, mas cada um torna-se filho da Igreja por meio de batismo; e assim cada um entra na Igreja depois de já ter entrado no Estado.
Em segundo lugar, almejando a Igreja o bem temporal e eterno de seus filhos, e que estes gozem todos os seus direitos de homens e de cristãos, e não podendo em uma família tão grande curar de cada um deles como exigiria o seu coração materno, a tudo isto supre o Poder civil, procurando a ordem e administrando a justiça.
Em terceiro lugar, a intenção da Providência, que revestiu a Igreja de mansidão e não lhe deu a força física necessária para defender-se de
seus inimigos internos e externos, foi provê-la de um defensor poderoso na pessoa do Estado, a fim de que aqueles que não temem as armas espirituais, temam as físicas.
É por esta razão que S. Leão Magno escrevera ao Imperador Leão: “Deveis lembrar-vos de que a autoridade real vos foi conferida não só para o governo do mundo, senão também, e principalmente, para a defesa da Igreja; a fim de que reprimindo os ímpios esforços de seus inimigos, não só presteis o vosso apoio a tudo o que foi decretado segundo a ordem, mas restituais à verdadeira paz o que está perturbado”.
E Santo Agostinho, em sua carta a Bonifácio, escrevera: “Como é que os reis servem ao Senhor com temor, senão proibindo e castigando com religiosa severidade tudo o que se pratica contra os mandamentos de Deus? Pois o rei serve a Deus de um modo enquanto é homem, e de outro enquanto é rei. Os reis servem enquanto reis ao Senhor, se fazem em seu serviço o que não podem fazer senão os reis”.
VI. Recapitulemos estas reflexões antes de inferir alguns corolários.
1° Bem sabemos que a nossa doutrina só pode ser admitida por pessoas que tem fé. Por isso, desde o princípio dissemos que não falávamos nem para incrédulos nem para os protestantes, mas para católicos sinceros; falávamos para aqueles, que contra os incrédulos, reconhecem com Santo Agostinho que Deum non habet Patrem qui Ecclesiam non habet matrem, e contra os protestantes professam com Santo Ambrósio que Ubi Petrus ibi Ecclesia.
2° Falando, pois, para católicos, antes de tudo observamos o mal que a política tem feito quando pretendeu prevalecer contra a Igreja; começou por tornar-se ré do deicídio e continuou, no correr dos séculos, afligindo a Esposa imaculada do Divino Cordeiro, com uma prepotência inqualificável, a qual sempre redundou em prejuízo da prepotente.
Basta este ligeiro esboço histórico para infundir-nos o maior horror a toda política hostil à Igreja.
3° Mas, desejando saber, segundo a ciência, quais as relações que existem entre a Igreja e o Estado nos direitos e atribuições de cada um dos poderes, recorremos, em primeiro lugar, à Escritura Sagrada, comentando alguns textos de S. Mateus, de S. Marcos, e das epístolas de S. Paulo, e concluindo de todos eles que Jesus Cristo, como Rei dos reis e Senhor dos senhores, autorizou, ou para melhor dizer, mandou aos Apóstolos e seu sucessores pregassem o Evangelho e procurassem a salvação das almas, sem dependência alguma de autorização de reis e governos da terra.
Portanto, não há neste mundo autoridade que possa embaraçar os sucessores dos Apóstolos no cumprimento de sua missão augusta. É o que nos demonstra a constituição íntima da Igreja, segundo a idéia de seu divino fundador.
Argumentamos também no mesmo sentido com o fim último da Igreja e do Estado, que é a glória de Deus e a salvação das almas. Comentando o segundo salmo de David, vimos o que era então praticado e o que deveriam praticar os governos políticos que são herança do Salvador, e, ponderando as santas advertências que fizera o Divino Mestre a seus Apóstolos, quando pela vez primeira os enviou em missão pelo mundo universo, vimos que os bispos devem fazer, em relação ao governo, o que precisamente estão fazendo aqui no Brasil, na Prússia, na Suíça, na Itália em todo o lugar, enfim, onde a política de novo pretende crucificar o adorável Salvador dos homens.
4° Examinadas com a Escritura Sagrada as relações entre a Igreja e o Estado, recorremos em segundo lugar à Tradição. Vimos que os Pontífices e os Doutores da Igreja reduzem esta doutrina a três pontos:
O primeiro é que a Igreja e o Estado estão entre si na mesma razão em que se acham os fins de cada um: ora, sendo o fim do Estado meio para o fim da Igreja e não vice-versa, segue-se que ao Estado cumpre receber a norma da Igreja e não lha dar.
O segundo, que a Igreja é para o Estado o mesmo que o sol é para a lua. Examinando as qualidades relativas de cada um destes astros, chegamos a conhecer a dependência e independência relativa dos dois poderes.
Ainda mais célebre é outra comparação dos Santos Padres e Doutores da Igreja que dizem que a Igreja e o Estado estão entre si como a alma e o corpo. O desenvolvimento desta semelhança demonstrou o terceiro ponto da tradição. Donde faz-se patente que, assim como a ordem das faculdades do composto humano foi tomada por Platão como tipo de um governo perfeito, assim também explica ela o governo da sociedade humana vivificada pela Igreja e pelo Estado, onde vemos, pela graça do Redentor, realizado o ideal moralmente impossível daquele sábio da Antigüidade.
VII. Desenvolvemos bem de propósito estas duas semelhanças em atenção já à força intrínseca que é própria deste gênero de provas, já a seu valor extrínseco, tendo sido proposta pelos mestres da Religião. E como ambos põem sensivelmente debaixo dos olhos e pintam solis radiis, segundo a conclusão ingênua do galicano Pedro de Marca, a verdade das relações que examinamos, tirarei de todas estas reflexões alguns corolários, ilustrando-os com as mesmas comparações.
PRIMEIRO COROLÁRIO
O negócio superior a todos os demais é a glória de Jesus Cristo e a salvação das almas. É esta verdade princípio resolutivo para todas as dúvidas, acerca dos direitos da Igreja na sociedade humana; bem como a falta de seu conhecimento prático é causa de tantas e tamanhas desordens que não cessamos de lastimar, quer nos governos, quer nos governados.
É por sem dúvida mui necessário que toda a criatura no Céu e na terra, e tudo o que existe na ordem natural e sobrenatural submeta- se a Jesus Cristo, que é o Autor de todas as coisas e Criador e Redentor do gênero humano.
E por isso diz a Sagrada Escritura que o Pai tudo lhe depositou nas mãos; que todo o poder lhe foi dado no Céu e na terra; tudo quanto tem o Pai também lhe pertence; que nele se restauraram todas as coisas; que é ele o caminho, a verdade e a vida; que ninguém poderá ir ao Pai senão por intermédio d’Ele; que ele é juiz dos vivos e dos mortos; e que julgará com muita severidade os que governam: judicium durissimum his qui prœsunt.
Portanto, governos e governados, reis e vassalos, indivíduos, sociedades e nações, todos estão obrigados a render preito e homenagem de obediência, respeito e reverência à Santa Igreja, augusta e cara Esposa de Jesus Cristo; pois, a tanto estão todos obrigados, em relação a Jesus Cristo.
Ai daquele que faltar com o respeito a uma Esposa que tem um Esposo tão dedicado, tão amoroso e tão poderoso. Para vingar as lágrimas de suas Esposa não mandará ele um anjo do Céu, como fez outrora contra o exército de Sennacherib; mas bastar-lhe-á entregar os seus inimigos à desordem e ao medonho humor das más paixões.
O indivíduo e a sociedade dos tempos modernos correm em paralelo pelo mesmo caminho do cisma e da heresia, pelo qual correra o Império de Bizâncio nos três séculos que precederam à sua total apostasia.
Vejamos o quadro sombrio que pinta daqueles tempos um escritor, que certamente bem longe estava de pecar por demasiado ceticismo 4:
“Que espetáculo, na verdade, nos oferece Constantinopla! Maurício trucidado com cinco filhos; Phoca, em prêmio de seus assassinatos e incestos, também assassinado; Constantino envenenado pela Imperatriz Martinha, à qual arrancam a língua, ao tempo que cortam o nariz a seu filho Eracleona. Constante manda degolar seu próprio irmão e depois, ele mesmo é morto no banho. Constantino Pogonato manda tirar os olhos aos seus dois irmãos, e seu filho Justiniano II, que pretendia renovar em Constantinopla a cena que Teodósio representou em Tessalonica, é surpreendido, preso e mutilado por Leôncio, no momento em que ia ele degolar os principais cidadãos”.
“Porém o mesmo Leôncio, pouco depois, é tratado como havia tratado Justiniano II ele próprio, na ocasião em que está vendo correr, em uma praça pública, o sangue de seus inimigos, cai debaixo do machado do algoz”.
“Felipe Bardane, destronizado, é condenado a perder os olhos. Leão Isaurico e Constantino Copronymo morrem, é verdade, em seu leito; mas depois de um reinado cheio de sangue, desditoso não menos para o príncipe que para os súditos. A Imperatriz Irene, a primeira dentre as mulheres que subiu ao trono dos Césares, é também a primeira que, por sede de reinar, assassina a seu filho. Niceforo, que lhe sucedeu, detestado por seus súditos, preso pelos Búlgaros, é decapitado, o seu corpo lançado às feras e o crânio feito taça para o seu vencedor. Afinal, Miguel Curopalate, contemporâneo de Carlos Magno, desterrado em um mosteiro, é condenado a morrer de uma morte menos cruel, porém mais ignominiosa que a dos seus predecessores. Assim foi governado o império por três séculos”.
Lendo uma história verdadeira acerca de inauditas infâmias e cruéis carnificinas, perguntará o leitor horrorizado, se o povo em questão teve jamais algum princípio de civilização, se em tempo algum conheceu e professou a Religião de Jesus Cristo?
E contudo, é um povo que herdou toda a glória do Império e da civilização romana; é um povo, cuja metrópole chamava-se a nova Roma, fundada pelo primeiro Imperador Romano, convertido ao Cristianismo; é um povo, cuja metrópole ouviu os encantos e experimentou o mágico poder da eloqüência arrebatadora de S. João Crisóstomo, isto é, Bocca de ouro, e foi testemunha da santidade e sabedoria de quatro Concílios ecumênicos.
Em suma, é esta a história de um Império que deu à Igreja de Deus luzeiros de tanta doutrina, quais os Atanásios, os Basílios, os Cirilos, os Nazianzenos, os Nissenos, os Epifanios, os Damascenos.
Este povo, este grande Império, paga com toda aquela degradação moral as lágrimas que fizera verter a Esposa Imaculada de Jesus Cristo. O maior castigo, com que Deus irado vinga as ofensas que de governos e governados costuma receber, é entregá-los às desordens e às conseqüências desoladoras de suas paixões; para que assim vejam os homens que non est sapientia, non est prudentia, non est consilium contra Dominum (Pr 21, 31).
Notam os historiadores que o vício capital da corte de Bizâncio fora se ocuparem os seus Césares, muito mais dos negócios eclesiásticos do que dos negócios temporais do Império. E foi justo juízo de Deus que aqueles soberanos, dominados de orgulho e do insensato desejo de ensinar aos Bispos os seus deveres, se esquecessem assim dos deveres de cristão, como até dos últimos sentimentos de humanidade.
Tal é o castigo das nações que recusam dar a Jesus Cristo o que lhe é devido.
Portanto, o negócio que mais importa aos povos, mesmo politicamente falando, é a glória de Jesus Cristo, fonte de todo o bem; como também, o maior crime que pode uma nação cometer, mesmo sob o ponto de vista social, é apostatar de sua fé sacrossanta.
O governo que estiver compenetrado desta grande e importante verdade não deixará de acatar Jesus Cristo em sua Esposa e em seus ministros; não admitirá nunca as exigências do beneplácito régio, do recurso à Coroa, e não mandará responsabilizar os bispos por tribunais leigos e, por conseguinte, incompetentes.
A necessidade de salvar a própria alma é também princípio que resolve todas as dificuldades na questão que ora examinamos. Não há verdade mais elementar que esta; entretanto talvez não haja outra menos sabida na prática. E com é ela o fundamento de todas as leis naturais e sobrenaturais, políticas e eclesiásticas, a falta de conhecimento dela acarreta consigo imensas desordens, ou para melhor dizer, toda a sorte de anarquia.
Como é, porém, que Deus pode obrigar o homem a observar a sua lei na ordem natural e sobrenatural?
Mostrando-lhe que, se não cumpri-la, não poderá salvar a alma, e assim será infeliz toda a eternidade.
Eis, pois, a salvação da alma como fundamento de toda a lei natural e sobrenatural.
Se pudesse o homem transgredir a lei de Deus sem receio algum de castigo, já não sentiria mais obrigação alguma de observá-la; e uma lei que não tem força obrigatória, poderá chamar-se direção, mas nunca será lei verdadeira.
Por esta razão dizia o Apóstolo que o ponto de partida para toda lei sobrenatural é um Deus remunerador: — Credere enim oportet accedentem ad Deum quia est, et inquirentibus se remunerator sit (Heb 11, 6).
E não é este o fundamento das leis eclesiásticas?
Com efeito, suponhamos que algum governo ou Igreja particular faça uma lei contrária à lei divina ou da Igreja universal, pergunto: estão os súditos obrigados a observá-la?
Não. Longe de serem obrigados a observá-la, pelo contrário, têm o dever de não observá-la; porquanto não podem eles, segundo os ditames da razão, expor-se à pena eterna que a lei de Deus promete, no intuito de evitar a pena temporal com que os ameaça a lei dos homens.
É portanto sumamente necessário que o legislador humano, se pretende verdadeiramente impor obrigação aos súditos, não estabeleça nas leis coisíssima alguma que vá de encontro ou ponha embaraços à salvação eterna, porque, neste caso, cessa para o povo a obrigação de observá-las.
Eis, como o fim último do homem, a salvação da própria alma, é o farol que deve guia-lo durante a sua navegação no mar escuro e perigoso da vida humana, sob pena de não chegar ao porto.
SEGUNDO COROLÁRIO
Do que fica dito fácil é conhecer quão falsa e perniciosa é a teoria daqueles que querem separar a Igreja do Estado, que assim proclamam o ateísmo legal.
Se na sociedade humana a Igreja é para o Estado o que é a alma para o corpo, claro está que separar a Igreja do Estado é o mesmo que separar a alma do corpo; e se o corpo, em lhe faltando a alma logo se decompõe, assim também o Estado sem a Igreja prestes cairá na decomposição social.
Como as paixões políticas de nosso país, infelizmente, vão também confundindo e anuviando uma verdade, por si mesma tão clara e evidente, releve-me o leitor dizer-lhe mais duas palavras, para maior esclarecimento deste ponto.
Antes de tudo, cumpre advertir, que nenhum bispo católico admite a união da Igreja com o Estado da maneira como a entendem e pretendem alguns daqueles políticos que atualmente estão enchendo de amarguras o coração da augusta Esposa do Cordeiro sem mácula.
Estes não querem que a Igreja separe-se do Estado; pois que, dizem, feita semelhante separação, o Estado não se poderia mais precaver contra os atos do poder eclesiástico. Portanto, querem que a Igreja viva unida ao Estado, mas, à imitação de serva humílima, que vive sob o mando de um senhor absoluto.
Em tais condições a união é muito pior para a Igreja que a separação.
Se o Estado e a Igreja vivificam o corpo social, como o sentido e a razão no composto humano, a união que promovem esses políticos não é para que, nos atos próprios de ambos, a razão governe o sentido; mas para que este governe aquela: e assim entendem e pretendem que a Igreja, nesta união leve uma vida brutal, como vive a razão naqueles homens, que só se governam pelas paixões.
Neste caso, repito, é antes para desejar a morte que uma vida tão ignominiosa: Politus mori quam fœdari.
Por conseguinte, não é neste sentido que se deve promover a união da Igreja com o Estado e reprovar sua separação.
Nós, católicos, entendemos, queremos e promovemos com todos os nossos esforços a união da Igreja com o Estado, como a entende e como a exige aquele Supremo Senhor, a quem devem obedecer igualmente a Igreja e o Estado; aquele que diz: Per me reges regnant et legum conditores justa decernunt (Pr 8, 15); aquele que, um dia, há de pedir contas de sua obediência aos que governam a Igreja e o Estado.
O modo porque a sabedoria divina entende esta união e a exige da sabedoria humana já está traçado em todas estas reflexões, pois, segundo as teorias expostas, separar em uma sociedade católica a Igreja do Estado, é matar a sociedade ipso facto enquanto católica, e, depois, também enquanto sociedade.
O princípio que unifica toda reunião de pessoas e lhe dá forma de sociedade não é, por certo, nem pode ser outra coisa que o governo; visto como é no governo que se acha concentrada a autoridade.
Por conseguinte, se o governo de nosso país não professasse a Religião Católica, poderia ter, individualmente, súditos católicos; mas, como sociedade política não seria católica.
E se não católica, que religião professaria?
Nenhuma; porquanto é certo que aqueles que pretendem tirar à Religião Católica a dignidade de religião do Estado, não pretendem substituir-lhe outra.
Logo, o nosso país, enquanto sociedade política, seria ateu.
E, poderá, acaso, o ateísmo ser fundamento de governo algum?
É esta uma teoria tão monstruosa assim em religião, como até em política, que os mesmos pagãos dela se envergonhavam. O maior filósofo político do melhor século da civilização greco-romana, no segundo livro de suas leis, cap. 8°, estabelece a teoria diametralmente oposta, quando proíbe que ninguém professe, nem sequer privadamente, outra religião que não seja a que professa o Estado: Separatim nemo habessit Deos, sive novos, sive advenas, nisi publice ascitos, privatim colunto.
E esta necessidade de religião na política foi verdade tão reconhecida desde a mais remota antigüidade, que daí tomaram pretexto os ateus para dizerem que a religião, foi uma invenção da política para conter os povos na obediência.
Logo, um governo ateu não é só ímpio em religião, mas também desarrazoado em política.
Daí se colige que fim há de levar uma sociedade, cujo governo não professa religião alguma. Nesse governo deve existir um conflito permanente entre os vínculos de crenças, de tradições, naturais a toda a sociedade, e os estímulos de dissolução que manam de seu ateísmo legal.
De sorte que, se prevalecerem os vínculos da crença do povo, mais cedo ou mais tarde, a religião deste tornar-se-á também a do Estado; se, porém, prevalecerem os elementos de dissolução do governo, mais cedo ou mais tarde, ter-se-á infalivelmente a anarquia social, e, por conseguinte, a morte da sociedade.
Como prova histórica desta verdade basta olhar para aquela grande e generosa nação que, por desdita nossa, parece que só procuramos imitar nos desacertos.
Qual não foi a glória da França quando, pela sua unidade de fé, era justa e merecidamente credora do título de Cristianíssima?
O que não tem ela sofrido depois dos famosos princípios de 89 e de seu ateísmo legal?
Quais não tem sido os seus esforços, para sair do estado em que atualmente se acha, cansada de tantas revoluções em seu brio nacional, em seu pundonor militar!
Et nunc reges intelligite, erudimini qui judicatis terram (Sl 2).
Está registrado nos fatos mais estrondosos e estupendos da história contemporânea que, publicando Napoleão III, na quaresma de 1870, a nova Constituição com que pretendia consolidar as bases de seu trono, como nela não fizesse nem sequer menção de Deus, e tudo firmasse sobre a autoridade do povo, um jornalista católico de grande nomeada ergueu a voz, disse, com se lesse no livro do futuro que — POSTA UMA CONSTITUIÇÃO TÃO ÍMPIA, DESDE ENTÃO ANUNCIAVA A TODOS QUE ANO SEGUINTE, 1871, NÃO SE FALARIA MAIS NEM DE CONSTITUIÇÃO, NEM DE IMPÉRIO, NEM DE IMPERADOR.
Coisa pasmosa!
Pouco depois rebentou a guerra entre a França e a Prússia e, antes do fim daquele ano, já se tinha verificado ao pé da letra o prognóstico do estadista católico!!!
TERCEIRO COROLÁRIO
A teoria do recurso à Coroa e do placet régio é teoria do sentido sobre a razão.
Esta conseqüência segue-se imediatamente do que dissemos, quando provamos com a autoridade de toda a tradição, que a Igreja é para o Estado o que é a alma para o corpo.
Com efeito, segundo a teoria do recurso à Coroa, o último apelo em negócios eclesiásticos é para a autoridade civil.
E não é isto o mesmo que dizer que nos atos próprios do espírito, tais como o de entender e julgar, o último apelo é para os sentidos?
É como se alguém dissesse: quereis saber se existe Deus e o que é a virtude? Apelai para os sentidos: viste, alguma vez, Deus e a virtude com os vossos olhos?
Saboreastes com o paladar, ou tocastes com a mão a algum dos dois?
Ouvistes a sua melodia com os vossos ouvidos? Não. Não é assim? Logo, Deus e a virtude não existem.
Tal é o juízo que se deve esperar quando o sentido julga em última instância em matérias próprias somente do entendimento.
E de outro modo não julga o tribunal civil nos chamados recursos à Coroa.
O provérbio diz: Cœcus non judicat de colore: e aqui temos cegos que pretendem não só discutir uma questão comezinha acerca de um objeto colorido, senão também discutir sobre alta astronomia, sobre a luz e posição das estrelas, as qualidades e aparições dos cometas, as órbitas e conjunções dos planetas.
Nada é mais ridículo do que se presumir julgar o que se não entende: e se o juízo que se tenta impor a outrem não versa sobre matéria de pouca monta, mas de grandes e graves conseqüências, neste caso, além de ser ridículo, é despótico e tirânico.
O beneplácito é também uma teoria do sentido sobre a razão porquanto, confere ao representante da nação a autoridade de rejeitar as determinações da Igreja que julgue contrárias ao seu governo; o que é como se nos atos humanos se estabelecesse o princípio que, dando a razão uma ordem, deve o sentido julgar se é contrária às leis da sensibilidade; como por exemplo, o jejum, a continência, a morte em defesa da pátria ou da Religião. Neste caso, o sentido negaria o seu beneplácito à ordem da razão, que ficaria sem efeito algum.
Ocupem as coisas o lugar que lhes assinalou a idéia arquétipo do Criador, e teremos aquela unidade na variedade que forma a beleza do universo.
QUARTO COROLÁRIO
O privilégio do foro para os eclesiásticos é uma conseqüência natural da soberania da Igreja. Esta verdade já provei-a em minha resposta ao Supremo Tribunal de Justiça; aqui, porém, ela resplandece com maior luz de evidência depois que provamos o que é a Igreja na sociedade humana, e qual a excelência e supremacia de seu poder confrontado com os poderes políticos.
Rematarei este ponto com um reparo que serve de complemento ao que acima disse em referência à política de Pilatos.
Conta S. João que, perguntando o presidente romano ao nosso Divino Mestre, de onde era, como não tivesse resposta, disse-lhe mui enfadado: “Não falas? Não sabes que tenho poder para crucificar-te ou para soltar-te?” Jesus lhe replicou: “Nenhum poder sobre mim terias, se ele te não fora dado lá de cima. Por isso maior é o pecado dos que me entregaram em tuas mãos” (Jo 19, 10, 11).
As palavras do presidente romano revelam a prepotência que se apóia não no direito, mas na força bruta: Nescis quia potestatem habeo crucifigere et potestatem habeo dimittere te?
Não era possível empregar mais enfaticamente o despotismo!
E porque não disse Pilatos que tinha direito de julgar — jus judicari, mais o de crucificar ou de soltar a seu arbítrio — potestatem crucifigere et potestatem dimittere; por isso também o Salvador dos homens em sua resposta, não lhe reconhece direito algum de julgá- lo, só lhe ensinou que aquele poder arbitrário de que tanto enfatuava-se era uma dispensação de seu Pai Celestial: Non haberes potestatem adversus me ullam, nisi tibi data esset desuper: querendo dizer, com isto, que, sem permissão divina, os maiores tiranos com toda a sua prepotência não podem nem sequer torcer um cabelo na cabeça de um inocente; ainda que muitas vezes Deus permita a prepotência para depois virá-la contra o prepotente.
É claro que Jesus Cristo não reconheceu em Pilatos competência para julgá-lo. E não se pode negar que Pilatos mesmo, por um resto de bom senso romano, percebeu que lhe falecia competência para julgar o Nazareno; e por isso remeteu a causa ao juízo dos Sacerdotes: Accipite eum vos et secundum legem vestram judicate eum.
E como não aceitassem-no os Sacerdotes, não porque reconhecessem a autoridade de Pilatos em julgar se o Nazareno era ou não criminoso (antes protestavam contra isto, representando que já estava julgado), mas porque pretendiam que o presidente romano fosse cego instrumento de seu ódio, condenando a mesma inocência a ser crucificada; Pilatos recorreu ao expediente de enviar o divino Acusado ao tribunal de Herodes, que, na qualidade de judeu e nacional era menos incompetente do que ele, gentio e estrangeiro, em causas daquela natureza.
Mas, afinal fraquejou, deixou-se arrastar a fazer a vontade dos escribas e fariseus, e assim tornou-se réu do maior crime que pudera perpetrar a humana malícia.
Foi este crime o maior, mas não o único na história da Igreja; repetiu-se e repetir-se-á todas as vezes que nos tribunais da justiça deram e derem ingresso à política de Pilatos.
Deixando a defesa de minha causa inteiramente aos cuidados do Supremo Pastor das almas, com pleno sossego, antes com veemente desejo de sofrer pelo seu santo nome tudo o que for de seu agrado, julguei ser obrigação minha oferecer estas considerações ao tribunal do bom senso de meu país, confiando que, sendo eu, se bem muito indigno, um daqueles a quem o Espírito Santo disse: Attendite vobis et universo gregi (At 20, 28), a minha humilde palavra, fecundada pela graça divina, poderia produzir frutos que se desejam em defesa da justiça, da pátria e da Religião.
Termino este escrito com aquelas sublimes e para sempre memoráveis palavras que, em circunstâncias quase análogas, proferiu S. João Crisóstomo do alto do púlpito de Santa Sofia, de Constantinopla, as quais traduzem fielmente os sentimentos de minha alma:
“As ondas se agitam em torno de mim; não receio, porém, coisa alguma, porque estou sobre um rochedo inabalável... O que poderia eu temer? O exílio? Mas, a terra, com tudo quanto ela encerra, pertence ao Senhor nosso Deus. A pobreza? Mas nada eu trouxe ao mundo e claro está que dele nada levarei. A morte? Oh! Jesus Cristo é minha vida, e para mim a morte seria lucro.”
E como o santo rei Profeta espero sempre poder repetir ao nosso adorável Salvador: Iniquitatem odio habui, et abominatus sum; legem autem tuam dilexi (Sl 18, 163).
Palácio da Soledade, 8 de Dezembro de 1873.
† Fr. VITAL, Bispo de Olinda.