2 - Uma excomunhão contestada
2.1. Alguns fatos e pontos inamovíveis
Os fatos
Numa "pequena tese de licença" em direito canônico, discutida e aprovada pelo maior número de votos, em julho de 1995, na Pontifícia Universidade Gregoriana, o sacerdote americano (não "lefebvriano") Gerald Murray defendeu que a excomunhão latae sententiae, declarada há tempo contra D. Lefebvre, D. Mayer e os quatro bispos consagrados por D. Lefebvre sem mandato pontifício, não é válida em questão de estrito direito canônico nem o é a imputação de cisma em sentido formal. A "pequena tese" não foi publicada. Contudo, está à disposição uma síntese suficientemente clara dela com largas citações de trechos, que apareceu na revista americana The Latin Mass (número de outono de 1995), juntamente com uma entrevista com o Pe. Murray. Outras entrevistas do mesmo e resumos daquela síntese apareceram depois em outras publicações 1.
Entrementes, porém, verificaram-se dois fatos: 1) a retratação parcial feita pelo Pe. Murray da própria tese (no verão de 1996); 2) a manutenção das motivações da excomunhão num texto apresentado cerca de um ano depois, como parecer do Conselho Pontifício para a interpretação dos textos legislativos.
Na suposição de que este último órgão tivesse emitido (digamos "tivesse" porque o texto difundido é, em realidade, anônimo), órgão que não é fonte de direito, mas que se qualifica como verdadeiro e próprio órgão técnico designado para a interpretação das leis da Igreja, a "tese Murray" nem mesmo é tornada em consideração pelo seguinte motivo: "É impossível avaliar a 'tese Murray' por não ter sido publicada, ao passo que os dois artigos [de revista - n.d.t.] publicados sobre ela são confusos"2.
A publicação das teses dos doutorandos em direito canônico é talvez contrária à praxe da Universidade Gregoriana? É-se obrigado a discutir argumentos científicos baseando-se no que aparece a respeito deles em artigos de revista, mesmo se nada existe realmente de confuso, como afirma aquele órgão pontifício, ao mostrar, de qualquer modo, conhecer a "tese Murray", desde o momento em que rejeita desdenhosamente, como veremos, até a simples hipótese da invalidade da excomunhão papal. A satisfação duma justa exigência científica teria indubitavelmente reclamado a publicação da pequena tese do Pe. Murray. O fato de não o ter feito torna provavelmente mais fácil a remoção do ponto de vista nela defendido, como se nunca tivesse existido.
Pode-se, pois, observar que o Pe. Murray publicou a sua retratação um ano antes do aparecimento do parecer atribuído ao Conselho Pontifício. Por que este último deveria tomar em consideração argumentos já formalmente, embora parcialmente, retratados pelo seu autor? E retratados antes ainda que um público mais vasto tivesse podido apropriar-se dele com um detalhado conhecimento de causa.
Os pontos inamovíveis
Todavia, tudo isto não impede de estabelecer alguns pontos inamovíveis.
1.Quaisquer que sejam as mudanças de opinião do Pe. Murray sobre o seu próprio trabalho, e os motivos pelos quais não lhe foi concedida ou encorajada a publicação, permanece o fato de que o trabalho foi aprovado com o maior número de votos pelos professores da Universidade Gregoriana, recebendo deste modo uma sanção científica de toda a consideração, a qual nenhuma autoridade ou mudança, ocorrida após o fato, podem invalidar. Esta sanção é tida na devida consideração 3.
2. O extrato da "tese Murray" aparecido em The Latin Mass é suficiente para se fazer uma idéia sobre ela, para compreender o que o sacerdote americano, com o código de direito canônico na mão, nega ou, se se prefere, põe em dúvida a validade da excomunhão ipso iure, aplicada a D. Lefebvre, porque este agiu em estado de necessidade (mesmo se, conforme o Pe. Murray, de necessidade putativa) e sem realizar nenhum cisma. Segundo este sacerdote é preciso reconhecer que, com base no direito canônico vigente, a excomunhão de D. Lefebvre é substancialmente inválida, e o cisma não subsiste. Uma tese indubitavelmente corajosa e, sobretudo, fundada no direito, embora não estejamos de acordo com a hipótese do Pe. Murray, segundo a qual D. Lefebvre pôde enganar-se em boa fé sobre a existência do estado de necessidade que o autorizava a proceder às consagrações. Em qualquer caso, a retratação do Pe. Murray após o fato, diz respeito somente à inadmissibilidade do estado de necessidade, não à existência dum cisma em sentido formal.