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A ilusão de Ecclesia Dei Adflicta

1.2. A ilusão de Ecclesia Dei Adflicta

 

O Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta

Mas, por que este Motu Proprio deu vida a uma ilusão? Consideremos atentamente os fatos. Emanado a 2 de julho de 1988, como se fosse um comentário da excomunhão de Dom Marcel Lefebvre, apenas declarada (cf. o §3 do presente ensaio), o documento advertia todos os que, até aquele momento "estavam ligados de qualquer modo, ao movimento criado por D. Marcel Lefebvre” se dessem conta do seu dever de não apoiar de nenhum modo o dito "movimento"1. Ao mesmo tempo lhes estendia a mão. Como? No parágrafo 5o. do documento, o Papa manifestava a vontade, à qual pedia se associassem os Bispos e todos os que estavam investidos do ministério pastoral na Igreja, conforme a qual se facilitasse aos fiéis que "se sentem ligados a formas litúrgicas e disciplinares anteriores na tradição latina", a "comunhão eclesial" graças a medidas capazes de garantir o respeito das suas "justas aspirações"2. Para isso, o papa estabeleceu, no parágrafo 6o., a constituição duma Comissão presidida por um cardeal (Comissão Ecclesia Dei) e composta pelos membros da Cúria, encarregada de colaborar com os órgãos competentes e os ambientes interessados para facilitar a "plena comunhão eclesial" de sacerdotes, seminaristas, comunidades religiosas e indivíduos até então ligados à Fraternidade Sacerdotal São Pio X que desejassem permanecer unidos ao Sucessor de Pedro "conservando a sua tradição espiritual e litúrgica à luz do protocolo subscrito pelo cardeal Ratzinger e por Dom Marcel Lefebvre a 5 de maio de 1988"3.

Este famoso protocolo de acordo, embora depois não tenha entrado em vigor, constituía, portanto, a base jurídica para organizar as posteriormente chamadas "Comunidades Ecclesia Dei", ou seja, as "comunidades" (em geral sociedades de vida apostólica) compostas inicialmente de trânsfugas da Fraternidade São Pio X, às quais se reconhecia o privilégio de celebrar a Missa dita de São Pio V e de manter "as formas litúrgicas e disciplinares precedentes". Entre as primeiras e mais conhecidas estão a abadia beneditina de Santa Madalena do Barroux e a Fraternidade São Pedro. Segundo fontes da Fraternidade São Pio X, a autonomia reconhecida a estas instituições é, de qualquer modo, bem limitada, sob diversos aspectos4. Aqui se pode recordar um ponto importante: no protocolo de 5 de maio de 1988, a Santa Sé reconhecia a "utilidade" da nomeação dum Bispo "membro da Fraternidade São Pio X"5. Isto significava que, em principio, ela tinha aceitado a sagração dum Bispo fiel à tradição. Tendo mantido o protocolo de acordo como base para o reconhecimento das "Comunidades Ecclesia Dei", pesa ainda sobre a Santa Sé a promessa oficial então subscrita: para estas Comunidades deveria haver logo a sobredita sagração, mas, até agora nem sombra dela: a promessa não foi mantida 6.

 

Um indulto gravemente condicionado e sem razão de ser

Voltemos agora ao texto do Motu Proprio. Concluindo as suas instruções, o Papa afirmava ser preciso respeitar o "desejo espiritual" dos fiéis "que se sentem ligados à liturgia latina, aplicando de modo amplo e generoso as diretivas adotadas a seu tempo pela Sé Apostólicapara o uso do Missal Romano segundo a edição típica de 1962"7. A que se referia o Papa? Ao famoso indulto Quattuor abhinc annos, emanado em 03/10/1982 da Sagrada Congregação para o culto divino, já citado por nós, o qual estabelecia para os sacerdotes e fiéis, que não tivessem feito o pedido ao respectivo Bispo, a possibilidade de receber o privilégio de celebrar a Missa assim chamada tridentina e de assistir a ela. Naturalmente, a concessão do privilégio era subordinada a condições como as seguintes: que os requerentes aceitassem "a legitimidade e correção doutrinal do missal romano promulgado pelo Pontífice Romano Paulo VI"; que tais celebrações se realizassem "somente para a utilidade dos requerentes" e nos lugares de culto e nas condições estabelecidas pelo Bispo. As igrejas paroquiais eram excluídas da concessão do privilégio, exceto em casos extraordinários 8.

O exercício do privilégio era, portanto, submetido a notáveis limitações e os Bispos se mostraram logo surdos aos pedidos dos fiéis 9. A isso se acrescenta que os fiéis ligados à Tradição continuavam a freqüentar em grande número as Missas celebradas na Fraternidade São Pio X. Então, o Papa, em 1986, empossou uma comissão de 8 cardeais da Cúria, encarregados de examinar a Situação e preparar "normae" que estabelecessem uma nova regulamentação do Indulto, válida para toda a Igreja. Estas normas, porém, Jamais foram promulgadas 10.

O conceito talvez mais importante expresso naquela comissão refere-se, como se sabe, à questão da supressão ou não, por Paulo VI, da assim chamada Missa tridentina; segundo aqueles cardeais, Paulo VI jamais a suprimiu formalmente pois "nenhum Bispo tem o direito de impedir um sacerdote católico de celebrar a Missa tridentina"11.

Este parecer, que se mostra canonicamente carente de exceção, sem querer, esvazia o significado do próprio indulto. De fato, se a Missa tridentina nunca foi supressa formalmente e, por isso, continua a existir como liturgia perfeitamente válida na Santa Igreja, celebrá-la e assistir a ela é um direito e não um privilégio. Em vista disso, o Indulto de João Paulo II, que concede o privilégio para ela, é canonicamente supérfluo.

 

A resistência passiva dos Bispos e a interpretação da Santa Sé

Como quer que seja, o convite enviado pelo Papa aos Bispos para serem "generosos" em conceder a permissão de celebrar a Missa tridentina, não foi acolhido. Isto é um fato inegável que, entre outros, sobressai com extrema clareza, do considerável volume da Enquête citada na nota 9. Os Bispos fazem ouvidos de mercador. Ao mesmo tempo, o pedido daquela Missa parece aumentar talvez porque os fiéis estejam fartos da "anarquia litúrgica" que, graças à Missa de Paulo VI, reina em quase todas as paróquias, especialmente na França e não só nesta (variam o grau e a intensidade, mas a anarquia é atualmente universal).

Contudo, a atitude dos Bispos contradiz a da Santa Sé apenas aparentemente. Este é o ponto. A Santa Sé fez promessas que depois não manteve (por exemplo, a nomeação do Bispo "tradicionalista"). Instituiu a comissão cardinalícia, como se viu acima, mas as suas normae, válidas para toda a Igreja e com uma nova regulamentação, jamais foram promulgadas 12. Não só. Ao presidente de Una Voce, que a 13/10/93 pedia ao Papa para que quisesse autorizar livremente, para toda a Igreja, a Missa e os Sacramentos segundo o rito antigo, contornando assim a resistência passiva dos bispos, Mons. Giovanni Battista Re, substituto, na primeira seção dos negócios gerais da Secretaria de Estado, respondia a 17/01/94 que "Ecclesia Dei" tinha concedido o uso do missal romano "em certas condições": "As diversas disposições tomadas depois de 1984 visavam facilitar a vida eclesial dum certo número de fiéis, sem, contudo, perenizar as fórmulas antigas anteriores. A lei geral é a de usar o rito renovado depois do Concílio, para o qual o uso do rito anterior deve ser entendido a modo dum privilégio, com caráter excepcional"13.

O escopo da Ecclesia Dei era, portanto, somente o de "facilitar a vida eclesial" aos fiéis apegados à Tradição, mas não se queria "perenizar" o antigo rito. Que significa esta expressão? Que o antigo rito era tolerado provisoriamente para não ofender a sensibilidade de certos fiéis, mas não podia considerar-se um rito destinado a permanecer. A cláusula da carta era extremamente clara no seu propósito: tendo rendido uma homenagem formal à "salvaguarda dos valores que constituem um patrimônio precioso para a tradição litúrgica da Igreja", o documento prosseguia afirmando com extrema clareza que "o primeiro dever de todos os fiéis é o de acolher e aprofundar as riquezas de significado encontrados na liturgia em vigor e de fazê-lo em espírito de fé e obediência ao Magistério, evitando toda a tensão danosa à comunhão eclesial. O Santo Padre - concluía - deseja que vossa associação contribua para este fim"14.

 

Um "parêntese de tolerância"

O texto de Mons. Re pode ser entendido sem mais como uma interpretação autêntica do Motu Proprio Ecclesia Dei. Este último não pretendeu, de fato, restabelecer o antigo rito, e ainda menos num plano de igualdade com o novo. Tratou-se apenas dum gesto "pastoral" do Papa nos confrontos da "sensibilidade" de certos fiéis apegados ao passado. Um "parêntese de tolerância"15. que não tem em vista "perenizar" o rito antigo na liturgia oficial da Santa Igreja. Os fiéis devem, ao invés, saber que o seu dever é o de seguir o novo rito pois esta é e continua sendo a vontade do Papa. A importância deste documento, interpretação oficial do Motu Proprio, é confirmada pelo tato de os Bispos a citarem freqüentemente, ao se recusarem a conceder a Missa com o Indulto16. Do ponto de vista da hierarquia atual, a Missa tridentina com o Indulto seria, portanto, nada mais que um parêntese destinado a fechar-se um dia. Por isso, dizemos que a Ecclesia Dei é uma ilusão que criou outra, na qual caíram todos os que esperavam que o atual Pontífice quisesse efetivamente restabelecer o antigo rito da Missa, com igual dignidade relativa ao outro.

Mas já se avizinha o dia do brusco despertar. Demonstram-no os pedidos feitos à "comunidade Ecclesia Dei" por Mons. Perl, secretário da Comissão Ecclesia Dei, num documento do verão deste ano (1998), certamente para celebrar dignamente o décimo aniversário. Mons. Perl pede que, nas Missas tridentinas celebradas com o Indulto, o oficiante esteja doravante sentado durante a leitura da Epístola; que o Prólogo do Evangelho de São João, no fim da Missa, seja abolido; que se comecem a recitar, durante o Santo Sacrifício, as assim chamadas "orações universais"17.

É uma tentativa impressionante para mutilar o rito tridentino e contaminá-lo com o de Paulo VI. De fato, por que motivo o sacerdote deveria estar sentado durante a Epístola, quando jamais se viu coisa semelhante? É o sacerdote presidente da missa protestantizada sentado enquanto leigos de toda a espécie (senhoras, moças, escoteiros, pais de família etc) lêem os trechos do Antigo e do Novo Testamento inseridos na assim chamada liturgia da palavra e quase sempre de modo a fazer corar até as paredes da igreja! Requerendo que o oficiante da Missa tridentina fique sentado durante tais leituras, enquanto aqueles estejam de pé, é evidente que se pede, sem o dizer, a presença de qualquer outro, a não ser o oficiante para aqueles atos. Quem? Um leigo? Uma mulher? Uma religiosa?

E por que se quer a supressão do último Evangelho? Que desagrado causa? É claríssimo: trata- se dum texto de modo nenhum ecumênico! De fato: 1) reafirma a natureza divina de Cristo; 2) recorda que o mundo e os "seus", isto é, os judeus, "não o receberam"; 3) relembra que o mundo é inimigo de Cristo (razão para quem se converte); 4) recorda o pecado dos Judeus contra o Espírito Santo, coisa que eles não gostam de lhes ser lembrada; 5) proclama os cristãos superiores aos filhos de Abraão por serem eleitos "filhos de Deus" graças à fé em Cristo. A assim chamada "oração universal" é, enfim, concebida segundo diversos formulários, que introduzem explicitamente na Missa o espírito "ecumênico" como o pretende a "Igreja conciliar", nascida do Vaticano II18. A circular de Mons. Perl demonstra que a Santa Sé decidiu abreviar o tempo: o recreio acabou. Anunciam-se tempos duros para as "Comunidades Ecclesia Dei" (salvo seus ulteriores compromissos). Os seus superiores tentarão talvez resistir e defender a Missa de sempre dos cortes e das contaminações. Mas conseguirão isto? E até quando? Teriam feito melhor não se deixar seduzir há dez anos e dar atenção a quem, com o código de direito canônico na mão, apontava então a invalidade patente daquelas condenações, agora aventada mesmo pela Universidade Gregoriana (v. §2 deste ensaio e §3 no. 11).

O presente trabalho espera dar um contributo à verdade e concorrer, com o auxílio de Deus, a fazer dissipar a nuvem de mentiras e falsas interpretações que ainda circunda a figura e a obra de D. Lefebvre.

  1. 1. Citamos o texto publicado em Enquête, CII. Apêndice, pp 373-4.
  2. 2. Ibidem, p. 374.
  3. 3. Ibidem.
  4. 4. Fratenité saint Pie X. Bulletin Officiel du District de France, no. 29, de 29/09/1988 para alguns detalhes do acordo entre D. Gerard e Roma, por ocasião do reconhecimento da abadia do Barroux.
  5. 5. Nós nos referíamos ao texto citado em apêndice na Enquête, cit. na p.379.
  6. 6. O fato foi notado por M. de Jaeghere na sua Intervenção relatada em Enquête, cit. na p.  279.
  7. 7. Texto em apêndice a Enquête, cit., p 374.
  8. 8. Texto citado em Enquête, cit. p. 375.
  9. 9. Ensaio introdutório a Enquête, cit.: Ecclesia Dei? Advertência histórica. p.12-55, p. 38.
  10. 10. Um resumo destas normae, devido ao Dr. Eric de Saventhem, ex-presidente de Una Voce, é trazido em apêndice na Enquête, cit.. p. 391 23) A opinião dos cardeais foi unânime: Enquête, cit., p. 38. A fonte da informação é o cardeal Afonso Stickler, em La Nef (1995), 53.pp. 8-11 (ver. nota no. 54 em p. 53 da Enquête). A revista reproduz uma entrevista do cardeal a The Latin Mass, de 1995.
  11. 11. Enquête, cit., p. 264 e também pp. 103, 261,.274.
  12. 12. Aqui, dentre as 6 normae, apresentamos as três primeiras no resumo citado: "1. Nos ofícios do rito romano. deve-se atribuir à língua latina a honra que lhe compete. Os Bispos devem fazer com que nos domingos e dias festivos seja celebrada ao menos uma Missa em língua latina em todas as localidades importantes da sua diocese. Todavia. as feituras da Missa poderão ser feitas em língua vulgar 2. Todos os sacerdotes podem dizer, em qualquer tempo, as suas Missas particulares em latim. 3. Para toda Missa rezada em latim - estejam ou não presentes os fiéis - o celebrante tem o direito de escolher livremente entre o Missal de Paulo VI (1970) e o de João XXIII (1962) [que é considerado a última edição típica do Missale Romanum codificado por São Pio V" (Enquête, p. 391). A norma no. 3 parece tornar universalmente livre a possibilidade da celebração da Missa dita de São Pio V, transpondo os limites postos pelo Indulto. Compreende-se porque uma normativa deste gênero jamais tenha sido promulgada: esta teria demonstrado abertamente o malogro da reforma litúrgica pondo em crise o "espírito do Concílio”.
  13. 13. Texto em apêndice a Enquête, cit., p. 385. O Dr. Saventhem replicou com outras duas cartas sem resposta. Na primeira escreveu, entre outras coisas: "aquilo a que os fiéis assistem não é outra coisa mais que as inumeráveis formas diferentes de celebrações eucarísticas que proliferam na Igreja desde 25 anos, reclamando, com legitimidade mais ou menos fundada, das diversas Edições nacionais do Missal romano de Paulo VI e das múltiplas oposições ai encontradas ... Na maior parte das paróquias, estas celebrações foram simplesmente impostas, razão pela qual os fiéis, desencorajados, não tinham outro modo de "recusá-las" a não ser o afastamento silencioso ... Enfim, está demonstrado por todas as sondagens destes últimos 25 anos que se deve dar conta duma erosão progressiva da fé mesmo entre aqueles que ainda freqüentam as igrejas Uma vez que a lex credendi segue a lex orandi, não é preciso, então, concluir que a fé não é mais nutrida pela liturgia reformada ou que precisamente esta última acelerou a perda da fé?" (Enquête, cit., p 387).
  14. 14. Enquête, cit., p. 385.
  15. 15. A expressão é do Pe Claude Barth, Enquête, cit., p. 249.
  16. 16. O testemunho é do Pe. Jean Paul Argouac'h, superior de uma das "Comunidades Ecclesia Dei": o Instituto de direito pontifício "Santa Croce" de Riaumont: Enquête, CII., pp. 90-91.
  17. 17. Tudo isto ressalta do boletim Inter multiplices, Una Vox, junho de 1998.
  18. 18. Veja-se, por exemplo, o Missal festivo dos fiéis. Anno A-B-C, texto oficial da C.E.I (Conferência Episcopal Italiana), a cuidado de G. Boffa, com apresentação de Mons. Mariano Magrassi, Coletti ed .. Roma 1984, p. 869.
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