Skip to content

Reflexões sobre as exigências espirituais na ordem temporal

Agosto 10, 2018 escrito por admin

Há verdades fundamentais que cada vez se nomeiam menos, quando não são deixadas sistematicamente no esquecimento; silêncio que explica por que nossos contemporâneos encontram um não sei quê de estranho e antinatural cada vez que, devido a circunstâncias excepcionais, estas verdades chegam a seus ouvidos.

Convém observar que em tempos normais — tanto em sua vida social como pessoal — o homem manifesta uma atração pela verdade se esta se apresenta sob uma aparência lisonjeira e sedutora. 

E se, ao contrário, a verdade requer um esforço nos atos ou uma renúncia? O homem se aparta rapidamente para seguir seu próprio interesse ou prazer; não consente em escutar essa voz que vem do alto, e só o faz quando que se encontra oprimido, metido em um caminho sem saída ou presa do sofrimento.

Chegamos nós hoje a tal extremo no plano das realidades temporais? Sem dúvida ainda não de todo. No entanto, desde há alguns anos um sentimento novo parece manifestar-se nas massas: um desgosto e uma inquietude que não provêm somente das dificuldades do momento presente ou das dificuldades que se prevêem para um futuro mais ou menos próximo, mas que consistem mais profundamente em uma angústia mesclada com um ceticismo acerca das respostas dadas às aspirações humanas de felicidade e de justiça em todas as formas técnicas de organização.

Na medida em que estas dúvidas afastem de nós uma segurança artificialmente alimentada durante décadas pelo racionalismo e pelo positivismo político, devemo-nos alegrar: o florescimento de tal sentimento é provavelmente a percepção do que um filósofo chamou “a insuficiência essencial das coisas visíveis”. Sobre a terra, somente o homem é capaz desta percepção.

O fato curioso é que esse fenômeno geral e ainda bastante informe não parece ser advertido no plano da classe dirigente, seja porque esta tem o poder e em tal caso não percebe o que sucede nos corações inquietos acerca da ordem por ela estabelecida, seja porque se encontra na oposição, em cujo caso se mostra totalmente insensível àquilo que não entra em uma visão catastrófica do homem e das coisas.

De qualquer forma o fato está aí, imponente. E assim os “políticos”, em vez de dignar-se considerar esse desgosto coletivo, se limitam a lançar reformas superficiais, incessantemente submetidas a discussões por um prurido psicológico de mudanças, ou a elaborar programas unicamente centrados no melhoramento das condições técnicas.

Essa solicitude pelo progresso material, comum a todas as instituições, trate-se de instituições amigas ou rivais, impede-lhes conceber o futuro de outra maneira que não seja sob a forma de uma benéfica evolução contínua, concebida segundo o modelo — admirado por todos — do desenvolvimento científico. Desta perspectiva, a visão social do futuro não pode evidentemente consistir em outra coisa senão em proporcionar cada vez mais abundantes vantagens e direitos aos cidadãos, os quais cada vez estão mais exigentes com respeito à quantidade e variedade dos alimentos terrestres oferecidos a seu apetite.

 

Só se trata de um consumidor para alimentar e divertir?

É verdade que faz parte da responsabilidade do Poder procurar tais bens, e seria injusto reprovar a dita preocupação dos governantes, os quais se esforçam com boa vontade e com talento por corresponder às aspirações gerais da população. Todos esses esforços, no entanto, não impedem que as coletividades entrem em uma engrenagem geradora de novas dificuldades. Assegura-se-nos um nível de vida cada vez mais alto, mas os recursos do universo são ilimitados? A explosão demográfica do Terceiro Mundo nos permitirá desfrutá-los tranqüilamente? Os danos trazidos pelo progresso técnico não atentam contra o bom funcionamento dos fatores naturais? E, sobretudo, o homem se torna com tudo isso mais sábio?

Os governantes do mundo se submetem ansiosamente aos problemas próprios de nosso tempo recorrendo a novos remédios materiais, dado que, uma vez mais, não podem imaginar outros. 

Como não se perguntar se esse comportamento político-econômico universal não traduz uma filosofia do homem radicalmente insuficiente, que desemboca no desconhecimento de suas necessidades autênticas?

É como se nossos governantes considerassem o homem só sob o aspecto de um consumidor que há que alimentar e divertir, como se não vissem nele mais que uma emanação da ordem material, já que não se fala nunca do que constitui sua essência e sua nobreza, ou seja, sua participação na ordem espiritual, nem, com maior razão, se fala da subordinação da ordem espiritual à da Graça.

Podemos figurar a diversão dos homens públicos a quem se pediu que se debruçassem sobre as exigências morais e espirituais dos cidadãos, assim como, por outra parte, podemos figurar a irritação dos ditos homens se lhes dissessem que as vantagens materiais devem ter em vista seu próprio bem e não a satisfação de seus próprios egoísmos; sua ascensão às alturas e não seu envilecimento na lama.

Ai de mim! A maior parte de nossos chefes — também cristãos (sem dúvida cristãos na vida privada, mas fortemente “laicilizados” em seus pensamentos e comportamentos políticos, por terem demasiado bem aprendida a lição dos clérigos desviados) — já não querem saber que coisa é o homem, donde vem, para onde vai, as aspirações de seu coração nem a grandeza de seu destino.

 

Subdesenvolvimento moral e espiritual

É mister ir ainda mais longe e deplorar o fato de que a filosofia política dos tempos modernos se baseia no repúdio deliberado da “ferida original”, sem a qual é impossível compreender o homem e ajudá-lo eficazmente no plano político-social.

Alguns pensadores disseram que seria necessário dar ao mundo “uma alma suplementar” ou recordaram que as civilizações são mortais. Suas vozes não são escutadas: a batalha cotidiana, provocada pela busca dos próprios interesses, sufoca todos os clamores da razão.

Para estarem ainda mais seguros de que nenhuma luz seria projetada sobre a condição real do homem, foi negado às autoridades espirituais o direito de “informar” e de “animar” a ordem temporal, deixando-lhes somente o direito de ocupar-se do culto e a possibilidade de testemunhar sua simpatia a um mundo em decadência, e é necessário reconhecer que, salvo raras exceções, elas não fizeram muitos esforços por rechaçar a voz do Tentador.

É finalmente demasiado evidente que os bens materiais, ainda que sejam necessários tanto para o exercício da inteligência especulativa e prática como para a satisfação dos sentidos, não podem nutrir o corpo nem a alma. Mas os governantes não olham para o alto: limitam-se a formar eruditos, artistas, técnicos, amantes de doçuras sensíveis e de raciocínios sutis. Estão oficialmente impossibilitados de formar corações leais, ardentes e puros, almas cheias de coragem e de fé. Esse campo está “minguado”, “posto entre parênteses”, como dizem os filósofos alemães.

O resultado dessa extraordinária carência se manifesta agora: o mundo inteiro se encontra imerso em um subdesenvolvimento moral e espiritual, o qual comove todos os ambientes, e do qual pouquíssimos homens públicos parecem ter consciência, sem porém ousar dizer uma palavra.

 

Ao rés do chão, como as andorinhas que anunciam a chuva

Conhecer sempre mais a fundo o mundo exterior, interpretá-lo e transformá-lo para melhor gozá-lo parece ser verdadeiramente o único objetivo dos governantes e dos governados.

Até que ponto chefes e cidadãos compartilham esta visão mutilada e mutilante do homem, pudemos constatá-lo por ocasião dos debates sobre a anticoncepção e o aborto. Guias e guiados, todos sofrendo a mesma cegueira, trabalharam por via legal no delito mais inescusável, explicando solidamente seu repúdio em aceitar que no homem há algo que ultrapassa o mesmo homem.

No entanto, essa cumplicidade não tira absolutamente a maior responsabilidade dos governantes.

Os programas que hoje nos propõem sofrem todos esta lacuna. Nenhuma perspectiva ética ou espiritual se delineia, nem sequer em filigrana. Seja em nome da justiça, do progresso ou da liberdade, nós continuamos voando ao rés do chão como andorinhas que anunciam a chuva. Não nos surpreendamos que nessas condições nos choquemos contra obstáculos que podíamos evitar alçando os olhos um pouco mais alto.

Não imaginando tampouco a subordinação da ordem temporal à ordem espiritual e da ordem espiritual à ordem sobrenatural, os governantes podem esperar somente um redobramento de concupiscências ferozes, estendidas para colher os frutos proibidos, o que portanto fará necessário pôr em prática medidas repressivas destruidoras da liberdade.

 

Uma “liberdade” homicida

Quando se perdem de vista a origem e o fim do homem, por que o Poder e os cidadãos se deveriam privar de violar as leis naturais e morais, cujos imperativos os perturbam? Uma liberdade que se exercita no contexto de uma filosofia mutilada não é mais que uma liberdade egocêntrica e se torna, mais cedo ou mais tarde, uma liberdade homicida.

Dizem-nos que a metafísica e a religião não devem entrar no plano de nossos economistas e de nossos políticos, da mesma maneira que no século passado eram também declaradas alheias ao trabalho de nossos sábios. Mas essa decisão arbitrária nada pode contra a realidade: dado que criado por Deus, o homem é constitucionalmente um animal metafísico e religioso. O não levar em conta sua verdadeira natureza e seu fim leva aos piores erros doutrinais e práticos, até ao próprio sacrifício das vidas humanas.

Repetimo-lo: não podemos rechaçar em nome da verdade — ao contrário! — nenhum dos esforços realizados para melhorar a vida cotidiana dos homens. Digamos somente que é uma loucura querer limitar-se a obrar só no nível “cérebro-digestivo”, oferecer ao espírito humano só algumas quimeras astrais e a seu apetite só alimentos materiais. Estamos seguros de que os demônios que dormem em nós não tardarão a despertar para desencadear uma espantosa carnificina. Esse extermínio já se está realizando diante de nossos olhos, mas não perturba o sono de ninguém!

 

Uma escolha dramática

Em verdade se trata de uma escolha dramática, que consiste em salvar nossa vida ou perdê-la. Amiúde se comparou a vida humana à subida de uma alta montanha: antes de alcançar o cume onde nos espera Aquele que não pode enganar-se nem enganar-nos, nós caminhamos penosamente, não sem ser tentados a cada passo a tomar sendas equivocadas que nos convidam a descer facilmente a abismos bem dissimulados.

Não existe um caminho no meio! A maior parte dos homens gostaria de poder divertir-se descuidadamente sobre vertentes menos escarpadas, onde brotassem a cada passo todos os tipos de alimentos agradáveis. Mas este agradável hedonismo entra nas miragens ou paraísos que se podem chamar, com toda a justiça, artificiais.

O êxito sanguinário do século XVIII, tão próximo de nós por seu aspecto racional e por seu afã de gozo, está cheio de ensinamentos. Lembra aquele amante apaixonado da liberdade que, no momento de subir ao patíbulo, teve de reconhecer os crimes cometidos em nome dessa idéia. Como poderia ser de outra maneira, dado que se havia querido cortar o laço ontológico que une o homem à sua origem e ao seu fim? Estavam condenados a não compreender mais nada do mistério do homem e a deixar de respeitar sua dignidade. Algo desventurosamente semelhante nos ameaça ainda. As hierarquias desmoronam por todos os lados, enquanto as barreiras legais e morais, protetoras da Sociedade, se transtornaram. Sinal revelador, que, não podemos cansar de repeti-lo como um Leitmotiv, é o massacre legalmente autorizado dos inocentes.

 

Vae victoribus! (Ai dos vencedores!)

Em verdade, o trabalho que cabe a nossos governantes é gigantesco. Muitos deles se dedicam sinceramente a dar à gente o alimento e as diversões que exigem. Quase nenhum — ai de mim! — tem a coragem de praticar e de requerer dos outros o agere contra e o sursum corda (equivalente social e moral da inesgotável fórmula dada pela Virgem em Lourdes: “Oração e penitência”), o que constitui o preâmbulo indispensável para qualquer diretriz nacional.

Resta alguma esperança humana? Uma só poderia ser: a existência de certo número de dirigentes decididos que conheçam perfeitamente, conscientemente, as medidas por tomar:

  • para favorecer a unidade e a fecundidade da célula familiar;

  • para ensinar aos jovens e aos não tão jovens o respeito às leis fundamentais que regem a vida humana;

  • para restituir às instituições civis e militares o sentido de sua missão e para inseri-los novamente no “tecido” nacional.

Esta breve admoestação patriótica e moral feita aos governantes pode, por outro lado, ser dirigida aos governados. Deploramos já a cumplicidade na astúcia e no mal que infecciona de cima a baixo a pirâmide social. Essa constatação permite dizer aos cidadãos que também eles devem merecer os governantes que desejam ter.

Observemos, finalmente, um ponto importante que está relacionado com o que eu disse: as relações entre o poder temporal e o poder espiritual. Esse ponto mereceria, por si só, uma longa explanação. Basta dizer que sobre esse ponto capital haveria que corrigir muitas coisas tanto no plano dos princípios como no que se refere a atos concretos. Em todo o caso, não pode ser supérfluo recordar que os representantes dos dois poderes estão submetidos aos mesmos imperativos do bem e da verdade, e que tal exigência veda qualquer acordo secreto ao serviço de causas equívocas.

Estas últimas afirmações parecerão duras a alguns. Poderia pensar-se que fossem infundadas. Ao contrário, no curso da metade do século passado não assistimos muito freqüentemente à marginalização de espíritos excelentes pelas pressões, às vezes conjuntas (e jamais confessadas), das autoridades civis e religiosas? Sem dúvida é uma lei constante que a Cruz seja a sorte daqueles que amam e servem a verdade, ao passo que aqueles que abusam de seus poderes legítimos recebem na terra sua recompensa. Mas não duvidamos em dizer: Vae victoribus!, ai dos vencedores por um dia, que crucificam os justos com a aprovação do mundo e do inferno! São responsáveis pela dupla ruína do Templo e de Jerusalém, quer dizer, da Igreja e da Sociedade, à espera de serem os grandes vencidos na eternidade.

 

Conclusão

Possam os dirigentes em todas as ordens e de todos os graus:

  • compreender que a grandeza de um país não está ligada à acumulação de riquezas materiais nem ao desenvolvimento da arte e da técnica, mas que está unida sobretudo ao valor moral e espiritual dos homens que o compõem;

  • reconhecer, por conseguinte, que só a formação dos planificadores, peritos e eruditos, por muito honrosos que esses qualificativos possam ser, não acrescenta um côvado à estatura moral de uma nação;

  • dar-se conta de que, limitando-se a fabricar cada vez mais objetivos de consumo para indivíduos moralmente subdesenvolvidos, faz crescer consideravelmente o risco de graves desequilíbrios passionais tanto no plano individual como no coletivo;

  • aceitar corajosamente pôr em seu verdadeiro lugar os ídolos apresentados muito freqüentemente pelos tribunais oficiais como fins supremos;

  • pôr termo à mortal separação entre a política, a metafísica e a religião;

  • assumir os cargos públicos para servir ao bem comum e não para seu próprio proveito pessoal ou para o prestígio de um partido;

  • rechaçar os jogos de prestidigitação que consistem em apresentar a realidade sob uma luz incerta ou falsa, propícia para todos os maquiavelismos;

  • dedicar-se desde agora a construir, sobre os fundamentos dos verdadeiros princípios, a arca temporal que nos permitirá enfrentar sem demasiados danos o dilúvio devastador cujos sinais premonitórios já se fazem sentir;

  • em uma palavra, tomar consciência da excepcional responsabilidade tanto moral como social que pesa sobre eles, acrescentando que um dia serão julgados de maneira proporcional ao uso que hajam feito de seu poder e à energia que hajam utilizado para tal.

Está bem claro: só o ordenamento da ordem temporal à lei natural e sobrenatural apresenta caráter de necessidade; não está permitido (non licet) a nenhuma autoridade civil ou religiosa nem a nenhum súdito o subtrair-se. Ao contrário, as modalidades de atribuição ou de devolução do poder apresentam, enquanto puras técnicas institucionais, um caráter contingente; elas podem variar sensivelmente segundo os dados da história e do temperamento dos povos. Nesta perspectiva, a legitimidade do poder não está unida nem à forma do regime, nem a um homem eleito segundo os acontecimentos, nem a uma dinastia, mas essencialmente à fidelidade de que dá prova aquele regime, aquele homem ou aquela dinastia diante da lei natural e sobrenatural.

Fora dessa referência meta-histórica, o poder não pode senão alegar justificações mutiladas ou relativas que, por outro lado, ele não tarda a absolver, imitando a verdade para idealizar suas próprias ações e para melhor seduzir os espíritos.

Finalmente, é evidente que em nenhum país do mundo os mecanismos políticos, econômicos e sociais podem funcionar normalmente se estão “gangrenados” contemporaneamente pela sujeição de uma fração importante da nação a um empreendimento progressivo e programado de dominação planetária, e pela existência de um poder paralelo, difundido por todos os lados, que duplica de maneira oculta as instituições oficiais (civis, militares ou religiosas).

 

(Sim Sim Não Não, no. 106)

AdaptiveThemes