5.0. Um conceito errado da Encarnação.
Efetivamente, se afirma que, por sua Encarnação, o Filho de Deus está de algum modo unido a todo homem (cum omni homine quodammodo Se univit) (Gaudium et Spes 22), como se a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-Se em um homem real, em um indivíduo que existiu historicamente, estaria, por isso mesmo, unido a todos os outros homens, e como se cada homem, só pelo fato de ser homem, de ter nascido, se encontraria unido ao Cristo, sem o saber. Desta maneira, se deforma a noção da Santa Igreja, que não é mais o “Corpo místico do Cristo” e portanto dos crentes em Cristo, dos batizados: o “povo de Deus”, que é a Igreja (do “Cristo”), tende a coincidir, sic et simpliciter, com a humanidade.
5.1. Um conceito errado da Redenção.
Efetivamente, se lê em Lumen Gentium que “na natureza humana que a si uniu o Filho de Deus, alcançando vitória sobre a morte por sua morte e sua ressurreição, Ele resgatou o homem e o transformou para dele fazer uma nova criatura” (Lumen Gentium 7). Aqui, a redenção não está apresentada corretamente, quer dizer, como possibilidade dada a todo homem pela Encarnação e pelo Sacrifício da Cruz de Nosso Senhor, possibilidade perdida para sempre para quem não se torna ou não quer se tornar sinceramente cristão, salvo nos casos de ignorância invencível (só Deus conhece o número deles), onde a Graça age por intermédio do batismo de desejo. A redenção é considerada como já realizada para cada homem, a partir do momento em que se declara que o homem foi transformado “em uma nova criatura” não porque se tornou cristão com a ajuda do Espírito Santo, sob a moção da Graça atual, mas só pelo fato do advento da Encarnação e da “morte e ressurreição” do Cristo. É a teoria bem conhecida dos cristãos anônimos, já apresentada por Blondel e desenvolvida por de Lubac e em particular por Karl Rahner (cf. alocução de João XXIII e § 2.3. desta sinopse). Trata-se de gravíssimo erro doutrinal, porque se declara já realizada a justificação pessoal, subjetiva, de cada homem, sem nenhuma participação de sua vontade, de seu livre arbítrio e, portanto, sem necessidade de se converter, sem necessidade nem da fé, nem do batismo, nem das obras. Uma redenção garantida para todos, como se a Graça Santificante estivesse ontologicamente presente em cada homem enquanto tal. O próprio Lutero não foi tão longe!
Essa falsa doutrina nega o fato do pecado original, porque o dogma da fé nos ensina que os homens não possuem a Graça ao nascer, tendo herdado o pecado original com o qual vêm ao mundo.
5.2. A exaltação injustificada e não católica do homem enquanto tal.
Efetivamente, se afirma que o Cristo se encarnando, “manifesta plenamente o homem a si mesmo e lhe descobre a sublimidade de sua vocação”, elevando “a natureza humana” a uma “dignidade sem igual” (GS 22). Como se Nosso Senhor não tivesse vindo nos salvar do pecado e da danação eterna, mas nos fazer tomar “plenamente” consciência da “dignidade sem igual” que seria por natureza inerente ao homem!
A afirmação do Concílio contradiz abertamente o ensino constante da Igreja segundo o qual Jesus veio ao mundo para salvar o homem e não, certamente, para o exaltar, mas para que tome “plenamente” consciência do fato de que ele é um pecador condenado à danação eterna se não se arrepender e não se converter a Ele. Não se trata de redescobrir uma “dignidade sem igual”!
5.3. O manifesto erro teológico contido no artigo 24 de Gaudium et Spes onde se pode ler que o homem é a “única criatura sobre a terra que Deus quis por ela mesma (hominem, qui in terris sola creatura est quam Deus propter seipsam voluerit)”, como se o homem possuísse um valor tal que esse valor teria induzido Deus a cria-lo (Romano Amerio Iota Unum).
Aqui colocamos o dedo na reviravolta antropocêntrica feita por Vaticano II. Trata-se de uma afirmação manifestadamente absurda e incompatível com a própria noção de criação divina a partir do nada, que constitui um dogma de fé. Deus infinitamente justo (sempre foi ensinado), criou todas as coisas, inclusive o homem, “para Ele mesmo”, para Sua própria glória e não por causa de um valor possuído intrinsecamente pelas coisas e, portanto, independentemente de Deus que as fez. Um tal desvio doutrinário altera também a significação exata que é preciso atribuir à Criação. Além disso, altera a verdadeira significação que é preciso atribuir aos mandamentos cristãos de amar nosso próximo como a nós mesmos e de todos nos considerarmos como irmãos, já que esses mandamentos não são mais justificados pelo amor de Deus que quer de nós essa caridade para com o próximo (já que nós somos todos pecadores) e também pelo fato de que nós descendemos todos de Deus, Deus Pai, mas passam a ser justificados pela dignidade superior do homem enquanto homem.
A Igreja nunca negou a dignidade superior do homem em relação às outras criaturas, dignidade que lhe vem por ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Mas esta dignidade perdeu seu caráter “sublime”, que vinha de sua “semelhança” com Deus, por causa do pecado original, que despojou o homem dessa semelhança e portanto da Graça santificante, a qual o torna capaz de conhecer e amar sobrenaturalmente a Deus e portanto de gozar da visão beatífica. No sentido católico, a dignidade do homem não pode ser considerada como uma característica ontológica, como se ela pudesse impor respeito por todas as escolhas (o que é a concepção leiga). Essa dignidade depende da vontade reta, voltada para o Bem, é pois um valor “relativo”e não absoluto.
5.4. Um conceito errado da igualdade entre os homens, fundado na falsa concepção da redenção exposta acima (cf. 5.1.).
“Todos os homens, redimidos pelo Cristo, gozam de uma mesma vocação e de um mesmo destino divino: deve-se, portanto e sempre mais, reconhecer sua igualdade fundamental (fundamentalis aequalitas inter omnes magis magisque agnoscenda est)” (GS29).
A Igreja sempre ensinou que os homens são todos iguais diante de Deus, mas certamente não porque creia que todos os homens já estejam objetivamente redimidos, já salvos pela Encarnação! Essa é uma igualdade concebida de maneira bem pouco ortodoxa, colocada como fundamento da “dignidade da pessoa”, em nome da qual o Concílio defendeu uma liberdade religiosa do tipo protestante, porque fundada na liberdade de consciência, quer dizer, na opinião individual em matéria de fé e não no princípio católico de autoridade (cf. infra § 11).
5.5. A desvalorização e o obscurecimento da noção de pecado original.
Efetivamente, Gaudium et Spes, no artigo 22, afirma que o Cristo “restaurou na descendência de Adão a semelhança divina, alterada desde o primeiro pecado (a primo peccato deformatam)”. Mas essa não é a doutrina católica, que, ao contrário, sempre ensinou que depois do pecado original essa semelhança, quanto à Graça, foi perdida por Adão e sua descendência. Isto não foi uma simples “alteração”! Declarar que essa semelhança foi conservada, mesmo imperfeitamente, implica em abrir caminho para a concepção heterodoxa da Encarnação que acabamos de lembrar (L Dörmann Declaratio Dominus Jesus und die Religionem, in Theologisches Katolische Menateschrift, Nov-Dez 2000, call. 445-460).