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Os trinta risos do moribundo

 

Estivesse eu em artigo de morte, como o religioso Padre Manuel Bernardes, teria trinta e não apenas três razões de rir-me apiedado dos que acaso cercassem com lágrimas o meu leito derradeiro. E não precisaria para tais tristes risos invocar as mais altas alegrias da Esperança divina, nem lembrar-me dos grandes místicos que souberam dizer “muero por que no muero”. Poderia rir-me a primeira vez, a segunda, a terceira, a quarta, a décima, e talvez mais, em sinal de agradecimento pelas largas e claras alegrias idas e vividas, mas ainda retidas na lembrança, sim, em sinal de agradecimento, pelo mundo que ainda alcancei, pela água não clorada que bebi, pelo ar virginal que ainda cheguei a tempo de sorver e por muito mais coisas no céu, na terra e no mar, cujos merecidíssimos elogios não caberiam em todos os livros que em vão se escrevem para dizer mal das coisas boas, ou dizer bem das coisas más. Em vão chamaria mais papel, meu tão certo secretário de queixumes que sempre ando fazendo, porque todo o papel do mundo seria pouco para conter o extenso ou mesmo resumido o mérito do mundo. Como poderia eu exprimir as claras manhãs em que a gente acorda feliz sem nenhuma razão a não ser a razão essencial de estar, de ser, de acordar, de viver? Como poderia eu exprimir o prazer castíssimo dos músculos que vivem a dançar de alegria na cercadura dos corpos moços? E como exprimir a quase interminável mocidade que tanto tempo se alongou? Em que capítulo contaria o gosto que dão as gotas d’água que correm pela pele, e o gosto mais fino que dão as estrelas, gotas do céu, que correm pelos olhos como que no sentido inverso do correr das lágrimas? E a alegria calma e profunda das longas conversas amigas, como poderia contá-las sem transformá-las em penoso sentimento de perdê-las. Rindo-me num breve riso de despedida agradecida posso evocá-las sem contá-las e sem perdê-las. E nestas considerações já dou conta dos dez primeiros risos.
 
 
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Os dez seguintes teriam, esses sim, certo travo de ironia e piedade e até certa mofa pelo apego que visse nos vivos mais vivos do que eu no meu crepúsculo. Porque, na verdade, e feitos todos os descontos da saudade que temos de nós mesmos, o mundo que estou deixando está exagerando um pouco a liberdade de desfigurar a imagem do homem, feita à semelhança de Deus. E não preciso sair de meu reduto para descobrir o somatório de poluições com que se enfeita o século agonizante: o supramencionado mundo por engenho e mágica do mesmo homem que ele difama entra-me por debaixo da porta, pelas frestas das janelas, ou desce pelos cordões das cortinas como os sonhos de Homero. Com todos esses rodeios quero simplesmente referir-me ao jornal que tenho diante dos olhos, estatelado, descomplexado, despoliciado e só não acrescento despudorado com receio que o leitor imagine que passei a escrever em sânscrito.
 
Na folha pela metade cheia de fotografias de hotéis de luxo leio este letreiro: HOTÉIS DÃO À BARRA DA TIJUCA TOQUE DO TURISMO COM ROMANCE, onde todas as palavras são falsas, com exceção do nome do Bairro. Porque nesse anúncio tranqüilamente aberto num chão dominical de casa de família, onde entrou o matutino, hotel não é hotel, turismo não é turismo e romance é pseudônimo de lenocínio ou prostituição. Abaixo das atraentes fotografias o texto ainda é mais despoliciado e descomplexado. “Na verdade o edifício será sede do mais novo hotel de trânsito rápido ou alta rotatividade...”. Seguem-se detalhes do luxo dos quartos, do preço da... rotatividade e da beleza da paisagem: “Banheiros de mármore com ferragens douradas; paredes cobertas de veludo vermelho; painéis eletrônicos ao lado da cama controlam a intensidade da luz e permitem a opção por três tipos de música: clássica, moderna ou sexy. Vista para o mar sem levantar a cabeça do travesseiro”.
 
Concluo eu que na erosão de tudo o que achei belo no mundo e na vida, conforme agradeci na página anterior, nem a inocentíssima “vista para o mar” escapou. Entrego ao meu admirado companheiro Nelson Rodrigues a defesa da dignidade do Poente do Leblon, e atenho-me a considerações mais prosaicas: quase todos esses hotéis “de alta rotatividade” estão registrados na EMBRATUR como empresa de turismo, o que lhes garante isenção de Imposto de Renda e outras vantagens fiscais...
 
O redator dessa reportagem, que também não é reportagem, diz a certa altura: “Mas em três anos houve uma evolução (sic como diria Tristão de Athayde) nos costumes que se refletiu no projeto do novo hotel. Terá restaurante panorâmico e uma piscina grande permitindo atividade social aos hóspedes menos preocupados com o anonimato”.
 
No canto direito inferior da página, como fecho de ouro, temos também despoliciado e descomplexado um psiquiatra que “acha bom as pessoas se encontrarem”, e começando pelo nome publicado por inteiro se propõe como “especialista no estudo do comportamento social”.
 
E por aí vai o matutino de alta rotatividade a anunciar hotéis com vista para o mar, sem necessidade de levantar a cabeça. Na verdade tudo se condensa nestas poucas palavras: o homem de nosso bravo fim de século já não tem necessidade de levantar a cabeça, e por mais forte razão não terá necessidade de baixá-la. Bastam-lhe os botões eletrônicos e as opções também sem necessidade de maior esforço.
 
Tudo isto, e mais o resto que deixo ao leitor insatisfeito e curioso, é o resultado da “evolução” destes últimos três anos.
 
Meus últimos dez risos de moribundo da página de antologia do Padre Manuel Bernardes, deixo-os aqui resumidos para a evocação do que será em trinta anos de evolução o novo e próximo século que eu, moribundo, não terei, caríssimos amigos, o menor prazer de conhecer. E agora permitam-me guardar meu último riso para a mesma puríssima alegria do religioso em artigo de morte.
 
(O Globo 06/07/1972). 

 

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