“A revolução é o apetite e a avidez do estômago vazia, que só se sacia quando destrói e cuja única realidade é a fome (…)”
“A existência da revolução está fundada sobre os não-revolucionários. Sem dúvida, encontram-se entre os iludidos os entusiastas do “mundo melhor” – pessoas cândidas e hipnotizadas, cujos corações a revolução mantém cativos; serão eles os primeiros devorados. Além desses, há o exército incontável dos aterrorizados e exterminados. Contudo, a verdadeira vitalidade da revolução não está nas deportações e nos massacres, mas nos acordos bilaterais de paz que seus inimigos professos assinam com ela. (...) Mais e mais, a revolução prefere rastejar diante dos inimigos a esmagá-los.”
“A paz é miragem que significa “extermínio adiado, mas a caminho”; seus oponentes são considerados como semeadores da discórdia e obstáculos à paz. A paz revolucionária é sempre o prenúncio da guerra – grande ou pequena –, sem a qual é impossível a revolução viver, pois toda síntese nasce da guerra e está prenhe de outra.”
I. Que é a revolução?
— A revolução é a revolta constituída em princípio e direito; em aparência, está contra a atual ordem social, mas em verdade é contra a ordem natural e sobrenatural que Deus criador e redentor estabeleceu. Essa revolta não a chama o homem de pecado ou desordem, mas direito do homem contra Deus e correção da injustiça de Deus no mundo. Para conhecer a justiça, o mundo não precisa de Deus; para tanto, basta o homem revoltado.
II. Qual a ordem que a revolução deseja estabelecer?
— A revolução não quer estabelecer nada, mas arrasar aquilo que é: a destruição é sua tarefa essencial.
Como o real é, a revolução só acabará quando aniquilar o real.
III. A revolução tem a intenção declarada de aniquilar o real?
— Não, a revolução apregoa uma nova ordem; todavia, não obstante a perfeição da ordem futura, a revolução não afiança sua perenidade. O ímpeto da revolução está no devir, e não no ser.
Ela acusa o ser de ser; celebra o devir como contrário ao ser e indefinidamente transformável.
IV. Esse é o erro fundamental da revolução?
— Não se pode chamar o fundamento da revolução de erro, mas de negação do real/negação do ser. Ela é “o esgoto de todas as heresias” (São Pio X). A afirmação do ser – Deus é, eu sou – é o conteúdo essencial da razão; segue-se daí que a revolução, ao adorar o devir, nega a própria constituição do espírito.
V. Em si mesma, a revolução não possui nada de real?
— Com efeito é ela como o mal – ela é o mal –, e sua única realidade é a malícia espiritual que, com o fito de destruir o ser real, existe graças ao ser que deseja destruir.
É evidente que a revolta contra Deus e o desejo do nada fundamentam a própria existência e a “ausência de Deus” em Deus só, pois a única realidade que existe é aquela que é objeto de ódio – Deus e tudo o mais que vem Dele, i. e., a criação e a civilização, que são o resultado a ação racional e religiosa do homem unido a Deus.
É lícito chamar a revolução de “inveja de Deus”.
VI. A revolução é insensata?
— Ela é tão absurda quanto a negação do ser; admite ela a absurdidade e a contradição evidente da progressão de sua instauração; é o que chamam de dialética.
VII. Qual a conseqüência da admissão desse absurdo?
— A conseqüência da admissão desse absurdo é a impossibilidade de arrazoar com um revolucionário autêntico.
VIII. Qual o modelo e o exemplar de todas as revoluções?
— É a Revolução Francesa, que convém escrever sempre em maiúsculas.
IX. Uma vez que deve a revolução se apoiar no real, a fim de empreender a obra de destruição do real – de que ela se aproveita para começar?
— Vale-se sempre a revolução das reações naturais, das reivindicações justas, das aspirações legítimas. Mascara sua empresa com um início que parece honesto.
Esse início é uma imposição de sua essência, pois é preciso se apoiar naquilo que é, i. e., numa exigência justa.
EXEMPLO: declara o estudante: - A sociedade de consumo quer me transformar em autômato, a mim que sou moço e generoso; por isso, me revolto.
Dizem-lhe bem a moral e o cristianismo: há uma ordem absoluta da lei e da verdade, que começa com a ordenação da alma, o respeito à tradição e a aplicação progressiva e dolorosa dos princípios da lei superior e da verdade nas instituições, que são boas mas sujeitas a deformações. Contudo, não dá ouvidos o estudante, porque já há cem anos que a autoridade dos mestres lhe incutiu a lei da revolução: ante a injustiça, apenas revolta, subversão e destruição das instituições. Teu papel, ó jovem, é contestar e só contestar; teu vantajoso papel é dispensar ligeiro a energia vital e renovada – ou o que restar dela. Não te conto que destarte caminharás para a anarquia e a própria aniquilação. Ofereço-te um absoluto, pois que tua natureza necessita de um; esse absoluto sedutor é a revolta.
No entanto, não consegues enxergar a destruição da Natureza.
X. A revolução, que de início se apóia numa reação natural, confunde-se com outra aspiração fundamental do homem?
— Claro, a sede de felicidade. O ponto de partida é a opinião que sustentam sobre as desgraças humanas e o desejo de julgá-las pela inveja e pelo ódio; o ponto de chegada é a felicidade na terra e o direito de buscá-la diretamente.
XI. Não tem o homem o direito de buscar diretamente a felicidade?
— Não, tem o homem o dever de cumprir diretamente a vontade de Deus e só assim alcançar a felicidade, não nesta mas noutra vida.
XII. A revolução abandona ao acaso o processo de revolta?
— De modo nenhum; a revolução dá a impressão de ser movimento contra a dependência, mas é autoridade que manobra suas vítimas com sagacidade.
XIII. Os governos oriundos da Revolução do séc. XVIII são tal autoridade?
— A autoridade permanente da revolução é oculta, mas é certo que se distingue do poder político. O poder, que não passa da sede administrativa da revolução, é manobrado. Num primeiro momento, após as desordens da revolta, a autoridade revolucionária assegura o poder. Objetiva legalizar a desordem pelo sistema das concessões, permissões e reformas. Quando se legaliza o estado de revolta, a revolução suprime o poder que lhe prestou o serviço e fabrica outro para si.
XIV. Que é tal autoridade oculta, que manobra e não é manobrada?
— Essa autoridade oculta é uma máquina.
XV. Mas uma máquina é sempre manobrável. Que é a máquina? E quem a manobra?
— Compõe-se a máquina dos homens que pensam que o mal não lhes é imputável, mas “aos outros”, e que o dever perante Deus não é absoluto.
Quem a manobra é o príncipe deste mundo – ou satã.
Ela é uma maquina satânica, pois deseja satã o aniquilamento do bem e a danação do homem – e decerto esse é o caminho da revolução.
XVI. Como indivíduos racionais e livres podem compor uma máquina?
— Eis as fases desse fabrico:
· Deus não existe;
· A liberdade é o direito de fazer o que bem entender;
· A autoridade não vem de Deus, mas do acúmulo das liberdades;
· As liberdades formam as “sociedades”, cuja única finalidade é constituir associações de eleitores, reivindicadores e peroradores, tudo em nome da liberdade;
· Nessas sociedades, diz-se ao povo que ele tem poder soberano;
· Torna-se a vontade geral “aquilo que cada um cede a um pequeníssimo número de pessoas” (Augustin Cochin);
· Unida e motivada, essa minoria de iniciados manobra a massa passiva, medrosa e apaixonada;
· Monta-se a máquina.
Inventam-se, pela opinião, decisões comuns às quais todos se submetem – seja por interesse (medo da perda), temor, delação ou passividade.
Com a máquina a todo vapor, soltando das entrosas os nomes prestigiosos dos que a montaram ou de adventícios – espanta vê-la funcionar e triturar por contra própria.
Com efeito, cai o poder efetivo nas mãos de irresponsáveis. Tudo é legítimo, pois a sociedade é o povo, apontado como o único responsável; os irresponsáveis que geram monstros de incapacidade (pouco importa a estupidez, pois ela não é punida) engendram outras irresponsabilidades; não há como incriminar alguém que pertença à “justiça popular”.
XVII. Mas que aconteceu com os verdadeiros cidadãos que abominam ser governados por uma máquina?
— Eles foram embora: como se sentiam deslocados, eliminaram-se a si mesmos. São “os pesos mortos”, que perceberam a impossibilidade de ação no interior de uma revolução e a quem lhes era permitido só falar. Ou desistiam ou a revolução liquidá-los-ia por violência. O terreno fica livre aos palradores – e a máquina continua a funcionar. Em última instância, a revolução dispensa a inteligência.
XVIII. Tal proposição é a rigor verdadeira?
— A proposição está incompleta. Ante o historiador cristão, tudo acontece como se a máquina fosse cega, mas o mal é demasiado grande e poderoso, e tem uma carranca medonha – é ele o mistério da iniqüidade, e seu promotor – segundo nos ordena a fé apontar – é o próprio satã.
XIX. Como resumirias o andamento constante da revolução?
— Resumi-la-ia pelo andamento hegeliano do comunismo, que é o término natural dessa imensa administração secreta da inércia, que é de si inércia: tese – antítese – síntese:
– O real, aquilo que é, o que quer que seja, fornece a tese;
– Por seu contrário, o real fornece a antítese;
- Daí, vive a contestação e alimenta-se a revolução, que liquida e absorve o opositor – e eis a síntese; mas a síntese, revolucionária de natureza, é instável e mutante, e trás ao seio o germe da contestação: tese, antítese... etc.
Exemplo: em maio de 1968 o “poder” manobrado, ou a sociedade dita de consumo, fez o papel da tese; a juventude revoltada, de antítese. Mas o processo destarte engendrado acelerou-se acima do ritmo da máquina; os jovens já se encontram na fase a anarquia. Paremos! Agora, nova tese: gaulismo. Antítese: o “racional” partido comunista. Lembreis todos de como o “velho partido comunista francês pareceu moderado” ao lado dos Cohn Bendit. Síntese: a célebre participação, em que se esconde a robotização dos franceses sob a batuta da casta dos tecnocratas.
Com tudo, avançou a entrosagem revolucionária.
Decerto ganhou o comunismo com essa nova síntese. Todavia, pela primeira vez, sentiu-se ele no papel de tese ante “a força impetuosa que descobriu o próprio poder e o gosto da subversão como movimento”.
A revolução devora seus próceres: se o comunismo aburguesado de Moscou deseja irradiar a revolta a seus satélites e “evitar que a esquerda – a quem chama de extremista, mas com quem compartilha a substância mesma da revolução – o subjugue”, força é que revenha sanguinolento (mais ainda).
A devoração dos próceres – que levou ao cadafalso os constituintes, e depois os girondinos, e depois os montanheses – evidencia-se na revolta da Universidade: a mocidade armada de uma lógica aos saltos executa num átimo o que destilam gota a gota em suas almas professores estultos, intelectuais ainda aferrados ao puro jogo abstrato das idéias.
No inferno revolucionário, é o discípulo maior que o mestre.
“Desse modo, um Yanquelevitch, pensador e adepto da constestação absoluta, já não provoca admiração nos alunos, que se limitam a aplicar o que aprenderam dele”.
XX. Dá exemplo dalguns termos em si inofensivos que disfarçam as maquinações da revolução.
— Dentre vários, dois termos:
a) A paz é miragem que significa “extermínio adiado, mas a caminho”; seus oponentes são considerados como semeadores da discórdia e obstáculos à paz. A paz revolucionária é sempre o prenúncio da guerra – grande ou pequena –, sem a qual é impossível a revolução viver, pois toda síntese nasce da guerra e está prenhe de outra.
b) Dialogo: para a revolução, um termo em si pacífico como dialogar tem um sentido maquiavélico e complexo.
Dialogar é não estar de acordo – todavia, é também entrar em acordo prévio com o interlocutor, ou seja, dispor-se a lhe dar o que pede. Quem se obstina numa opinião diferente da do interlocutor é declarado como “incapaz de dialogar”.
Com esse espírito, conviria definir termos tais como pátria, direito, libertação, etc.
XXI. Que máxima resume toda a atividade revolucionária?
— A máxima que resume a atividade revolucionária é diabólica: Solve / Coagula.
Solve: tanto quanto possível, dissolver as estruturas civilizacionais por diluição, aniquilamento e depreciação.
Coagula: cópia sacrílega da ordem por excelência – a ordem cristã; daí a paródia da caridade, que acolhe as contradições, os erros, as extravagâncias, em suma, as coagulações contra a natureza, cuja pior é a entre o catolicismo e o comunismo. Caos absurdo, religião-síntese das heresias; a unidade do caos se dá pela ação da tirania cega sobre a inércia inconsciente.
XXII. Não seria possível definir a revolução a partir da personalidade de seus próceres, por ex., Jean-Jacques Rousseau?
— Os escritores e os poetas não são os próceres da revolução; embora não dispense os técnicos, pode ela abrir mão dos gênios e, em última instância, como já vimos, da inteligência e dos cabeças: as sociedades chamadas “de pensamento” bastam ao naufrágio da sociedade natural das pátrias, dos professores e das famílias.
Mas in re – na realidade – as minas que “a máquina” plantou no solo só explodem ao bafejo dos poetas: não são eles próceres, mas os maestros da orquestra. Não tratemos de esquecer os chantres: toda guerra tem seu aedo.
Quando assesta Ulisses as flechas aos pretendentes, o aedo Formião, aterrado, esconde-se sob a poltrona; vertido o sangue e consumada a vingança, Ulisses nota o aedo tremebundo, mas assegura Telêmaco que suas gestas cantavam apenas a Guerra de Tróia; era o canto útil ao governo vencedor, testemunha Penélope. Não obstante houvesse cantado para os usurpadores, concederam-lhe a graça; ninguém, entretanto, negou o poder de seu canto.
Para que irrompam as revoluções e as minas plantadas corrupiem e destruam, há mister de gênios e talentos de inspiração real mas demoníaca, sentimental e cega.
No século do “espírito”, Voltaire é o demolidor admirável – o bom apóstolo a destilar o vitríolo da tolerância; Jean-Jacque Rousseau é sobretudo o iluminado, o harmonizador, o chantre extravagante da revolução no amor, na educação e no governo.
Aqui devemos citar o Sr. de Chateaubriand que, nos seus vinte anos, hirsuto ao mês das tempestades – atualmente chamado de maio – deliciava-se em dizer “às borrascas desejadas”: levantai-vos!
O pai Hugo cria-se o pajé da política; chegou a ser ao menos a boca sombria e profética do horizonte revolucionário:
O poeta é homem de utopias,
Com pés na terra e olhos nos céus,
Acima dos mortais, os poetas,
Em todos os tempos, quais os profetas,
Devem iluminar o que há de vir,
Ouçam o sagrado visionário!
Citemos, com Louis Daménie, o visionário Jules Michelet, que divinizava a Revolução e a considerava o advento repentino da “justiça” realizado pelo “povo de súbito iluminado”!
Falava um poeta na boca do político Jaurès, quando ele exclamava esta lírica profissão de fé:
“Há-de se salvaguardar, antes de tudo, a idéia de que não existe verdade sagrada, de que nenhum poder ou dogma deve limitar a raça humana em seu esforço e em sua busca perpétua; a humanidade deputa como uma grande comissão de inquérito, cujos poderes são ilimitados!”
Eis aí o profeta inspirado dos progressitas, dos padres novidadeiros: um poeta altivo da altiva máquina...
Cohn Bendit é o aedo conveniente a 1968... essa fase está superada; já não se precisa de alexandrinos nem de eloqüência socialista. Cada época tem os agitadores histéricos que merece.
Le Sel de la Terre, nº 22
Tradução: Permanência