Estão realmente mortos aqueles dos quais são tirados os órgãos?
Hoje, os eclesiásticos deixam os católicos grandemente desinformados com respeito à doação de órgãos, ou melhor, os estimulam, em nome de uma falsa “caridade”, a que a favoreçam, ainda que se trate de órgãos vitais. Tal doação se funda em um pressuposto, a denominada “morte cerebral”, que não só contradiz o senso comum e suscita graves interrogações morais, mas também se revela desvairado e infundado, como a própria ciência o está demonstrando na atualidade. Daí que consideremos acertado oferecer a nossos leitores o seguinte artigo de Pablo Becchi, professor associado de filosofia do direito na Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Gênova.
NOTA: Os subtítulos inseridos nos diversos pontos são de nossa redação.
Status questionis
A recentíssima aprovação da lei sobre a fecundação assistida nos induz a fazer algumas reflexões de natureza mais geral sobre o valor da vida humana do princípio ao fim.
Não pretendo sustentar aqui de maneira alguma que o próximo objetivo seja ou deva ser a lei sobre o aborto, ainda que não haja dúvida de que é lícito perguntar-nos se o amplo grau de proteção que a nova lei oferece aos embriões pode levar igualmente a uma nova consideração do tema do aborto.
Não obstante, gostaria de insistir aqui em um ponto: o embrião no ventre de uma mulher é “diferente” do embrião contido em uma proveta.
Enquanto o primeiro está ligado de algum modo à gestante, o segundo é independente dela naquela primeiríssima fase de desenvolvimento em que se encontra. No fundo, trata-se já de um indivíduo fragilíssimo que se relaciona com outros indivíduos: o casal que o desejou e os médicos que o ajudaram a tê-lo, e a sociedade inteira que se pergunta sobre o destino dos embriões supernumerários que já existem.
A técnica da fecundação assistida nos pôs diante de um novo problema: a existência de um ser humano que já em sua primeiríssima fase de desenvolvimento interage com outros seres humanos, se bem que passivamente. Por isso, a meu ver, uma lei que o proteja adequadamente não pode desvincular-se do problema do aborto. Mas não quero insistir aqui nisso. Por paradoxal que possa parecer à primeira vista, creio de fato que a referida lei deveria induzir-nos a deslocar nossa atenção da fase inicial da vida à final.
É possível que um ente em fase embrionária inicial tenha todos os direitos que se lhe reconhecem (sacrossantos a meu ver), enquanto um “morto cerebral” não tenha nenhum, até o ponto de que nos julguemos autorizados a extirpar-lhe os órgãos em tal condição? Dir-se-á que nada têm que ver um com o outro, pois este está morto, enquanto que o embrião goza de alguma potencialidade de vida.
O fato é o seguinte, porém: consideramos obrigatório proteger um ente que se acha encerrado em uma proveta e cujas dimensões não excedem às de uma ponta de alfinete, mas pensamos igualmente que não devemos conferir direito algum a um ser humano de carne e osso que apresenta uma temperatura em torno dos 37º, tez rosada, ritmo cardíaco e ato respiratório, ainda que este não seja espontâneo, mas mantido pela reanimação. No fundo, foram os avanços técnicos o que nos pôs diante de um novo problema, como no caso da fecundação assistida: “Que fazer com indivíduos que, submetidos a reanimação, já não são capazes de retornar à vida consciente?”; mas pretendemos resolvê-lo muito facilmente, definindo que estejam mortos pacientes cujo cérebro deixou de funcionar definitivamente, ainda que seu organismo siga funcionando muito bem, talvez até melhor que essas poucas células embrionárias na proveta, as quais, como quer que seja, ainda não têm cérebro. Com efeito, uma precisa lei do Estado redefiniu a morte nos seguintes termos: esta se identifica com a cessação irreversível de todas as funções do cérebro, razão por que tais indivíduos se acham legalmente mortos, enquanto se reconhece que os embriões estão vivos desde o primeiro momento, e que, se ainda carecem de cérebro, logo os terão formado.
É uma pena, porém, que tal lei relativa à morte se baseie em um pressuposto que a literatura médico-científica considera hoje carente de qualquer fundamento.
Investigações documentadas realizadas por médicos americanos [cf. bibliografia em notas posteriores; N. do E.] demonstraram que os pacientes que satisfazem os atuais critérios clínicos e testes neurológicos previstos para comprovar a morte cerebral não apresentam necessariamente perda irreversível de todas as funções cerebrais.
Tais investigações não só não foram desmentidas, mas encontram cada vez mais consenso no âmbito científico, tanto, que há hoje quem sustente que a “morte cerebral” é uma ficção, um expediente hábil para definir como mortos seres humanos que na verdade não o estão, ou melhor, que nas condições em que se encontram se acham muito mais vivos, por assim dizer, que esses embriões que o parlamento italiano decidiu que devia tutelar com grande rigor, vedando, entre outras coisas, a superprodução deles, o congelamento etc. Com os mortos cerebrais, sem contrapartida, podemos seguir fazendo de tudo: graças a um consenso mais ou menos manipulado, podemos utilizá-los sobretudo como peças de reposição para organismos “defeituosos”, extraindo-lhes os órgãos com o coração ainda batendo.
Pergunto-me o seguinte: se já um grumo de células humanas embrionárias é intocável, não deveria sê-lo, com maior razão, o corpo de um ser humano cujo destino está selado, certamente, mas que, como quer que seja, permanece vivo?
1. Premissa
O debate relativo ao tempo em que começa a vida se acirrou subitamente na Itália por ocasião da discutida aprovação da lei sobre a reprodução assistida (a de nº 40, de 2004); em contrapartida, o referente ao tempo em que acaba a existência (concretamente, em relação ao transplante de órgãos tomados de “cadáveres”) pareceu esgotar-se no período imediatamente posterior à aprovação, por ampla maioria desta vez, da nova lei sobre os transplantes (a de nº 91, de 1999). Como quer que seja, o debate em torno desta última lei se concentrou preferentemente em um problema, ademais, de não pouca importância: o do critério introduzido (no art. 4) para a declaração da vontade, conhecido como silêncio-consentimento informado. Um critério um tanto discutível, a meu ver, embora ainda mais discutível tenha sido o modo como o então Ministro da Saúde, Rosy Bindi, burlou a lei enviando aos cidadãos um cartãozinho (donor card) que não só não entrava nas previsões da lei, mas que de fato impediu a aplicação do ponto mais importante desta. Tanto é assim, que hoje, cinco anos depois da promulgação da lei, continuamos na fase “transitória” (regulada pelo art. 23), à que só por eufemismo podemos continuar chamando assim. Mas não é este o ponto que quero estudar.
Aqui gostaria de lançar outra dúvida, relativa não tanto à lei em si sobre os transplantes, quanto ao pressuposto em que se apóia, a saber, que o doador é efetivamente um “cadáver” no momento em que se efetua a extração dos órgãos. Mas estamos realmente seguros disso?
Valer-me-ei de uma constatação banal, que evidencia imediatamente o contraste que há entre as duas leis a que me referi há pouco.
A redefinição da morte
Consideramos obrigatório proteger com uma série de proibições um ente posto em uma proveta e tão grande como uma ponta de alfinete (p. ex., vedando que a congelem ou suprimam, ou até proibindo que se lhe faça um diagnóstico pré-natal pré-implante), enquanto podemos fazer tudo o que é lícito fazer com um cadáver em um ser humano de carne e osso, que ademais apresenta toda uma série de sinais vitais (temperatura, ritmo cardíaco etc.) auxiliado por aparelhos de reanimação.
Objetar-se-á o seguinte a esse respeito: o assunto é desconcertante tão-só em aparência, pois, como quer que seja, os embriões estão vivos desde o primeiríssimo instante de seu desenvolvimento (isto explica a grande atenção que se lhes dá), mas, se se diagnosticou a morte cerebral a um paciente, é porque este já não está vivo, mas morto: trata-se de um cadáver que parece continuar vivo, mas que em verdade não o está. E esta conclusão é apresentada como um dado científico alcançado de uma vez por todas no final da década de 1960, quando um comitê, instituído na Faculdade de Medicina de Harvard para resolver o problema, chegou, em resumo, a equiparar a morte de fato à morte cerebral, e esta ao diagnóstico de coma irreversível efetuado graças a rigorosos critérios clínicos, que deviam verificar a perda permanente das funções cerebrais.
Os motivos de seu sucesso
Nascia assim a nova definição de morte, que fez muito sucesso nos dois anos seguintes, e isso por vários motivos: antes de tudo, porque fazia eco aos conhecimentos científicos de então, que pareciam confirmar a opinião segundo a qual os pacientes em coma irreversível logo teriam a cessação da sua atividade cardíaca; em segundo lugar, tal definição oferecia o melhor apoio possível ao desenvolvimento das técnicas transplantológicas, que se achavam em seus inícios precisamente naquele período (não esqueçamos que o primeiro transplante de coração foi feito por Barnard em dezembro de 1967); por fim, permitia esquivar o obstáculo da eutanásia: se estava morto o paciente cujo cérebro havia deixado irreversivelmente de funcionar, então arrancar-lhe o coração ou interromper-lhe a respiração artificial não equivalia a matá-lo. Como quer que seja, pode-se ver que, desde o princípio, não foram só razões terapêuticas o que induziu a uma redefinição da morte.
Ainda que com respeito somente à legislação, é bastante visível o nexo que vincula os transplantes à nova definição de morte. Aqui nos limitamos a nosso país [Itália], mas o que dizemos poderia generalizar-se a outras experiências jurídicas, até certo ponto ao menos. Já em 1969 se introduzia o critério da morte cerebral graças a um decreto do ministro da Saúde datado de 11 de agosto, ao qual se seguiu outro, de 9 de janeiro de 1970. Usavam os parâmetros de Harvard, afinal de contas, e faziam referência explícita precisamente ao problema da extração dos órgãos com a finalidade de transplantá-los. É significativo que muito pouco depois, em 5 de fevereiro de 1970, um decreto do presidente da República (o de nº 78) autorizasse também, pela primeira vez na Itália e por proposta do Ministro da Saúde, a extração do coração e suas partes. Desde então e até a promulgação, inclusive, da primeira lei orgânica em matéria de transplantes (a de nº 644, de 1975), o legislador se limitou a declarar os distintos critérios que haviam de usar-se para comprovar a morte, sem aspirar a defini-la. Tal definição se deu tão-só em 1993, com a lei nº 578 (e com um decreto ministerial que a desenvolvia, o qual foi promulgado no ano seguinte) , pois, segundo ela, a morte «se identifica com a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo» (art. 1).
A lei não só introduzia a definição de morte cerebral total, mas também, mudando de rumo com relação à de 1975, generalizava o uso dos critérios empregados para verificá-la a todos os indivíduos que padecessem lesões encefálicas e estivessem submetidos a medidas de reanimação, independentemente do fato de que fossem doadores de órgãos ou não. Ainda que estivesse separada formalmente do problema dos transplantes, esta lei modificou de maneira permanente as condições para a extração de órgãos a partir do momento mesmo em que entrou em vigor. Com efeito, a mais recente lei sobre transplantes, a que está em vigor desde 1999, não faz mais que assumi-la por inteiro a este respeito, pois, conquanto mude as modalidades de obtenção do consentimento para a doação de órgãos, facilitando-a (e isto vale já, em parte, na fase “transitória” atual), mantém sem alteração alguma a definição de morte e as modalidades previstas para sua comprovação tal como tinham sido estabelecidas nos anos 1993-1994, donde estas constituírem o pressuposto obrigatório da legalidade da extração de órgãos.
2. O debate ético-filosófico sobre a morte cerebral
Pois bem, precisamente durante a década de 1990, enquanto em nosso país, como em muitos outros, não só se aceitava a “morte cerebral”, mas, ademais, se chegava até a defini-la em uma lei, em contrapartida, no país em que a haviam definido pela vez primeira, os Estados Unidos da América, começava-se a mudar muito de parecer com respeito a ela.
Oposições
Na verdade, a nova definição de morte suscitou de imediato grande perplexidade no campo filosófico. Como se sabe, Hans Jonas, grande filósofo do século passado além de protagonista do debate bioético contemporâneo, opôs-se firmemente a ela apenas um mês depois da publicação do informe de Harvard, em uma convenção consagrada ao tema das experiências com seres humanos. O núcleo de sua argumentação era o seguinte: não conhecemos com segurança a linha divisória entre a vida e a morte, e tamanha carência não pode suprir-se com uma definição, certamente (e menos ainda se ela é introduzida, como se pode ver, com a idéia de favorecer a extração de órgãos). Quando o cérebro deixa irreversivelmente de funcionar, podemos suspender a sustentação artificial da vida (ou melhor, devemos fazê-lo, como Jonas precisou em seguida, porque seria contrário à dignidade humana manter uma pessoa em tal estado), já não porque o paciente tenha morrido, mas porque carece de qualquer sentido prolongar-lhe a vida em tais condições.
Encontramos já em Jonas o dilema — bem assinalado por Jonsem — que subjaz na discussão relativa à morte cerebral: que acontece quando desligamos os aparelhos de reanimação: tiramos o suporte vital de um paciente para permitir-lhe morrer, ou tiramos o respirador de um corpo já morto? Sabe-se que foi o segundo caminho o que se tomou, e, uma vez que se considerava que se tirava o respirador de um morto, por que não mantê-lo ligado um pouco mais para favorecer os transplantes?
Para Jonas, em contrapartida, era preciso tomar o primeiro caminho, razão por que transformou em seu cavalo de batalha a crítica à nova definição de morte. É já um clássico o escrito mais conhecido deste autor, publicado em 1974 com o significativo título de Against the Stream (“Contra a corrente”) , embora haja um fato menos conhecido — e eis outra razão por que eu gostaria de chamar a atenção para ele —, a saber, Jonas, pouco antes de morrer, abordou de novo o problema na correspondência que manteve com um médico alemão amigo seu. O caso merece ser lembrado, ainda que só de passagem.
Uma jovem havia entrado em outubro de 1992, em conseqüência de um acidente de estrada, em um coma de que não sairia jamais; declararam-na em estado de morte cerebral depois das comprovações previstas. Ia-se proceder à extração dos órgãos, com o prévio consentimento de seus pais, quando os médicos se deram conta de que a mulher estava grávida. Obviamente, suspenderam-se os preparativos para a extração dos órgãos, e os médicos decidiram que a gravidez prosseguisse. Suscitou-se então um debate na Alemanha sobre a morte cerebral, e foram muitos os que se perguntaram na época como era possível que a gestação prosseguisse em um “cadáver”, e como podia este realmente “decidir” interrompê-la com um aborto espontâneo, como ocorreu de fato quando o feto já não estava vivo. Eu gostaria de citar a este respeito uma passagem da atuação de Jonas, tomada da correspondência que trocou com um dos médicos envolvidos na questão:
«Volens nolens, você, caro amigo, ou melhor, vocês contradisseram com a sua ponderada atuação a declaração de morte de que havia sido objeto a mulher acidentada, pois vocês disseram que o que queriam com a respiração assistida (e com os demais cuidados) era impedir que o corpo de Marion se tornasse cadáver, para que assim pudesse continuar com a gravidez. Ao julgarem-no capaz disso, ou ao quererem dar-lhe pelo menos a possibilidade disso, vocês apostaram no resíduo de vida que havia nele, isto é, da vida de Marion! Com efeito, o corpo não era senão o de Marion, tanto quanto seu cérebro. Que a experiência tenha falhado desta vez (parece que ela foi bem sucedida em casos precedentes, menos extremos) não pode ser tomado como atestação de que o fato era inadmissível, assim como tampouco um aborto espontâneo pode ser alegado como prova de que a gravidez em geral é inviável. Vocês acreditavam sinceramente na possibilidade de seu sucesso, isto é, na capacidade funcional do corpo cerebralmente morto necessária para consegui-lo, uma capacidade mantida por sua habilidade; em outras palavras, criam em sua VIDA, prolongada temporariamente em benefício da criança. Não é lícito negar esta crença em outros casos de coma e com outros fins em mente!»
Objetar-se-á que, por mais interessante que seja tudo isso, a única coisa que demonstra é a grande coerência do autor. Isso é verdade, sem dúvida, com respeito à trajetória intelectual de Jonas, mas a sua velha posição se tornara atual e começara a deixar de estar isolada, ou pelo menos passara a estar muitíssimo menos isolada do que sucedia no princípio. A este respeito, são dignos de nota, além dos de Jonas, os escritos de Josef Seifert e, mais recentemente, os de Robert Spaemann: dois autores, ambos de inspiração católica, que estão em sintonia intelectual com Jonas ao menos em certos pontos. Todos eles compartilham a idéia segundo a qual, se não se sabe com certeza se uma pessoa está morta, ou se é impossível prová-lo com certeza, se deveria tratá-la como se continuasse viva.
Reflexões
Não obstante, há um aspecto mais surpreendente ainda, razão por que quero deter-me nele: até num horizonte de pensamento que é absolutamente oposto àquele a que acabo de referir-me, admite-se abertamente que a “morte cerebral” não foi mais que um «expediente ousado» de que se lançou mão para declarar mortos seres humanos que não o estavam.
Esta é a conclusão à que chega hoje um filósofo bastante conhecido também em nosso país por suas posições despudoradamente utilitaristas: Peter Singer. Também neste caso vale a pena reconstituir brevemente o caminho que percorreu. No início da década de 1990, convidaram Singer, professor em Melbourne na época, a que fizesse parte, num importante hospital da cidade, de um comitê que devia ocupar-se de algumas questões éticas ligadas ao problema do consenso, entre as quais se achavam também as relacionadas com a anencefalia. Os recém-nascidos com esta grave má-formação não são capazes de tornar-se plenamente conscientes, uma vez que carecem da parte “superior” do cérebro (ou seja, dos hemisférios cerebrais, incluído o córtex cerebral), bem como da caixa craniana, destinada a contê-lo, enquanto a parte “inferior”, formada pelo tronco encefálico, se acha amiúde intacta, ainda que pouco desenvolvida às vezes; assim, pois, o anencéfalo é capaz de respirar espontaneamente, já que tal atividade depende do tronco, mas está destinado a um desenlace fatal: em geral, estas crianças sobrevivem por um período, que varia de alguns dias a poucas semanas, antes de sofrer uma parada cardiorrespiratória.
Singer, que, em resumo, vinha sustentando havia anos a “morte cerebral total”, achava-se agora diante do seguinte problema: por que não passar desta concepção de morte à concepção de morte “cortical”, para poder declarar mortos também os anencéfalos? Alguns membros do comitê queriam tomar esse caminho, mas Singer, deixando-os a todos um tanto perturbados, não os seguiu. Os motivos de sua discordância ele os explicou em um livro seu, Rethinkinq Life and Death, publicado em 1994 e traduzido também pouco depois entre nós. Ao menos um parágrafo deste livro merece que o citemos inteiro:
«As deliberações do comitê de que eu fazia parte me induziram a refletir mais intensamente sobre a morte cerebral. A comissão de Harvard sobre a morte cerebral havia tido de enfrentar dois graves problemas. Muitos pacientes em condições absolutamente desesperadas viviam só graças aos respiradores, e ninguém ousava desligar as máquinas que os mantinham vivos. Alguns órgãos que teriam podido ser usados para salvar vidas humanas se haviam tornado inutilizáveis enquanto, para extirpá-los, se esperava que se detivesse a circulação do sangue nos doadores potenciais. A comissão julgara resolver ambos os problemas adotando o ousado expediente de classificar como mortos todos os indivíduos cujo cérebro tivesse deixado de ter alguma atividade constatável. Tal redefinição da morte tinha conseqüências tão claramente desejáveis, que encontrou pouquíssimas oposições e foi aceita quase em todos os lados. Não obstante, achava-se viciada desde o princípio. A prática de resolver problemas recorrendo a redefinições rara vez funciona, e este caso não era uma exceção à regra.»
Seria desnecessário dizer que a conclusão que infere Singer da crise da “morte cerebral” é, obviamente, muitíssimo diferente da dos filósofos citados linhas acima. Para estes, se os “mortos cerebrais” continuam vivos no momento da extração dos órgãos, isso significa que precisamente com ela lhes tiramos a vida, o que não devemos fazer: para Singer, em contrapartida, tal coisa é lícita, porque para ele a vida não é um valor sagrado nem inviolável. Também neste caso (como em outros) existe uma “terceira via”, a mais difícil, como sempre, e que é a que procurei traçar em outra oportunidade; mas aqui me interessa sublinhar outro aspecto, isto é, que, a despeito das divergentes inferências éticas, todos os autores citados partem de uma mesma crítica à noção de morte cerebral.
Seria interessante saber o que levou Singer a coincidir, neste último ponto, com autores como Jonas, Seifert e Spaemann, que estão a anos luz dele e cuja existência, ademais, ele até parece ignorar. Podemos ter uma resposta indireta lendo sua última contribuição ao assunto, Morte cerebral e ética da sacralidade da vida, onde o autor revela suas fontes. Trata-se de fontes científicas de valor notável, que contribuem, junto com outras, para delinear a crise em que se debate, não só do ponto de vista filosófico, mas também do ponto de vista médico-científico, a nova concepção de morte, fundada em critérios exclusivamente neurológicos.
3. O debate médico-científico sobre a morte cerebral
Ainda que eu careça de competência específica no âmbito da medicina, permitam-me, a respeito desta última questão, sublinhar ao menos dois aspectos cruciais. O primeiro concerne à possibilidade de verificar ou não a morte cerebral com base nos critérios e testes adotados atualmente; o segundo concerne à tese segundo a qual a morte cerebral é, de algum modo, um indício de que se aproxima a morte do organismo inteiro.
A morte cerebral não é aceitável
O primeiro aspecto foi analisado detalhadamente por dois médicos norte-americanos, Robert Truog e James Fackler, em um ensaio publicado em 1992, e que se intitulava significativamente Rethinking Brain Death (“Repensando a morte cerebral”) . Segundo estes autores, investigações científicas documentadas demonstram que os pacientes que correspondem aos critérios clínicos e testes neurológicos atuais da morte cerebral não apresentam necessariamente perda irreversível de todas as funções cerebrais, o que denota, segundo parece, que a cessação completa de tais funções não pode ser diagnosticada com base nos testes standard adotados.
Os médicos aduzem quatro argumentos em favor de sua tese, os quais podem resumir-se assim: em primeiro lugar, a função endócrino-hipotalâmica não desaparece em muitos pacientes que são considerados em estado de “morte cerebral” segundo os testes em vigor, ou seja, em alguns casos de pacientes declarados cerebralmente mortos persiste a atividade hormonal da glândula pituitária e do centro nervoso que a controla (o hipotálamo), e, por conseguinte, permanece neles a regulação da atividade hormonal; em segundo lugar, em muitos pacientes que se acham em tal estado é possível registrar, mediante um encefalograma, uma débil atividade elétrica localizada em algumas zonas do córtex cerebral e condenada a findar-se depois de 24-48 horas; em terceiro lugar, alguns pacientes seguem reagindo, contra todo e qualquer prognóstico, aos estímulos externos, como o prova, por exemplo, a incrementação da freqüência cardíaca e da pressão sanguínea por causa da incisão cirúrgica prévia à extração dos órgãos (estas constatações dizem respeito a casos de pacientes declarados cerebralmente mortos com base nos critérios britânicos, de tipo meramente clínico e relativos ao estado do tronco encefálico); em quarto lugar, conservam-se os reflexos espinhais em muitos pacientes considerados cerebralmente mortos, reflexos cuja constatação se levava em conta na época em que se formulou a noção de morte cerebral e nos anos imediatamente posteriores (com toda a razão, a meu ver, uma vez que a medula espinhal e o tronco encefálico se acham unidos um ao outro, razão por que não se pode sempre excluir com segurança uma implicação do tronco cerebral inferior na atividade da medula espinhal).
Os dois autores chegaram à conclusão, com base em uma análise atenta destes quatro elementos, de que os meios clínicos atuais não podem verificar a cessação de todas as funções, mas só de algumas, razão por que, de fato, diagnosticam quando muito a morte cortical.
A morte cerebral não é um indicador de que se aproxima a morte do organismo inteiro
O segundo aspecto foi levado em consideração especialmente por Alam Shewmon, um renomado neurologista norte-americano que, entre outras coisas, modificou suas convicções ao longo de sua carreira, passando de apoiador convicto da morte cerebral a um de seus mais implacáveis críticos.
Como no caso dos autores precedentes, também aqui o ponto de partida é uma constatação empírica: organismos declarados em estado de morte cerebral sobrevivem muito mais de quanto se podia imaginar, o que supõe que o cérebro, contra o que se acreditava, não é tão essencial, apesar de tudo, para o funcionamento integrado do organismo. Contrariamente à teoria predominante nos ambientes médicos, segundo a qual o encéfalo é o órgão responsável pela integração das diversas partes do corpo, e constitui, enquanto tal, seu “sistema crítico”, Shewmon dá sua tese: o “sistema crítico” do corpo não pode localizar-se em determinado órgão, ainda que seja um órgão tão importante como o cérebro. Segundo o neurologista, sua hipótese permite uma explicação da sobrevivência prolongada de indivíduos a quem se havia diagnosticado morte cerebral (em um caso recorde, sobrevivência de até mais de 14 anos). Tais indivíduos, pacientes pediátricos em grande parte, mantêm intactas algumas funções que se consideravam de incumbência do cérebro, como a regulação da temperatura corporal, a homeostasia dos fluidos, a reação às infecções, o crescimento do corpo, que são sinal da permanência de algum nível de atividade integradora.
Shewmon conclui daí que é completamente errôneo considerar a morte do cérebro como um indicador de que se aproxima a morte de todo o organismo. Impugna-se assim radicalmente um dos pilares que sustentam a morte cerebral, a saber, a idéia de que o cérebro é o “integrador cerebral do corpo”. A morte do cérebro não provoca a desintegração do corpo; tal desintegração é antes conseqüência de danos que dizem respeito a vários sistemas de órgãos e a ter-se alcançado um nível crítico, o “ponto de não-retorno”, que determina o início do processo de morte e torna ineficaz qualquer intervenção médica destinada a conjurar o exitus.
Assim, pois, segundo Shewmon, não se deveria diagnosticar a condição de morte cerebral no procedimento de comprovação do falecimento, mas hão de levar-se em conta vários parâmetros, como os relativos à atividade respiratória, circulatória e neurológica; só quando estivesse claro que se havia alcançado e ultrapassado o ponto de não-retorno, é que se deveria desconectar do paciente os aparelhos de ventilação assistida, e, só depois de vinte minutos de espera, tempo que Shewmon julga necessário para estarmos seguros da impossibilidade de uma retomada espontânea das funções vitais do indivíduo, é que se poderia proceder à declaração de morte.
Uma grave interrogação
Assim, pois, Shewmon chega à mesma conclusão que Jonas, se bem que por outro caminho. A grave interrogação que se coloca aqui é se, respeitados tais critérios, se poderiam continuar realizando transplantes com sucesso. Certamente, as condições já não serão ótimas, e as vantagens serão seguramente mais limitadas; mas aqui o problema que temos de colocar-nos é que, se os órgãos provêm de doadores que se acham em uma zona confinante entre a vida e a morte — como o admitem igualmente os estudos médicos mais recentes — então é precisamente a extração dos órgãos o que tira definitivamente a vida dos pacientes.
As legislações que aceitaram a morte cerebral fundamentam-se no pressuposto de que a morte do paciente já ocorreu quando se dá a extração dos órgãos, mas, ainda que esse pressuposto já fosse discutível desde o princípio do ângulo da análise filosófica, agora acaba por revelar-se infundado até do ângulo da ciência. Se o pressuposto legal para a extração dos órgãos é que ela se efetue em indivíduos em que se verificou a perda irreversível de todas as funções do encéfalo inteiro, então é preciso admitir que muitas extrações se praticam hoje violando abertamente a lei, razão por que, em lugar de continuar agindo com uma ficção, melhor seria discutir abertamente se é aceitável ou não arrancar os órgãos de uma pessoa que se encontra em uma condição de que já não pode recuperar-se, mas que não equivale ainda à morte.
Em conclusão, são os avanços tecnológicos aplicados à medicina o que nos põe diante de novas e difíceis interrogações éticas no caso dos transplantes de órgãos, bem como no da fecundação assistida. Assim como a possibilidade técnica do transplante de órgãos nos induziu a usar alguns pacientes, cujo destino estava selado de qualquer modo, como material de reposição para outros seres humanos, assim também a possibilidade técnica da fecundação in vitro nos induz hoje, ao que parece, a utilizar —destruindo-os — embriões denominados supernumerários para curar algumas doenças (ainda que aqui o legislador italiano tenha nadado contra a corrente). No caso em pauta, o problema era: “Que fazer com pacientes que, embora submetidos à reanimação, jamais poderão recuperar-se porque seu cérebro deixou de funcionar irreversivelmente?” No fundo, pretendeu-se resolvê-lo de maneira simplista, quer dizer, considerando-os mortos, ainda que seu organismo possa continuar funcionando bem com a ajuda de um respirador: talvez melhor ainda que essas poucas células embrionárias postas em uma proveta, as quais, como quer que seja, ainda não têm cérebro.
(Jornal "Sim Sim Não Não", no. 138)