Pe. Michel Simoulin, FSSPX
“João XXIII entrou para a história como o ‘Papa buono’ (Papa bom). A esse respeito, é licito se perguntar se ‘Papa buono’ equivale a bom papa” – cardeal Silvio Oddi[1].
A lista dos livros, estudos e artigos escritos que celebram a “bondade” desse papa é longa demais para ser relacionada aqui. O ponto culminante — e, parece, definitivo — dessa celebração é representado pela promulgação, em 20/12/1999, do decreto sobre as “virtudes” heroicas do servo de Deus, João XXIII. Isso pareceu colocar termo à discussão. Todavia, não podemos esquecer outros estudos e artigos publicados para destacar falhas e fraquezas desse mesmo papa[2]. Até o discurso dirigido ao papa atual[3] pelo prefeito da Congregação da Causa dos Santos, em 20/12/1999, suscita algum espanto. Com efeito, se as virtudes louvadas em Pio IX são belas virtudes cristãs (zelo pastoral infatigável, intensa vida de oração, profunda vida interior), as de João XXIII são estranhamente novas, até mesmo desconhecidas da Teologia Ascética e Mística:
Deus é simples, ou seja, sem partes, sem nenhuma possibilidade de divisão e, portanto, de corrupção. Portanto, Deus é perfeito e eterno. Não pode mudar nem morrer. A Santíssima Trindade não pode perder nem diminuir a sua perfeita simplicidade e a unidade de sua substância; mesmo a própria Trindade das Pessoas exprime com a maior plenitude a perfeição da sua natureza divina.
Por isso, a simplicidade e a unidade são os sinais da perfeição ou da união da alma com Deus. Por conseguinte, quanto mais uma criatura é composta e complexa mais é imperfeita! Os Anjos são compostos somente de sua essência e da existência que receberam de Deus. O homem, ao invés, além desses dois elementos dos Anjos, é composto ainda de alma e corpo. Todos os outros seres (animais, vegetais e minerais) são ainda mais complexos, e precisamente toda essa composição é a fonte de sua decomposição, ou seja, de sua corrupção e morte.
Daí podemos constatar como a característica da divindade ou santidade de uma obra é sempre a simplicidade. Quando Deus quer significar sua presença — ou quando o homem quer significar a presença de Deus, ou procura fazer qualquer coisa de santo e divino — imprime à obra composta a marca da simplicidade. Todo “dualismo” introduziria na obra divina alguma imperfeição como germe da divisão, da corrupção e, por fim, a duplicidade!
Recordo-me a esse propósito de uma reflexão de meu diretor espiritual — um santo religioso — quando foi eleito papa o cardeal Luciani no ano de 1978, o qual escolheu o nome duplo de João Paulo. Ele me disse: “Desagrada-me ver que desse modo se estabelece a duplicidade no cimo da Igreja! O Corpo Místico de Cristo exige uma cabeça única para manter a unidade. Este nome duplo não me deixa esperar nada de bom...”. De fato, os sucessores de São Pedro tiveram sempre empenho em escolher um nome único para manifestar a vontade de governar a Igreja em nome de seu único chefe, Jesus Cristo. A escolha de um nome duplo destruiu esse símbolo muito significativo, preferindo-se significar no nome a referência aos dois papas do Concílio Vaticano II. O que poderia significar coisa de pouca importância, a mim me parece ser uma característica típica da Igreja conciliar, à qual apraz a duplicidade ou, ao menos, o dualismo, batizado com o nome de “abertura” ou “liberdade religiosa” ou “pluralismo”. Vemo-lo ainda hoje a propósito do conflito entre os sustentadores do antigo e os do novo rito da missa, quando se procura obviar com a introdução do bi-ritualismo (celebrar-se nos dois ritos). E isso me faz temer, porque toda história do sacrifício se resume no drama do conflito entre dois sacrifícios.
“Devemos amar uns aos outros. Não como Caim, que era do maligno e matou o irmão. E por qual motivo o matou? Porque suas obras eram más, ao passo que as do seu irmão eram boas” (I Jo, 3, 12).
De fato, sabemos que “Abel foi pastor de rebanho e Caim agricultor. Passado certo tempo, Caim ofereceu a Deus sacrifícios dos frutos da terra. Abel depois ofereceu os mais pingues dos primogênitos do seu rebanho. Deus olhou Abel e os seus dons, mas não olhou Caim e os seus dons” (Gen. 4, 2- 5).
Abel ofereceu o mais belo cordeiro de seu rebanho, enquanto Caim ofereceu os frutos da terra. Talvez a sua intenção era boa, mas não soube escolher a coisa mais bela para sacrifica-la a Deus: não ofereceu o mais belo fruto da terra.
A história do homem pode chamar-se a história do conflito entre os dois sacrifícios: o do cordeiro, que foi aceito, e o dos frutos da terra, que não foi aceito; o que foi oferecido sobre o altar em nome do Senhor, e o que foi feito em nome do homem.
O 1° Livro dos Reis (18, 21-40) narra um episódio análogo acontecido entre Elias e os profetas do Baal. Estes — eram quatrocentos e cinqüenta — puseram-se a invocar o nome de Baal de manhã ao meio-dia, depois se agitavam em torno do altar que tinham feito... mas “não se tinha ouvido nenhuma voz e ninguém respondia ou prestava atenção ao que eles pediam”. A primeira concelebração da história resultou em um tremendo conflito (todos foram mortos pelo profeta Elias). Elias, por seu turno, “edificou com pedras um altar em nome do Senhor”, pedindo-Lhe que manifestasse o seu poder: “Mostrai que sois o Deus de Israel e que eu sou teu servo”. E Deus se agradou de seu sacrifício e devorou o holocausto com o fogo.
Não é esse o drama que vivemos hoje? De fato temos a missa de Abel — na qual a Igreja oferece a Deus sobre o altar o seu bem mais precioso, ou seja, o Corpo e o Sangue do Cordeiro imaculado, o primogênito dos filhos de Deus; e temos a missa de Caim, que não tem mais nada a oferecer que “os frutos da terra e do trabalho do homem”, enquanto todos dançam e cantam em torno do altar que foi construído pelo homem como uma mesa.
Este dualismo não é tolerável, e um destes sacrifícios deverá perecer: o que não foi instituído por Deus para a sua glória! Deverá perecer porque Deus não poderá ser glorificado por um sacrifício inventado pelos não católicos (maçons, protestantes, modernistas) para agradar aos não católicos, como confessou Paulo VI a Jean Guitton.
Como a Igreja não é bicéfala, assim o seu sacrifício não pode ser senão único (embora seja expresso por ritos católicos diversos). Portanto, se a Missa Tridentina é válida, boa, santa..., como dizem aqueles mesmos que a vetaram há já trinta anos, por que inventaram outra? Por que querer manter a todo custo essa nova missa, quando já foi demonstrado tantas vezes que é dúbia, na sua história como na sua natureza? Como se podem fazer rezar ainda hoje os sacerdotes e o povo católico através dessas preces de um ofertório que não é outra coisa que uma fórmula da Cabala hebraica? Por que esta obstinação em impor o “bi-ritualismo” àqueles que querem conservar a Missa tridentina?
Queira Deus que nossa Mãe, a Santa Igreja Católica, não deva mais suportar esse falso sacrifício. É já muito que tenha sofrido trinta anos. Que a Santíssima Virgem venha logo esmagar esta serpente que quer morder o coração da Santa Igreja, a santa Missa de sempre.