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A "bondade"de João XXIII

Pe. Michel Simoulin, FSSPX

“João XXIII entrou para a história como o ‘Papa buono’ (Papa bom). A esse respeito, é licito se perguntar se ‘Papa buono’ equivale a bom papa” – cardeal Silvio Oddi[1].

A lista dos livros, estudos e artigos escritos que celebram a “bondade” desse papa é longa demais para ser relacionada aqui. O ponto culminante — e, parece, definitivo — dessa celebração é representado pela promulgação, em 20/12/1999, do decreto sobre as “virtudes” heroicas do servo de Deus, João XXIII. Isso pareceu colocar termo à discussão. Todavia, não podemos esquecer outros estudos e artigos publicados para destacar falhas e fraquezas desse mesmo papa[2]. Até o discurso dirigido ao papa atual[3] pelo prefeito da Congregação da Causa dos Santos, em 20/12/1999, suscita algum espanto. Com efeito, se as virtudes louvadas em Pio IX são belas virtudes cristãs (zelo pastoral infatigável, intensa vida de oração, profunda vida interior), as de João XXIII são estranhamente novas, até mesmo desconhecidas da Teologia Ascética e Mística:

“Esse pontífice promoveu o ecumenismo, preocupou-se em desenvolver relações de fraternidade com os ortodoxos do Oriente que conhecera na Bulgária e em Istambul, desenvolveu relações mais intensas com os anglicanos e com o mundo multicolorido das Igrejas protestantes. Agiu de modo a lançar as bases de uma nova atitude da Igreja Católica para com o mundo judaico, fazendo uma decisiva abertura ao diálogo e à colaboração. Em 4 de junho de 1960, criou o Secretariado para a Unidade dos Cristãos. Promulgou duas encíclicas relevantes, Mater et Magistra (20 de maio de 1961) sobre a evolução social à luz da doutrina cristã e Pacem in Terris (11 de abril de 1963) sobre a paz entre todas as nações. Visitou hospitais e prisões e mostrou-se sempre próximo, pela caridade, dos sofredores e dos pobres da Igreja e do mundo”[4].

Se excetuarmos o devotamento às obras de misericórdia corporal, todas as virtudes de João XXIII são virtudes... ECUMÊNICAS!

Por conseguinte, parece-nos lícito ainda hoje estudar e examinar a “bondade” que deveria ser a santidade de João XXIII. Não se trata de negar a possibilidade de que hoje esteja na glória de Deus, mas, uma vez que ser beatificado significa ser proposto à veneração e à imitação dos católicos, trata-se de saber se, verdadeiramente, é permitido imitar a “bondade” do Papa João.

Ora, essa “bondade” foi resumida pelo próprio Papa Roncalli em seis frases famosas que encontramos expressas, mais ou menos claramente, no seu Giornale dell’anima (Diário da alma), nos seus discursos e escritos e, sobretudo, nos documentos de seu pontificado.

Nós nos propomos aqui demonstrar que essas frases de João XXIII não passam de sofismas, bem encadeados entre eles na construção do que se chama habitualmente “a bondade do Papa João”. Esses pensamentos, ele os manteve durante toda a vida, apesar das advertências e, mesmo, das condenações dos papas, de Pio VI a Pio XII, passando por Pio IX, que querem beatificar junto com ele! Além disso, essas ideias de João XXIII são o pão-de-cada-dia da Igreja reformada por “seu” Concílio, depois de terem sido a fonte de suas atitudes e, antes de tudo, de sua “abertura” ao mundo “moderno”.

Para encontrar estes sofismas, basta ler a alocução Gaudet Mater Ecclesia, feita por este papa para a abertura do Concílio Vaticano II, em 11 de outubro de 1962[5].

“A alocução inaugural do Concílio Vaticano II constitui um ato de considerável relevância histórica, certamente o mais importante do pontificado de João XXIII, provavelmente um dos mais importantes da Igreja Católica na era contemporânea”, diz Giuseppe Alberigo, autor de um estudo particularmente interessante sobre esse discurso[6].

Com efeito, num discurso de 35 minutos (10 páginas da Acta Apostolicae Sedis), João XXIII deu ao Concílio seu “verdadeiro estatuto”, definindo o seu espírito. As palavras do “Papa buono” são de uma inacreditável violência ao reprovar qualquer pessimismo e colocar na berlinda os homens (e os prelados) ligados ao passado da Igreja, definidos como “profetas da desventura”! Com sua alocução, “o Papa João lhes arrancava com um gesto forte o estandarte do Concílio e o confiava às tropas preparadas a se abrirem à novidade, a rejuvenescer a Igreja, a tentar um aggiornamento radical da evangelização e um diálogo aberto, sem prevenção, com o mundo.”[7] O tom da alocução é realmente de uma violência surpreendente na afirmação da necessidade de virar a página do passado, ao aceitar totalmente a “nova ordem” que estava se instaurando com as “novas condições e formas de vida introduzidas no mundo moderno” e “o admirável progresso das descobertas do gênio humano”, para estabelecer, entre a Igreja e o mundo, um diálogo que assegurasse a unidade de “toda a família cristã” e inclusive do “gênero humano”, unidade que pareceria “o grande mistério que Jesus Cristo, próximo ao Seu Sacrifício, pediu ao Pai numa ardente oração”.

Eis aí “o ar fresco” desejado para a Igreja pelo Papa João, ao abrir suas janelas, e depois as portas, a todos aqueles que dela se haviam separado, ou que seus predecessores haviam condenado: cismáticos orientais, protestantes, judeus, maçons, comunistas, liberais, sillonistas, modernistas...

Se quisermos resumir os sofismas do Papa João, diremos que, para o Papa “bom”, é preciso ler os “sinais dos tempos”: o mundo mudou e melhorou, portanto é necessário se adaptar ao mundo “moderno” olhando sempre para aquilo que nos une, dando testemunho de misericórdia ao invés de severidade, adotando até a linguagem dos homens atuais para restabelecer com todos a unidade desejada por Cristo.

Examinaremos agora os diversos sofismas. Depois de tê-los exposto, daremos as respostas da Igreja (“in contrario”), seguidas de algumas observações filosóficas ou ditadas pelo bom senso.

 

1. Primeiro sofisma:  uma nova ordem de relações humanas 

Esse pensamento de João XXIII compreende dois pontos:

 

Primeiro ponto: Hoje tudo está melhor que antes.

“Para tornar mais concreta a nossa santa alegria, queremos, diante desta grande assembleia, notar as felizes e consoladoras circunstâncias em que se inicia o Concílio Ecumênico.

No exercício cotidiano do nosso ministério pastoral ferem nossos ouvidos sugestões de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos atuais, elas não veem senão prevaricações e ruínas; vão repetindo que a nossa época, em comparação com as passadas, foi piorando [...]

Mas parece-nos que devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.

No presente momento histórico, a Providência está-nos levando para uma nova ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e o mais das vezes para além do que eles esperam, se dirigem para o cumprimento de desígnios superiores e inesperados; e tudo, mesmo as adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja” (Discurso de abertura do Concílio)[8].

Já na constituição apostólica Humanae Salutis de 25 de dezembro de 1961, João XXIII afirmara: “apropriando-nos da recomendação de Jesus, de saber distinguir ‘os sinais do tempo’ (Mt 16, 3), pareceu-nos vislumbrar, no meio de tanta treva, não poucos indícios que dão sólida esperança de tempos melhores para a Igreja e a humanidade.”[9] Na audiência geral de 19 de setembro de 1962, dissera que “hoje, a graça de Deus e Seu socorro se manifestam de uma forma até mesmo mais evidente que no passado”[10]; e num rascunho manuscrito da alocução, lê-se: “Graças a Deus, não estamos no fim dos tempos”.[11]

 

In contrario:

* Pio IX:

“[...] condenamos as monstruosas opiniões que, com grande dano das almas e detrimento da própria sociedade civil, hoje em dia imperam; erros que não só tratam de arruinar a Igreja Católica, com sua saudável doutrina e seus direitos sacrossantos, mas também a própria eterna lei natural gravada por Deus em todos os corações e ainda a reta razão” (Encíclica Quanta Cura, 8 de dezembro de 1864).

 

* Leão XIII:

“(...) o desígnio de atacar com o máximo de violência as instituições cristãs se manifesta claramente, pois diríamos que entre esses inimigos existe um pacto secreto. Vários fatos, fáceis de constatar um pouco por toda parte, provam-no (...). Esses fatos significativos pressageiam tristes acontecimentos e trazem o temor de que a estes tempos infelizes se sucedam outros ainda mais calamitosos” (Alocução consistorial de 15/04/1901).

 

  • São Pio X:

“Pode-se ignorar a doença profunda e tão grave que, neste momento muito mais do que no passado, trabalha a sociedade humana, e que, agravando-se dia a dia e corroendo-a até à medula, arrasta-a à sua ruína? Essa doença, Veneráveis Irmãos, vós a conheceis, e é, para com Deus, o abandono e a apostasia; e, sem dúvida, nada há que leve mais seguramente à ruína, consoante essa palavra do profeta: Eis que os que se afastam de vós perecerão (Sl 72,27) [...]

Nos nossos dias, sobejamente verdadeiro é que as nações fremiram e os povos meditaram projetos insensatos (Sl 2,1) contra o seu Criador; e quase comum se tornou este grito dos seus inimigos: Retirai-vos de nós (Job 21,14). Daí, na maioria, uma rejeição completa de todo o respeito de Deus. Daí hábitos de vida, tanto privada como pública, em que nenhuma conta se faz da soberania de Deus. Bem mais, não há esforço nem artifício que se não ponha por obra para abolir inteiramente a lembrança d’Ele, e até a sua noção.

Quem pesa estas coisas tem direito de temer que tal perversão dos espíritos seja o começo dos males anunciados para o fim dos tempos, e como que a sua tomada de contato com a terra, e que verdadeiramente o filho da perdição de que fala o Apóstolo (2 Tess 2,3) já tenha feito o seu advento entre nós, tamanha é a audácia e tamanha a sanha com que por toda parte se lança o ataque à religião, com que se investe contra os dogmas da fé, com que se tende obstinadamente a aniquilar toda a relação do homem com a Divindade! Em compensação, e é este, no dizer do mesmo Apóstolo, o caráter próprio do Anticristo, com uma temeridade sem nome, o homem usurpou o lugar do Criador, elevando-se acima de tudo o que traz o nome de Deus. E isso a tal ponto que, impotente para extinguir completamente em si a noção de Deus, ele sacode, entretanto o jugo da sua majestade, e dedica a si mesmo o mundo visível à guisa de templo, onde pretende receber as adorações dos seus semelhantes. Senta-se no templo de Deus, onde se mostra como se fosse o próprio Deus (2 Tess 2,2)” (Encíclica E Supremi Apostolatus, 4 de outubro de 1903).

 

* Pio XI:

“Aproveitando-se de uma tão grande crise econômica e de tão grande desordem moral, os inimigos da ordem social, qualquer que seja o seu nome: comunistas ou outros — e isto é o mal mais lamentável de nosso tempo — empregam-se com audácia a quebrar qualquer freio, qualquer obrigação imposta por lei divina ou humana, a promover, aberta ou subrepticiamente, a luta mais encarniçada contra a religião, até contra Deus, executando este programa diabólico:

Banir do coração de todos, até das crianças, qualquer ideia e sentimento religioso, porque sabem muito bem que, uma vez retirada do coração humano a fé em Deus, poderão fazer tudo que quiserem. E assim vemos hoje o que nunca se viu na História: a bandeira da guerra satânica contra Deus e contra a religião descaradamente desfraldada por obra da raiva abominável dos ímpios, em todos os povos e em todas as partes do universo” (Encíclica Caritate Christi Compulsi, 3 de maio de 1932).

 

* Pio XII:

“O espírito do mal, que nunca se desarma, está redobrando, neste momento, seus esforços na luta contra a Santa Igreja e contra qualquer sociedade humana ordenada, contra Deus e contra Jesus Cristo. E a fúria de que usa me pareceria pressagiar que essa luta está às vésperas de desembocar em uma solução definitiva, se não soubéssemos que durará tanto quanto o mundo e que somente se resolverá pela vitória de Deus e o triunfo final da Sua Igreja. Nesse ínterim, esse espírito do mal prossegue suas devastações; faz numerosas vítimas: vítimas que, cegamente, se deixam vencer, deportar e assujeitar por ele; vítimas afortunadas mas dolorosas mesmo assim — que somente se mantêm na santa liberdade dos filhos de Deus ao preço de sacrifícios heroicos” (Alocução aos estudantes franceses, 07/04/1947).

“Oh! Não nos pergunteis quem é o inimigo nem sob que aspecto se apresenta. Encontra-se por toda parte e no meio de todos: sabe ser violento e astuto. Nestes últimos séculos, tentou realizar a desagregação intelectual, moral e social da unidade no organismo misterioso de Cristo. Quis a natureza sem a graça; a razão sem a fé; a liberdade sem a autoridade; às vezes, a autoridade sem a liberdade. É um inimigo cada vez mais concreto, com uma ausência de escrúpulos que ainda surpreende: Cristo sim, a Igreja não! depois: Deus sim, Cristo não! Finalmente o ímpio brado: “Deus morreu!” e até “Deus nunca existiu!”. E eis, agora, a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre bases que não hesitamos em indicar como principais responsáveis pela ameaça que pesa sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um Direito sem Deus, uma Política sem Deus. O inimigo agiu e age para que Cristo seja um estrangeiro nas universidades, na escola, na família, na administração judicial, na atividade legislativa, nas assembleias das nações, ali onde se decida a paz ou a guerra” (Discurso aos homens da Ação Católica da Itália, 12/10/1952).

Giulio Andreotti nos diz, em 1958, antes do conclave que elegeu João XXIII, que “Gaetano Baldacci escrevera no jornal que a Igreja não precisava nem de um guerreiro como Júlio II, nem de um intelectual como Leão X: era a hora de um Leão I que, contra a espada de Átila, levantaria somente a cruz”.[12]

Não será talvez inútil lembrar também o Terceiro Segredo de Fátima, que o Papa Roncalli leu em 1959 e que deveria ter publicado antes de 1960. De qualquer modo, até na mensagem de Fátima tornada pública, não está de modo algum dito que “hoje tudo vai melhor que antes”: “Eu vim pedir a Consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora dos primeiros sábados. Se escutarem meus pedidos, a Rússia se converterá e tereis a paz; senão, ela espalhará seus erros pelo mundo, suscitando guerras e perseguições contra a Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito o que sofrer, várias nações serão aniquiladas. No fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre me consagrará a Rússia, que se converterá, e o mundo terá um tempo de paz” (Nossa Senhora em Fátima, 13 de julho de 1917).

 

Segundo ponto: hoje, a Igreja não encontra mais obstáculos

“É fácil descobrir esta realidade, se se considera com atenção o mundo hodierno, tão ocupado com a política e as controvérsias de ordem econômica, que já não encontra tempo de atentar em solicitações de ordem espiritual, de que se ocupa o magistério da santa Igreja. Este modo de proceder não é certamente justo, e com razão temos de desaprová-lo; não se pode, contudo, negar que estas novas condições da vida moderna têm, pelo menos, esta vantagem de ter suprimido aqueles inúmeros obstáculos, com os quais, em tempos passados, os filhos do século impediam a ação livre da Igreja. De fato, basta percorrer mesmo rapidamente a história eclesiástica, para verificar sem sombra de dúvida que os próprios Concílios Ecumênicos, cujas vicissitudes constituíram uma sucessão de verdadeiras glórias para a Igreja Católica, foram muitas vezes celebrados com alternativas de dificuldades gravíssimas e de tristezas, por causa da intromissão indevida das autoridades civis [...]

A este propósito, confessamo-vos que sentimos dor vivíssima pelo fato de muitíssimos Bispos, que nos são tão caros, fazerem hoje sentir aqui a sua ausência, por estarem presos pela sua fidelidade a Cristo, ou detidos por outros impedimentos; a sua lembrança leva-nos a elevar fervorosíssimas orações a Deus. Porém, não sem grande esperança e com grande conforto para a nossa alma, vemos que a Igreja, hoje finalmente livre de tantos obstáculos de natureza profana, como acontecia no passado, pode desta Basílica Vaticana, como de um segundo Cenáculo Apostólico, fazer sentir por vosso meio a sua voz, cheia de majestade e de grandeza” (Discurso de abertura do Concílio).[13]

 

In contrario:

Se interpretarmos essa passagem no sentido de que a separação do Estado e da Igreja seria um bem, é preciso dizer que:

* Pio IX, no Syllabus (08 de dezembro de 1864), condenou a proposição seguinte: “A Igreja deve estar separada do Estado e o Estado, da Igreja”;

  •  Pio XI, na encíclica Quas Primas (11 de dezembro de 1925), escreveu:

“Não se deve distinguir entre os indivíduos e as sociedades domésticas e civis, porque os homens reunidos em sociedade não estão menos sob o poder de Cristo do que os indivíduos. O bem privado e o bem comum possuem a mesma fonte (...) Que os governantes das nações não recusem, pois, render por si e pelo povo, suas homenagens públicas de respeito e obediência ao poder de Cristo, se quiserem promover e aumentar a prosperidade da pátria, salvaguardando a própria autoridade”.

Poderia também parecer, no entanto, que João XXIII, depois de haver saudado a ordem muito feliz das coisas, se alegrasse simplesmente com o pensamento de que não havia mais nenhum “obstáculo de natureza profana” para limitar a liberdade da Igreja.

Respostas aos pontos 1 e 2: “hoje, as coisas estão melhor que antes”; “hoje, a Igreja não encontra mais obstáculos”.

Lembremos que estamos em 1962. Pode ser que aquele “Átila” de que falava Baldacci, fosse o comunismo. Em setembro de 1961, o Muro de Berlim foi construído e a cortina de ferro fazia cada vez mais vítimas. Em outubro de 1962, uma semana depois da alocução de João XXIII, a “crise dos mísseis” estourava em Cuba.

Além disso, durante o Concílio, vários Padres conciliares lembraram o perigo comunista e pediram sua condenação, quando discutido o esquema sobre “a presença e a ação da Igreja no mundo atual”, que virou a Gaudium et Spes.

Por exemplo, o arcebispo irlandês William Conway declarou:

“O esquema (...) não fala da perseguição contra a Igreja em certos países: pode-se objetar que esse silêncio é desejado para não obstaculizar o diálogo com o ateísmo, mas a verdade e a sinceridade são condições elementares de qualquer diálogo”.

O arcebispo ucraniano, Maxim Hermanjuk lhe fez eco: “Seria deplorável esquecer o testemunho dos mártires e dos confessores da fé”. O alemão Josef Stimpfle, também, exigiu do Concílio uma coragem maior e perguntou:

“Como é possível ficarmos com a consciência tranqüila, abstendo-nos de falar e até de fazer alusão ao fenômeno do marxismo que constitui o verdadeiro e o mais grave perigo para a humanidade contemporânea, do qual o Concílio, no plano pastoral, afirma o desejo de tratar?”

As críticas choveram duramente. Eis o italiano Barbieri:

“Seria um escândalo para muitos crentes se o Concílio desse a impressão de ter medo de condenar o mais grave crime de nossa época, o ateísmo científico e prático, pior em si e em suas conseqüências, sobre o plano moral e espiritual, do que a própria bomba atômica.”

Dentre as intervenções mais incisivas, o Arcebispo de Nanquim, Dom Yu Pin. O prelado chinês (em nome de 70 bispos) observou ironicamente que:

“o esquema insiste muito sobre os sinais dos tempos, mas parece ignorar que o comunismo e o materialismo marxista constituem o maior e mais triste sinal característico de nossa época. A defesa da verdade reclama uma declaração sobre esse tema...”

Na mesma linha, Carli:

“é surpreendente o silêncio do esquema sobre um fenômeno que, infelizmente, existe no mundo do nosso tempo; um fenômeno que toca de perto a ordem natural e, ao mesmo tempo, a ordem sobrenatural; (...) Dirão talvez: mas o comunismo já foi julgado pelo Magistério pontifício! Respondo: não nego, mas também todo o resto que se encontra nesse esquema e em outros foi enunciado pelos soberanos pontífices, especialmente Pio XII, de venerada memória, com ainda mais clareza, abundância e precisão; e, todavia, nosso Concílio considera bom que essas coisas sejam repetidas solenemente e conciliarmente! Solicito então que tratemos também dessa heresia suprema de nosso tempo, sob uma forma explícita e com competência, para que aqueles que vierem depois de nós não possam acreditar que o Vaticano II se passou numa época em que todo o mundo católico vivia na paz e na tranqüilidade”.

Por sua vez, o tchecoslovaco Rusnak:

“Olhando o atlas geográfico, não podemos ignorar que meio mundo está submetido ao comunismo, sem falar dos comunistas que se acham em outros países. O comunismo, por conseguinte, é um fenômeno tão vasto que seria necessário falar dele, mesmo se não perseguisse a religião. Ora, ele a persegue, encorajado pelo silêncio dos grandes organismos internacionais criados para a defesa dos direitos humanos e, infelizmente também, pelo silêncio dos cristãos que poderiam e deveriam falar”.

Carli enviou à comissão competente uma nota crítica em que, entre outras coisas, comentava:

“é verdade que na nova redação do esquema XIII, fala-se do ateísmo mais abundantemente do que na redação anterior. Entretanto, ao evitar cuidadosamente o nome ‘comunismo’ — diversas vezes condenado pelo Magistério com esse nome — acabamos por confundir e enganar nossos fiéis, especialmente os simples e aqueles que não são instruídos, os quais, lendo este esquema, crerão que a Igreja não tem doravante nada mais a objetar contra o comunismo! O que dirão, por exemplo, os comunistas italianos que, geralmente, não são ateus? Dirão: o Concílio condenou o ateísmo, mas não o comunismo; então podemos ser ao mesmo tempo crentes e comunistas!”[14]

Estamos aqui em face do mistério perturbador da atitude adotada por João XXIII e pelo Concílio em relação ao comunismo, que, no espírito do Papa Roncalli, parecia não mais existir.

Entretanto, em 25 de março de 1959, ele havia confirmado por decreto a condenação e a excomunhão dos cidadãos que votassem em candidatos comunistas. Durante alguns anos, permaneceu sobre “a trilha luminosa traçada por Pio XII”. Vários discursos o testemunham. Por exemplo:

“Aqueles que quiserem realmente conservar o nome de cristãos têm o gravíssimo dever de consciência de se manterem absolutamente distanciados dessas doutrinas enganosas que nossos predecessores, Pio XI e Pio XII, condenaram e que nós de novo condenamos” (Encíclica Ad Petri Cathedram, 29 de junho de 1959).

Na encíclica Mater et Magistra (15 de maio de 1961), do mesmo modo, o comunismo é nomeado para recordar que “entre o comunismo e o cristianismo a oposição é fundamental”.  Jean Madiran comenta:

“Penso que foi a última vez num documento pontifical[15]. E já com uma astúcia minimizante.” Com efeito, “este alerta tinha um aspecto voluntariamente retrospectivo. Colocava-se no quadro de um resumo preliminar do ensinamento dos papas anteriores. Era atribuído a Pio XI, o que não está errado; e João XXIII não o contestava, mas tampouco o fazia seu, e evitava reiterá-lo. Ademais, referia-se tão-somente à Quadragesimo anno de Pio XI e jamais à sua encíclica Divini Redemptoris sobre o comunismo, omissão significativa, e que não poderia ser resultado de uma simples distração”.[16]

O Cardeal Oddi notou também que “a partir de um dado momento difícil de precisar, o tom muda; acentua-se o tom do diálogo, da confiança, da esperança; em suma, é sobretudo a nota do otimismo que prevalece e que rascunha essa transição da severidade à misericórdia, essa virada a que se deu o nome de “joânica”[17]. A morte do Cardeal Tardini, secretário de Estado, no verão de 1961, pode em parte explicar essa mudança que foi notada também por G. Alberigo[18] e por J. Grootaers[19], mesmo que ninguém encontre a explicação. E, contudo, em 1962, “Átila” já estava atacando, e esse silêncio do papa “bom” era realmente perturbador: em vez de carregar a cruz, apenas soube abrir seu coração ao inimigo.

Sabemos, com efeito, que, para seu Concílio, queria uma abertura aos observadores de outras confissões cristãs, entre elas os cismáticos russos que, até julho de 1961, opunham um solene “non possumus”[20].

“Dizem que para ter no Concílio os delegados de certas igrejas ortodoxas, a Santa Sé se comprometeu a não levantar, de modo nenhum, na assembleia ecumênica, o problema do comunismo”, escreveu o Cardeal Oddi, sem refutar esse boato[21]. Nem Alberigo, nem Groateers falaram disso, mas Andrea Riccardi fez alusão: “A esse propósito, falou-se de um ‘pacto’, concluído em Metz, entre o Cardeal Tisserant, com mandato do Papa João, e o Metropolita Nikodim, que teria aceito a participação dos observadores russos no Vaticano II com a condição de uma exclusão explícita da condenação [do comunismo].”[22] O mesmo Riccardi destaca também que “houve uma mudança, que seja apenas pelo silêncio e uma maneira diferente de colocar o problema; [essa mudança] aparecia tão profunda que dava crédito ao rumor de um acordo explícito entre o Patriarcado de Moscou e a Santa Sé. De qualquer modo, um acordo desse tipo dificilmente teria poder de travar a liberdade do Concílio Ecumênico”[23].

Se não houver uma relação de causa e efeito, a correlação entre a mudança de tom de João XXIII e os contatos com o mundo cismático russo é, pelo menos, estranha.

Na realidade, houve um acordo Roma-Moscou. O Partido Comunista Francês já o tinha revelado, em 1963: “A Igreja Católica se comprometeu, no diálogo com a igreja ortodoxa russa, a que não houvesse ataques diretos contra o regime comunista no Concílio”. E D. Roche, secretário do Cardeal Tissearant, o confirmou explicitamente, em uma carta ao diretor da revista Itinéraires:

“Todos sabem que esse acordo foi negociado entre o Kremlin e o Vaticano na mais alta cúpula. Nikodim e o Cardeal Tisserant foram apenas os porta-vozes — um, do chefe do Kremlin e o outro, do papa então gloriosamente reinante. (...) Mas, posso lhes assegurar, senhor diretor, que a decisão de convidar os observadores ortodoxos russos ao Concílio Vaticano II foi tomada pessoalmente por Sua Santidade o Papa João XXIII com os apoios evidentes do Cardeal Montini, que foi o conselheiro do Patriarca de Veneza no tempo em que ele mesmo era Arcebispo de Milão. (...) O Cardeal Tisserant recebeu ordens formais, tanto para negociar o acordo, quanto para supervisionar sua exata execução durante o Concílio. Desse modo, cada vez que um bispo queria abordar a questão do comunismo, o Cardeal, da mesa do conselho da presidência, intervinha para lembrar a ordem de silêncio desejada pelo Papa”[24].

A. Riccardi contou que “B. Häring, baseando-se em lembranças pessoais de sua colaboração com Dom Glorieux, falou de uma ‘promessa feita quando do convite dos representantes da igreja ortodoxa russa’ relacionada à exclusão de eventuais condenações do comunismo”[25].

Depois das negociações entre Tisserant e Nikodim, D. Willebrands fez uma viagem improvisada e secreta a Moscou entre 27 de setembro e 2 de outubro, para informar o Sínodo sobre a orientação pastoral de Vaticano II e sobre  a maneira como a questão comunista era tratada nos trabalhos preparatórios[26]. Mas “a melhor garantia que a igreja russa podia receber de Roma não era tanto um acordo verbal entre dois eminentes prelados, mas sim a diretriz fundamental que João XXIII tencionava dar ao Vaticano II (...) João XXIII dava uma garantia ainda mais explícita com a Gaudet Mater Ecclesia: declarava que [a nova ordem do mundo sendo excelente], a Igreja escolhia a via da misericórdia e não a da severidade e da condenação”[27].

Na tarde de 12 de outubro, os observadores russos chegaram a Roma. Foi então que “os bispos ucranianos da diáspora, chegados ao Concílio, redigiram um documento, publicado em seguida pela imprensa, em que manifestavam amargura pela ausência do único sobrevivente dos onze bispos ucranianos ‘in patria’, D. Slipyi. A presença dos dois observadores russos no Vaticano II ‘desconcertou os crentes’: fazem um ato ecumênico e esquecem o sofrimento da Igreja ucraniana? Sua presença ‘não podia ser considerada como um ato de caráter religioso e eclesiástico, mas, sim, como um ato contaminado de finalidades estranhas à religião, concertado pelo regime soviético com o objetivo de semear a confusão’. João XXIII, o papa ‘bom’ estava abrindo um período de intervenções diplomáticas da Santa Sé num setor inesperado e julgado, até então, impraticável[28].

Assim, na abertura do Concílio, João XXIII esqueceu totalmente a existência do comunismo, e, apesar da requisição formal e escrita de 454 Padres conciliares, não dirá uma só palavra sobre o comunismo, que sequer é nomeado nos textos promulgados por um Concílio que se quis “pastoral”, e, todavia, entregou várias ovelhas ao totalitarismo mais sanguinário que já existiu no mundo. Paulo VI se verá constrangido a inserir no ponto 21 de Gaudium et Spes cinco palavras e uma nota de rodapé:

“Ali onde o texto lembra que ‘a Igreja(...) não pode deixar de condenar (...) essas doutrinas perniciosas’, Paulo VI mandou colocar a fórmula ‘como fez no passado’ e na nota 16 lembrou as encíclicas: Divini redemptoris, Ad apostolorum principis, Mater et Magistra e Ecclesiam Suam, isto é, textos do Magistério eclesial em que o comunismo é explicitamente mencionado e condenado. Paulo VI tinha então reconhecido, ao menos em parte, a legitimidade da petição e, como bom diplomata, encontrou uma solução de compromisso que respeitava três exigências contraditórias: terminar o Concílio sem tardar, condenar o comunismo e ao mesmo tempo jamais o citar”[29].

Na mensagem inicial ao mundo, em 20 de outubro de 1962, os Padres Conciliares tinham afirmado solenemente que “a Igreja é hoje, mais do que nunca, necessária ao mundo para denunciar as injustiças e as desigualdades indignas”. Mas como a Igreja poderia fazê-lo depois da alocução e do silêncio de João XXIII? Como poderia fazê-lo se, exatamente ao fazê-lo, ela se calava sobre as injustiças mais sangrentas do mundo contemporâneo? Se ela se calava sobre a exploração do homem pelo homem, a exploração mais aperfeiçoada que já existira, a saber, aquela do regime comunista? “O compromisso feito e mantido pela Santa Sé foi a renúncia à missão da Igreja, uma traição a Deus, à própria Igreja e à humanidade. Essa página negra da História da Igreja permanecerá, como justamente escreveu Jean Madiran, ‘a vergonha da Santa Sé no século XX’”[30].

Além disso, como falar de liberdade da Igreja em relação a qualquer obstáculo “de natureza profana” (cf. Discurso de abertura do Concílio) quando em seguida ela é submetida ao veto de Moscou? “O discurso inaugural do Concílio — escreveu Romano Amerio — celebra a liberdade da Igreja contemporânea no exato momento em que confessa que vários bispos estão presos por sua fidelidade a Cristo e que, em virtude de um acordo desejado pelo Papa, o Concílio se acha vinculado a um compromisso de não pronunciar nenhuma condenação ao comunismo. Essa contradição, que é de peso, permanece, contudo, inferior à contradição fundamental de apoiar a renovação da Igreja sobre a abertura ao mundo e, em seguida, evitar abordar, como um dos problemas desse mundo, o comunismo, quando ele era o principal, o essencial e decisivo”[31].

 

2. Segundo sofisma:  procurar o que une e pôr de lado o que divide

[...] é necessário primeiramente que a Igreja não se aparte do patrimônio sagrado da verdade, recebido dos seus maiores; e, ao mesmo tempo, deve também olhar para o presente, para as novas condições e formas de vida introduzidas no mundo hodierno, que abriram novos caminhos ao apostolado católico.

Por esta razão, a Igreja não assistiu indiferente ao admirável progresso das descobertas do gênero humano, e não lhes negou o justo apreço [...]

Isto posto, veneráveis irmãos, vê-se claramente tudo o que se espera do Concílio quanto à doutrina.

O XXIº Concílio Ecumênico, que se aproveitará da eficaz e importante soma de experiências jurídicas, litúrgicas, apostólicas e administrativas, quer transmitir pura e íntegra a doutrina, sem atenuações nem subterfúgios, que por vinte séculos, apesar das dificuldades e das oposições, se tornou patrimônio comum dos homens. Patrimônio não recebido por todos, mas, assim mesmo, riqueza sempre ao dispor dos homens de boa vontade” (Discurso de abertura do Concílio).

 

O mesmo otimismo impregnou toda a alocução inaugural de João XXIII: as novas condições e formas de vida permitem à Igreja desenvolver seu apostolado num mundo melhor que antes; sua doutrina se tornaria patrimônio comum dos homens e, por conseguinte, era preciso observar tudo o que de bom e de belo há no presente, sem se concentrar no que podia ainda constituir alguma dificuldade.

Numa carta de 20 de março de 1932, Roncalli escreveu:

Eu continuo com as minhas antigas posições, isto é, crer no que meus olhos me dizem, interpretar tudo pelo bem, regozijar-me com o bem em vez de me distrair excessivamente com a visão do mal e, depois, olhar para o futuro[32].

E ainda em 25 de janeiro de 1935:

Não nos concentremos nas lembranças do que nos divide: que toda palavra amarga, toda mútua recriminação inútil não saiam das nossas bocas. Olhemos para o futuro à luz dos desígnios de Cristo[33].

Em 15 de março de 1953:

Sempre preocupado, estando a salvo a firmeza dos princípios do credo católico e da moral, mais com que une do que com o que separa e causa desacordos[34].

Em 11 de outubro de 1962:

“Continuemos a nos amar, a nos amar assim; e no encontro, continuemos a perceber o que une, deixando de lado, se se apresentar, a coisa que puder nos colocar um pouco em dificuldade”[35].

E em 31 de março de 1963:

Ouvimos alguns dizerem que o papa é otimista demais; só vê o lado favorável das coisas; põe em destaque unicamente a melhor parte. Ah, sim! é uma atitude que ele considera providencial e que lhe aproxima de tudo o que Nosso Senhor fez, que admiravelmente propagou à sua volta ensinamentos positivos e construtivos, que trazem alegria e paz[36].

 

In contrario:

* Pio IX:

“A Deus não agrada, todavia, que os filhos da Igreja Católica sejam inimigos dos que não estão conosco unidos pelos mesmos vínculos de fé e de caridade. Eles devem, ao contrário, apressar-se a lhes render todos os serviços da caridade cristã, na sua pobreza, nas suas doenças, em todas as outras desgraças que os afligem; a lhes ajudar sempre, a trabalhar principalmente para retirá-los das trevas dos erros onde estão miseravelmente mergulhados, a lhes trazer à Igreja, essa mãe cheia de amor, que nunca cessa de lhes estender afetuosamente suas mãos maternais, de lhes abrir os braços para os estabelecer e fortalecer na fé, na esperança e na caridade, para fazer com que frutifiquem em toda sorte de boas obras e lhes fazer obter a salvação eterna” (Encíclica Quanto conficiamur moerore, 10 de agosto de 1863).

 

* Pio XII:

“Ainda mais, até sob pretexto de reanimar a concórdia, não é permitido dissimular nenhum dogma; com efeito, como nos adverte o Patriarca de Alexandria: ‘Desejar a paz é realmente o maior bem e o principal; contudo, não é por causa disso que se deve desprezar a virtude de piedade em Cristo’. É por isso que esse método que adota somente os tópicos de doutrina sobre os quais todas, ou quase todas as comunidades que se glorificam com o nome de cristãs estão de acordo, não conduz ao retorno tão desejado dos filhos desgarrados à verdadeira e justa unidade em Cristo; mas sim o que coloca, como fundamento da concórdia e do acordo dos fiéis de Cristo, todas as verdades divinamente reveladas em sua integridade” (Encíclica Orientalis Ecclesiae, 09 de abril de 1944).

Na famosa moção ecumênica de 1949:

“Quanto ao método a seguir nesse trabalho, os bispos prescreverão o que se deve fazer, o que se deve evitar e exigirão que todos se conformem a suas ordens. Velarão também para que, sob o falso pretexto de que é preciso considerar muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa, um perigoso indiferentismo não seja alimentado, sobretudo nos corações daqueles que são menos instruídos nas questões teológicas e cuja prática religiosa é menos profunda. Deve-se evitar, com efeito, que num espírito que se chama hoje ‘irênico’, a doutrina católica — tanto faz aqui que se trate de dogma ou de verdade conexas — seja, por um estudo comparado e um desejo vão de progressiva assimilação das diversas profissões de fé, assimilada ou acomodada de algum modo às doutrinas dos dissidentes, a ponto de que a pureza da doutrina católica fique prejudicada ou que seu significado verdadeiro e certo fique obscurecido (...)

A doutrina católica deve, por conseguinte, ser proposta e exposta total e integralmente, não se deve jamais calar ou velar por termos ambígüos o que a verdade católica ensina sobre a verdadeira natureza e as etapas da justificação, sobre a constituição da Igreja, sobre a primazia de jurisdição do Romano Pontífice, sobre a única unidade verdadeira pelo retorno dos cristãos separados à única e verdadeira Igreja de Cristo. Poderão sem dúvida lhes dizer que, voltando à Igreja Católica, não perderão nada do bem que, por graça de Deus, foi realizado neles até hoje; mas que, por causa de seu retorno, esse bem será apenas completado e conduzido à sua perfeição. Deverá se evitar, entretanto, falar desse ponto de uma maneira tal que, voltando à Igreja, eles imaginem trazer para ela algum elemento essencial que lhe teria faltado até então. É necessário lhes dizer essas coisas claramente e sem ambigüidade; primeiro, porque estão procurando a verdade; depois, porque, fora da verdade, jamais poderá existir uma união verdadeira” (De Motione Oecumenica, 20 de dezembro de 1949).

 

Resposta ao segundo sofisma: procurar o que une e pôr de lado o que divide”.

Comentando a Suma de Santo Tomás, o Pe. Tito Centi O.P. escreve:

“(…) muitos são levados a falsificar o conceito de paz, parando na consideração de seu aspecto puramente negativo, isto é, a ausência de conflitos ou de violentos choques externos, por meio da aceitação forçada de uma ordem qualquer das coisas. Santo Tomás poderá assim destacar desde o início que a paz ‘implica a concórdia e, além disso, alguma coisa a mais’. Todas essas considerações devem ser bem sublinhadas para não se confundir a aspiração cristã à paz com certo pacifismo contemporâneo que é a máscara de uma miserável concepção utilitarista e materialista da vida”[37].

Santo Tomás, com efeito, explica: “A paz consiste na pacificação ou união dos apetites. Mas, assim como o apetite pode ter por objeto um bem verdadeiro ou um bem aparente, assim também a paz pode ser real ou apenas aparente. A verdadeira paz somente é compatível com o desejo de um bem verdadeiro; pois o mal, mesmo se possui alguma semelhança com o bem, nunca está privado de imperfeições numerosas, que são fonte de inquietudes e de perturbações. A verdadeira paz só existe, portanto, nos bons e no bem. A paz dos maus é só aparente e nunca real. A Sabedoria o declara: ‘Vivem em estado de violenta luta, como resultado de sua ignorância, e dão a tais males o nome de paz’ (Sb 14, 22)” (S. T. IIa IIae, q. 29, a. 3). Além disso, o Doutor Angélico observa que desde que entremos em acordo sobre os bens mais importantes, o desacordo em coisas mínimas não impede a caridade”, e, por conseguinte, a paz (ibidem).

Com efeito, há uma hierarquia entre os bens: alguns são essenciais ou principais; outros são secundários ou acidentais. Os únicos aptos a estabelecer a amizade, a unidade ou a paz são os bens principais.

Assim, a Igreja está unida pela fé e pela caridade; a sociedade temporal, pela pátria comum e pelo bem comum, e a família pela paternidade.

Esses bens são os bens principais que constituem cada uma das três comunidades de que cuidam, respectivamente, o papa, o chefe de Estado e o pai.

Em qualquer sociedade — diz-nos Santo Tomás — podem-se deixar de lado os bens secundários para se observar somente o bem principal. Mas nem a unidade, nem a paz podem ser estabelecidas considerando-se apenas alguns bens secundários, como, por exemplo, um católico que quisesse deixar de lado as divergências de Fé para fazer uma “paz” com os não-católicos, considerando apenas a unidade do gênero humano. Essa paz seria falsa, e até perigosa, porque não enraizada no bem principal, que é o conjunto da fé e da caridade.

O olhar sobre o que nos une pode ser concedido a um bem secundário ou parcial unicamente no caso de que fosse o preâmbulo para combater ou para converter os não-católicos, mesmo quando houver um dissenso sobre os bens principais. Santo Tomás explica claramente: “Entretanto, é preciso considerar isso. Na ordem das ciências filosóficas, as ciências inferiores, não apenas não podem provar seus princípios próprios, mas se abstêm de disputar contra quem os nega, deixando esse cuidado a uma ciência mais alta e mais geral, isto é, a Metafísica.

(...) a ciência sagrada [Teologia], portanto, não havendo outra superior, deverá ela também disputar contra quem negue seus princípios. Ela o fará por meio de provas propriamente ditas se o adversário concede em aceitar alguma coisa da Revelação: assim, por referências à Sagrada Doutrina, formamos argumentos de autoridade contra os hereges; e, por meio de um dogma, combatemos quem negue outros. Se o adversário não crê em nada das coisas reveladas, não resta outro meio senão provar os artigos de Fé para ele pela razão humana; porém se pode refutar, se houver oportunidade, as razões que ele opuser a esses artigos” (S. T.  Ia, q. 1,a. 8).

Se nenhuma discussão é possível, pode-se, eventualmente, estabelecer certa concórdia; mas aí se deve ter atenção para não a confundir com a paz. Com efeito, até entre os demônios existe concórdia, mas não há a paz:

“A concórdia que faz com que alguns demônios obedeçam a outros não provém de amizade mútua, mas de sua maldade comum, que lhes faz odiar os homens e recusar a justiça de Deus. É, com efeito, próprio dos homens ímpios, para executar seus desígnios maus, unirem-se entre si e se submeterem aos que enxergam como mais poderosos e mais fortes” (S. T. Ia., q.109, a. 2, ad.2).

O mesmo se verifica com os adversários da Igreja de Cristo, entre os quais sempre existe a concórdia para persegui-la e para tentar destruí-la, mas a paz, jamais!

 

3. Terceiro sofisma: é preciso se atualizar e exprimir a doutrina pelas fórmulas do pensamento moderno.

“É nosso dever não só conservar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente da antiguidade, mas também dedicar-nos com vontade pronta e sem temor àquele trabalho hoje exigido, prosseguindo assim o caminho que a Igreja percorre há vinte séculos.

A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos, que se supõe sempre bem presente e familiar ao nosso espírito.

Para isto, não havia necessidade de um Concílio. Mas da renovada, serena e tranqüila adesão a todo o ensino da Igreja, na sua integridade e exatidão, como ainda brilha nas Atas Conciliares desde Trento até o Vaticano I, o espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências; é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do depositum fidei, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral” (Discurso de abertura do Concílio).

Em resumo: visto que a Igreja não é um museu de antiguidades e que todos conhecem bem sua doutrina, não se trata de repetir o seu ensino, doravante patrimônio comum dos homens (cf. o acima), mas, de adaptá-lo segundo as formas do pensamento moderno, salvando, contudo, a substância da antiga doutrina. A Teologia deve se atualizar em relação ao pensamento moderno e, portanto, descolar-se da mentalidade clássica com que a Igreja se identificava até Vaticano II.

“Estamos aqui na Terra, não para guardar um museu, mas para cultivar um jardim florescente de vida” — notava João XXIII em 10 de outubro de 1958[38]. E em 13 de janeiro de 1960, ele diria: “a Igreja Católica não é um parque arqueológico. É a fonte antiga do vilarejo que dá a água às gerações de hoje como dava às do passado”[39].

Ora, um museu é uma realidade definida, fechada e bem guardada, enquanto que um jardim está aberto a todos. A Igreja tem de deixar de se fechar nas “fórmulas” de sua doutrina e se abrir ao “modo de falar” (mas esse modo não reflete o modo de pensar?) do mundo moderno. A Igreja tem de abandonar as palavras muito “fechadas”, estreitas e que indicam limites demais, para adotar palavras “abertas”, mais aptas a acolher pessoas estranhas à Igreja. Por exemplo, em vez de falar da fé católica, falar de sua doutrina, de seu pensamento, até mesmo da “opinião” dos católicos (digamos, por exemplo: “para os católicos, Cristo é Deus!”). Em vez de caridade, que é o amor por causa de Deus, falarão somente de amor, ou de solidariedade, ou de fraternidade universal... Em vez de  reconstruir a Cristandade, falarão do dever de construir uma “civilização do amor”. No lugar da Igreja definida como a sociedade dos fiéis, dirão que a Igreja é “comunhão”, assembleia ou “povo de Deus”.

 

In contrario:

* Pio IX, no Syllabus, condenou as afirmações seguintes:

“XIII – o método e os princípios com que os antigos doutores escolásticos cultivaram a Teologia não convêm mais às necessidades de nossa época e ao progresso das ciências.

LXXX – O Romano Pontífice pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna.”

 

* São Pio X, na Pascendi Dominici Gregis, de 08 de setembro de 1907, ilustra e condena assim o método dos modernistas:

“Para bem se conhecer a natureza do dogma, é preciso [segundo os modernistas] primeiro indagar que relações há entre as fórmulas religiosas e o sentimento religioso.

Não haverá dificuldade em compreendê-lo para quem já tiver como certo que estas fórmulas não têm outro fim senão o de facilitar ao crente um modo de dar razão da própria fé. De sorte que essas fórmulas são como que intermediárias entre o crente e a sua fé; com relação à fé, são expressões inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam símbolos; com relação ao crente, reduzem-se a meros instrumentos.

Não é, portanto, de nenhum modo lícito afirmar que elas exprimem uma verdade absoluta [sempre segundo os modernistas]; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e, portanto, devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso. E, uma vez que este sentimento tem por objeto o absoluto, apresenta infinitos aspectos, dos quais pode aparecer hoje um, amanhã outro e da mesma sorte como aquele que crê pode passar por essas e aquelas condições, segue-se que também as fórmulas, que chamamos dogmas, devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso também variarem.

Assim, pois, temos o caminho aberto à íntima evolução do dogma. Eis aí um acervo de sofismas, que subvertem e destroem toda a religião!

Para concluir toda esta matéria da fé e seus diversos frutos, resta-nos por fim, Veneráveis Irmãos, ouvir as teorias dos modernistas acerca do desenvolvimento dos mesmos. Têm eles por princípio geral que numa religião viva, tudo deve ser mutável e mudar-se de fato. Por aqui abrem caminho para uma das suas principais doutrinas, que é a evolução. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e até mesmo a fé, se não forem coisas mortas, devem sujeitar-se às leis da evolução. Quem se lembrar de tudo o que os modernistas ensinam sobre cada um desses assuntos, já não ouvirá com pasmo a afirmação deste princípio”.

 

* Pio XII, na encíclica Humani Generis, de 12 de agosto de 1950:

“Quanto à teologia, o que alguns pretendem é diminuir o mais possível o significado dos dogmas e libertá­los da maneira de exprimi-los tradicional na Igreja, e dos conceitos filosóficos usados pelos doutores católicos, a fim de voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões empregadas pela Sagrada Escritura e pelos santos Padres. Esperam que, desse modo, o dogma, despojado de elementos que chamam extrínsecos à revelação divina, possa comparar-se frutuosamente com as opiniões dogmáticas dos que estão separados da unidade da Igreja, e que, por esse caminho, se chegue pouco a pouco à assimilação do dogma católico e das opiniões dos dissidentes.

Reduzindo a doutrina católica a tais condições, creem que se abre também o caminho para obter, segundo exigem as necessidades atuais, que o dogma seja formulado com as categorias da filosofia moderna, quer se trate do imanentismo, ou do idealismo, ou do existencialismo, ou de qualquer outro sistema. Alguns mais audazes afirmam que isso se pode e se deve fazer também em virtude de que, segundo eles, os mistérios da fé nunca se podem expressar por conceitos plenamente verdadeiros, mas só por conceitos aproximativos e que mudam continuamente, por meio dos quais a verdade se indica, é certo, mas também necessariamente se desfigura. Por isso não pensam ser absurdo, mas antes, pelo contrário, creem ser de todo necessário que a teologia, conforme os diversos sistemas filosóficos que no decurso do tempo lhe servem de instrumento, vá substituindo os antigos conceitos por outros novos; de sorte que, de maneiras diversas e até certo ponto opostas, porém, segundo eles, equivalentes, faça humanas aquelas verdades divinas. Acrescentam que a história dos dogmas consiste em expor as várias formas que sucessivamente foi tomando a verdade revelada, de acordo com as várias doutrinas e opiniões que através dos séculos foram aparecendo”.

 

Resposta ao terceiro sofisma: “é preciso se atualizar e exprimir a doutrina pelas fórmulas do pensamento moderno”. 

“A atualização das fórmulas foi a causa explícita e formal do Concílio Vaticano II, como proclamou, em seu discurso de abertura, o papa que o convocou, João XXIII. Essa doutrina de distinção entre a substância da fé e as fórmulas pelas quais a substância se exprime é uma doutrina ensinada pela primeira vez na história por João XXIII, não existia antes. Depois virou uma doutrina comum, bem aceita de todos, porque ninguém quer reconhecer nela a contradição decorrente do fato de que expressões diferentes significassem a mesma coisa”. Assim se exprimia Romano Amerio[40].

E mais: “as fórmulas não são um revestimento, pois a vestimenta é uma adição exterior, enquanto as fórmulas exprimem a verdade nua. Elas são, como diz o texto latino da alocução, o enunciado de verdades recebidas, e não é possível conservar o sentido de uma proposição exprimindo-o em termos que possuem um sentido diferente. Se, por exemplo, a fórmula de fé for: ‘o pão é transubstanciado em Corpo de Cristo’, a fórmula ‘o pão é transfinalizado em corpo de Cristo’ destrói a verdade de fé, já que mudar de finalidade é uma coisa totalmente diferente de mudar de substância. Assim, visando a uma nova interpretação da fé, como se pretende fazer, opera-se a passagem de uma palavra a outra; mas como as palavras não são puros sinais ou ganchos a que se agarram ideias, opera-se de modo semelhante a passagem de uma ideia para outra, de uma verdade para sua negação”[41].

Tudo isso deveria ser evidente a todos, mas os “inovadores” são especialistas em negação da evidência, que, por ser indemonstrável, é a coisa mais fácil de negar.

 

4. Quarto sofisma: é melhor empregar a misericórdia do que a severidade e a condenação.

“A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes, até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações. Não quer dizer que faltem doutrinas enganadoras, opiniões e conceitos perigosos, contra os quais nos devemos premunir e que temos de dissipar; mas estes estão tão evidentemente em contraste com a reta norma da honestidade, e deram já frutos tão perniciosos, que hoje os homens parecem inclinados a condená-los, em particular os costumes que desprezam a Deus e a sua lei, a confiança excessiva nos progressos da técnica e o bem-estar fundado exclusivamente nas comodidades da vida. Eles se vão convencendo sempre mais de que a dignidade da pessoa humana, o seu aperfeiçoamento e o esforço que exige é coisa da máxima importância. E o que mais importa, a experiência ensinou-lhes que a violência feita aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem em nada para a feliz solução dos graves problemas que os atormentam.

Assim sendo, a Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados. Ao gênero humano, oprimido por tantas dificuldades, ela diz, como outrora Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: “Eu não tenho nem ouro nem prata, mas dou-te aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda” (At 3, 6). Quer dizer, a Igreja não oferece aos homens de hoje riquezas caducas, não promete uma felicidade só terrena; mas comunica-lhes os bens da graça divina, que, elevando os homens à dignidade de filhos de Deus, são defesa poderosíssima e ajuda para uma vida mais humana; abre a fonte da sua doutrina vivificante, que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo, compreender bem aquilo que eles são na realidade; a sua excelsa dignidade e o seu fim; e mais, por meio dos seus filhos, estende a toda parte a plenitude da caridade cristã, que é o melhor auxílio para eliminar as sementes da discórdia; e nada é mais eficaz para fomentar a concórdia, a paz justa e a união fraterna” (Discurso de abertura do Concílio).

 

Esse quarto sofisma contém, de fato, três. Entrelaçados por rigorosa lógica interna:

a) A Igreja escolhe a misericórdia (o que nunca teria sabido fazer até então!);

b) Todos os homens, de fato, possuem o senso do bem e do mal, e, hoje, tendo escolhido o caminho do bem com unanimidade, são todos homens de boa vontade;

  1. É por isso que não se deve pregar, antes de tudo, a doutrina, que pode ser fonte de divisões; mas basta oferecer a todos a caridade.

 

In contrario:

* Pio IX:

“Nós não deixamos, portanto, nem de proscrever, freqüentemente, nem de reprimir esses erros principais, todavia a causa da Igreja Católica, a salvação das almas divinamente confiadas à nossa solicitude, inclusive o bem da sociedade humana, demandam imperiosamente que exortemos a vossa solicitude a condenar outras opiniões, derivadas dos mesmos erros como de sua fonte. Essas opiniões falsas e perversas devem ser tão mais detestadas quanto o seu objetivo principal seja de acorrentar e afastar esta força salutar de que a Igreja Católica, em virtude da instituição e do mandamento de Seu Divino Fundador, deve usar até a consumação dos séculos, não menos para com os indivíduos do que para com nações, povos (…)” (Encíclica Quanta Cura, 8 de dezembro de 1864).

 

* São Pio X:

“Desejamos chamar a vossa atenção, veneráveis Irmãos, para esta deformação do Evangelho e do caráter sagrado de Nosso Senhor, Deus e homem, praticada no Sillon e fora dele. Quando se aborda a questão social, está na moda, em certos meios, afastar, primeiro, a divindade de Jesus Cristo e, depois, falar apenas de Sua soberana mansidão, da Sua compaixão por todas as misérias humanas de suas vigorosas exortações ao amor ao próximo e à fraternidade. Claro que Jesus nos amou com um amor imenso, infinito e que veio à Terra sofrer e morrer para que todos os homens, reunidos em torno d’Ele na justiça e no amor, animados dos mesmos sentimentos de mútua caridade, vivam na paz e na felicidade. Mas, para a realização dessa felicidade eterna e temporal, Ele colocou, com soberana autoridade, a condição de que façamos parte de seu rebanho, aceitemos a Sua doutrina, pratiquemos a virtude e que nos deixemos ensinar e guiar por Pedro e seus sucessores. E depois, se Jesus foi bom com os abandonados e os pecadores, não respeitou suas errôneas convicções por mais sinceras que parecessem. Amou a todos para os instruir, converter, salvar. Se chamou para Si, para os aliviar, os que estão cansados e sofrem, não foi para lhes pregar a inveja de uma igualdade quimérica. Se exaltou os humildes, não foi para lhes inspirar o sentimento de uma dignidade independente e rebelde à obediência. Se Seu Coração transbordava de mansidão para as almas de boa vontade, também soube se armar com santa indignação contra os profanadores da casa de Deus, contra os miseráveis que escandalizavam os pequeninos, contra as autoridades que sobrecarregavam o povo sob fardos pesados sem mover um dedo para os carregar. Foi tão forte quanto suave; ameaçou, repreendeu, castigou, sabendo e ensinando-nos que, freqüentemente, o medo é o início da sabedoria e que convém, às vezes, amputar um membro para salvar o corpo. Enfim, não anunciou para a futura sociedade um reino de felicidade ideal, do qual o sofrimento estaria banido; mas, por Suas lições e exemplos, traçou o caminho da felicidade possível sobre a terra e da felicidade perfeita do Céu: a realeza da Via-Crúcis” (Carta Apostólica Notre Charge apostolique, 25 de agosto de 1910).

 

* Pio XI:

“Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito?

Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumava inculcar à memória dos seus o mandamento novo: ‘Amai-vos uns aos outros, vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: ‘Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação’ (2 Jo 10).

Pelo que, como a caridade se apoia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa Federação cristã, na qual ao ingressar ou então quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros? E de que modo pedir que participem de um só e mesmo Conselho homens que se distanciam por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição uma fonte genuína da Revelação Divina?” (Mortalium animos, 6 de janeiro de 1928).

 

Resposta ao quarto sofisma: “é melhor empregar a misericórdia do que a severidade e a condenação”.

Ensina Santo Tomás:

“A caridade não significa apenas o amor a Deus, mas ainda uma certa amizade com Ele, amizade que adiciona, ao amor, a reciprocidade no amor, com certa comunicação mútua (…) Assim como, portanto, não se pode ter amizade com alguém se não se tem nem crença, nem esperança de poder possuir alguma comunhão de vida ou comércio familiar com ele, assim também ninguém pode ter essa amizade com Deus, que é a caridade, se não tem fé para crer nesse tipo de sociedade e comércio do homem com Deus e se não espera se ligar a essa sociedade. De sorte que a caridade não pode de nenhum modo existir sem a fé nem a esperança. A caridade não é um amor qualquer a Deus; mas aquele pelo qual buscamos a Deus como o objeto a que [somente] a fé e a esperança nos ordenam” (I-II, q.65, a.5).

O Catecismo de São Pio X diz o seguinte:

“As obras de misericórdia.

941. Quais são as boas obras de que daremos contas particularmente no Dia do Juízo?

R: As boas obras de que daremos contas particularmente no Dia do Juízo são as obras de misericórdia

942. O que se entende por obra de misericórdia ?

R: A obra de misericórdia é aquela com que socorremos nosso próximo em suas necessidades espirituais ou corporais (...)

944. Quais são as obras de misericórdia espiritual?

R: As obras de misericórdia espiritual são: Aconselhar os que necessitam; Ensinar aos ignorantes; Exortar os pecadores; Consolar os aflitos; Perdoar as ofensas; Suportar pacientemente as pessoas que nos perturbam; Rezar pelos vivos e pelos mortos”.

Exortar os pecadores – Santo Tomás ensina que, assim como somos obrigados a dar esmola aos pobres nas necessidades graves e urgentes, assim também temos o dever de ajudar os pecadores pela correção fraterna, para ajudá-los a escapar ao mal supremo da danação eterna. Ninguém a maior título que o pecador tem necessidade de ser corrigido e reconduzido ao bom caminho com amor e caridade fraterna” (Padre Dragone – Commento al Catechismo)[42].

Na Suma Teológica, Santo Tomás escreve que:

“A correção dos pecadores, considerada em sua execução, parece conter a severidade da justiça; mas, pela intenção do que quer por aí arrancar o culpado de seu pecado, é um ato de misericórdia e de caridade, segundo as palavras da Sagrada Escritura: ‘Melhores são as feridas feitas pelo que ama, do que os ósculos fraudulentos do que quer mal (Pr 27, 6)’ (S. T., IIa IIae, q. 32, a. 2 ad 3).

“A correção do culpado é um tipo de remédio que se deve empregar contra o pecado de alguém. Ora, pode-se considerar, no pecado, o prejuízo que causa a quem o comete, a quem lesa ou escandaliza, e até ao bem público cuja boa ordem pode ser perturbada. A correção do culpado é, portanto, dupla. A primeira remedeia o pecado, enquanto é um mal para o pecador, e precisamente é a correção fraterna, que tem por objetivo de o tornar alguém melhor. Ora, remover um mal de alguém é um ato da mesma natureza de lhe fazer um bem. Mas este último é um ato de caridade que nos move a querer e a fazer o bem a quem amamos. Também é um ato de caridade corrigir o seu irmão, isto é, afastá-lo do mal, do pecado; e que é tão superior à cura de uma doença ou à reparação de um dano quanto a virtude em si mesma tem mais afinidade com a caridade do que a saúde ou a riqueza. Assim, portanto, a correção fraterna é um ato de mais caridade que o cuidado dos doentes e o alívio dos pobres. A segunda correção remedeia o pecado enquanto que é contrário ao bem do próximo ou ao bem público. Essa é um ato de justiça, que tem por objeto manter as relações equitativas entre os homens” (S. T. IIa IIae, q. 33, a.1).

“Os bons toleram os maus no sentido de que suportam pacientemente suas injúrias pessoais, na medida legítima; mas isso não significa que têm de agir da mesma forma com aquelas que são feitas a Deus ou ao próximo. ‘A paciência de suportar as injúrias que se dirigem a nós — diz São João Crisóstomo — é virtude; mas permanecer insensível às que se dirigem a Deus, ah, é o cúmulo da impiedade’” (S. T. IIa IIae, q. 108, a. 1, ad 2).

“O zelo, entendido como amor ardente, é a raiz primeira da vingança: vingamos as injúrias feitas a Deus e ao próximo, porque a caridade nos faz nossas” (S. T. IIa IIae, q. 108, a. 2, ad. 2).

Por isso, escreve com exatidão Romano Amerio:

“É, ao contrário, uma novidade, e é anunciada abertamente como coisa nova pela Igreja, a atitude a tomar diante do erro. A Igreja, diz o Papa, não abandona nem enfraquece sua oposição ao erro, mas hoje, ‘prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade’. Opõe-se ao erro julgando ‘satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações’. Esse anúncio do princípio da misericórdia oposto ao da severidade falha no fato de que, na ideia da Igreja, a condenação do erro é obra de misericórdia, já que batendo no erro, corrige-se o que errava e preservam-se os outros do erro. Além disso, em relação ao erro, não pode haver propriamente nem clemência, nem severidade, pois são virtudes morais cujo objeto é o próximo, enquanto que a inteligência combate o erro por um ato lógico que se opõe ao juízo falso.

A misericórdia sendo, conforme a Suma Teológica, IIa IIae, q. 30, a. 1, ‘tristeza pela miséria alheia (...) que nos move a vir em socorro’, esse método não pode se aplicar ao erro, ato lógico em que não pode haver miséria, mas sim ao errante que é socorrido ao lhe apresentarem a verdade e lhe refutarem o erro. O Papa, além disso, diminui pela metade esse socorro, já que reduz todo o serviço da Igreja ao errante somente à apresentação da verdade: essa apresentação bastaria por si só, sem confrontar a verdade ao erro, para infligir uma derrota ao erro. A operação lógica de refutação seria omitida para dar lugar a um simples ensinamento direto do verdadeiro, fiando-se na eficácia disso para produzir o assentimento do homem e destruir o erro.

Essa doutrina do Papa constitui uma variação importante na Igreja Católica e repousa sobre uma visão singular do estado intelectual dos modernos. Os modernos estão tão profundamente penetrados de opiniões falaciosas e de máximas funestas ‘in re morali’ (em questões de moral), que, paradoxalmente diz o Papa, ‘hoje os homens parecem começar a condená-las por si mesmos’ (isto é, sem refutação nem condenação); ‘em particular os costumes que desprezam a Deus e a sua lei’. Que um erro puramente teórico possa corrigir-se a partir de si mesmo, já que nasce de causas puramente lógicas, é até admissível; mas que um erro prático sobre as ações da vida, que depende, ao contrário, de um juízo em que age a parte livre do intelecto, corrija-se sozinho, eis aí uma tese difícil de entender.

Essa interpretação otimista do erro que, doravante, se reconheceria e se corrigiria por si mesmo, já difícil de admitir no sentido doutrinal, é brutalmente desmentida pelos fatos. No momento em que o Papa falava, esses fatos se desdobravam, e, nos dez anos que seguiram, eles amadureceram. Os homens não cederam e saíram desses erros; mas, ao contrário, confirmaram-nos e lhes deram força de lei. A adoção pública e universal desses erros se tornou patente na adoção do divórcio e do aborto. Os costumes dos povos cristãos foram inteiramente transformados, suas legislações temporais, até recentemente reguladas essencialmente pelo direito canônico, foram mudadas em legislações puramente profanas, sem sombra de sacralidade. Eis aqui um ponto em que a clarividência do Papa foi irrefutavelmente pega no contrapé”[43].

E ainda:

“Antigamente, os hereges, (...) eram queimados. Nós apenas dizemos que é preciso destitui-los, calá-los. Se um desses errantes é professor universitário em ciências teológicas, demitam-no!

O exemplo mais significativo dessa grave omissão, é o caso de Hans Küng. Ele deveria ter sido privado de sua cátedra. Ao contrário, as autoridades julgadoras de seu caso se limitaram a dizer que não era um teólogo católico: todavia, ele continua a receber a qualificação de teólogo católico, continua a fazer propaganda, a ensinar, a defender, a publicar, a expor nas livrarias católicas seus juízos errôneos. Mas o erro é mais contagioso do que a verdade, é mais atraente (...)

Antigamente, havia qualificações: de herege, de suspeito de heresia, de veementemente suspeito, de autor de sentenças ofensivas aos ouvidos pios e outras fórmulas desse tipo; mas uma qualificação em que se deixa um teólogo em sua cátedra de Teologia, retirando, entretanto, seu nome de teólogo, é uma atitude inusitada e mesmo incongruente. Seria como se se dissesse: este médico que envenena os doentes, nós o deixamos ainda exercer a Medicina, mas todos têm de saber que ele não é mais um médico. Ao contrário, é a obra que deveríamos proibir, não, o léxico.

Esquece-se com freqüência que a severidade é sempre uma obra de amor. A Sagrada Escritura é, aqui também, esclarecedora: ‘Eu aos que amo repreendo e castigo’ (Ap 3, 19). E a severidade é tanto uma obra de amor que devemos, para ser severos, forçar a nossa natureza, assim como a devemos forçar quando queremos exercer a virtude do amor. Porque se trata disto: exercer um amor virtuoso e sobrenatural, não um amor humano, não um simples amor natural. A violência que devemos nos fazer é exercida sobre nosso espírito para executar atos justos na severidade e justos na misericórdia, duas coisas a que nosso espírito não se inclina por si mesma”[44].

Em conclusão, destaquemos que, no “novo” catecismo de 1992, a terceira obra de misericórdia espiritual – “exortar os pecadores” – sequer é mencionada: “2447: As obras de misericórdia são as ações caritativas pelas quais socorremos nosso próximo em suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, reconfortar são obras de misericórdia espiritual, como perdoar e suportar com paciência”.

 

5. Quinto sofisma: Agravação do quarto sofisma, a encíclica Pacem in terris

Não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra, embora se trate de erro ou inadequado conhecimento em matéria religiosa ou moral. A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano, e, portanto, sempre merece estima. Ademais, nunca se extingue na pessoa humana a capacidade natural de abandonar o erro e abrir-se ao conhecimento da verdade. Nem lhe faltam nunca, nesse intuito, os auxílios da divina Providência. Quem, num certo momento de sua vida, se encontre privado da luz da fé ou tenha aderido a opiniões errôneas, pode, depois de iluminado pela divina luz, abraçar a verdade. Os encontros em vários setores de ordem temporal entre católicos e pessoas que não têm fé em Cristo ou têm-na de modo errôneo, podem ser, para estes, ocasião ou estímulo para chegarem à verdade.

Além disso, cumpre não identificar falsas ideias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas ideias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é suscetível de alterações profundas. De resto, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos dignos de aprovação?

Pode, por conseguinte, acontecer que encontros de ordem prática, considerados até agora inúteis para ambos os lados, sejam hoje ou possam vir a ser amanhã, verdadeiramente frutuosos” (Encíclica Pacem in Terris, 11 de abril de 1963).

 

Aqui ainda nos achamos diante de três sofismas sobre:

a) o erro e o errante;

b) a relação entre as falsas doutrinas filosóficas e os movimentos históricos

c) a colaboração dos católicos com esses movimentos

 

1) "Não confundir o erro com a pessoa que erra".

Já lemos o que responde Romano Amerio. Parece útil, todavia, aprofundar a visão desse sofisma.

“O verdadeiro e o falso se encontram na inteligência”[45]. São atos imanentes da inteligência e não existem fora da inteligência. O erro é, portanto, um ato da inteligência que permanece no errante, faz parte do próprio errante e apenas se distingue deste por uma distinção de razão. Não é uma realidade diferente do espírito do errante, o ato de formular de modo equivocado juízos afirmativos ou negativos[46].

“Sendo uma privação de retidão de julgamento, o erro é um mal ou um não-ser. Mas é o mal do errante: privação de ser e daquelas noções que são requeridas pela reta formulação do julgamento. Portanto, se é verdade que não se deve confundir o erro com o errante, não se pode esquecer que o erro é o mal do errante, no qual causa uma diminuição de perfeição e de dignidade [operativa]. O errante não pode ser avaliado independentemente de seu erro, como se não fosse diferente de um não-errante: não possui a mesma dignidade [operativa] que aquele que adere à verdade.

Esse discurso, contudo, vale para o errante que professa o erro, cujo espírito adere ao erro. É por isso que se deveria fazer outras distinções:

– entre o erro teórico propriamente dito, isto é, o erro no pensamento, e o erro prático, que é um erro na ação, mas sem adesão da inteligência;

– entre o errante que professa a doutrina e o errante que a pratica sem a professar (é o caso mais freqüente), ou que sofre a enganção ou a tirania do erro sistemático;

– entre o erro (ato da inteligência) e o pecado (ato da vontade): o pecado pertence à ordem moral do bem e do mal; é um ato transitório do homem, uma coisa que não permanece nele: “É uma palavra, uma obra ou um desejo contra a lei eterna” (Santo Agostinho) e constitui, portanto, uma realidade distinta do pecador;

– entre o pecado e o pecador.

É por isso que, se curamos o errante, tirando o erro de seu espírito para lhe restituir a retidão de pensamento, curamos o pecador tratando sua vontade para a ordenar ao bem real; mas devemos, além disso, destruir o seu pecado: para isso, além da penitência imposta ao pecador para tratar sua vontade, é necessária também a reparação do pecado para destruir a desordem causada.

Infelizmente, quando se fala do erro e do errante, faz-se com freqüência uma confusão com o pecado e o pecador, e isso confunde o discurso e o raciocínio.

 

2) "Não identificar as falsas doutrinas filosóficas com os movimentos históricos".

Primeiramente, notemos que, de um modo algo estranho, essa distinção foi feita somente para o comunismo. Parece que isso não vale para outras ideologias que, segundo a opinião da “inteligentzia dominante, não sejam de esquerda e, por conseguinte, não mereçam nem compreensão nem consideração.

Por isso também nós só falaremos do comunismo.

Parece lugar-comum dizer o que todos sabem, ou seja, que o comunismo é a práxis do marxismo: um não existe sem o outro e, isolados, perdem qualquer significado. Mas examinemos a coisa mais profundamente:

“A tese do Papa João se apresenta como uma dedução da máxima, sempre ensinada pela Igreja, que se deve distinguir entre o pecado e o pecador, entre o aspecto puramente lógico do assentimento e o aspecto de que se reveste esse assentimento como ato da pessoa. O defeito que se acha presente numa disposição do espírito não remove da pessoa sua destinação à verdade nem a dignidade axiológica que disso deriva. Essa dignidade provém da origem e da finalidade supraterrena do homem, que nenhum acontecimento terrestre pode apagar, e que é propriamente irremissível porque subsiste até nos réprobos, para sua vergonha.

Ora, dessa máxima, que distingue o erro do errante, a encíclica passa à distinção entre as doutrinas e os movimentos que se inspiram nelas. Retrata as doutrinas como imutáveis e fechadas em si mesmas, enquanto que os movimentos no curso da história estariam em perpétuo devir e sempre abertos a novidades que os transformassem até tomarem o sentido contrário. Entretanto, a distinção legítima entre o movimento, ou massa de homens com mesma opinião, e a ideia que o inspira não pode avançar a ponto de atribuir fixidez à doutrina e mobilidade ao movimento. Tanto quanto o movimento inicial — que deve sua origem à doutrina — só pode ser concebido como uma massa de pessoas unidas pela aceitação daquela doutrina, assim também não se pode pensar que a doutrina permaneça fixa sem que haja pessoas que a compartilhem, nem se pode crer que a massa, se submetendo ao devir imposto pela história, permaneça desligada da doutrina. A massa está em movimento porque repensa a doutrina, e a doutrina participa do fluxo da história justamente enquanto é a opinião de homens em movimento. Além disso, a história da filosofia não é a história dos sistemas em sua evolução e devir? Como se pode dizer que os sistemas são fixos e que só os homens que os pensam estão em movimento?

Parece, portanto, que a encíclica negligencia o liame dialético inevitável entre o que a massa pensa (claro que menos nitidamente do que os teorizadores) e aquilo que ela faz sem procurar ligação com a ideologia — esta apenas teria o papel de colocá-la o movimento. É não levar em consideração o fato de que a prática é precedida pelo pensamento. Parece que aqui as ideologias são geradas pelos movimentos ao invés de os gerarem. Sem dúvida, as ideologias se ressentem das flutuações próprias dos homens no curso da história, mas a questão que se põe continua a ser a de saber se os movimentos que se transformam continuam ou não a se inspirar no princípio que influenciou seu movimento”[47].

3) "É possível aderir a esses movimentos e colaborar com eles?"

Escreve Amerio:

“Depois de ter separado a doutrina do movimento, de modo a permitir aos católicos aderir ao movimento com reservas à doutrina, a encíclica enuncia ainda outro critério para permitir aos católicos cooperar com as forças políticas heterogêneas: ‘quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos dignos de aprovação?’ A tese de João XXIII responde ao sentimento antigo e geral da Igreja já expresso por São Paulo: ‘Examinai tudo [dokimàzete], e abraçai o que for bom’ (1Ts 5, 21). Mas, sobretudo, naquela palavra do Apóstolo, não se tratava de experimentar tudo, participando do movimento na prática, mas, sim, de examinar tudo para discernir o que poderia se encontrar de positivo no movimento e servir-se dele na prática.

Todavia, o acordo entre pensamento e ação, possível quando os homens aplicam sua vontade a objetivos inferiores e contigentes, torna-se impossível quando aplicam sua vontade a objetivos últimos supremos incompatíveis entre si. Ora, para o catolicismo, toda a vida política está subordinada a um fim último sobrenatural, enquanto, para o comunismo, ela está totalmente ordenada ao mundo e repudia qualquer fim não terrestre”.

 

In contrario:

Há inumeráveis argumentos de autoridade contra a tese de João XXIII exposta em Pacem in terris. Citaremos aqui os mais importantes.

 

* Pio IX:

“(...) a execrável doutrina do comunismo: totalmente contrária ao próprio direito natural, não poderia se estabelecer sem subverter inteiramente todos os direitos, os interesses, a propriedade, a própria sociedade” (Encíclica Qui pluribus, 9 de novembro de 1846). Nota: o Manifesto comunista de Marx e Engels só será publicado dois anos mais tarde, em 1848!

E ainda:

“o erro funestíssimo do comunismo e do socialismo” (Encíclica Quanta Cura, 8 de dezembro de 1864).

 

* Leão XIII:

“(...) praga destruidora que, atacando a coluna da sociedade humana, a levaria à ruína” (Encíclica Quod apostolici muneris, 1878).

 

* Pio XI:

“(...) ali onde tomou o poder [o comunismo], mostra-se selvagem e desumano a um grau  prodigioso, difícil de acreditar, como testemunham os apavorantes massacres e as ruínas que acumulou em imensos países da Europa oriental e da Ásia. A que ponto é adversário e inimigo declarado da Santa Igreja e do próprio Deus, a experiência, infelizmente, o prova soberanamente e todos o sabem abundantemente” (Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931).

E ainda:

“Vigiai, veneráveis irmãos, para que os fiéis não se deixem enganar. O comunismo é intrinsecamente perverso, e não se pode admitir em nenhum terreno a colaboração com ele da parte de quem quer que queira salvar a civilização cristã” (Encíclica Divini Redemptoris, 19 de março de 1937).

 

* Pio XII:

"Decreto do Santo Ofício sobre o comunismo (28 junho - 1 julho de 1949, AAS 41, 1949, pág. 334):

Perguntaram a esta Suprema Congregação o seguinte:

  1. É permitido se filiar como membro a um partido comunista ou favorecê-lo de algum modo?
  2. É permitido publicar, difundir ou ler revistas, jornais ou panfletos que defendam a doutrina ou a ação dos comunistas, ou escrever nesses meios?
  3. Pode-se admitir aos sacramentos fiéis que, voluntária e conscientemente, incorrem nos atos das perguntas anteriores?
  4. Os fiéis que professam a doutrina materialista e anticristã dos comunistas e, sobretudo, os que a defendem ou a propagam incorrem de pleno direito, como apóstatas da fé católica, na excomunhão especialmente reservada à Santa Sé?

[Respostas, confirmadas pelo Papa em 30 junho]:

 

1. Negativamente, pois o comunismo é materialista e anticristão, mesmo que os chefes comunistas (os dirigentes) declarem, às vezes, por palavras que não atacam a religião, mostram-se, de fato, seja por sua doutrina, seja por seus atos, hostis a Deus, à verdadeira religião e à Igreja de Cristo.

2. Negativamente, pois todos esses escritos estão condenados de pleno direito (cf. Can 1399 do Código de Direito Canônico de 1917).

3. Negativamente, conforme aos princípios ordinários sobre a recusa dos sacramentos aos fiéis que não estão nas disposições requeridas.

4. Afirmativamente.

 

* O próprio João XXIII !!!

Resposta do Santo Ofício de 25 de março de 1959 (04 de abril de 1959), AAS 51, 1959, pp. 271s: eleição de deputados que apoiam o comunismo.

Questão: É lícito aos cidadãos católicos, na eleição dos representantes do povo, votar em partidos ou candidatos que, mesmo que não professem os princípios contrários à doutrina católica e até se atribuam o título de cristãos, de fato, contudo, se associam aos comunistas e os favorecem por seu modo de agir?

Resposta (confirmada pelo papa em 02/04/1959): Não, conforme ao decreto do Santo Ofício de 01/07/1949, nº1”[48].

 

A encíclica Pacem in terris — chamada por alguns de “Falcem in terris”, ou “Anti-Syllabus” — foi além do silêncio diplomático e ecumênico de Gaudet Mater Ecclesia ou de Vaticano II: ela chega a operar uma traição doutrinal muito mais grave do que uma atitude prática. Constitui, talvez, a herança mais pesada deixada por João XXIII à Igreja.

A. Riccardi relata algumas reflexões que revelam que os próprios comunistas estavam conscientes daquela virada:

“Um relatório interno sobre as questões religiosas, para a comissão ideológica junto ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em novembro de 1963, estudou as renovações nas igrejas durante os últimos anos. Não se fala apenas da igreja russa, cuja colaboração com o Estado é considerada como uma modernização perigosa para a luta antirreligiosa. Discutiu-se também o catolicismo. Lembrou-se que, por volta de 1960, o comitê central do partido controlava o desenrolar das relações com o Vaticano. Na Igreja Católica – diz o documento interno do partido – apesar da hostilidade de alguns “setores reacionários”, houve importantes mudanças: ‘hoje, os homens da Igreja se ocupam com particular zelo da adaptação da religião. É modernizada de uma ponta a outra (…)’ Uma das mudanças mais significativas aconteceu em relação ao comunismo. Os dirigentes da Igreja Católica, em particular o falecido Papa João XXIII, foram obrigados a considerar de uma maneira mais realista a situação criada no mundo, a defender a paz, a abandonar os ataques diretos contra o comunismo e a adotar cada vez mais a tática consistente de o “vencer” utilizando o método de “fazer mudar de ideia” (Relatório de L. Iliitchef na reunião da comissão ideológica junto ao comitê central do PCUS, em 25/11/1963, publicada em Struve, Les chrétiens en URSS, cit. pp. 333-364)[49].

 

6. Sexto sofisma: a unidade e a paz no amor (ver o quarto sofisma)

Essa unidade e paz seriam o objetivo do aggiornamento promovido pelo Concílio. Mas, como observamos no quarto sofisma, e como Roncalli escreveu em 1927, é uma unidade que faz abstração da fé: “Como os tempos mudaram! Mas é requerido à caridade dos católicos acelerar a hora do retorno dos irmãos separados à unidade do redil.  Compreendeis? À caridade, muito mais do que às discussões científicas”[50] e, em 25 de maio de 1935: “a unidade da Igreja deve ser reconstruída plenamente (...) rezemos, implorando ao Céu e à terra o retorno da unidade da Igreja”[51].

Na alocução inaugural do Concílio, o Papa Roncalli falou da ajuda da doutrina revelada inteira (“integrae revelatae praesidio aucti”), mas isso não é o mesmo que a necessidade da fé. Além disso, falou também de “frutos salutares” da oração de Cristo para a unidade “entre os que estão fora do seio” da Igreja porque “essa unidade que Jesus Cristo implorou para Sua Igreja, vê-se que brilha de tripla luz celeste e beneficente”.

De fato, “o encontro da Igreja Católica e do mundo sobre o terreno concreto dos problemas e das necessidades deste último apenas deve ser um meio de estabelecer o diálogo a fim de assegurar essa fundamental ‘unidade da família humana’ que, segundo o papa, é ‘o grande mistério invocado por Cristo em ardente oração na iminência de Seu Sacrifício”. E, pela primeira vez, João XXIII fez alusão a esses “três raios de luz” da unidade ou do ecumenismo que deveriam emergir do Concílio: unidade dos católicos — unidade com os cristãos separados — e unidade até com os povos não-cristãos”[52].

Agora é a hora de relermos aquela carta extraordinária escrita no longínquo ano de 1926 por um bispo “católico” a um jovem cismático oriental:

 

“Sr. Christo Morcefki – Sofia, Bulgária, 27 de julho de 1926

“Caro amigo,

A sua carta do último dia 24 me revela seus bons sentimentos e seus desejos de colocar a sua vida a serviço do Senhor. Estou feliz por isso. Todavia, está mal informado sobre os objetivos da minha visita à Bulgária. O Santo Padre me enviou aqui para cooperar com a restauração da pobre Igreja Católica de rito oriental deste país, constituída sobretudo de pobres refugiados da Trácia e da Macedônia, e para ajudar, em geral, os católicos de rito oriental e de rito latino na Bulgária. Não para outra coisa.

Aconteceu-me uma vez de recomendar para um instituto de caridade de Turim um jovem órfão, aluno do Seminário de Sofia. Mas nunca me interessei por outra coisa. Há, na verdade, muitos jovens [claro que o interlocutor é um jovem, N.d.R], especialmente alunos dos seminários ortodoxos na Bulgária, na Romênia, na Iugoslávia, na Rússia, que pedem para serem acolhidos pelo Santo Padre nos Seminários de Roma. Mas, até agora, nenhuma decisão foi tomada e creio que não se tomará nenhuma decisão sem concertação anterior com o Santo Sínodo das Igrejas ortodoxas nos diversos países e com os respectivos governos.

Por conseguinte, meu caro amigo, não me encontro em condições de corresponder aos seus desejos. Mas, já que você me dá a oportunidade, permita-me convidá-lo, como sempre fiz com todos os jovens ortodoxos que tive o prazer de encontrar na Bulgária, a aproveitar os estudos e a educação que você recebe no Seminário de Sofia. Os católicos e os ortodoxos não são inimigos, mas irmãos. Temos a mesma fé; participamos nos mesmos sacramentos, sobretudo na mesma Eucaristia. O que nos separa, são alguns mal entendidos sobre a constituição divina da Igreja de Cristo. Os que foram a causa desses mal entendidos estão mortos há muitos séculos. Deixemos as antigas querelas e, cada um em seu campo, trabalhemos a tornar bons nossos irmãos, oferecendo-lhes nossos bons exemplos. Você aprenderá no Seminário muitas coisas, sobretudo o amor de Jesus, o espírito de apostolado e de sacrifício. Mais tarde, mesmo partindo por caminhos diferentes, nós nos encontraremos na União das Igrejas para todas juntas formarmos a verdadeira e única Igreja de Nosso Senhor  Jesus Cristo.

Eis o que lhe posso dizer, o que disse a vários outros bons jovens búlgaros. Lamento por não poder somar outra coisa, conforme os seus desejos. Permaneçamos unidos pela oração no Senhor. Desejo-lhe de todo coração todo o bem e toda a alegria.

Atenciosamente,

Angelo Giuseppe Roncalli – visitador apostólico[53]”.

 

In contrario:

* Pio IX, no Syllabus, condenou as seguintes teses:

“XV – é livre a cada homem abraçar e professar a religião que considerar verdadeira a partir da luz de sua própria razão.

XVI – Os homens podem encontrar o caminho da salvação eterna e obtê-la no culto de qualquer religião.

XVII – Ao menos deve-se bem esperar da salvação eterna de todos aqueles que não vivem no seio da verdadeira Igreja de Cristo.

XVIII – O protestantismo não é outra coisa que uma forma diferente da mesma religião cristã verdadeira; forma em que se pode ser agradável a Deus tão bem quanto na Igreja Católica.

XXXVIII – Muitos atos arbitrários da parte dos Romanos Pontífices levaram à divisão da Igreja em oriental e ocidental.”

 

* Pio XI:

“Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos. (…)

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dessemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor.

Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual. (...)

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham pela união das igrejas cristãs.

Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo: ‘Para que todos sejam um’... ‘Haverá um só rebanho e um só Pastor’ (Jo 27,21; 10,16). Fazem-no, todavia, de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de Cristo ainda carente de seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igreja ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos, que, no máximo, a Igreja foi única e una, da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.

Assim, dizem, é necessário colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedades de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conheçam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um pacto, existiria já a condição para que os progressos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso. (...) Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito?

Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumava inculcar à memória dos seus o mandamento novo: ‘Amai-vos uns aos outros’, vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: ‘Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação’ (2 Jo 10).

Sendo assim, como a caridade se apoia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, é então necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade da fé como vínculo principal. (...)

Assim, de que vale excogitar no espírito uma Federação cristã, onde ao ingressar ou quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros? (…)

Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que é ‘raiz e matriz da Igreja Católica’ (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a esperança de que ‘a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade’ (1 Tim 3, 15) renuncie à integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu magistério e regime” (Encíclica Mortalium Animos, 6 de janeiro de 1928).

 

* Pio XII:

“Aquele que, sabendo que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, recusa, todavia, submeter-se a ela, não se salva. (...)

Não se deve pensar que o simples desejo de entrar na Igreja seja suficiente para que o homem seja salvo. É, com efeito, requerido que o desejo, pelo qual alguém é ordenado à Igreja, seja modelado pela caridade perfeita; e o desejo implícito não pode ter efeito se o homem não tiver uma fé sobrenatural” (Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston, 8 de agosto de 1949).

 

Resposta ao sexto sofisma: “a unidade e a paz no amor

Santo Tomas escreveu:

“Pode haver uma concórdia entre os ímpios no mal. Ora, ‘não há paz para os ímpios’, como diz Isaías (Is 48, 22). Logo, a paz não se identifica com a concórdia” (S. T. IIa IIae, q.29, a.1).

“A verdadeira paz existe somente nos bons e no bem. A paz dos maus é somente aparente e jamais real” (IIa IIae, q.29, a. 2, ad. 3);

“(…) sem a graça santificante, não pode haver verdadeira paz; mas somente paz aparente” (IIa IIae, q.29, a. 3, ad.1).

Então, se deixamos a fé, a graça ou caridade de lado, podemos pensar em estabelecer entre os homens de boa vontade uma certa “concórdia” e, se todos os homens fossem de boa vontade, poderíamos estabelecer uma “concórdia” universal.

Eis aí o sonho dos humanitaristas, dos espiritualistas, dos pacifistas, dos filântropos que não tem “para com o Cristo uma hostilidade de princípio” e lhe reconhecem “a importância e a dignidade de Messias”. Dizem “que Cristo, enquanto moralista, dividiu os homens segundo o bem e o mal”, enquanto eles os unirão “com os benefícios que são igualmente necessários aos bons e aos maus. (...) Cristo trouxe a espada, eu trarei a paz”[54]. Entretanto, “não se trata de verdadeira paz, mas de uma capitulação diante dos erros, falsidades, falsos princípios mundanos: e uma verdadeira paz não pode residir nisso. A paz, a verdadeira, é uma defesa da Verdade, um triunfo da Verdade. A tranqüilidade na ordem, não esta desordem generalizada em que qualquer conflito se torna impossível, já que as próprias noções de bem e de mal, de verdade e de erro, não são mais distinguíveis”[55].

Na realidade, para os humanitaristas, para os pacifistas e para os filântropos, “a filantropia tomou o posto da caridade, a satisfação substituiu a esperança e a fé foi deslocada pela cultura”[56]. [1] 

Todos sabem que a verdadeira paz não é fruto apenas de forças naturais. A intervenção da graça divina é necessária porque a paz, com alegria e caridade, é fruto do Espírito Santo, que não age se não houver fé em Jesus Cristo.

Romano Amerio escreveu:

A doutrina tradicional do ecumenismo está estabelecida na Instrução sobre o movimento ecumênico (Instructio de motione oecumenica), promulgada pelo Santo Ofício em 20 de dezembro de 1949 (AAS 31/01/1950), que retoma o ensinamento de Pio XI da encíclica Mortalium Animos. Estatui:

a) “A Igreja Católica possui a plenitude do Cristo” e não tem que se aperfeiçoar com aportes de outras confissões;

b) Não se deve procurar a unidade pelo método de uma assimilação progressiva das diversas profissões de fé, nem por uma adaptação do dogma católico a qualquer outro;

c) A única unidade verdadeira das Igrejas só pode se realizar pelo retorno (“per reditum”) dos irmãos separados à verdadeira Igreja de Deus;

d) Os separados que se reúnem à Igreja Católica nada perdem de substancial daquilo que pertence à sua profissão particular, ao contrário, a reencontram idêntica, mas numa dimensão completa e perfeita (“completum atque absolutum”).

A doutrina repisada da Instrução comporta, portanto, que a Igreja de Roma é o fundamento e o centro da unidade cristã; que a via histórica da Igreja, que é a pessoa coletiva de Cristo, não pode se realizar em torno de vários centros (as diversas confissões cristãs), que teriam um centro mais profundo situado fora de cada uma delas; e, enfim, que os separados devem se dirigir ao centro imóvel que é a Igreja do serviço de Pedro. A união ecumênica acha, então, sua razão de ser e sua finalidade em algo que já existe na história, que não é um futuro, e que os separados devem retomar.

Todas as precauções tomadas pela Igreja Romana em matéria ecumênica e, sobretudo, sua abstenção, desde sempre, do Conselho Mundial de Igrejas, têm por motivo essa noção de unidade dos cristãos e a exclusão do pluralismo paritário das confissões separadas. A posição doutrinal, enfim, é uma reafirmação da transcendência do cristianismo, cujo princípio, que é Cristo, é um princípio teândrico que somente tem por Vigário na história o ministério de Pedro. (...) Ora, apesar das declarações do Papa, o decreto ‘Unitatis Redintegratio’ rejeitou o “retorno” dos separados e professou a tese da conversão de todos os cristãos.

A unidade não deve se realizar pelo retorno dos separados à Igreja Católica, mas pela conversão de todas as Igrejas ao Cristo total, que não existe em nenhuma delas, mas que se reintegra pela convergência de todas em um único todo. Lá onde os esquemas preparatórios definiam que a Igreja de Cristo ‘é a Igreja Católica’, o Concílio concede somente que a ‘Igreja’ de Cristo ‘subsiste na’ Igreja Católica, adotando a teoria de que até dentro das outras Igrejas cristãs subsiste a Igreja de Cristo e todas devem tomar consciência dessa comum subsistência em Cristo.

Como escreveu em 14 de outubro, em L’Osservatore Romano, o titular de uma cátedra da Universidade Gregoriana, as Igrejas separadas são reconhecidas pelo Concílio como ‘instrumentos de que se serve o Espírito Santo para operar a salvação de seus aderentes’. Nessa visão paritária de todas as Igrejas, o catolicismo não possui mais nenhuma nota de preeminência nem de exclusividade.

Desde o período dos trabalhos preparatórios do Concílio, Pe. Maurice Villain propunha, em sua obra Introduction à l’oecuménisme (Paris, 1959), acabar com a antinomia entre a Igreja Católica e as confissões protestantes, distinguindo entre os dogmas centrais e os dogmas periféricos, e mais ainda, distinguindo as verdades de fé das fórmulas pelas quais o pensamento as objetiva de modo contingente e as exprime, e que não são imutáveis. Já que as fórmulas não são o efeito de uma faculdade de ‘manifestar’ a verdade, mas, sim, de uma faculdade de ‘categorizar’ um dado sempre incognoscível, a unidade deve se realizar sobre algo de mais profundo do que a verdade, e que é o Pe. Villain chama de ‘o Cristo orante’. Mas, além do que já dissemos, é preciso destacar que a oração de todos os que reclamam para si a Cristo é seguramente um meio necessário para a unidade, porém, rezar juntos pela unidade não constitui a unidade de sacramentos e de governo, que é de fé”[57].

A unidade é o privilégio de Deus e de Cristo. A unidade da Igreja tem sua fonte única em Jesus Cristo de quem é o Corpo Místico. Goza da unidade do próprio Jesus Cristo; não pode nem a perder, nem a aumentar, mas apenas comunicar seu benefício àqueles que creem em Cristo.

Fora dessa unidade de fé, somente há união ou concórdia, mas nenhuma paz, até entre os “homens de boa vontade”, o que não é sinônimo de “homens em estado de graça”.

 

7. Conclusão:

“Dizem-nos que o mal sempre habitou a terra: e isso é verdade, desde a queda. Mas eis a diferença capital entre as doenças comuns do homem e a sua atual agonia.

No passado, o bem se chamava bem e o mal se chamava mal. Essa distinção era um benefício da luz natural, prolongada e acrescida, salvaguardada e aumentada por uma lembrança de Pentecostes. Hoje, sobre o mapa do mundo moral, as fronteiras tremem. O império do bem e o império do mal não estão claramente desenhados; a confusão apagou os limites sagrados que protegiam a consciência contra a perversidade do juízo” (Ernest Hello, Le siècle, ch.1, ‘L’Actualité’, Paris, 1896).

 

De fato, em vez de remover as trevas dos corações, o Concílio Vaticano II julgou melhor ir ao encontro das trevas para delas colher algumas verdades que a Igreja possui desde sua fundação. Os frutos estão diante dos nossos olhos: depois do Concílio desejado, orientado e guiado por João XXIII, o mundo e a Igreja vivem em crescente confusão: almas desorientadas, famílias desestruturadas, sociedades entregues à tripla tirania do prazer, do dinheiro e dos autoproclamados “direitos humanos”. Na própria Igreja, “há uma grande perturbação e é a fé que está em questão” — gemia o próprio Paulo VI, em 8 de setembro de 1977 — “O que me machuca quando observo o mundo católico é que, no interior do catolicismo, um pensamento de tipo não-católico parece, às vezes, ter o destaque, e pode ser que esse pensamento não católico se torne, amanhã, o mais forte. Mas nunca representará o pensamento da Igreja. (...) O que falta ao catolicismo neste momento, é coerência”[58].

Com efeito, João XXIII fez da incoerência a nota característica de seu breve pontificado e a imprimiu tão profundamente que a incoerência e a confusão foram sempre de mal a pior. E, todavia, não é possível, ainda hoje, emitir uma reserva qualquer sobre seu governo, sobre sua pessoa, sobre sua “bondade”!!!

A “vox populi” chamou João XXIII de “papa bom”. Certamente, não queria dizer que os outros papas tenham sido maus, mas que seu sorriso e seu modo simples de falar atraíam os corações. No entanto, os sentimentos do povo nem sempre são a voz de Deus, sobretudo quando são alimentados pela propaganda da mídia (veja Benni Lay, Segreti del Vaticano). Por outro lado, o que dá motivo à reflexão, é o louvor unânime do mundo ao Vigário d’Aquele que o mundo odeia: cismáticos, protestantes, judeus, muçulmanos, liberais, maçons, modernistas, socialistas, comunistas, todos exaltaram a “bondade” do Papa João. Sabemos ainda como Pio IX foi odiado pelo mundo, pelas ideologias revolucionárias, maçônicas, liberais ou socialistas. “Joguem no rio!” foi o grito do mundo revolucionário quando os restos mortais desse papa eram transladados a São Lourenço, na noite de 12 para 13 de julho de 1881, três anos depois de sua morte!

Falou-se da devoção de João XXIII por Pio IX. Sem desejar colocar em dúvida a sinceridade dessa devoção, pode-se perguntar se João XXIII, além de sua devoção a Pio IX, papa da Imaculada e de Vaticano I, tinha também uma devoção a Pio IX, papa do Syllabus, de que ele nunca falou.

Pode-se pensar, com justiça, que suas “aberturas” teriam sido condenadas por Pio IX:

– “abertura” ao ar “fresco” do tempo, isto é, “abertura” ao liberalismo e ao modernismo, com a promoção de teólogos ou prelados postos de lado até então porque eram filoliberais ou filomodernistas;

– “abertura” aos acatólicos, hereges, cismáticos e até não-cristãos;

– “abertura” aos maçons;

– “abertura” à esquerda, ao comunismo, a todos os inimigos da Igreja, todos supostos “homens de boa vontade”!

Isso pode bastar para explicar por que, contrariamente a Pio IX, João XXIII não foi “odiado pelos contemporâneos”.

 

Um juízo terrível

O Pe. Berto pronunciou sobre João XXIII este terrível juízo: “É um cético”[59].

Sim, era um cético, mas um cético por temperamento. Não era, por conseguinte, um cético imparcial. Pendia ativamente para os anti-dogmáticos, porque tinha horror da luta, da controvérsia e não suportava não ser amado ou ser um motivo de desprazer para alguém por causa da verdade.

Cético por temperamento, abria assim seu coração a todos os anti-dogmáticos: sillonistas, modernistas, liberais... E, se manifestava um respeito protocolar para com os grandes defensores da Igreja no passado, como o Cardeal Pie ou Pio IX, seu coração estava longe... junto aos “errantes”, vítimas presumidas da intransigência e do rigor impiedoso da Igreja, para os consolar, defendê-los, até mesmo os reabilitar quando era possível.

João XXIII não duvidava, talvez, da Igreja, nem da necessidade da fé, mas parece ter duvidado de que a Igreja fosse a única fonte de paz para os homens, com sua doutrina, seus sacramentos e a graça do Espírito Santo dada àqueles que possuem a fé em Cristo. É por isso que a Igreja se tornou, para ele, somente uma “ajuda” para estabelecer a paz, uma “parceira” na obra de restabelecimento da unidade e da paz, sobre a terra, entre todos os homens.

Enfim, devemos observar que, dando sempre prioridade ao amor ao errante sobre o amor à verdade e à condenação do erro, os sofismas de João XXIII enfraqueceram e quase arruinaram o pensamento teológico na Igreja, e o seu ensinamento quase arruinou o zelo apostólico do clero e a fé do povo católico.

 

Da condenação à concórdia

Já revelamos, na introdução, a violência, dificilmente contida, da reprovação de João XXIII aos “profetas da desventura”, homens por demais fiéis aos papas do passado, até do passado então recente, que não sabiam ler os “sinais dos tempos” e se adaptar ao mundo moderno.

Assim, se por um lado Gaudet Mater Ecclesia trazia em germe as principais doutrinas que foram elaboradas e propostas nos documentos conciliares mais significativos (Gaudium et Spes, Lumen Gentium, etc.); por outro, não consegue esconder totalmente um juízo majoritariamente depreciativo sobre a Igreja “do passado”, julgada fechada demais aos acatólicos e pouco misericordiosa.

Pode-se notar nesse particular em João XXIII uma evolução idêntica no distanciamento em relação à atitude tradicional da Igreja. O Pe. Esposito observou-a quanto à maçonaria[60], mas se pode dizê-lo também do comunismo e de todos os inimigos da Igreja: essa evolução vai da recusa à tolerância, para chegar à concórdia explícita: “A longa recusa (...) Depois, um dia, mudança, com João XXIII. Era necessário autorizar o que se havia expressamente condenado”[61].

Eis aí o desprezo pela Igreja “do passado”, julgada fechada demais em si mesma, pouco aberta aos outros e pouco misericordiosa.

 

Três danos muito graves para a Igreja e o mundo

Depois de desautorizar a atitude de seus predecessores e da Cúria romana, João XXIII, em poucas palavras, causou três danos muito graves à Igreja e à humanidade:

– desarmou a Igreja, abrindo-a a todos os seus adversários até então condenados e mantidos à distância pelos outros papas, notadamente Pio IX, São Pio X e Pio XII. Mais ainda, permitiu à venenosa corrente modernista assumir a direção do Concílio e da Igreja;

–  cortou a energia e o zelo apostólico dos católicos e da hierarquia, tanto na defesa dos Direitos de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Igreja quanto na difusão da fé e da santa caridade;

– deu um diploma de honestidade a qualquer ideologia de esquerda e deixou o mundo inteiro, além da própria Igreja, à mercê de todos os males mais perigosos em nome da paz, ou melhor, da tranqüilidade na ordem: socialismo, comunismo, maçonaria, liberalismo, revolução, falsas religiões, seitas, etc.

Graças a João XXIII, por exemplo, depois da abertura à esquerda na Itália e fora dela, e depois da queda do Muro de Berlim, toda a Europa foi dominada política e intelectualmente pela ideologia de esquerda (quem poderia, por exemplo, imaginar hoje um “crime contra a humanidade” cometido pela “esquerda”?). A ideologia da fraternidade universal, que encontrou nele um aliado e influente pregador, ajudou somente as ideologias maçônicas ou os homens que nela se inspiram para tirar de Jesus Cristo todo poder ou autoridade sobre a sociedade humana.

Perguntamo-nos se pode ser considerado “bom pastor”, “bom papa” e ser beatificado, isto é, glorificado e imitado pelos fiéis, aquele que entregou as ovelhas — até as que ainda não estão no rebanho de Cristo — ao lobo comunista ou maçônico, que, apesar de ter mudado de máscara e de métodos, é sempre o mesmo de 1846, desvendado e condenado por todos os bons pastores e, hoje, ainda mais perigoso, porque se esconde debaixo de palavras de “paz, filantropia, humanitarismo, liberdade de consciência (…)”: “o verdadeiro inimigo do Cristianismo não é quem lhe é ostensivamente opositor, mas quem o falsifica de dentro. (…) quando o comunismo fagocita a religião e fala em seu nome, é então que mostra sua nocividade suprema[62].

A beatificação de Pio IX e de João XXIII nos coloca diante de um dilema insolúvel porque dois modelos opostos de santidade nos são propostos: a santidade “clássica” na Igreja, que nasce da abertura à santidade de Deus por meio de Jesus Cristo, do Evangelho e da Santa Igreja; mas também a outra, a nova “santidade”, que nasce do “diálogo” e da “abertura” à “bondade” dos homens por meio de um Evangelho reinterpretado à luz do pensamento moderno, adaptado à “nova ordem” das coisas e que ensina a fé na “boa vontade” de todos os homens, sem exceção alguma.

Quem devemos seguir e imitar? O papa da condenação do comunismo ou o do silêncio sobre o comunismo? Silêncio mais real do que aquele injustamente imputado a Pio XII sobre o nazismo, mas sobre o qual ninguém diz nenhuma palavra, apesar dos danos estarem debaixo do nariz de todos? Em resumo: quem devemos seguir e imitar? O papa religioso ou o papa “político”?

Encontramo-nos diante de uma das tantas contradições modernistas, insuportáveis a um espírito católico para a qual vale ainda hoje a palavra de Jesus: “Seja o vosso falar: sim, sim; não não” (Mt 5, 37).

Ao beatificar João XXIII, a “igreja conciliar” beatifica seu Concílio e se autobeatifica com toda sua obra de “autodemolição”. E se pede a Pio IX, o papa da Imaculada e de Vaticano I, mas também do Syllabus e da primeira condenação do comunismo, que cubra com sua santa sombra a João XXIII, o papa da recusa de revelar o Terceiro Segredo de Fátima, o papa de Vaticano II, do anti-Syllabus e do silêncio sobre o comunismo, para abençoar sua obra e seus frutos amargos! Pio IX fica assim coagido a abençoar “post-mortem” o que combateu durante todo o período de seu longo pontificado! Absurdo!

É verdade que a “igreja conciliar”, para legitimar seus próprios erros, é obrigada a confessar os “pecados” da Igreja, mas a Igreja Católica não pode abençoar e beatificar essa filha ilegítima, que tem vergonha de Sua Santa Mãe, cuja obra está demolindo “ab imis”.

 

Quem ama a verdade, detesta o erro. Isso está tão próximo da ingenuidade quanto do paradoxo. Mas essa detestação do erro é a pedra de toque pela qual se reconhece o amor à verdade. Se você não ama a verdade, pode até a certo ponto dizer que a ama e até dar aparência disso: mas esteja certo de que nesse caso faltará em você horror pelo que é falso, e por esse sinal se reconhecerá que você não ama a verdade.

Quando um homem que amava a verdade cessa de amá-la, não começa por declarar sua defecção; começa por detestar menos o erro. É por aí que ele se trai.

As secretas complacências formam uma das partes mais ignoradas da história do mundo. Quando um homem perde o amor pela doutrina, boa ou ruim, que professava, normalmente retém o símbolo dessa doutrina: somente sente morrer em si mesmo toda aversão pelas doutrinas contrárias”[63].

 

Fonte:  La Tradizione Cattolica, 43/2000

 

Tradução: Permanência

 


[1] Card. Silvio ODDI, “Giovanni del Mito. Giovanni della Storia”, 30 Giorni, 5 mai 1988, p. 58.

[2] Ver, por exemplo, Nikita Roncalli: Controvita di un Papa de Franco BELLEGRANDI, Eiles, 1994. Ver também muitos estudos publicados por Sì Sì NO NO (janeiro de 1976, setembro de 1984, julho de 1987, fevereiro de 1997, abril de 1998, maio de 1998).

[3] [N. da P.] Na ocasião, João Paulo II era o Papa.

[4] L’Osservatore Romano, 20-21 de dezembro de 1999.

[5] Actæ Apostolicæ Sedis, 26 de novembro de 1962, pp. 786 à 795.

[6] G. ALBERIGO, “Formazione, contenuto e fortuna dell’allocuzione”, publicado em Fede, Tradizione, Profezia, Paideia Editrice, Brescia, 1984, pp.187 a 222.

[7] Carlo FALCONI, Vu et entendu au Concile, ed. du Rocher, 1964, p. 121.

[8] [N. da P.]  Os destaques em negrito são do autor deste estudo. Tradução tirada do site do Vaticano.

[9] Giovanni XXIII: Il Concilio della speranza, Ed. Messaggero, Padova, 1985, p. 176.

[10] G. ALBERIGO, op. cit., p. 197, n. 21.

[11] A. MELLORI, “Sinossi critica dell’allocuzione di apertura”, em Fede, Tradizione, Profezia, p. 255.

[12] Giulio ANDREOTTI, A ogni morte di Papa, Rizzoli, 1980, p. 61.

[13] [N. da P.] Os destaques em negrito são do autor desse estudo.

[14] Tommaso RICCI, “Quella ‘svista’ del Concilio”, dans 30 Giorni, août-septembre 1989, pp. 56-63.

[15] Isso não é exato. Paulo VI, na encíclica Ecclesiam suam (06/08/1964), afirma querer “condenar os sistemas ideológicos que negam a Deus e oprimem a Igreja; sistemas freqüentemente identificados nos regimes econômicos, sociais e políticos, e dentre estes, em particular, o comunismo ateu”. Mas essa condenação, feita fora do Concílio, apesar de contradizer Pacem in Terris, será totalmente ignorada.

[16] Jean MADIRAN, Itinéraires, n. 280, fevereiro de 1984, p. 13.

[17] Loc. cit., p. 59.

[18] G. ALBERIGO, Storia del Concilio Vaticano II, vol. I, Il Mulino, 1995, pp. 422 à 426.

[19] J. GROOTAERS, I Protagonisti del Vaticano II, San Paolo, 1994, pp. 25-26.

[20] G. ALBERIGO, op. cit., pp. 427-428.

[21] Loc. cit., p. 59.

[22] Andrea RICCARDI, Il Vaticano e Mosca, Laterza, 1993, cap. VII: “ Fine della condanna, inizio del dialogo”, p. 278.

[23] A. RICCARDI, Loc. cit., p. 281.

[24] Ver Revue Itinéraires, 70, fevereiro de 1963; 72, abril de 1963; 84, junho de 1964; 280, fevereiro de 1984; 285, julho de 1984. Ver também Sim Sim Não Não, 15 de setembro de 1984.

[25] A. RICCARDI, op. cit., p. 279, n. 35.

[26] S. SCHMIDT, Agostino Bea, il cardinale dell’unità, Roma, 1987, pág. 381. Ver também E. HALES, La Rivoluzione di Papa Giovanni, Mondatori, 1968, pág. 199: “Monsenhor Willebrands, no fim de setembro, pegou o avião para a capital soviética onde assistiu a uma missa celebrada pelo arcebispo Nikodim (chefe do departamento de relações exteriores do Patriarcado de Moscou) e deu garantias precisas de que o Concílio não daria espaço para polêmicas sobre o comunismo, que pudessem ofender os sensíveis ouvidos soviéticos”.

[27] A. RICCARDI, op. cit., pp. 281-282.

[28]ibidem, pp. 240-241.

[29] “La Petizione scomparsa”, dans 30 Giorni, set. 1989, pp. 62-63.

[30] Jornal Sim Sim Não Não, 15 de setembro de 1984.

[31] R. AMERIO, Iota unum, Paris, Nouvelles Editions Latines, 1987, p. 71.

[32] Carta de 20 de março de 1932, citada por Leone ALGISI, Giovanni XXIII, Marietti, 1959, p. 345.

[33] Homilia em Istambul, em 25/01/1935, em La Predicazione a Istanbul, de A. MELLONI, Firenze, 1953, p. 55.

[34] Homilia em Veneza, em 15 de março de 1953, em Giovanni XXIII profezia nella fedeltà, Queriniana, 1978, p. 207.

[35] Giovanni XXIII: il Concilio della speranza, Padova, 1985, p. 292.

[36] Homilia na paróquia São Basílio em Roma, em Giovanni XXIII: transizione del Papato e della Chiesa, Borla, 1988, p. 170

[37] R. P. Tito S. CENTI, O.P., Commento alla Somma Teologica, IIa IIae, q. 29, a. 1.

[38] L. CAPOVILLA, Mi chiamerò Giovanni, Grafica e arte, 1998, p. 121.

[39] Homilia de 13 de novembro de 1960, em Il Concilio della speranza, p. 141.

[40] R. AMERIO, Stat Veritas, “apostille à la glose 55”, Versailles, Courrier de Rome (BP 156), 1997, pp. 153-154.

[41] R. AMERIO, Iota unum, Paris, NEL, 1987, pp. 449.

[42] Spiegazione del Catechismo di S. Pio X, ed. Paoline, 1963, pps. 388-389.

[43] Iota unum, Paris, NEL, pp. 74-75.

[44] Stat Veritas, “glose 33”, pp. 104 à 106.

[45] S. T. Ia, q. 17, a. 3.

[46] S. T. Ia, q. 85, a. 6, ad.1.

[47] R. AMERIO, Iota unum, NEL, pp. 228-229.

[48] Sobre essa condenação, Romano Amerio diz o seguinte: “As mais importantes (condenações) são, sem dúvida alguma, o decreto do Santo Ofício de 28/06/1949 e o que o reforçou, em 25 de março de 1959, sob João XXIII. O primeiro declarou que incorrem em excomunhão os fiéis que professarem a doutrina comunista, atéia e materialista, e condena como ilícito o apoio dado ao partido. O segundo condena quem dá seu voto ao partido comunista ou aos partidos que o apoiem. A agravação da condenação está manifesta. A primeira condenação dava espaço para distinguir entre o comunista que ‘professa’ a doutrina (condenada na encíclica Divini redemptoris, de Pio XI) e o comunista que a ‘pratica’ sem a professar (é a maioria). O segundo decreto, ao contrário, fez abstração da opinião do cidadão e visou o ato, externo, se poderia dizer, de votar no partido. Culpabilizou ainda as alianças que um partido não condenado pudesse fazer com o partido condenado para administrar os negócios públicos, colocando em dúvida todo o jogo político das nações democráticas onde a pluralidade de partidos torna necessária a cooperação de forças políticas diversas” (Iota unum, p. 221).

[49] A. RICCARDI, Il Vaticano e Mosca, p. 265.

[50] Carta de 09/05/1927 a Adélaïde Coari em Giovanni XXIII: Profezia nella fedeltà, Brescia, 1978, p. 427.

[51] Homilia a Istambul em La Predicazione a Istanbul, Firenze, 1993, pp. 49-50.

[52] Carlo FALCONI, Vu et entendu au Concile, Ed. du Rocher, 1964, p. 124.

[53] Loris F. CAPOVILLA, Mi chiamerò Giovanni, Grafica e arte, 1998, “Carta de 26 de julho”, p. 306.

[54] V. SOLOVIEV, I tre dialoghi e il racconto dell’Anticristo, Marietti, 1996, pp. 168-170.

[55] Alain BESANÇON, 30 Giorni, maio de 1988, p. 59.

[56] H. BENSON, Il Padrone del Mondo, Jaca Book, 1998, p. 140.

[57] R. AMERIO, Iota unum, NEL, pp. 452 a 454.

[58] Jean GUITTON, Paul VI secret, Desclée de Brouwer, 1979, p. 168.

[59] Testemunho de Jean MADIRAN, Itinéraires, 247, novembro de 1980, “Intéressante révélation concernant Jean XXIII”, p. 154.

[60] Chiesa e Massoneria, Nardini Ed., 1989.

[61] M. D. CHENU, op. cit., p. 88.

[62] H. BENSON, loc. cit.

[63] E. HELLO, L’Homme, ch. VI: “Les alliances spirituelles”, Paris, 1878, pp. 214-215.


 
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