O fato
O teólogo da Casa Pontifícia, Georges Cottier, disse em uma entrevista a Avvenire (19 de janeiro de 2002) que por trás da rejeição da reforma litúrgica de Paulo VI «se esconde muito mais: a rejeição do Concílio, do ecumenismo, do principio da liberdade religiosa». Não seremos nós quem lhe contradirá; antes, ao contrário, confessamos que identificou muito bem os dois pontos em que se centra a resistência ao Concílio: ecumenismo e “liberdade religiosa”. Acrescentemos que estes dois pontos poderiam reduzir-se a um só, dado que o novo e falso conceito de “liberdade religiosa” se elaborou com vistas ao ecumenismo. Em todo o caso, ecumenismo e “liberdade religiosa” constituem os dois maiores pontos de ruptura com a doutrina tradicional da Igreja, e não seria difícil demonstrar que com eles se conecta qualquer outra “novidade” que vá contra o “antigo” presente nos textos do Concílio, assim como tampouco seria difícil provar que qualquer “novidade” que vá contra a doutrina da Igreja constitui uma corrupção inaceitável dela.
Desenvolvimentos e corrupções doutrinais
O Vaticano I declara:
«E, com efeito, a doutrina da fé que Deus revelou não foi proposta como um achado filosófico que deva ser aperfeiçoado pelo engenho humano, mas sim entregue à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser fielmente guardada e infalivelmente declarada» (Denzinger nº 1800). Por isso não se dá nunca nada substancial e absolutamente novo na doutrina da Igreja. O “novo” que aparece nela em virtude do desenvolvimento ou explicitação doutrinal não passa de uma novidade acidental e relativa. Assim, por exemplo, quando a Igreja fazia rezar pelos fiéis defuntos, já ensinava implicitamente o dogma do purgatório; e, quando desta prática litúrgica se inferiu o dogma do purgatório, deu-se a passagem do ensinamento implícito ao explícito, mas não houve nenhuma “novidade” em sentido próprio. Diga-se o mesmo do primado, implícito na prática do recurso a Roma, ou do dogma da Imaculada Conceição, implícito na maternidade divina de Maria, etc.
A Igreja, com efeito, exerce seu magistério de vários modos:
— de maneira explícita (mediante documentos do magistério, teólogos “aprovados”, catequese, pregação etc.);
— de maneira implícita (mediante a prática, particularmente a litúrgica, e as leis disciplinares).
— de maneira tácita, por fim, mediante os documentos ou “monumentos” da tradição , nos quais o magistério da Igreja tomou corpo, por assim dizer, no curso dos séculos: livros litúrgicos, normas disciplinares, instituições, ordens religiosas, igrejas e monumentos, devoções, práticas de caridade, obras de zelo ou de piedade, vida dos Santos canonizados, civilização, costumes, língua e arte dos povos cristãos , etc.
Pode suceder que, por diversas circunstâncias (heresias, ofuscamento de uma verdade ensinada só implícita ou tacitamente, etc.), se dê a passagem do magistério implícito ao explícito, ou se faça necessário o retorno ao ensinamento explícito de uma verdade que a Igreja se havia limitado a propor tacitamente por um tempo .
Um exemplo do retorno do magistério tácito ao explícito se deu, por exemplo, em relação à Tradição, quando a Igreja definiu a noção exata daquela no Concílio de Trento, contra os protestantes, noção que se havia limitado a propor tacitamente no período escolástico.
Assim, pois, toda a explicitação da doutrina não é mais que «uma maneira de afirmar com mais clareza, com mais precisão, com mais certeza, com mais insistência as verdades reveladas que sempre se creram, ao menos implicitamente» . Razão por que, apesar do desenvolvimento doutrinal de vinte séculos, Pio XII podia escrever que a Igreja «cumpre o mandato que tem de conservar sempre puras e íntegras as verdades reveladas, e as transmite sem contaminações, sem acréscimos, sem diminuições» . Todo o “novo” que seja irredutível ao “antigo” não é um desenvolvimento, mas uma corrupção da doutrina católica.
As “novidades” do Vaticano II
Com o Vaticano II houve uma irrupção de algo “novo” na Igreja. E isto é já de per si uma novidade sem correspondência na história do progresso doutrinal, sempre lento, gradual, ponderado. Trata-se de algo “novo” que, a partir do Concílio e em nome deste, se infiltrou em todas as maneiras em que se expressa o magistério ordinário:
— modo explícito: “novas” doutrinas, “novas” catequeses, “novas” interpretações ou “releituras” dos Padres da Igreja e até da Escritura Sagrada;
— modo implícito: “nova”, ou melhor, “novas” liturgias, “nova” disciplina (se é que a podemos chamar assim), “novas” práticas, e a verdadeira Igreja de Jesus Cristo considerada do mesmo modo que as seitas heréticas e/ou cismáticas, que o hebraísmo e que as religiões falsas;
— modo tácito: a todos os documentos do magistério precedente se desconsidera na medida do possível, destruindo-os ou sepultando-os no esquecimento, enquanto uma “doutrina” nova de alto a baixo vai tomando corpo e fazendo-se sensível ante nossos olhos em “monumentos” inteiramente novos.
Diante de tamanha irrupção de “novidades”, aos católicos lhes cabe o dever perante Deus, e por conseguinte o direito irrenunciável perante os homens, de perguntar-se se estas “novidades” são desenvolvimentos ou corrupções doutrinais, «se a Igreja de hoje — para dizê-lo com o Cardeal Ratzinger — é realmente a de ontem, ou se a mudaram por outra sem fazê-lo saber» .
O contraste com o “antigo”: índice de corrupção doutrinal
Em tais circunstâncias, os católicos não estão desprovidos em absoluto de um critério objetivo para poder distinguir o desenvolvimento legítimo das corrupções doutrinais.
O critério, acessível a todos, ensinam-no os Padres da Igreja, a unanimidade dos teólogos realmente católicos (quer dizer, que “conhecem as regras da fé” e as respeitam), a prática e o próprio magistério da Igreja.
São Vicente de Lérins escreve em seu Commonitorium (século V), ideado precisamente para encontrar «uma regra certa» que permitisse aos católicos distinguir a verdade do erro em tempos em que «a astúcia dos novos hereges exige uma vigilância e uma atenção cada vez maiores»: «Mas se objetará: Não se dará, segundo isso, progresso algum da Religião na Igreja de Cristo? Dê-se em boa hora, e grande. Quem haverá tão mesquinho para com os homens e tão aborrecível a Deus que trate de impedi-lo? Mas de tal maneira, que seja verdadeiro progresso da fé, não uma alteração dela. A saber, é próprio do progresso que cada coisa se amplifique em si mesma; e o próprio da alteração é que algo passe de ser uma coisa a ser outra» (XXIII, 1-3). Depois, comentando a exortação de São Paulo a Timóteo (I Tim 6, 20: «Ó Timóteo, guarda o depósito, evitando as profanas novidades de palavras»), São Vicente de Lérins explica: «Profanas novidades de palavras. De palavras, a saber: as novidades de dogmas, de matérias, de sentenças que são contrárias à antigüidade e ao passado...».(XXIV, 3-4) .
Aí está, pois, a regra: se no âmbito da Igreja desponta algo “novo” contrário ao antigo não é uma verdade tirada de seu tesouro, mas a cizânia do erro semeada pelo inimicus homo (Mt 13, 24-3O) . Não cabe dúvida quanto a tal coisa. «Ao antigo é que há que ater-se: se a novidade é profana, a antigüidade é sagrada»; é a novidade a que deve cessar «de fazer recair suspeitas sobre a antigüidade e de formular acusações contra ela»; é a novidade a que há de deixar de «molestar e perseguir a antigüidade», enquanto a fé antiga não deve cessar «de opor-se à novidade com todas as suas forças» .
Entre os teólogos realmente católicos nos apraz citar aqui o Cardeal Newman, porque os modernistas tergiversam com respeito a ele injustamente.
Entre os critérios que pormenoriza para distinguir um desenvolvimento legítimo da corrupção doutrinal, o Cardeal Newman põe «a tendência dos desenvolvimentos posteriores em conservar a doutrina possuída precedentemente»; assim, pois, quando o “novo” tenda, em contrapartida, a excluir o “antigo”, estamos sem dúvida ante uma corrupção doutrinal . Trata-se, em essência, do cânon leriniano.
No mesmo critério aparece inspirada a prática da Igreja nos Concílios dogmáticos consagrados a distinguir a verdade católica da heresia.
Já determinou o segundo Concílio de Nicéia (787), ao condenar o conciliábulo dos iconoclastas (Constantinopla, 753), que a coerência doutrinal com a tradição constitui uma das condições da ecumenicidade de um Concílio: «Como poderia ser por sua vez o Sétimo [Concílio] aquele que não concorda com os seis santos Concílios ecumênicos que lhe precederam? [...] Seria como se alinhássemos seis moedas de ouro e lhes acrescentássemos depois um vintém: não se poderia chamar sétima à última, e isso em razão da diversidade de sua matéria...» .
«Como poderia [...] pretender ser o Sétimo o que não segue os seis Concílios que lhe precederam?... Vós, que haveis violado as tradições daqueles seis [Concílios precedentes], como haveis podido chamar sétimo ao vosso?»: assim o santo abade Estêvão havia reprovado aos iconoclastas, 25 anos antes, sua ruptura com a tradição, razão por que o mataram a pauladas .
Por último, o magistério infalível da Igreja fez sua a regra leriniana no Vaticano I, repetindo-a ao pé da letra na Constitutio de fide catholica, sessão III: «Cresça, pois, e muito e poderosamente se adiante em quilates, a inteligência, ciência e sabedoria de todos e de cada um, ora de cada homem particular, ora de toda a Igreja universal, das idades e dos séculos, mas somente em seu próprio gênero, quer dizer, no mesmo dogma, no mesmo sentido, na mesma sentença» (Denzinger nn.1800 e 1818).
Ecumenismo e “liberdade religiosa”: não progresso, mas corrupção doutrinal
Quando se iniciou o Vaticano II, a Igreja gozava da posse secular e indiscutida de doutrinas explícitas relativas:
— à verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por conseguinte, à posição das seitas heréticas e/ou cismáticas, do hebraísmo e das religiões falsas;
— às relações Igreja/Estado e, em particular, à noção exata de “liberdade religiosa” e à tolerância dos cultos falsos .
Ademais, a Igreja gozava, na abertura do Vaticano II, de uma liturgia, expressão íntegra e inequívoca de fé católica.
A estes três campos (eclesiologia, relações Igreja/Estado, liturgia) invadiu-os o que de “novo” trazia o Concílio. Por desgraça, era algo “novo” contrário, ou melhor, em pugna com o antigo. Com efeito, se a Igreja ensina, como ensinou sempre até o Vaticano II, que a Igreja de Cristo é uma só, que fora dela não há salvação e que, portanto, as demais supostas “Igrejas” não são igrejas, mas seitas, «igrejas ilegítimas» (São Irineu), «sarmentos secos» (Santo Agostinho), e que os indivíduos particulares, se padecem de ignorância invencível, podem salvar-se só em virtude da pertença in voto à Igreja verdadeira, de modo algum desta doutrina constante pode inferir-se hoje, com o Vaticano II, que «as igrejas e comunidades separadas [...] de nenhuma maneira estão desprovidas de sentido e valor no mistério da salvação. Porque o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como meios de salvação» . Não pode inferir-se tal coisa porque a doutrina “nova” exclui a antiga abertamente e ofende as verdades reveladas que se contêm nela a título de conseqüências. Com efeito, a doutrina nova descobre que são legítimas as “igrejas ilegítimas”, que a seiva da graça divina corre pelos “sarmentos secos” e, em conseqüência, que a Igreja de Cristo já não é única nem constitui «a arca única de salvação» (Denzinger n. 1647). Depois, no pós-Concílio, em nome do decreto conciliar Nostra Aetate, se promoveu também as religiões não-cristãs à categoria de caminhos de salvação, pelo menos «extraordinários».
Mais ainda: se a Igreja ensina, como o fez sempre até o Vaticano II, que Nosso Senhor Jesus Cristo tem direito, por ser Deus, de reinar não só sobre os indivíduos mas também sobre as sociedades, e que, por conseguinte, só a Igreja Católica goza do direito natural e divino à assistência negativa e positiva do Estado, na qual se compreende outrossim o dever de impedir o culto público das religiões falsas, a não ser que motivos de prudência política aconselhem sua tolerância, desta doutrina constante da Igreja não pode deduzir-se de maneira alguma, com o Vaticano II, que exista um “direito” da pessoa humana de que não se lhe impeça a profissão pública e associada de sua crença falsa ou até irreligiosa , nem que o mesmo “direito” caiba às seitas e às religiões falsas . Não se pode deduzir isso porque a doutrina “nova” exclui a antiga e não deixa imune a verdade revelada que esta compreende a título de conseqüência. Com efeito, no dizer da doutrina “nova”, a Igreja católica já não é a única igreja instituída por Deus e, por conseguinte, cessa o direito unicamente da Igreja católica à assistência do Estado, cessa o dever do Estado de impedir o culto público das religiões falsas e lho substitui pela obrigação de favorecê-las sem discriminação; e já nem há meio de falar em “tolerância”. Em suma, Nosso Senhor Jesus Cristo já não goza do direito de reinar sobre as sociedades; seus próprios ministros o destronaram.
O anterior pode bastar para provar que as “novidades” do Concílio não são progressos, mas corrupções doutrinais, e o confirma irrefutavelmente tudo o que a hierarquia vem fazendo no pós-Concílio em nome daquele, mas contrariamente à tradição católica: a primeira e segunda “reuniões de oração” de Assis, junto com as outras iniciativas ecumênicas, sempre vedadas pela Igreja; a liquidação dos Estados católicos que restavam, incluída a Itália, em razão das “novas” concordatas; a supressão das duas estrofes relativas à realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo no hino das primeiras e segundas vésperas de Cristo Rei etc. etc. Para quê continuar a enumeração? Basta pensar que o Cardeal Ratzinger chegou a declarar “perimée” , quer dizer superada, defunta, a doutrina católica sobre as relações Igreja/Estado (como se uma doutrina constante da Igreja pudesse negar-se sem negar também a infalibilidade desta).
Quanto à nova liturgia, de maneira alguma se pode considerar legítimo um Novus Ordo, do qual a posteridade deduzirá (fazendo uso do princípio acima mencionado segundo o qual “a lei da oração estabelece a lei da fé”) que a Igreja professou na última etapa do século XX uma fé mais protestante do que católica no tocante ao Santo Sacrifício da Missa.
Sim, o “teólogo da Casa Pontifícia” acertou em cheio: a resistência católica não luta tão-somente contra o rito de Paulo VI (que nasceu igualmente por motivos ecumênicos), mas também contra “o Concílio, o ecumenismo, a liberdade religiosa”, contra todo o “novo” que se quer acreditar como “desenvolvimento doutrinal”, segundo parece, ao passo que constitui uma corrupção evidente da doutrina à que a consciência católica está vinculada sub gravi.
Hirpinus
(Revista Sim Sim Não Não, no. 112)