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Reminiscências astronômicas

 

Foi no terceiro ano da Escola que voltei à astronomia. Em 1918? Creio que sim. Mas não era à poética astronomia dos anéis de Saturno ou da nebulosa espiral de Andrômeda que eu voltava, e sim à geometria e abstrata, que toma as estrelas como pontos de referência para determinar as coordenadas geográficas. O símbolo se impõe: quando queremos saber com firmeza onde pisamos, devemos erguer os olhos para o céu.
 
Em 1918, antes da famosa gripe espanhola, que foi uma peste medieval temporã, talvez a última, entreguei-me todo aos ângulos horários, às ascensões retas e ao jogo do xadrez. Há estações da vida mais chuvosas e outras mais secas. Naquele tempo minha paixão foi a das abstrações geométricas, mas muitas vezes, à noite, fechado no quarto, debruçava-me a arranhar o papel no baldado esforço de dizer em verso as coisas indizíveis; e também muitas vezes achei-me a chorar sem saber porquê.
 
Depois do jantar, com uma perseverança mutuamente reforçada, meu amigo Lacombe e eu subíamos o morro de Santo Antônio, onde estava instalado o observatório da escola, e lá ficávamos, não a ouvir estrelas, mas a medir graus, minutos e segundos.
 
O leitor talvez não conheça a espécie de exultação que vem do exercício da exatidão. Forma humilde da verdade, o décimo segundo de arco tem um fascínio esportivo, poético e moral. Medir é um modo de possuir, além de ser um modo de conhecer; é também um modo de se comprometer.
 
Às vezes nossas observações eram interrompidas pelo bom Professor Orozimbo, conservador do observatório, que me dava a impressão de estar interessado em todas as coisas, com exceção da astronomia. Para a solidão de sua ilha no alto de um monte, nós éramos o mundo, ou seríamos o que Sexta-Feira foi para Robinson Crusoé, com a diferença da regularidade com que todas as noites, pontualmente, naufragávamos no seu litoral.
 
O Professor Orozimbo gostava de discorrer sobre os mais variados assuntos. Uma noite, quando apontei a luneta para a primeira estrela de um par Sterneck, o Professor Orozimbo explicava ao Lacombe a incontestável superioridade dos cobertores argelianos; e quando virei cento e oitenta graus em busca da segunda estrela, descrevia ele minuciosamente a maneira de dar o ponto na goiabada campista.
 
Tive alunos, e creio que dois deles, ainda vivos, se lembrarão do Morro de Santo Antônio. Bons tempos! Largos tempos! Mais tarde sonhei entrar para o Observatório Nacional que para mim era a catedral da astronomia. Tive então a idéia de valer-me de um trabalho original com que me apresentaria ao Dr. Morize, sem necessidade do pistolão, que aliás eu não tinha.
 
Tratava-se de um método de determinação de latitude por alturas iguais, sem leitura do círculo meridiano, sendo a diferença de altura das duas estrelas determinada pela diferença de ângulo horário. Esse trabalho figurou na tese de concurso do Professor Alírio de Matos, mas não deu o resultado que eu esperava na tentativa de entrar no Observatório. Apresentei-me sozinho, com o embaraço que naquele tempo tinham os moços de vinte e dois anos. Tremendo, subi as escadas do edifício, e parei vacilante na porta do diretor. Bati.
 
- Entre!
 
Entrei, e quando achei minha voz pus-me a tartamudear uma explicação do que pretendia. Meu sonho era ter um lugar no Observatório, e por isso trazia um trabalho original, sim, isto é, quero dizer um processo de determinação de latitude com o teodolito, processo que tinha a vantagem, sim, quero dizer, a superioridade sobre o Sterneck de dispensar a leitura do círculo vertical...
 
Abri o rolo e deixei cair no chão metade dos papéis, e, envergonhado como um réu, ouvi a sentença glacial que descia do alto do pico Everest. O professor veria mais tarde, o professor não via vantagem alguma sobre o Sterneck, e finalmente o professor traçou no ar um gesto, uma espécie de absolvição às avessas – tudo isto sem perceber que o pobre moço alourado e corado, que tinha diante de si, tentava em vão transmitir-lhe um segredo de amor. Despediu-o secamente, e o moço, no meio da escadaria de entrada, vendo que estava só diante do céu e do jardim, sentou-se no degrau, com o canudo de sua invenção embaixo do braço, e chorou amargamente.
 
Não imagine o leitor, pelo amor de Deus, que eu esteja aqui, meio século depois, a desforrar-me e a denegrir o professor Morize. Nem me passou pela mente, naquela manhã, que eu devia ser compreendido pelo professor. Os tempos eram outros. O professor usava sobrecasaca e o aluno usava o respeito. E isto era bom.
 
Para vencer a tensão superficial que separava os dois mundos, era preciso dispor de uma força maior ou de uma vocação mais invencível. Um Gauss, aos dezoito anos, em pleno século do superego e da autoridade paterna, conseguiu mudar o curso de uma Universidade alemã: o Reitor reuniu solenemente toda a congregação e alunos para comunicar que o jovem Gauss nada mais tinha a aprender ali, mas muito a ensinar. Mas os Gauss são raros, sobretudo nos trópicos.
 
Depois desse malogro, tive de procurar emprego, por serem poucos os alunos, e foi nesse tempo que meu padrasto conseguiu para mim um lugar de fiscal de lixeiro no serviço de Limpeza Pública. O serviço era simples: tinha de acordar às quatro da manhã para assinar ponto em São Cristóvão às cinco. E dali saíamos nós, cinco ou seis, a fiscalizar o serviço das carroças.
 
Durante esses meses conheci o avesso das cidades adormecidas, ou a perspectiva do mundo vista do lado da lata do lixo. Envergonhava-me um pouco o ofício de vigiar um pobre ainda mais pobre do que eu, mas admitia sem grande relutância a necessidade de tal mister. Fiz dois ou três amigos que me contavam histórias de suas necessidades, e tive o encargo de escrever cartas de amor para um colega que tinha o amor, mas não sabia como exprimi-lo. Às vezes o acaso, ou melhor, a carroça do lixo me levava para os lados de São Januário, e eu então via de longe as cúpulas desejadas do Observatório que desdenhara meu amor.
 
Hoje, à distância de meio século, bendigo a sorte que me deu uma juventude de luminosa e transparente pobreza, e até, lembrando-me agora do episódio, agradeço a Deus a resistência oferecida pelo bom professor Morize. Um professor é um professor, e para o razoável equilíbrio do mundo é bom que os moços encontrem algumas resistências em todos os seus amores.

 

(30/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência)

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